Se existe algo quase certo sobre o intervencionismo governamental na vida das pessoas é o fato de ser quase impossível detectar um limite para a capacidade do governo em fazê-lo.
Uma das formas mais corriqueiras é a lenta e progressiva intervenção, que pode vir com o rótulo de regulação. A regulação vai adentrando as atividades humanas de forma quase imperceptível, inodora e incolor. Quando finalmente percebemos, estamos em um regime intervencionista sem nos darmos conta de como chegamos lá. O intervencionismo pode se imiscuir em quase todos os setores da economia.
Em um artigo recente, estudamos a intervenção do governo brasileiro em uma atividade corriqueira, frugal, simples e quase supérflua: o ato de frequentar cinemas. Vimos como a instituição de cotas de conteúdo nacional, bem como a limitação de títulos de filmes por sala, causaria muito mais impactos negativos do que eventuais resultados positivos. E tais impactos se refletem em todo o setor. Consequentemente, defendeu-se que a intervenção do órgão que poderíamos chamar de “responsável pelo setor” (Agência Nacional de Cinema — ANCINE) causa mais danos do que benesses.
Ocorre que, diante de alguns outros fatos não abordados no artigo anterior, mas principalmente em razão de novas notícias publicadas pelo mesmo órgão, temos de ampliar a análise.
Nesse sentido, cabe mencionar que recentemente a ANCINE publicou a sua Agenda Regulatória para 2015/2016. A Agência diagnosticou 11 coisas que ela chama de Temas Estratégicos.
Resumidamente, pode-se dizer que a publicação traz possibilidades realmente preocupantes. A maioria das propostas regulatórias não traz novidades, muitas delas são atualizações e modificações de regulamentos ou leis já existentes. O que mais se destaca, no entanto, são os temas que realmente têm potencial de trazer inovações na intervenção.
Jogos eletrônicos
Uma das novidades na agenda regulatórias é o tema “jogos eletrônicos”.
Oficialmente, a ANCINE declara que deseja promover um estudo relativo à inclusão dos jogos eletrônicos — e toda a sua cadeia produtiva — no espectro da legislação do setor audiovisual. Os objetivos seriam: estimular a produção brasileira independente e a produção regional; estimular a expansão dos serviços de ‘acesso condicionado’ e de novos segmentos; aprimorar mecanismos de defesa e da ordem econômica.
Eis o que realmente quer a ANCINE: fazer estudos para criar cotas, benefícios e privilégios para produtoras de jogos nacionais; criar restrições de qualquer tipo ou maneira para jogos estrangeiros; interferir, sob qualquer pretexto, na escolha de jogos a serem comprados pelos consumidores; interferir na escolha dos pais, das crianças e dos adolescentes; cobrar a taxa da CONDECINE de jogos; interferir nas plataformas e na dinâmica do mercado de consoles, em especial os consoles estrangeiros (leia-se Play Station e XBOX).
Por conseguinte, aplique todo o raciocínio da criação de cotas e das reservas de mercado, e os resultados não poderão ser outros: jogos e consoles mais caros; menor valor de entretenimento; retração do setor; jogos encalhados nas prateleiras, mas financiados com dinheiro público porque são nacionais.
É possível até que alguns jogos sejam barrados ou proibidos, usando qualquer desculpa. Se você acredita que isso é um exagero, lembre-se do que ocorreu com o jogo Counter Strike.
Enfim, se algum leitor tem como entretenimento jogar videogame em qualquer plataforma que seja é melhor ficar atento.
Serviço de Acesso Condicionado — SeAC
A rigor, esse tema não é tão novo: trata-se da lei nº 12.485. Essa lei, juntamente com a Instrução Normativa 101, faz parte do regulamento do Serviço de Acesso Condicionado — SeAc, que é mais conhecido como TV por Assinatura. Mas, como se essa legislação não fosse ruim o bastante, a ANCINE pretende aprofundar ainda mais o tema — com a mais cândida das intenções, evidentemente.
Basicamente, o que essas normas impõem é uma cota para conteúdo nacional no serviço de TV que o consumidor assina e paga. Esses normativos, além de imporem uma quantidade de canais de distribuição obrigatória (artigo 32 da lei), também obrigam os canais que exibem predominantemente filmes, séries, animação, documentários (chamados de canais de espaço qualificado) a dedicarem 3 horas e 30 minutos semanais de seu horário nobre à veiculação de conteúdos audiovisuais brasileiros.
Sendo que, no mínimo metade, deverá ser produzida por produtora brasileira independente.
