Introdução
1. Economia e praxeologia
A economia é a mais nova das ciências. É verdade que, nos últimos duzentos anos, surgiram muitas ciências novas, além das disciplinas que eram familiares aos antigos gregos. Essas ciências novas, entretanto, eram apenas partes do conhecimento já existentes no sistema tradicional de ensino e que se tornaram autônomas. O campo de estudo foi mais bem subdividido e tratado com novos métodos; foram, assim, descobertos novos campos de conhecimento que até então não tinham sido percebidos, e as pessoas começaram a ver as coisas por ângulos novos, diferentes daqueles de seus precursores. O campo mesmo não se expandiu. Mas a economia abriu para as ciências humanas um domínio até então inacessível, no qual não se havia jamais pensado. A descoberta de uma regularidade na sequencia e interdependência dos fenômenos de mercado foi além dos limites do sistema tradicional de saber, pois passou a incluir um conhecimento que não podia ser considerado como lógica, matemática, psicologia, física, nem como biologia.
Durante muito tempo os filósofos ansiaram por identificar os fins que Deus ou a Natureza estariam procurando atingir no curso da história humana. Tentaram descobrir a lei que governa o destino e a evolução do gênero humano. Mas mesmo aqueles cuja investigação não sofria influência de tendências teológicas tiveram seus esforços inteiramente frustrados, porque estavam comprometidos com um método defeituoso. Lidavam com a humanidade como um todo ou através de conceitos holísticos tais como nação, raça ou igreja. Estabeleciam de forma bastante arbitrária os fins que fatalmente determinariam o comportamento de tais conjuntos. Mas não conseguiam responder satisfatoriamente a indagação relativa à que fatores compeliríamos indivíduos a se comportarem de maneira tal que fizesse com que o suposto objetivo pretendido pela inexorável evolução do conjunto, fosse atingido. Recorreram a artifícios insensatos: interferência milagrosa da Divindade, seja pela revelação, seja pela delegação a profetas ou líderes consagrados enviados por Deus; harmonia preestabelecida, predestinação; ou, ainda, influência de uma fabulosa e mística “alma mundial” ou “alma nacional”. Houve quem falasse de uma “astúcia da natureza”, que teria implantado no homem impulsos que o guiam involuntariamente pelos caminhos determinados pela Natureza.
Outros filósofos foram mais realistas. Não tentaram adivinhar os desígnios de Deus ou da Natureza. Encaravam as coisas humanas sob o ângulo do poder. Tinham a intenção de estabelecer regras de ação política, como se fossem uma técnica de governo e de condução dos negócios públicos. As mentes mais especulativas formulavam planos ambiciosos para reformar e reconstruir a sociedade. Os mais modestos se contentavam em coletar e sistematizar os dados de experiência histórica. Todos estavam convencidos de que no curso de eventos sociais não existiam regularidades e invariâncias de fenômenos, como já havia sido descoberto no funcionamento do raciocínio humano e no encadeamento de fenômenos naturais. Não tentavam descobrir as leis da cooperação social, porque pensavam que o homem podia organizar a sociedade como quisesse. Se as condições sociais não preenchessem os desejos dos reformadores, se suas utopias se mostrassem irrealizáveis,
a culpa era atribuída A deficiência moral do homem. Problemas sociais eram considerados problemas éticos. O que era necessário para construir a sociedade ideal pensava eles eram bons princípios e cidadãos virtuosos. Com homens honrados, qualquer utopia podia ser realizada.
