Algumas considerações sobre o Panamericano

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silvio_santos banco_panamericanoA recente operação financeira envolvendo o banco Panamericano, do empresário Silvio Santos, foi um assunto que ouriçou a mídia durante toda a semana passada.

O banco, que possuía um rombo total de R$ 4,3 bilhõesem seu caixa, teve sua dívida completamente amortizada pelo Fundo Garantidor de Crédito (FGC) e foi comprado por R$ 450 milhões pelo BTG Pactual.  Após esse arranjo, Silvio Santos saiu completamente limpo da jogada, sem perder ou ganhar um centavo.

Explicando melhor: o FGC é um fundo privado formado pelas contribuições dos bancos.  Cada banco deposita mensalmente no FGC 0,025% sobre todos os seus depósitos que são garantidos por esse fundo.  Atualmente, o FGC garante perdas de até R$ 70 mil, por pessoa, quando um banco quebra.  Em teoria, o dinheiro é dos bancos; na prática, o dinheiro é nosso, pois somos os correntistas.

Já o Panamericano era um banco que mexia especificamente com crédito e financiamento.  Isto é, ele não era um banco comum, que operava contas-correntes e possuía correntistas.  No seu caso, por ser uma financeira, o FGC cobria depósitos de até R$ 20 milhões (leis do CMN – Conselho Monetário Nacional).  Em parceria com a Caixa Econômica Federal, o Panamericano realizava oferta de crédito imobiliário para o segmento de baixa renda (daí o crescimento do banco no período da bolha imobiliária brasileira).  Além do crédito imobiliário, o Panamericano também realizava empréstimos comuns: crédito para a classe média baixa, financiamento de veículos e financiamento para pequenas empresas; e vendia algumas dessas carteiras de crédito para outras instituições financeiras, como Bradesco e Itaú.

Prosseguindo: após o FGC ter injetado R$ 4,3 bilhões no Panamericano, o banco foi comprado pelo BTG Pactual.  Mas o valor ainda não foi pago.  Ele poderá ser pago imediatamente (nesse caso, com o valor à vista, o montante chegará a R$ 450 milhões) ou poderá ser quitado a prazo, até o ano 2028, com os juros sendo calculados de acordo com o CDI (Certificado de Depósito Interbancário).

No primeiro evento, o FGC terá um prejuízo de R$ 3,85 bilhões.  No segundo caso, o total pago ao FGC será igual a R$ 3,8 bilhões — mas só daqui a 17 anos.  Traduzindo: em ambas as situações, o FGC tomou um prejuízo enorme.

Já o BTG Pactual, que opera no mercado de capitais com grandes empresas, poderá agora empreender em outros ramos, como o crediário à classe média e o financiamento para empresas pequenas.  Traduzindo: o banco se deu muito bem.  Comprou um banco completamente sanado (estima-se que o patrimônio líquido atual esteja na casa de 1,6 bilhão de reais) por uma ninharia.

E é isso que vem intrigando muita gente: por que os banqueiros brasileiros, que são os donos do FGC, aceitaram esse arranjo claramente prejudicial a eles?  Vale lembrar que o conselho administrativo do FGC é formado por representantes do Itaú Unibanco, Bradesco, Santander, Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal.  Logo, por que esses bancos aceitaram esse arranjo em que eles saíram perdendo, Silvio Santos ficou no zero a zero e apenas o BTG Pactual saiu claramente ganhando?

Isso atiçou várias teorias conspiratórias, que envolvem encontros de Silvio Santos com Lula, doações de R$ 2,15 milhões do BTG para a campanha de Dilma Rousseff, uma injeção de R$ 739 milhões feita pela Caixa Econômica Federal no Panamericano em compra de ações, e a falha do Banco Central, da Caixa Econômica e de mais quatro auditorias em perceber as falcatruas contábeis do Panamericano.

Alguns mais ousados falam em desvio de dinheiro feito por Silvio Santos, mas isso está longe de ter sido comprovado.

O que se sabe de concreto é que Silvio Santos, que havia dado suas empresas como garantia para a operação do FGC, fez uma exigência: só venderia seu banco por R$ 450 milhões caso o FGC cobrisse o rombo de mais de R$ 4 bilhões.  Mais ainda: só faria isso se suas empresas dadas como garantia lhe fossem devolvidas.  E o FGC acatou a exigência.

Traduzindo: o homem do baú começou o dia devendo mais de R$ 4 bilhões e sem ativos.  E terminou o dia sem dívidas e com todas as suas empresas (avaliadas em R$ 2,5 bilhões) mantidas — exceto o Panamericano, que foi vendido.

Qual foi o truque?  Como ele teve todo esse poder de dar um chapéu nos banqueiros brasileiros?

Os mais cínicos podem dizer que tudo é compreensível; afinal, como dito, o dinheiro do FGC não era realmente dos bancos, mas sim dos correntistas — ou seja, nosso.  Sim, a afirmação é verdadeira, mas isso não explica nada.  Esse prejuízo dado ao FGC significa que agora há menos dinheiro disponível para cobrir os atuais depósitos, o que deixa o sistema bancário ainda mais vulnerável a crises.  E banco nenhum aceitaria isso sem oferecer resistência.