Traduzindo: o consumidor paga pela TV por assinatura, porém a operadora cujo serviço ele contrata é obrigada a distribuir canais escolhidos pelo governo no menu de canais contratados, fechando assim o espaço para outros canais que poderiam ser transmitidos — canais esses que, sob o julgamento de valor do mesmo consumidor, seriam mais interessantes para ele, logo com maior audiência.
Adicionalmente, naqueles canais em que realmente há maior audiência, ocorrerá que, em ao menos um dia por semana, e no horário nobre, só haverá opção de assistir a algum conteúdo nacional. O consumidor não tem a opção de não comprar canais nacionais ou conteúdos nacionais.
Parece-me que este seria um caso de vitória quase certa para os advogados que adoram litigar usando o Código de Defesa do Consumidor, em especial usando o artigo que disciplina a venda casada. Mas é mais provável que esses mesmos advogados irão dizer que a venda casada só é proibida para empresas, nunca para o governo.
O mais distorcido na imposição de toda essa regulamentação é a justificativa da ANCINE para a as cotas. Segundo a ilustre agência, o mecanismo das cotas “garante uma demanda potencial mínima que possibilita a existência da produção nacional em bases capitalistas, sem o demasiado apoio do erário público”.
Mais ainda: “as cotas permitem a convivência, nos mercados locais, entre a produção audiovisual feita nesses países e a produção internacional sempre comprada a preços muito baixos, pois seus custos de produção já foram inteiramente pagos nos mercados onde foram produzidos”.
Portanto, para a ANCINE, criar reservas de mercado é “capitalismo”, e o fato de o consumidor receber uma produção internacional mais barata é algo ruim. No que mais, ainda segundo a augusta agência, a produção nacional deve ter o apoio do erário público (sic), mas não demasiadamente.
Além da justificativa anterior, a agência argumenta que “os europeus, canadenses, sul-coreanos e australianos resolveram a questão incontornável da demanda potencial para os conteúdos produzidos nesses países estabelecendo obrigações de veiculação (as cotas) para a produção doméstica.” E discorre que, “na Europa, as cotas são de 50% de conteúdos europeus no espaço qualificado em todos os canais.” E complementa dizendo que, “mesmo nos Estados Unidos, há uma política de proteção e incentivo à produção independente.” E finaliza dizendo que “a política de obrigação de veiculação de conteúdos nacionais não se apoia somente em questões econômicas, mas também em aspectos culturais.”
Breve parêntesis: a agência nunca especifica o que seriam estes “aspectos culturais”, o que abre uma ampla discricionariedade para que ela própria possa interferir e definir o que é cultura e quem a produz.
A ANCINE complementa a argumentação afirmando que “as cotas mínimas para conteúdo nacional geram diversidade nos mercados audiovisuais e são instrumentos legítimos reconhecidos pela comunidade internacional.”
Ou seja, se os países do mundo inteiro criam reservas e barreiras de mercado prejudicando seus próprios cidadãos, então o Brasil deve copiá-los prejudicando os próprios brasileiros no processo. Assim é construída a negação da Teoria das Vantagens Comparativas de David Ricardo, e um dos princípios basilares para a maior prosperidade entre os povos é negado. A divisão do trabalho é afetada, seus efeitos são diluídos, e a cooperação e associação humana são prejudicadas.
Mises escreve quase todo esse argumento, de forma mais detalha, no capítulo 8 de Ação Humana. Acrescento também o capítulo 14 do livro Economia Numa única Lição e o capítulo 9 de Economia e Liberdade.
No caso de cotas de conteúdo de TV, deve-se ressaltar adicionalmente que a imposição das reservas de mercado, além de criar empecilhos para a divisão de trabalho e cooperação humana, faz com que os países prejudiquem a troca de experiências culturais entre as pessoas quando, mutuamente, criam cotas e barreiras de seus conteúdos. Isso é algo lamentável.
Vídeo por demanda
Essa é outra inovação da agência.
A ANCINE quer regular o serviço de vídeo por demanda. Segundo ela própria, a ideia seria regular a atividade por meio da revisão dos critérios para a cobrança da CONDECINE. E a diretriz desse tema estratégico é: “desenvolver e qualificar os serviços de TV por assinatura e de vídeo por demanda, oferecidos em todos os ambientes, e ampliar a participação das programadoras nacionais e do conteúdo brasileiro nesses segmentos de mercado”. (Itálico meu).
Esse tema será o principal problema a ser tratado nessa rodada intervencionista. Serviços de assinatura de vídeo “on demand” têm se popularizado, especialmente na Internet. Podemos listar uma vasta variedade de atuantes dessa modalidade de serviço, tais como: Netflix, Hulu, Popcorn Time, Google Play Movies, Now, HBO Go, Telecine Play, Crackle, NetMovie entre outros.