A descoberta da inevitável interdependência dos fenômenos do mercado destronou essa opinião. Desnorteadas, as pessoas tiveram de encarar uma nova visão da sociedade. Aprendendo estupefatas que existe outro aspecto, diferente do bom e do mau, do justo e do injusto, segundo o qual a ação humana podia ser considerada. Na ocorrência de fenômenos sociais prevalecem regularidades as quais o homem tem de ajustar suas ações, se deseja ser bem-sucedido. É inútil abordar fatos sociais com a postura de um censor que os aprova ou desaprova segundo padrões bastante arbitrários e julgamentos de valor subjetivos. Devemos estudar as leis da ação humana e da cooperação social como um físico estuda as leis da natureza. Ação humana e cooperação social vistas como objeto de uma ciência que estuda relações existentes e não mais como uma disciplina normativa de coisas que deveriam ser – esta foi à revolução com consequências enormes para o conhecimento e para a filosofia, bem como para a ação em sociedade.
Por mais de cem anos, entretanto, os efeitos dessa mudança radical nos métodos de raciocínio foram bastante restritos porque se acreditava que só uma pequena parte do campo total da ação humana seria afetada, seja qual forem, os fenômenos de mercado. Os economistas clássicos, nas suas investigações, esbarraram num obstáculo que não conseguiram superar: o aparente paradoxo de valor. Sua teoria do valor era defeituosa e os forçou a restringirem o escopo de sua ciência. Até o final do século XIX a economia política permaneceu uma ciência dos aspectos “econômicos” da ação humana, uma teoria da riqueza e do egoísmo. Lidava com a ação humana apenas na medida em que esta fosse impelida pelo que era – muito insatisfatoriamente – considerada como motivação pelo lucro, e acrescentava que existiam outras ações humanas cujo estudo era tarefa de outras disciplinas. A transformação do pensamento que os economistas clássicos haviam iniciado só foi levada as suas últimas consequências pela moderna economia subjetivista, que transformou a teoria dos preços do mercado numa teoria geral da escolha humana.
Durante muito tempo os homens não foram capazes de perceber que a transição da teoria clássica de valor para a teoria subjetiva de valor era muito mais do que a substituição de uma teoria de mercado menos satisfatória por outra mais satisfatória. A teoria geral da escolha e preferência vai muito além dos limites que cingiam o campo dos problemas econômicos estudados pelos economistas, de Cantillon, Hume e Adam Smith até John Stuart Mill. É muito mais do que simplesmente uma teoria do “aspecto econômico” do esforço humano e da luta para melhoria de seu bem estar material. É a ciência de todo tipo de ação humana. Toda decisão humana representa uma escolha. Ao fazer sua escolha, o homem escolhe não apenas entre diversos bens materiais e serviços. Todos os valores humanos são oferecidos para opção. Todos os fins e todos os meios, tanto os resultados materiais como os ideais, o sublime e o básico, o nobre e o ignóbil são ordenados numa sequência e submetidos a uma decisão que escolhe um e rejeita outro. Nada daquilo que os homens desejam obter ou querem evitar fica fora dessa ordenação numa escala única de gradação e de preferência. A moderna teoria de valor estende o horizonte científico e amplia o campo dos estudos econômicos. Da economia política da escola clássica emerge a teoria geral da ação humana, a praxeologia1. Os problemas econômicos ou catalácticos estão embutidos numa ciência mais geral da qual não podem mais ser separados. O exame dos problemas econômicos tem necessariamente de começar por atos de escolha: a economia toma-se uma parte – embora até agora a parte elaborada – de uma ciência mais universal: a praxeologia.
2. O problema epistemológico de uma teoria geral da ação humana
Na nova ciência, tudo parecia problemático. Ela era uma intrusa no sistema tradicional de conhecimento; as pessoas estavam perplexas e não sabiam como classificá-la nem como designar o seu lugar. Por outro lado, estavam convencidas de que a inclusão da economia no sistema de conhecimento não necessitava de uma rearrumação ou expansão do programa existente. Consideravam completos o seu sistema de conhecimento. Se a economia não cabia nele, a falha só podia estar no tratamento insatisfatório aplicado pelos economistas aos seus problemas.
