Usura na Teoria Contratual Libertária – Versão 2.1

Resumo
Este artigo propõe uma crítica à prática da usura — entendida como a imposição de juros inválidos contratualmente — a partir de uma abordagem OrdoNaturalista inspirada na ética argumentativa de Hans-Hermann Hoppe. Diferentemente das visões utilitaristas, marxistas e religiosas, que tratam a usura como aceitável se útil ou condenável se exploratória, argumenta-se que ela é nula ab initio por violar os princípios da autopropriedade e da reciprocidade contratual. O texto distingue empréstimos legítimos, baseados em risco mútuo e garantias limitadas, de empréstimos usurários, caracterizados por responsabilidade ilimitada, perpetuação da dívida e alienação da autonomia do devedor. Ao final, conclui-se que a usura é incompatível com a ordem natural e constitui uma forma disfarçada de escravidão econômica.
1. Introdução
Na perspectiva OrdoNaturalista, que desenvolvo a partir do libertarianismo hoppeano, a usura deve ser compreendida não apenas como uma prática financeira controversa, mas como um contrato inválido por natureza.
Historicamente, as religiões abraâmicas condenaram a usura como pecado, enquanto a modernidade passou a aceitá-la como um mecanismo financeiro necessário ao crédito e a atividade bancaria. No entanto, a prática persiste como objeto de debates éticos, sobretudo em casos de empréstimos predatórios, como os emprestimos estudantis americanos e payday loans e financiamentos de consumo com juros compostos abusivos.
Diferencio-me de três visões predominantes:
- A utilitarista, que considera a usura aceitável se promover benefícios econômicos gerais.
- A marxista, que enxerga qualquer juros como forma intrínseca de exploração capitalista.
- A religiosa, o meu intuito é um argumento secular e natural, sem fundamentação religiosa mas pode ser usada por religiosos.
Aqui, o argumento central é que a usura é inválida em seu âmago, porque atenta contra os princípios contratuais libertários derivados da ética hoppeana.
Este artigo é uma versão atualizada do meu artigo anterior sobre o tema.
2. Da Ética Argumentativa à Teoria Contratual
Hans-Hermann Hoppe, em Uma Teoria do Socialismo e do Capitalismo (1989), apresenta a ética argumentativa, na qual a própria prática do debate exige o reconhecimento da autopropriedade como princípio normativo. Cada indivíduo é dono exclusivo de seu corpo e de seus frutos produtivos.
Embora Hoppe não trate diretamente da usura, sua estrutura normativa oferece as ferramentas para analisá-la:
- contratos são válidos apenas quando preservam a autopropriedade,
- e quando não estabelecem relações de dominação irrestrita.
Logo, contratos de dívida que alienem ilimitadamente o futuro do devedor ou que impossibilitem sua saída voluntária não passam no crivo da argumentação ética: equivalem a coerção disfarçada.
3. Empréstimos Legítimos versus Empréstimos Usurários
Para delimitar com clareza a fronteira entre contratos legítimos e contratos usurários, é necessário recorrer a exemplos concretos que posteriormente darei os fundamentos teóricos para a sua distinção.
Exemplos de Empréstimos Legítimos
- Hipoteca com risco mútuo: Suponha que um indivíduo contrate um empréstimo de 1 milhão, oferecendo como garantia uma casa avaliada em 1,5 milhão. A dívida cresce a juros de 1% ao ano. Se o imóvel se valorizar, o devedor pode vendê-lo e quitar a obrigação integralmente, retendo o excedente. Se desvalorizar, ele pode entregar a propriedade ao credor, extinguindo a dívida sem comprometer seu patrimônio adicional. Nesse caso, tanto o credor quanto o devedor assumem riscos: um perde a valorização potencial, o outro limita sua exposição ao bem hipotecado.
- Empréstimo agrícola com safra como colateral: Um fazendeiro recebe financiamento de 100 mil, oferecendo sua produção futura de grãos como garantia. Se a safra for boa, o devedor quita a dívida e conserva o excedente. Se for perdida por intempéries, o credor arca com a redução do valor recuperado. Há risco mútuo e responsabilidade delimitada, sem alienação do devedor além da safra.
Exemplos de Empréstimos Usurários
- Cartões de crédito com juros compostos acumulativos: Dívidas que, mesmo quitando o valor original, continuam se acumulando devido a penalidades e taxas. Aqui, o credor não assume risco real além da possível inadimplência: o contrato perpetua-se indefinidamente, capturando o devedor em servidão financeira.
- Contratos de empréstimos estudantis sem falência possível (EUA): O devedor é proibido de declarar insolvência e se ver livre da obrigação. Trata-se de alienação permanente da autonomia, configurando contrato nulo.
- Empréstimos públicos internacionais com garantias ilimitadas: Estados assumem dívidas que comprometem receitas futuras de tributos por décadas, transferindo o ônus a gerações que não consentiram no contrato.