Tais veículos vêm crescendo consistentemente nos últimos anos. É deveras sintomático que a ANCINE coloque como diretriz seu desejo de regular tais serviços “em todos os ambientes”. Ela especifica claramente que deseja elaborar estudos para rever os critérios de cobrança do CONDECINE, ou seja, cobrar a tarifa destes sites de serviços de vídeo on demand.
Deve-se aqui ressaltar que uma das modalidades dessa tarifa é a chamada “CONDECINE Título”. Ela incide sobre a exploração comercial de obras audiovisuais em cada um dos segmentos de mercado (salas de exibição, vídeo doméstico, TV por assinatura, TV aberta e outros mercados). O valor da contribuição varia conforme o tipo da obra (publicitária ou não), o segmento de mercado e, no caso das obras não publicitárias, a duração (curta, média ou longa-metragem) e, ainda, a forma de organização da obra.
Nesse caso, seria uma tarifa cobrada baseando-se na quantidade de títulos disponíveis no catálogo das empresas de vídeo sob demanda. Quanto maior o catálogo, maior a tarifa. O efeito mais rápido disso para o consumidor? A assinatura do Netflix e dos sites similares deverá ficar mais cara para os brasileiros. Ou pior, haverá uma menor variedade na quantidade de títulos, conforme será descrito mais abaixo.
O raciocínio de cobrar a taxa do CONDECINE não seria uma novidade. Justamente pelo fato de que os clientes das empresas de TV por assinatura têm de pagar os impostos dos serviços e estão submetidos a cotas de conteúdo, há pressão dessas operadoras para equalizar o tratamento tributário e regulatório aos sites de video on demand.
Veja, por exemplo, o raciocínio do ex-ministro das comunicações:
Na opinião do político, estes sites devem ser taxados tal como acontece com as empresas de TV por assinatura. A ideia, na verdade, é fruto de pressão destas companhias. Elas argumentam que os seus serviços sofrem taxas de tributação e devem exibir uma quantidade mínima de conteúdo nacional, por exemplo, e que não é justo que empresas de streaming não sejam submetidas às mesmas obrigações.
Para Paulo Bernardo, a solução seria a criação de uma regulamentação específica para serviços de streaming que inclui, obviamente, alíquotas tributárias.
O mais tragicômico deste raciocínio é que, na opinião do ex-ministro, o Brasil é um “paraíso fiscal” para tais serviços e isso não deveria ocorrer. Para sermos justos, não se pode acusar a ANCINE de pensar e fazer exatamente aquilo que o governo raciocina que deve ser feito. Na dúvida, se um serviço seria ou não tributável ou regulável, há alguma dúvida quanto a qual conclusão o órgão vai chegar?
Uma possível consequência dessa regulamentação é a queda na qualidade do serviço do Netflix e seus similares. O raciocínio é o seguinte: uma das ações do Netflix e de sites concorrentes é instalar servidores em redes de telecomunicações de forma a encurtar a distância entre o usuário e o conteúdo demandado. O Netflix, por exemplo, instala mais servidores em redes no Brasil. Com a nova regulação, simplesmente o Netflix poderia não instalar servidores em locais onde a jurisdição brasileira prevalece. Porém, isso aumentaria a distância do usuário e seu conteúdo, prejudicando assim a transmissão e a qualidade dos serviços.
Como as redes de telecomunicações de empresas atuantes no Brasil sofrem uma demanda por tráfego internacional, essa pressão de demanda aumentaria, degradando mais ainda o nível de qualidade do serviço. Adicione a isso o fato de que as empresas de acesso no Brasil estão impossibilitadas de gerenciar melhor o conteúdo, em função do Marco Civil da Internet e da neutralidade de rede, e temos então um cenário de criação de incentivos perversos, os quais tenderão a aumentar a degradação dos serviços de vídeo sob demanda.
Os prestigiosos juristas e técnicos do governo brasileiro e da ANCINE poderão arquitetar uma legislação em que a tributação do serviço de vídeo sob demanda incorreria independentemente da localização das sedes das empresas, de onde se hospeda o site, ou de onde se localizam os servidores. Porém, o mercado também dispõe de criativos advogados que poderiam bolar ferramentas jurídicas para contornar essa legislação. E assim um jogo de gato e rato para tributação e regulação de bytes surgiria. O governo brasileiro buscando tributá-los e as empresas buscando se defender. De qualquer forma, eventualmente esse custo de instabilidade regulatória, jurídica e fiscal incorrerá sob o consumidor brasileiro.
