Aula IX – O Processo de Mercado

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Dados os pressupostos epistemológicos da Escola Austríaca e as primeiras implicações do conceito de ação humana, podemos agora adentrar no campo da Economia propriamente dita, a qual Mises considera como um ramo da ciência mais abrangente da ação humana, a Praxeologia.[1]

A Escola Austríaca compreende a economia como um processo. Mais especificamente, como um processo dinâmico engendrado por ações humanas que se dão ao longo do tempo sob condições de incerteza genuína.[2]

Como vimos em aula anterior, o tempo é um fator essencial em todo processo produtivo. Nenhum bem ou produto é obtido imediatamente assim que se pensa nele. Toda ação leva tempo para ser efetuada. Entretanto, uma distinção se faz necessária a esta altura: aquela entre tempo newtoniano e tempo real ou subjetivo. A Escola Austríaca adota o conceito de tempo real, que entende o tempo como um fluxo dinâmico de acontecimentos, em oposição ao conceito newtoniano de tempo, segundo o qual o tempo seria um desenrolar absoluto da duração sem relação com os eventos externos da realidade. No conceito newtoniano, os eventos acontecem no tempo; no conceito subjetivo, os eventos são o tempo.[3]

Outro elemento presente no processo de mercado tal como entendido pela Escola Austríaca é o subjetivismo, ou seja, a ideia de que o mercado é feito de ações humanas, as quais envolvem preferências e escolhas subjetivas, noção esta que se opõe àquela segundo a qual a Economia focaria em relações entre magnitudes objetivas e quantificáveis. O objeto central da Economia, como já dissemos na aula sobre a tradição praxeológica, são as ações humanas, das quais as magnitudes quantificáveis são apenas o efeito. Sendo a economia um processo que envolve julgamentos e escolhas individuais, e uma vez que tais julgamentos e escolhas mudam constantemente, cria-se assim um cenário de incerteza genuína – consequência direta do subjetivismo adotado pela perspectiva austríaca.[4]

A incerteza genuína significa que não é possível fazer uma lista das possíveis consequências que se podem esperar de um determinado curso de ação. Toda ação possui consequências previsíveis e imprevisíveis. Imagine um conjunto de pessoas tendo cada uma valores, gostos e histórias diferentes. Cada uma delas será evidentemente afetada de modo diverso pelos eventos a que a vida as expuser. E a cada nova experiência elas mudarão algo, ainda que mínimo, dentro de si. E isso acontece o tempo todo: novas ações criam novos estímulos e novas circunstâncias, das quais ainda outras ações promanam, sucessivamente e ao infinito. É, pois, impossível saber hoje o que só havemos de saber amanhã.

Em outras palavras, vivemos em um mundo de incerteza. Isso faz com que toda ação seja essencialmente especulativa. Contudo, como Hoppe enfatiza, o fato de vivermos em um mundo de incerteza não significa que a incerteza seja absoluta. Há situações previsíveis, e somos inclusive capazes de produzir deliberadamente certos resultados com base em nosso conhecimento tecnológico. A incerteza quanto ao futuro, portanto, embora inescapável, não é total.[5]

Há, por esse modo, uma constante limitação do conhecimento na vida humana. Nem sempre sabemos qual o melhor meio tecnológico disponível para atingir determinado fim, e frequentemente os recursos não são alocados da maneira mais eficiente. Como saber qual seria a esquina ideal de uma cidade para montar uma loja de sapatos? Onde encontrar os melhores fornecedores de cada insumo? Como saber o número exato de produtos a fabricar? Tudo isso – ou seja, a falta de informação perfeita – contribui para haver uma perpétua situação de desequilíbrio ou descoordenação no mercado.[6]

Melhor se percebe essa realidade por seu contraste com uma de equilíbrio perfeito: se todos os indivíduos agissem sempre da mesma maneira, conforme aquilo que Mises chamou de “economia uniformemente circular”[7], então todos os preços no mercado manter-se-iam iguais a si mesmos ao longo do tempo e haveria desse modo uma situação de perfeito equilíbrio.