Rejeitar os debates sobre a essência, o escopo e o caráter lógico da economia, como se fossem apenas uma tergiversação escolástica de professores pedantes, é prova de desconhecimento total do significado desses debates; é um equívoco bastante comum supor que enquanto pessoas pedantes desperdiçavam seu tempo em conversas inúteis acerca de qual seria o melhor método de investigação, a economia em si mesma, indiferente a essas disputas fúteis, seguia tranquilamente o seu caminho. No Methodenstreit3 ,- entre os economistas austríacos e a Escola Historicista Alemã – que se auto intitulava “guarda-costas intelectual da Casa de Hohenzollern” – bem como nas discussões entre a escola de John Bates Clark e o institucionalismo americano4 havia muito mais em jogo do que a simples questão sobre qual seria o melhor procedimento.
A verdadeira questão consistia em definir os fundamentos epistemológicos da ciência da ação humana e sua legitimação lógica. Partindo de um sistema epistemológico para o qual o pensamento praxeológico era desconhecido e de uma lógica que reconhecia como científica – além da lógica e da matemática – apenas a história e as ciências naturais empíricas, muitos autores tentaram negar a importância e a utilidade da teoria econômica. O historicismo pretendia substituí-la por história econômica; o positivismo recomendava substituí-la por uma ilusória ciência social que deveria adotar a estrutura lógica e a configuração da mecânica newtoniana. Ambas as escolas concordavam numa rejeição radical de todas as conquistas do pensamento econômico. Era impossível aos economistas permanecerem calados em face de todos esses ataques.
O radicalismo dessa condenação generalizada da economia foi logo superado por um niilismo ainda mais universal. Desde tempos imemoriais, os homens, ao pensar, falar e agir consideraram a uniformidade e imutabilidade da mente humana como um fato inquestionável. Toda investigação científica estava baseada nessa hipótese. Nas discussões sobre o caráter epistemológico da economia, pela primeira vez na história do homem, este postulado também foi negado. O marxismo afirma que a forma de pensar de uma pessoa é determinada pela classe a que pertence. Toda classe social tem sua lógica própria. O produto do pensamento não pode ser nada além de um “disfarce ideológico” dos interesses egoístas da classe de quem elabora o pensamento. A tarefa de uma “sociologia do conhecimento” é desmascarar filosofias e teorias científicas e expor o seu vazio “ideológico”. A economia é um expediente “burguês”; os economistas são sicofantas do capital. Somente a sociedade sem classes da utopia socialista substituirá as mentiras “ideológicas” pela verdade.
Este polilogismo, posteriormente, assumiu várias outras formas. O historicismo afirma que a estrutura lógica da ação e do pensamento humano está sujeita a mudanças no curso da evolução histórica. O polilogismo social atribui a cada raça uma lógica própria. Finalmente, temos o irracionalismo sustentando que a razão em si não é capaz de elucidar as forças irracionais que determinam o comportamento humano.
Tais doutrinas vão muito além dos limites da economia. Elas questionam não apenas a economia e a praxeologia, mas qualquer conhecimento humano e o raciocínio em geral. Referem-se a matemática e a física, tanto quanto a economia. Parece, portanto, que a tarefa de refutá-las não cabe a nenhum setor específico do conhecimento, mas a epistemologia e a filosofia. Essa é, aparentemente, a justificativa para a atitude daqueles economistas que tranquilamente continuam seus estudos sem se importar com problemas epistemológicos nem com as objeções levantadas pelo polilogismo e pelo irracionalismo. Ao físico, pouco importa se alguém estigmatiza suas teorias como burguesas, ocidentais ou judias; da mesma maneira, o economista deveria ignorar a calúnia e a difamação. Deveria deixar os cães latirem e não prestar atenção aos seus latidos. É conveniente que se lembre do ditado de Spinoza: Sane sicut lux se ipsamet tenebras manifestar sic veritas norma sui et falsi est 5.