Outro problema dessa regulação do serviço de vídeo por demanda é a possível imposição de cotas de conteúdo nacional nesses veículos de mídia. Não seria surpresa uma interpretação nessa vertente, já que seus principais concorrentes (as operadoras de TV por assinatura) estão sob a legislação que foi descrita acima.
Nesse caso, além de todos os efeitos negativos da criação de cotas e barreiras de mercado, há um problema adicional bem significativo: um dos mais importantes atrativos para estes veículos de vídeos sob demanda está na oferta de uma extensa variedade de conteúdo para seus clientes. Não à toa, estas mídias buscam obter catálogos de vídeos com muitas opções. Em princípio, adicionar vídeos de produtoras nacionais a esses catálogos poderia aumentar a variedade e a opção aos clientes, o que seria benéfico e desejado por todos. Porém, caso haja uma imposição de cota de conteúdo, corre-se o risco de não haver conteúdo nacional suficiente para preencher tal cota. E aí começa a encrenca.
Primeiro, o site poderia ter de reduzir a quantidade de títulos de seu catálogo para se adequar à razão conteúdo nacional/conteúdo estrangeiro. Exemplo: suponha que o catálogo de um site seja 1.000 vídeos, sendo que destes 1.000 há um total de 100 vídeos nacionais. Se a cota for de 10%, então a razão conteúdo nacional/conteúdo total é atingida. Porém, se a cota for de 20%, então terá de haver uma diminuição do catálogo pela metade. Esse é um risco bem real que pode ocorrer com a assinatura de sites de vídeos sob demanda.
Mesmo que a cota seja atingida inicialmente, ainda assim haverá um segundo problema. É notório que a produção de conteúdo nacional é — e muito provavelmente sempre será — inferior em quantidade à produção de conteúdo internacional (a menos que a produção de conteúdo exclusivamente nacional seja mais da metade da produção mundial, isso sempre ocorrerá). Assim, mesmo que a cota seja atingida inicialmente, o distribuidor de vídeo sob demanda não poderá adicionar novos vídeos com a taxa de crescimento que ele gostaria, pois estaria restrito à taxa de velocidade de produção de conteúdo da produção nacional.
Não obstante, esse problema pode se agravar ainda mais. Para cumprir a razão que a cota estabelecer, o incentivo de produção de conteúdo nacional passa a ficar superdimensionado. E o efeito de se produzir conteúdo nacional com menor apelo de entretenimento, e qualidade artística questionável, aumentaria. Isso em razão do fato de tal conteúdo não estar sendo produzido de forma orientada ao público, mas sim orientada pela imposição das cotas, conforme já foi discutido no artigo anterior.
Enfim, ao impor uma possível cota de conteúdo nacional, a consequência lógica provável será o fato de mais conteúdo com valor artístico duvidoso ser ofertado forçosamente para o público.
Adicione à equação o elemento da cobrança da “CONDECINE Título”, como já mencionado, e você verá que é bem possível que a empresa de vídeo sob demanda, como resposta à intervenção, atue no sentido de diminuir a variedade de títulos em seu catálogo.
Observe que nesse caso a tributação não seria em função do tráfego demandado em si, mas da quantidade de títulos ofertados. E seria lógica a conduta da empresa ao se comportar assim: primeiro para se adequar a uma possível imposição de cota de conteúdo e segundo para reduzir o fato gerador da incidência da tarifa, reduzindo a quantidade de títulos disponíveis em seu catálogo para o público nacional.
Conclusão
Como se já não bastasse sua danosa atuação no mercado cinematográfico nacional, a ANCINE pretende estender sua nefasta atuação em outras áreas do “audiovisual”. As consequências podem ser elencadas desta forma: encarecimento dos jogos de videogame; deterioração de serviços de vídeo sob demanda; possível redução da variedade de conteúdo à disposição dos consumidores; encarecimento dos serviços.
Resumidamente, o consumidor será forçado a adquirir uma quantidade de conteúdo que não gostaria de ver, nem iria comprar, em condições normais de mercado.
Dado que os danos ao cinema e à TV a cabo já foram causados pela regulamentação já existente, ao menos os danos aos sites de vídeo sob demanda na Internet e nos videogames podem ser evitados. O que foi publicado pela ANCINE é apenas a sua agenda regulatória, logo tal regulação ainda está no aspecto da proposta. Se o preço da liberdade é a eterna vigilância, espero sinceramente que esse artigo sirva de alerta.
No momento, minha única sugestão para tentar impedir os efeitos ruins desta regulação é reclamar diretamente com quem diz ser o responsável pelo setor. Os canais estão disponíveis.