Esses exemplos demonstram que a validade do empréstimo não se resume à presença de juros, mas depende da estrutura contratual para a legitimidade destes juros. Apenas quando há reciprocidade, risco mútuo e responsabilidade limitada é que o contrato pode ser considerado legítimo.
4. Transferência de Título, Risco e Saídas Contratuais
Na teoria da transferência de título de contratos (TTToC), conforme articulada por Murray Rothbard em A ética da liberdade (1982) e refinada por pensadores como Stephan Kinsella, um contrato válido surge exclusivamente da transferência voluntária e recíproca de título sobre recursos escassos e alienáveis, i.e. bens, serviços ou direitos condicionais, ancorada na autopropriedade e na ética libertária. Essa estrutura transcende formalismos legais, servindo como pilar ético que assegura a voluntariedade e a justiça nas relações bilaterais, alinhando-se à ética argumentativa de Hans-Hermann Hoppe.
Em essência, a TTToC promove reciprocidade por meio de trocas simultâneas de título: cada parte deve transferir algo de seu domínio exclusivo para que o acordo não resulte em uma doação unilateral ou imposição coercitiva. Por exemplo, em uma venda, o comprador transfere título sobre dinheiro em troca do título sobre o bem do vendedor, criando obrigações simétricas baseadas em propriedade genuína. Isso reforça a integridade das interações voluntárias, impedindo que contratos se tornem ferramentas de exploração.
Na ausência de transferência mútua de título, como em empréstimos onde o credor não assume risco proporcional sobre recursos próprios, o acordo degenera, invalidando sua legitimidade moral e contratual, pois viola o cerne da TTToC: não se pode transferir o que não se possui, nem alienar direitos inalienáveis como a autopropriedade.
Essa relação de troca deve ser concomitante em um regime de quid pro quo, sob pena de degenerar em algo análogo a uma dupla doação, a qual não seria juridicamente exigível. Afinal, ninguém pode ser obrigado a transferir título em resposta a uma doação prévia, pois se trataria de uma promessa vazia, desprovida da substância ética de uma troca de propriedade voluntária.
Além da transferência recíproca de título, todo contrato deve prever saídas claras e proporcionais para as partes envolvidas, sob pena de invalidade ética e prática. Sem mecanismos de resolução ou rescisão — como cláusulas de saída por mútuo acordo, limites temporais ou condições de falha —, o arranjo contratual pode degenerar em uma alienação permanente da vontade individual, transformando o consentimento inicial em uma prisão indefinida.
Essa alienação viola o cerne da autopropriedade: o direito de um indivíduo de não se vincular irrevogavelmente a obrigações que o escravizem economicamente ou moralmente. Ademais, a noção de que um indivíduo possa se vender à escravidão é injustificável dentro do libertarianismo, como já elaborou Kinsella em seu livro Legal Foundations of a Free Society (2025).
Um contrato usurário exemplifica essa falha de forma paradigmática. Nele, os juros compostos e as penalidades cumulativas criam uma dívida que se retroalimenta, gerando dívidas sobre dívidas, sem horizontes claros de quitação. O devedor, inicialmente atraído pelo capital oferecido, vê sua autonomia erodida: a dívida transcende a garantia inicial, estendendo-se a bens pessoais, trabalho futuro ou até gerações subsequentes. Tal estrutura não é um risco assumido voluntariamente, mas uma armadilha que mascara coerção sob o pretexto de consentimento. Esses contratos são nulos ab initio (inválidos desde o início), pois subvertem a reciprocidade na transferência de título e transformam a relação em dominação unilateral, pois o consentimento formal por si só não é suficiente como critério de validação.
Essa exigência de saídas não é um capricho regulatório, mas uma salvaguarda essencial para a liberdade contratual. Contratos sem escapes — como dívidas perpétuas ou obrigações ilimitadas — equivalem a escravidão velada, contrariando a ética argumentativa de Hoppe. Em contraste, arranjos legítimos incorporam “válvulas de escape” que preservam a agência individual, permitindo renegociações ou dissoluções sem punições desproporcionais. Dependendo do grau de abuso — como em contratos deliberadamente predatórios ou que visam escravizar o devedor —, pode-se justificar a imposição de multa punitiva ao credor. Tal penalidade atua não como regulação arbitrária, mas como reparação pela tentativa de fraude, abuso contratual e violação ética.
Nota: Na teoria contratual convencional, especialmente derivada do common law, a “consideração” refere-se ao elemento essencial de um contrato: um benefício ou ônus trocado mutuamente entre as partes, como o “preço” por uma promessa (ex.: pagamento em troca de um bem), garantindo reciprocidade e evitando promessas unilaterais vazias. Esse formalismo assegura equilíbrio e exigibilidade legal. Em contraste, a Title Transfer Theory of Contract (TTToC), de Murray Rothbard, rejeita a consideração como requisito formal, ancorando a validade exclusivamente na transferência voluntária e recíproca de título sobre recursos escassos e alienáveis, sem necessidade de promessas vinculantes abstratas — o foco é na autopropriedade e ética, não em obrigações futuras formalizadas. Eu em discussões uso o termo de forma heurística para acessibilidade ao publico não-libertário, mas o argumento central alinha-se integralmente à TTToC pois se trata de bens disponiveis, me foi apontada essa possibilidade de confusão e resolvi clarificar.