Entretanto, no que concerne a economia, a situação não é bem a mesma que em relação à matemática e as ciências naturais. O polilogismo e o irracionalismo atacam a praxeologia e a economia. Embora suas afirmações sejam feitas de maneira geral, referindo-se a todos os ramos do conhecimento, na realidade visam às ciências relativas à ação humana.
Afirmam ser uma ilusão acreditar que a pesquisa científica pode produzir resultados válidos para gente de todas as épocas, raças e classes sociais, e se comprazem em depreciar certas teorias físicas e biológicas como burguesas ou ocidentais. Mas, se a solução de questões práticas necessita da aplicação dessas doutrinas estigmatizadas, esquecem sua desaprovação. A tecnologia da União Soviética utiliza sem escrúpulos todos os resultados da física, química e biologia burguesa. Os físicos e engenheiros nazistas não desprezaram a utilização de teorias, descobertas e invenções das raças e nações “inferiores”. O comportamento dos povos de todas as raças, religiões, nações, grupos linguísticos ou classes sociais demonstra claramente que eles não endossam as doutrinas do polilogismo e do irracionalismo no que concerne à matemática, a lógica e as ciências naturais.
Mas, no que diz respeito à praxeologia e a economia, as coisas se passam de maneira inteiramente diferente. O principal motivo do desenvolvimento das doutrinas do polilogismo, historicismo e irracionalismo foi proporcionar uma justificativa para desconsiderar os ensinamentos da economia na determinação de políticas econômicas. Os socialistas, racistas, nacionalistas e estatistas fracassaram nas suas tentativas de refutar as teorias dos economistas e demonstrar o acerto de suas doutrinas espúrias. Foi precisamente essa frustração que os impeliu a negar os princípios lógicos e epistemológicos sobre os quais se baseia o raciocínio humano, tanto nas atividades cotidianas como na pesquisa científica.
Não é admissível desembaraçar-se dessas objeções meramente com bases nos motivos políticos que as inspiraram. A nenhum cientista é permitido presumir de antemão que a desaprovação de suas teorias deve ser infundada porque seus críticos estão imbuídos de paixão ou preconceito partidário. Ele deve responder a cada censura sem considerar seus motivos subjacentes ou sua origem. Não menos admissível é silenciar em face de frequente opinião de que os teoremas de economia são válidos apenas em condições hipotéticas que não se verificam na vida real e que, portanto, são inúteis para a compreensão da realidade. É estranho que algumas escolas aprovem esta opinião e, ao mesmo tempo, calmamente, desenhem suas curvas e formulem suas equações. Não se importam com o significado do seu raciocínio e nem como este se relaciona com o mundo real da vida e da ação.
Essa atitude é, sem dúvida, indefensável. O primeiro dever de qualquer investigação científica é descrever exaustivamente e definir todas as condições e suposições, com base nas quais pretende validar suas afirmações. É um erro considerar a física como um modelo e um
padrão para a pesquisa econômica. Mas as pessoas comprometidas com esta falácia deviam ter aprendido pelo menos uma coisa: nenhum físico jamais acreditou que o esclarecimento de algumas condições e suposições de um teorema da física esteja fora do campo de interesse da pesquisa da física. A questão central que a economia tem obrigação de responder é sobre a relação entre suas afirmações e a realidade da ação humana, cuja compreensão é o objeto dos estudos da economia.
Portanto, compete à economia examinar minuciosamente a afirmativa segundo a qual seus ensinamentos são válidos apenas para o sistema capitalista, durante o curto e já esvaecido período liberal da civilização ocidental. É dever da economia, e de nenhum outro campo do saber, examinar todas as objeções levantadas de diversos ângulos contra a utilidade das afirmativas da teoria econômica para a elucidação dos problemas da ação humana. O sistema de pensamento econômico deve ser construído de tal maneira que se mantenha a prova de qualquer crítica por parte do irracionalismo, do historicismo, do panfisicalismo, do behaviorismo e de todas as modalidades de polilogismo. É uma situação intolerável a de que os economistas ignorem os argumentos que diariamente são promovidos para demonstrar a futilidade e o absurdo dos esforços da economia.