Como esperado, consta que os banqueiros fizeram pressão máxima para que o governo — utilizando dinheiro público — fizesse o aporte de capital no Panamericano, ao invés do FGC.  Mas Silvio Santos não queria isso — certamente porque faria mal à sua imagem —, e seguiu ameaçando liquidar o banco.

Ocorreram algumas rodadas tensas de negociação, nas quais Silvio Santos jamais aquiesceu às exigências dos banqueiros.  No final, estes cederam e atenderam às suas exigências — o FGC cobriria tudo e não ficaria com nenhuma empresa de Silvio Santos como garantia.

Um blogueiro antipetista ironizou a situação e disse que “uma entidade de banqueiros atuou como uma verdadeira Casa da Fraternidade”, deixando a entender que havia tramóias e negociatas por baixo do pano.  E concluiu: “O que me pergunto é se os generosos banqueiros brasileiros não estão recebendo pressão vinda de cima, com garantia de compensações, para fazer o que nunca se fez antes na história destepaiz.”

O que houve

Mas não foi nada disso.  Quero dizer, é lógico que não ficarei surpreso caso descubram que houve alguma maracutaia e que o governo está metido na situação até o pescoço.  Mas, por enquanto, não há nenhum indício.  E é fato também que a solução final foi, digamos, preferível para o governo.  A outra opção seria a sempre impopular injeção direta de dinheiro do Tesouro — o famoso “dar dinheiro para banqueiro”.  E isso não ocorreu.  A CEF comprou ações do Panamericano (35,54% do capital total) em dezembro de 2009, mas isso foi quando ainda não havia indícios do rombo.  Foi incompetência — típica de qualquer estatal—, e não trambique.

O que realmente ocorreu, o que realmente explica essa total aquiescência dos banqueiros às exigências quase que insolentes de Silvio Santos, é algo já velho conhecido de nossos leitores: a natural insolvência de um sistema bancário de reservas fracionárias.

Como explicado mais detalhadamente nesse artigo, em um sistema de reservas fracionárias, quando um banco quebra, todo o sistema bancário torna-se imediatamente insolvente, pois, como é da natureza das reservas fracionárias, um banco cria dinheiro do nada, colocando em circulação mais dinheiro do que de fato existe em suas reservas.  Logo, uma quebra bancária provocaria um sumiço no dinheiro, reduzindo o capital de todos os outros bancos.  Da mesma forma, quando uma empresa completamente alavancada em empréstimos bancários quebra, o banco que concedeu esses empréstimos passa por esses mesmos problemas em seu balancete.

No caso do Panamericano, que era uma financeira, o banco tomava emprestado dinheiro de outros bancos (via CDBs, por exemplo) e utilizava esse dinheiro para conceder empréstimos.  Como não era um banco de correntistas, o Panamericano funcionava mais como um banco de investimento — isto é, ele se limitava a tomar dinheiro emprestado para emprestar a outras pessoas e lucrar com essa diferença de juros, mas sem fornecer serviços de conta-corrente.

Em si, o banco não era criador de moeda, pois, ao contrário do que ocorre nos bancos comuns, o mesmo depósito não estava disponível para duas pessoas ao mesmo tempo (o correntista original e o tomador do empréstimo).  Logo, do ponto de vista exclusivamente do sistema financeiro, o Panamericano era apenas uma empresa, como qualquer outra.  Só que uma empresa que girava muito dinheiro.  Mais ainda: uma empresa completamente alavancada em dinheiro de outros bancos; outros bancos, os quais, estes sim, praticavam reservas fracionárias.  E é aí que estava o problema.

Quando bancos como Itaú, Bradesco, Santander, Banco do Brasil etc. possuem carteiras cujos ativos estão em posse de outro banco, e esse outro banco quebra, isso provoca uma imediata revalorização desses ativos, pois eles se perderam.  Tal medida gera uma deflação monetária na economia, pois, após sofrerem essas perdas, os bancos têm de restringir novos empréstimos e requisitar a quitação antecipada de empréstimos pendentes, pois agora seu capital sofreu uma redução.  Isso faz com que várias contas-correntes que foram criadas para esses empréstimos sem lastro sejam encerradas.  (Como o sistema bancário trabalha com reservas fracionárias, tal medida inevitavelmente iria gerar um processo deflacionário, pois se está requisitando a devolução de um dinheiro que foi criado do nada — um dinheiro cuja criação expandiu a oferta monetária e cuja extinção contrai a oferta monetária.)

E, caso essas medidas de contenção não se mostrem exitosas para sanar o balanço dos bancos, haverá o risco de seus correntistas desconfiarem da saúde financeira desses bancos e começarem a sacar seus depósitos, acelerando ainda mais a espiral deflacionária.

Da mesma forma, quando esses bancos possuem em suas carteiras empréstimos ou aplicações em posse de alguma empresa, e esta quebra, o mesmo fenômeno ocorre — a falência dessa empresa afetaria os balancetes desses bancos, gerando distúrbios financeiros e reduzindo o valor dos ativos bancários, desencadeando o processo acima descrito.