5. Responsabilidade e Risco no Contexto Libertário
Os contratos representam expressões puras da autonomia da vontade humana, baseados nos alicerces da Teoria da Transferência de Título de Contratos (TTToC), nos quais as partes negociam livremente os termos de suas trocas, trocas recíprocas de título sobre recursos escassos e alienáveis, sem interferência externa, justificando as noções de risco e responsabilidade contratual.
A transferência recíproca de título garante que cada parte incorpore uma obrigação mútua no contrato, evitando assimetrias unilaterais. Sem ela, um acordo poderia degenerar em uma exigência arbitrária que o anularia, onde uma parte impõe deveres à outra sem contrapartida equivalente, uma forma sutil de expropriação que viola o princípio de não-agressão. Por exemplo, um credor que empresta sem assumir qualquer risco pessoal (como flutuações de mercado ou inadimplência) não efetua uma transferência genuína de título, tornando o contrato uma exigência impositiva de doação inescapável. Essa responsabilidade mútua reforça a ética libertária: ninguém é coagido a cumprir promessas vazias, e toda troca deve envolver compromissos bilaterais que respeitem a propriedade individual e a autopropriedade.
Ao demandar que ambas as partes “coloquem algo em jogo” — seja capital, tempo ou esforço —, a transferência recíproca de título instaura um equilíbrio de riscos inerente ao contrato. Cada participante aceita as potenciais perdas decorrentes de sua decisão, promovendo uma alocação racional de recursos e inibindo comportamentos oportunistas (como o risco moral, também conhecido como bigodagem, onde uma parte age imprudentemente sabendo que o ônus recai sobre o outro).
Em um empréstimo legítimo, por exemplo, o credor arrisca a depreciação da garantia, enquanto o devedor expõe um bem específico sem alienar sua pessoa integral. Esse risco compartilhado reflete a responsabilidade individual: ações têm custos, e a liberdade contratual floresce quando esses custos são internalizados por todos.
6. A Usura e o Problema da Dívida Pública
A dívida pública representa um caso extremo de usura institucionalizada. Diferente dos contratos privados, ela apresenta vícios incontornáveis:
- É contraída sem consentimento individual dos cidadãos;
- É transmitida para gerações futuras, que não participaram do “acordo”;
- É estruturada de modo a nunca se extinguir, pois a rolagem contínua perpetua os encargos de juros.
Sob a ótica OrdoNaturalista, a dívida pública é inválida desde sua origem, configurando escravidão econômica coletiva imposto pela escravidão política advinda do estado.
Murray Rothbard foi incisivo nesse ponto: para ele, a dívida pública pode e deve ser caloteada. Em Pelo fim do Banco Central (1994) e em outros textos, ele argumenta que tal dívida não representa contratos voluntários, mas imposições coercitivas via tributação. Assim, anulá-la não constitui inadimplência legítima, mas sim a restauração da justiça contra um esquema de expropriação.
Logo, a dívida pública, longe de ser uma instituição financeira legítima, é a maior expressão de usura sistêmica — um contrato sem consentimento, sem risco ao credor e sem possibilidade de saída para os devedores (os cidadãos) não é um absurdo notar os reflexos deste abuso sistemáticos em sua contraparte privada.
Conclusões sobre a Usura
- Nem todo juro é usura: quando há risco mútuo, responsabilidade limitada e possibilidade de saída, os juros são legítimos.
- Juros altos não são usura: usura são os juros contratualmente inválidos.
- Toda a usura é inválida: ocorre quando o credor elimina seus riscos e impõe obrigações ilimitadas.
- A autopropriedade é inalienável: nenhum contrato pode exigir servidão por dívida.
- Sem mecanismos de saída contratos são nulos ab initio: e devem ser revertidos as condições anteriores ou análogas, com possibilidade de multa em casos abusivos.
- A dívida pública deve ser repudiada — fortalecendo a crítica à usura privada.
Em síntese: contratos sem responsabilidade limitada, ausência de saída e impossibilidade de falência são inválidos. Cobrar juros sobre estes contratos inválidos é usura. Nos demais casos, juros são válidos.
A usura não é apenas antiética: é juridicamente inválida e incompatível com uma ordem social fundada na autopropriedade e na reciprocidade contratual. Em contraste, os empréstimos legítimos fortalecem a cooperação social, enquanto os usurários instauram escravidão econômica disfarçada de contrato.
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