Não se pode mais continuar lidando com os problemas econômicos da maneira tradicional. É necessário construir a teoria cataláctica sobre a sólida fundação de uma teoria geral da ação humana, a praxeologia. Este procedimento não apenas a protegerá contra inúmeras críticas falaciosas, mas possibilitará o esclarecimento de muitos problemas que até agora não foram adequadamente percebidos e, menos ainda, satisfatoriamente resolvidos. Especialmente no que se refere ao problema fundamental do cálculo econômico.
3. Teoria econômica e a prática da ação humana
É comum a muita gente censurar a economia por ser retrógrada. Ora, é óbvio que a nossa teoria econômica não é perfeita. Não existe perfeição no conhecimento humano, nem em qualquer outra conquista humana. Aonisciência é negada ao homem. A teoria mais elaborada que parece satisfazer completamente a nossa sede de conhecimento pode um dia ser emendada ou superada por uma nova teoria. A ciência não nos dá certeza final e absoluta. Apenas nos dá convicção dentro dos limites de nossa capacidade mental e do prevalecente estado do conhecimento científico. Um sistema científico não é senão um estágio na permanente busca de conhecimento. É necessariamente afetado pela insuficiência inerente a todo esforço humano. Mas reconhecer estes fatos não implica que o estágio atual da economia seja retrógrado. Significa apenas que a economia é algo vivo – e viver implica tanto imperfeição como mudança.
A acusação do alegado atraso é levantada contra a economia a partir de dois pontos de vista diferentes.
Existem, de um lado, alguns naturalistas e físicos que censuram a economia por não ser uma ciência natural e não aplicar os métodos e procedimentos de laboratório. Um dos propósitos deste tratado é demolir a falácia dessas ideias. Nestas observações introdutórias, será suficiente dizer algumas palavras sobre seus antecedentes psicológicos. É comum, a quem tem mentalidade estreita, depreciar diferenças encontradas nas outras pessoas. O camelo, na fábula, desaprova todos os outros animais por não terem uma bossa, e os ruritânios criticam os laputânios por não serem ruritânios. O pesquisador que trabalha em laboratório considera este trabalho como a única fonte válida para investigação, e equações diferenciais como a única forma adequada de expressar os resultados do pensamento científico. É simplesmente incapaz de perceber os problemas epistemológicos da ação humana. Para ele, a economia não pode ser nada além de uma espécie de mecânica.
Há outros que asseguram que algo deve estar errado com as ciências sociais, porque as condições sociais são insatisfatórias. As ciências sociais conseguiram resultados espantosos nos últimos duzentos ou trezentos anos e a aplicação prática desses resultados foi o que deu origem a uma melhoria, sem precedentes, no padrão de vida em geral. Mas, dizem esses críticos, as ciências sociais falharam completamente no que diz respeito a tornar mais satisfatórias as condições sociais. Não eliminaram a miséria e a fome, crises econômicas e desemprego, guerra e tirania. São estéreis e não contribuíram para a promoção da liberdade e do bem estar geral.
