A constante situação de desequilíbrio no mercado gera um fenômeno interessante: a igualmente constante possibilidade de se amenizar o desequilíbrio mediante uma ação coordenadora. Ou seja, surge a famosa oportunidade de lucro, que se afigura no mercado como uma descoordenação percebida. Quando a descoordenação é percebida, sua correção resulta em lucro.
Observe o seguinte exemplo: A, produtor de algodão, possui esse bem em excesso por falta de compradores e o vende barato, ao passo que B, fabricante de tecidos, por não encontrar bons fornecedores, paga caro pelo algodão que usa. Então surge C, que nota essa descoordenação e passa a funcionar como um intermediário, comprando barato de A e vendendo a um maior preço a B, obtendo assim um lucro. Eis em suma a precípua função da atividade empresarial.
A função empresarial, em sentido estrito, consiste basicamente em descobrir e avaliar (prehendo) as oportunidades de alcançar um fim ou, se preferirmos, de conseguir algum lucro ou benefício, tendo em conta as circunstâncias envolventes e agindo de modo a aproveitá-las.[1]
Segundo Huerta de Soto, o termo “empreendedor” deriva do latim in prehendo, que significa descobrir, ver, perceber.[2] Trata-se portanto de uma atividade fundamentalmente criativa, uma vez que produz informação nova.[3]
É importante ter em mente o tipo de conhecimento com que o empreendedor trabalha. Não se trata de um conhecimento técnico ou formal, que se possa transmitir por conceitos bem articulados. Muito pelo contrário, esse conhecimento é de tipo “prático não articulável”, o que significa que um empresário não saberia ensinar alguém a bem exercer sua função tanto quanto um ciclista não saberia escrever um manual sobre como andar de bicicleta. O conhecimento prático é aquele que se adquire com a experiência, com o treino, com a vida. Daí ele ser “tácito”, isto é, impossível de ser comunicado.[4]
Ainda segundo Huerta de Soto, o conhecimento empresarial é exclusivo. Isso significa que cada indivíduo na sociedade possui determinadas informações tácitas que ninguém mais possui. Contudo, uma vez que nenhum indivíduo possui todas as informações do mercado, isso significa que essas informações se encontram espalhadas nas diversas mentes individuais, cada uma guardando alguns “bits” exclusivos do conjunto inteiro desse conhecimento. Diz-se, desse modo, que o conhecimento empresarial é também disperso.[5]
Outra característica do conhecimento empresarial é que ele provém “do nada” – ex nihilo – conforme a preleção de Huerta de Soto.[6] Todavia, como sabemos, ex nihilo nihil fit, ou seja, nada provém do nada, e isso é uma verdade absoluta. O que o professor de Soto quer dizer com isso é que não há uma relação de causa e efeito conhecível da qual se origine a nova informação. Tal conhecimento surge na mente do empreendedor à semelhança de uma inspiração poética, derivada do seio inescrutável de sua intuição. Em outras palavras, a informação nova que se cria provém de um insight perante determinada circunstância. Imagine que um homem esteja conhecendo uma cidade nova e em ascensão; o crescimento econômico acaba de ali chegar, e seus comerciantes estão otimistas. Terrenos são negociados, empreendimentos são feitos, escolas são construídas, e assim por diante. O homem, admirando o movimento auspicioso da cidade, intui que dentro de cinco anos prosperará quem ali tiver um Shopping Center e toma desde logo as necessárias medidas para construir o seu. A atividade empresarial começa, portanto, nesse insight, nesse ato de captar, com o sexto sentido empresarial, a oportunidade de lucro.
A última característica do conhecimento empresarial, segundo a Escola Austríaca, é a sua transmissibilidade, porém não no sentido que o conhecimento formal é transmitido. A informação tácita no mercado é transmitida de forma não direta, de maneira subliminar, por assim dizer. Tomando o exemplo anterior, quando C compra de A e vende para B, ambos A e B adquirem informação nova sobre o valor do produto. Ambos percebem que houve uma alteração no mercado, e isso por si só já é uma informação nova que deve ser levada em consideração.
O processo de mercado, portanto, tal como visto na aula anterior, é movido pela força criativa dos empresários. “A força motriz do processo de mercado”, dirá Mises, “não provém dos consumidores nem dos proprietários dos meios de produção – terra, bens de capital e trabalho –; provém dos empresários que inovam e especulam”.[7] Em resumo, onde há descoordenação o empreendedor atua buscando lucro, criando assim informação nova, que gera mais oportunidades de coordenação.
Segundo Huerta de Soto, que nesta questão se filia a Hayek, é graças à função empresarial que se consegue realizar o cálculo econômico, pois sem ela não haveria informação para ser calculada, e isso explicaria a impossibilidade do socialismo ou economia planificada.[8] Porém, há uma divergência quanto a isso na Escola Austríaca, dizendo Hoppe que, em verdade, a impossibilidade do socialismo não se deve a um problema de falta de informação, a qual está sempre presente, e sim à falta de propriedade privada. Detalharemos esta questão na aula seguinte.
De todo modo, é inegável que a função empresarial é o que fomenta o próprio desenvolvimento da sociedade. É ela que, resolvendo descoordenações presentes, gera para o futuro novos meios a serem usados e novos fins a serem atingidos, conduzindo-nos a um processo contínuo de crescimento e evolução.
Finalmente, não se pode conceber função empresarial sem se pensar em competição. Segundo a Escola Austríaca, a competição é um processo dinâmico de rivalidade – em contraste com o pensamento de outras escolas que concebem esse fenômeno como um modelo de “concorrência perfeita”, em que paradoxalmente não há competição alguma e que nem sequer possui correspondência com a realidade.[9] Nas palavras de Huerta de Soto:
A função empresarial, pela sua própria natureza e definição, é sempre competitiva. Isto quer dizer que, uma vez que seja descoberta pelo agente uma determinada oportunidade de lucro e que este atue para aproveitá-la, essa oportunidade de lucro tende a desaparecer, de forma que não pode ser detectada e aproveitada por outros agentes.[10] (grifo do autor)
Não obstante, ainda que a oportunidade seja detectada e aproveitada por outros agentes, nada garante que o seja de maneira eficaz. Na verdadeira competição, portanto, que nada tem a ver com o modelo autocontraditório da “concorrência perfeita”, o empresário está sempre correndo o risco de que alguém atenda o público consumidor de forma mais satisfatória e assim tome sua parcela de mercado.
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Notas
[1] Huerta de Soto, A Escola Austríaca, p. 34.
[2] Idem, p. 33.
[3] Idem, pp. 38-39.
[4] Idem, p. 35.
[5] Idem, pp. 36-37.
[6] Idem, p. 39.
[7] Mises, Ação Humana, p. 390.
[8] Huerta de Soto, idem, p. 41.
[9] Idem, p. 43.
[10] Idem, p. 43.