É claro que a quebra de uma financeira como o Panamericano não geraria o colapso do sistema bancário brasileiro, mas, por se tratar de uma empresa que girava muito dinheiro advindo de outros bancos, tal quebra poderia certamente afetar sensivelmente o patrimônio destes bancos.  No mínimo, poderia provocar uma desconfiança no sistema bancário, elevando o número de saques das contas-correntes, o que também geraria um efeito deflacionário no sistema — algo péssimo para os bancos.

Vale lembrar que a atual crise financeira americana começou com a quebra do Lehman Brothers, um banco de investimento que, guardadas as devidas e óbvias proporções, fornecia serviços semelhantes ao Panamericano.  O Lehman Brothers não era um banco de correntistas.  Foi a quebra do Lehman Brothers que gerou o congelamento no mercado de crédito no final de 2008.  A quebra do Panamericano poderia, da mesma forma, gerar problemas no mercado interbancário, dificultando e encarecendo o mercado de refinanciamento das dívidas dos bancos — embora em um nível muito menor do que os problemas causados pelo Lehman, evidentemente.

Segundo números divulgados pela revista ÉPOCA, os depósitos do Panamericano que teriam de ser cobertos pelo FGC chegariam a R$ 3,3 bilhões em caso de quebra.  Junte-se a isso a injeção inicial de R$ 2,5 bilhões que já havia sido feita em novembro de 2010, e o prejuízo do FGC seria de R$ 5,8 bilhões.

Além disso, o Panamericano possuía uma carteira de crédito de R$ 6,1 bilhões.  Com sua quebra e o consequente sumiço dessa carteira, o prejuízo para o sistema financeiro seria obviamente maior.  Afinal, vale lembrar que esses R$ 6,1 bilhões estão pulverizados por todo o sistema financeiro, e vários bancos estão investidos nesses papeis — traduzindo: essa carteira de crédito de R$ 6,1 bilhões foi construída mediante empréstimos de outros bancos (vendas de CDBs, por exemplo).  Seu sumiço representaria um prejuízo de igual montante para esses bancos.

Logo, entre perder R$ 3,85 bilhões (R$ 4,3 bilhões – R$ 450 milhões) do FGC ou arriscar deixar uma financeira quebrar, tendo com isso um prejuízo mínimo de R$ 5,8 bilhões para o FGC — além de todo o risco de contágio sistêmico acima descrito —, a primeira opção é quase que uma dádiva.

E é por isso que, frente à ameaça de Silvio Santos de que ele iria deixar o Panamericano ser liquidado, os banqueiros não titubearam em aquiescer às suas exigências.

Conclusão

O que houve não foi nenhuma “Casa de Fraternidade” de banqueiros para com Silvio Santos.  Tampouco o FGC aceitou o prejuízo só porque o dinheiro era “público” — isto é, dos correntistas, e não propriamente dos bancos.  O que houve foi um simples e perfeitamente compreensível temor de contágio.

No sistema de reservas fracionárias, a quebra de um banco (ou de uma empresa que estava toda alavancada em dinheiro de bancos) pode gerar um contágio por todo o sistema financeiro.  A quebra do Panamericano não necessariamente iria levar ao derretimento de todo o sistema bancário brasileiro, mas certamente geraria algum abalo, o qual se manifestaria em perdas de capital (reavaliação dos ativos dos bancos), queda de ações e prejuízos vários.  No extremo dos extremos, poderia até mesmo haver um outro PROER e uma nova rodada de fusões.

Nenhum banqueiro em seu perfeito juízo iria realmente querer arriscar e “pagar pra ver” o que aconteceria nesse cenário — ainda mais no Brasil, onde o setor bancário opera em ambiente tranquilo, com pouca concorrência, lucros fáceis e sem sobressaltos.  Pra que arriscar?  A cautela e o conservadorismo são o segredo da longevidade.

Comparado ao potencial de risco acima descrito, perder menos de R$ 4 bilhões de um fundo que funciona como seguro de depósitos chega até a ser lucro.

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UPDATE: uma pequena correção técnica

Ao contrário do que havia sido dito, as contribuições para o FGC não são de 2% dos depósitos seguráveis, mas sim de 0,025% ao mês (0,3% ao ano). Essa contribuição se dá até o momento em que o volume total de dinheiro no FGC chegue a 2% do volume total de depósitos seguráveis.

Repetindo: O total de depósitos no FGC é que tem de totalizar 2% do volume total de depósitos seguráveis. Isso significa que, após esse resgate do Panamericano, o que reduziu o volume de dinheiro no FGC, os bancos terão agora de voltar a fazer depósitos mensais no FGC até que o volume de dinheiro ali chegue a 2% do total de depósitos que são seguráveis. Isso significa que haverá um pouco menos de dinheiro disponível para empréstimos e outras finalidades.

Tal detalhe técnico, obviamente, em nada altera o que foi dito no artigo.

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