Abaixo da superfície

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Em dois dias consecutivos, eu andei de metrô em Londres e em Paris. Uma diferença entre os usuários dos dois metrôs me deixou realmente impressionado.

No metrô de Londres, apenas 5% dos passageiros usavam máscaras. No metrô de Paris, no máximo 1% estavam sem máscara.

O contraste foi ainda mais surpreendente porque o uso de máscaras era igualmente obrigatório em ambos os metrôs. No metrô de Londres, havia muitos cartazes dizendo isso, e de vez em quando o sistema de som anunciava a obrigatoriedade. No metrô parisiense, também havia esses anúncios pelo sistema de som, embora pronunciados com muito mais clareza do que no metrô de Londres. Os administradores do metrô de Londres fazem questão de contratar pessoas com sotaques incompreensíveis ​​ou problemas de fala para fazer anúncios, como parte de suas agendas de engenharia social.

A diferença entre os passageiros em Londres e Paris pode ser explicada de mais de uma maneira, e não fiz as pesquisas necessárias para poder dizer qual é a correta. Talvez o metrô de Paris seja patrulhado de maneira mais rigorosa do que o metrô de Londres, de modo que a ameaça de uma multa substancial para quem não usa máscaras é real, coisa que não é real em Londres. Talvez a população de Londres seja mais indisciplinada ou amante da liberdade do que a de Paris, ou seja, são mais punks. Ou ainda, talvez tenha uma compreensão melhor ou pior, pelo menos diferente, dos benefícios do uso de máscaras em locais públicos.

No entanto, era de se esperar na Grã-Bretanha, temos o pior dos dois mundos: intimidação oficial e ineficácia completa. Um aviso na beira da estrada que diz aos motoristas que não devem jogar lixo certamente estará cercado por uma grande quantidade de lixo, como se o lixo refletisse o que a população pensa de sua oficialidade. Eles sabem que a ameaça de multa – às vezes até US$2.500 – não é real, pois a administração pública é incapaz de cumprir suas ameaças. E de qualquer modo, os britânicos, sendo de longe o povo mais desleixado da Europa Ocidental, se não de uma área muito maior, podem não saber a diferença entre uma beira de grama e um pequeno cesto. Como resultado, eles transformaram todo o seu país em uma vasta lata de lixo.

As relações entre a população e o estado na Grã-Bretanha são de dever e obrigação: o dever e a obrigação da população para com o estado, e não o contrário. Durante o primeiro lockdown da Covid – já nem lembramos mais quantos existiram – a população foi ordenada a ficar em casa para “proteger o NHS”, (o SUS do Reino Unido) o gigantesco sistema de saúde centralizado que a atendeu tão mal por mais de setenta anos. Em essência, pediram que a população modificasse seu comportamento para a conveniência de uma burocracia estatal. O governo poderia muito bem ter dito: “Proteja a Receita Federal: pague seus impostos”.

O governo conseguiu se safar com um slogan tão ridículo devido a uma das campanhas de propaganda de maior sucesso da segunda metade do século XX, a saber, que a instituição do NHS foi um grande avanço social. Não foi nada disso: antes de ser fundado, o país tinha um dos melhores sistemas de saúde do mundo desenvolvido e logo se encontrou entre os piores. A intenção do novo serviço era igualitária – tratamento gratuito nos postos de saúde e pago com impostos gerais – e ninguém realmente se preocupou em verificar se seu efeito era igualitário. E como tem aspectos muito desagradáveis ​​para praticamente todos, ricos ou pobres, o povo britânico ainda acredita que é igualitário em seus efeitos, quando está longe de ser isso. Seus benefícios são conferidos aos ricos, estudados e articulados, pois o princípio geral da administração pública britânica é que algo seja feito apenas se não fazê-lo puder causar mais problemas aos burocratas relevantes no final. Os ricos, estudados e articulados podem causar problemas; os pobres, incultos e inarticulados só podem gritar ou jogar tijolos na janela (geralmente à prova de balas e frequentemente à prova de som também).

A população britânica, acreditando que a igualdade é um bem em si, independentemente de tudo o que for igualado por meio dela, passou a considerar o caráter totalmente desagradável do NHS – obter tratamento que é uma corrida de obstáculos em hospitais degradados operados por funcionários exaustos e descontentes – como evidência de sua virtude moral essencial, pois é desagradável para todos. Todos são indigentes nos portões do NHS, e onde todos são indigentes, ninguém é.

Além de serem mais bem tratados, os ricos, estudados e articulados têm rotas de fuga, ainda que caras. A medicina privada ainda é permitida na Grã-Bretanha, mas em condições de escassez os preços sobem e por isso é muito, na verdade estratosfericamente, mais cara do que deveria ser ou do que é em outros lugares na Europa. Os ricos também podem ir para o exterior para tratamento, e vão.

Talvez a determinação da população de não obedecer às regras do metrô de Londres seja uma rebelião incipiente contra um estado agressivo e exigente que retorna muito pouco para aqueles a quem intimida. Na França, os impostos são mais altos do que na Inglaterra, mas pelo menos algo de valor é devolvido à população; na Grã-Bretanha, muito pouco é, na verdade, muito do que retorna tem valor negativo. A infraestrutura do país está se desintegrando, seu sistema educacional deixa muitas crianças ignorantes e despreparadas para qualquer coisa, seu serviço de saúde é horrível e todos (exceto o governo, que é servo da burocracia) sabem que não importa quanto se gaste nessas coisas, elas nunca vão melhorar.

Existem convergências e também divergências entre Londres e Paris. Em ambas as cidades, as ciclovias estão aumentando o congestionamento. Em Paris, as ruas são fechadas com blocos de concreto horrorosos, arruinando ruas outrora graciosas e transformando-as em favelas. Recentemente, em Londres, passei meia hora em um engarrafamento para andar um quilômetro em uma via pública, metade da qual havia sido bloqueada para ciclistas – dos quais, em meia hora, nenhum deles passou por nós. Por esses meios, as burocracias nos permitem saber quem é o chefe – e não somos nós.

 

 

Artigo original aqui

2 COMENTÁRIOS

  1. Em todas as partes do mundo vemos essa realidade inescapável: o dever e a obrigação da população para com o estado, e não o contrário. Se tem estado a realidade é essa. ” Na França, os impostos são mais altos do que na Inglaterra, mas pelo menos algo de valor é devolvido à população; na Grã-Bretanha, muito pouco é, na verdade, muito do que retorna tem valor negativo. ” Não acredito que algo de valor é devolvido à população, a não ser para a elite burocrática parasita do alto escalão do funcionalismo público.

    • Dalrymple não é um libertário, mas um consevador, no máximo um liberal clássico. O importante aqui é a sua crítica cultural, pois esse é um elemento um tanto escasso no libertarianismo.

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