Esses rabugentos não chegam a perceber que o tremendo progresso da tecnologia de produção e o consequente aumento de riqueza e bem estar só foram possíveis graças á adoção daquelas políticas liberais que representavam a aplicação prática dos ensinamentos da economia. Foram as ideias dos economistas clássicos que removeram os controles que velhas leis, costumes e preconceitos impunham sobre o progresso tecnológico, libertando o gênio dos reformadores da camisa de força das guildas, da tutela do governo e das pressões sociais de vários tipos. Foram essas ideias que reduziram o prestígio de conquistadores e expropriadores e demonstraram o benefício social decorrente da atividade empresarial. Nenhuma das grandes invenções modernas teria tido utilidade prática se a mentalidade da era pré-capitalista não tivesse sido completamente demolida pelos economistas. O que é comumente chamado de “revolução industrial” foi o resultado da revolução ideológica efetuada pelas doutrinas dos economistas. Foram eles que explodiram velhos dogmas: que é desleal e injusto superar um competidor produzindo melhor e mais barato; que é iníquo desviar-se dos métodos tradicionais de produção; que as máquinas são um mal porque trazem desemprego; que é tarefa do governo evitar que empresários fiquem ricos e proteger o menos eficiente na competição com o mais eficiente; que reduzir a liberdade dos empresários pela compulsão ou coerção governamental em favor de outros grupos sociais é um meio adequado para promover o bem estar nacional. A economia política inglesa e a fisiocracia francesa indicaram o caminho do capitalismo moderno. Foram elas que tornaram possível o progresso decorrente da aplicação das ciências naturais, proporcionando as massas benefícios nunca sequer imaginados.
O que há de errado com a nossa época é precisamente a difundida ignorância do papel desempenhado por essas políticas de liberdade econômica na evolução tecnológica dos últimos duzentos anos. As pessoas tornaram-se prisioneiras da falácia segundo a qual o progresso nos métodos de produção foi contemporâneo a política de laissez-faire apenas por acidente. Iludidos pelos mitos marxistas, consideram o estágio atual de desenvolvimento como o resultado da ação de misteriosas “forças produtivas” que não dependem em nada de fatores ideológicos. A economia clássica, estão convencidos, não foi um fator no desenvolvimento do capitalismo, mas, ao contrário, foi seu produto, sua “superestrutura ideológica”, foi uma doutrina destinada a defender os interesses espúrios dos exploradores capitalistas. Consequentemente, a abolição do capitalismo e a substituição da economia de mercado e da livre iniciativa pelo socialismo totalitário não prejudicaria o ulterior progresso da tecnologia. Ao contrário, promoveria o desenvolvimento tecnológico pela remoção dos obstáculos que os interesses egoístas dos capitalistas colocaram no seu caminho.
O traço característico dessa era de guerras destrutivas e de desintegração social é a revolta contra a economia. Thomas Carlyle denominava a economia de “ciência triste” e Karl Marx estigmatizou os economistas como sicofantas da burguesia. Charlatães — exaltando suas poções mágicas e seus atalhos para o paraíso terrestre- se satisfazem em desdenhar a economia, qualificando-a como “ortodoxa” ou “reacionária”. Demagogos se orgulham do que chamam de suas vitórias sobre a economia. O homem “prático” alardeia sua ignorância em economia e seu desprezo pelos ensinamentos de economistas “teóricos”. As políticas econômicas das últimas décadas têm sido o resultado de uma mentalidade que escarnece de qualquer teoria econômica bem fundamentada e glorifica as doutrinas espúrias de seus detratores. O que é conhecido como economia “ortodoxa” não é ensinado nas universidades da maior parte dos países, sendo virtualmente desconhecida dos líderes políticos e escritores. A culpa da situação econômica insatisfatória certamente não pode ser imputada a ciência que os governantes e massas ignoram e desprezam.
É preciso que se enfatize que o destino da civilização moderna desenvolvida pelos povos de raça branca nos últimos duzentos anos está inseparavelmente ligado ao destino da ciência econômica. Esta civilização pôde surgir porque esses povos adotaram ideias que resultavam da aplicação dos ensinamentos da economia aos problemas de política econômica. Necessariamente sucumbirá se as nações continuarem a seguir o rumo que tomaram, enfeitiçadas pelas doutrinas que rejeitam o pensamento econômico.
É verdade que a economia é uma ciência teórica e, como tal, se abstém de qualquer julgamento de valor. Não lhe cabe dizer que fins as pessoas deveriam almejar. É uma ciência dos meios a serem aplicados para atingir os fins escolhidos e não, certamente, uma ciência para escolha dos fins. Decisões finais, a avaliação e a escolha dos fins, não pertencem ao escopo de nenhuma ciência. A ciência nunca diz a alguém como deveria agir; meramente mostra como alguém deve agir se quiser alcançar determinados fins.