Esse cenário, contudo, embora seja uma construção mental e nunca venha a se observar na realidade, é uma ferramenta imprescindível para a atividade teórica econômica. De fato, não existe teorização em Economia sem esse recurso, que comumente se representa pela famosa cláusula ceteris paribus (tudo o mais constante). Ao congelarmos a realidade, pelo uso dessa cláusula, e em seguida colocarmos nela um elemento novo, criamos um contraste que nos permite visualizar qual é o efeito preciso desse novo elemento. Assim, para sabermos, por exemplo, qual o efeito que tem o salário mínimo na economia, basta recorrermos à imagem da economia uniformemente circular e colocarmos esse evento. O que aconteceria? Tudo o mais constante, a instituição de um preço mínimo da mão de obra faz com que aqueles que trabalham por um valor inferior a ele fiquem desempregados. Afora outras consequências previsíveis desse caso, isso é só um exemplo de como se podem usar essas “construções imaginárias”[8].

Dentro da Escola Austríaca, é consenso que os mercados vivem em desequilíbrio. Mas existe quanto a isso uma interessante dissensão. A vertente tradicional, normalmente representada por Menger, Mises, Hayek e Kirzner, considera que existe uma constante tendência ao equilíbrio, por força de fatores equilibradores ou coordenadores. Cada movimento do mercado, assim, dar-se-ia em direção à situação de equilíbrio, a qual, no entanto, jamais seria alcançada. No dizer de Ubiratan Iorio:

Para a Escola Austríaca, o mercado é um processo de permanentes descobertas, de tentativas e erros, o qual, ao amortecer as incertezas, tende sistematicamente a coordenar os planos formulados pelos agentes econômicos. Como as diversas circunstâncias que cercam a ação humana estão ininterruptamente sofrendo mutações, segue-se que o estado de coordenação plena jamais é alcançado, embora os mercados tendam para ele.[9]

De outro lado, uma vertente mais radical, representada por Ludwig Lachmann, considera que a própria noção de equilíbrio deve ser descartada. Para esse autor, influenciado pelo ultrassubjetivismo do economista keynesiano G. L. S. Shackle, as tendências desequilibradoras do mercado são tão poderosas e ativas quanto as equilibradoras, de maneira que não faz sentido dar mais ênfase àquelas do que a estas. O mercado, portanto, seria um processo ordenado e dinâmico, porém sem rumo algum, uma vez que as preferências, os recursos, as tecnologias e as expectativas mudam constantemente. Tal é o modelo a que Shackle denominou “mercado caleidoscópico”.[10]

Na obra de Kirzner, a atividade empresarial gera um processo de correção de erros que direciona o processo de mercado rumo ao equilíbrio. Na obra de Lachmann, o subjetivismo das expectativas gera a cada momento opiniões divergentes sobre o futuro, resultando em ações incompatíveis entre si e distanciando o processo de mercado de uma posição de equilíbrio.[11]

Assim, do ponto de vista da Escola Austríaca, o mercado existe como um processo dinâmico em constante desequilíbrio, sendo a ideia de equilíbrio geral apenas um recurso teórico – utilizado em sede de experimento mental – para explicar os efeitos de determinadas ações ou intervenções no mercado.

 

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Notas

[1] Mises, Ação Humana, p. 23.

[2] Ubiratan Jorge Iorio, Ação, Tempo e Conhecimento: A Escola Austríaca de Economia, pp. 18-20.

[3] Idem, pp. 71-73.

[4] Idem, p. 20.

[5] Hoppe, “On Certainty and Uncertainty, Or: How Rational Can Our Expectations Be?”. Disponível em: < https://cdn.mises.org/rae10_1_3_3.pdf>.

[6] Iorio, idem, pp. 75-79.

[7] Mises, Ação Humana, p. 300.

[8] Mises, Ação Humana, p. 291.

[9] Iorio, idem, p. 76.

[10] Iorio, idem, p. 79.

[11] Fabio Barbieri, O Processo de Mercado na Escola Austríaca Moderna, p. 120. Disponível em: < https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/12/12138/tde-20102001-144955/publico/Fabio_Barbieri.pdf>.

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