Para muita gente pode parecer que isso é muito pouco, e que uma ciência limitada a investigação do C, e incapaz de expressar um julgamento de valor sobre os mais elevados e definitivos fins não tem qualquer importância para a vida e a ação humana. Isto também é um erro. Entretanto, o desmascaramento desse erro não é tarefa destas notas introdutórias. É um dos objetivos deste tratado.
4. Resumo
Estas observações preliminares se faziam necessárias a fim de explicar por que este tratado coloca os problemas econômicos no vasto campo de uma teoria geral da ação humana. No estágio atual, tanto do pensamento econômico como das discussões políticas acerca dos problemas fundamentais da organização social, não é mais possível isolar o estudo dos problemas catalácticos. Estes problemas são apenas um segmento de uma ciência geral da ação humana, e só assim podem ser tratados.
[1] O termo praxeologia foi empregado pela primeira vez 1890 por Espinas, ver seu artigo “Les orígenes de la technologie!”, Revue philosophique, p.114-115, ano XV, vol. 30, e seu livro publicado em Paris em 1897 com o mesmo titulo.
*Praxeologia: do grego praxis — ação, habito, pratica — e logia – doutrina, teoria, ciência. É a ciência ou teoria geral da ação humana. Mises definiu ação como “manifestação da vontade humana”: ação como sendo um “comportamento propositado”. A praxeologia a partir deste conceito apriorístico da categoria ação analisa as implicações plenas de todas as ações. A praxeologia busca conhecimento que seja válido sempre que as condições correspondam exatamente àquelas consideradas na hipótese teórica. Sua afirmação e sua proposição não decorrem da experiência: antecedem qualquer compreensão dos fatos históricos. (Extraído de Mises Made Easier. Percy L. Greaves Jr., Nova Iorque, Free Market. Books, 1974. N.T.)
[2] O termo cataláxia* ou a ciência das trocas foi usado primeiramente por Whately. Ver seu livro Introductory Lectures on Political Economy, Londres, 1831, p.6
* Cataláxia — a teoria da economia de mercado, isto é, das relações de troca e dos preços. Analisa todas as ações baseadas no cálculo monetário e rastreia a a formulação de preços até a sua origem, ou seja, até o momento em que o homem fez sua escolha. Explica os preços de mercado como são e não como deveriam ser.
As leis da cataláxia não são julgamentos de valor; são exatas, objetivas e de validade universal. Extraído de Mises Made Easier. Percy Greaves Jr. op. cit. (N.T.)
[3] Methodenstreit- disputa, argumento ou controvérsia sobre métodos; especificamente a controvérsia sobre o método e o caráter epistemológico da economia na década de 80 do século XIX, entre os seguidores da Escola Austríaca de Economia, liderados por Car1 Menger (1840-1921) e os proponentes da Escola Historicista Alemã, liderados por Gustav von Schnioller (1838-1917). A Escola Historicista Alemã sustentava que a história é a única fonte de conhecimento sobre a ação humana e sobre assuntos econômicos, e que só no estudo dos dados e estatísticas históricas a economia poderia formular suas leis e teorias. (N.T.)
[4] Institucionalismo americano unia a versão americana da Escola Historicista Considera que as atividades humanas são determinadas por pressões sociais irresistíveis, denominadas Instituições. Propõe a intcrvcnção política com o melhor meio de mudar tais hábitos do homem e de aprimorar o gênero humano. Atribui o infortúnio da humanidade ao capitalismo do tipo laissez —faire e procura mudar as instituições pela adoção de soluções coletivas e intervencionista (N.T.)
[5] Em português. “Sem dúvida que assim como a luz se manifesta a si mesma e às trevas, da mesma forma a verdade é, ao mesmo tempo, a norma de si e do falso” (N.T.)