Capítulo 10 – Governo e a Produção Privada da Defesa

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Hans-Hermann Hoppe

 

É direito do povo de alterá-la ou aboli-la e instituir um novo governo, baseando-o em tais princípios e organizando os poderes pela forma que pareça mais conveniente para alcançar a segurança e a felicidade.

— Declaração de Independência dos Estados Unidos da América

 

I.

 

Entre as crenças mais populares e consequentes de nossa era, está a crença na segurança coletiva. Nada menos significativo do que a legitimidade do Estado moderno repousa sobre esta crença.

Demonstrarei que a ideia de segurança coletiva é um mito que não justifica o estado moderno, e que toda a segurança é e deve ser privada. Primeiro, vou apresentar uma reconstrução em duas etapas do mito da segurança coletiva, e a cada etapa levantarei algumas preocupações teóricas.

O mito da segurança coletiva também pode ser chamado de mito Hobbesiano. Thomas Hobbes, e incontáveis filósofos políticos e economistas depois dele, argumentaram que, no estado da natureza, os homens estariam constantemente à mercê uns dos outros. Homo homini lupus est. Pondo no jargão moderno, no estado da natureza, uma permanente “subprodução” de segurança prevaleceria. Cada indivíduo, deixado à sua própria sorte e provisões, gastaria “muito pouco” em sua própria defesa, resultando em uma guerra interpessoal permanente. A solução para essa situação presumivelmente intolerável, de acordo com Hobbes e seus seguidores, é o estabelecimento de um Estado. A fim de instituir uma cooperação pacífica entre eles, dois indivíduos, A e B, requerem um terceiro independente, E, como juiz supremo e pacificador. Entretanto, este terceiro, E, não é apenas mais um indivíduo, e o bem proporcionado por E, o da segurança, não é apenas mais um bem “privado”. Ao contrário, E é um soberano e tem como tal dois poderes únicos. Por um lado, E pode insistir que seus súditos, A e B, não busquem proteção de ninguém além dele; isto é, E é um monopolista territorial obrigatório de proteção. Por outro lado, E pode determinar unilateralmente quanto A e B devem gastar com sua própria segurança; isto é, E tem o poder de impor impostos a fim de proporcionar segurança “coletivamente”.

Há pouca utilidade em disputas sobre se o homem é ou não tão mau e como supõe o lupino de Hobbes, exceto para notar que a tese de Hobbes obviamente não pode significar que o homem é guiado única e exclusivamente por instintos agressivos. Se fosse este o caso, a humanidade já teria perecido há muito tempo. O fato de ela não ter perecido demonstra que o homem também possui razão e é capaz de restringir os seus impulsos naturais. A disputa é apenas com a solução Hobbesiana. Dada a natureza do homem como animal racional, será a solução proposta para o problema da insegurança uma melhoria? Pode a instituição de um Estado reduzir o comportamento agressivo e promover a cooperação pacífica, e assim proporcionar uma melhor segurança e proteção privadas? As dificuldades com o argumento de Hobbes são óbvias. Afinal, independentemente de quão maus são os homens, E — se rei, ditador, ou presidente eleito — ainda é um deles. A natureza do homem não se transforma ao tornar-se E. Ora, como pode haver melhor proteção para A e B, se E deve tributá-los a fim de proporcioná-la? Não haverá uma contradição dentro da própria construção de E como protetor expropriador de propriedade? De fato, não é isto exatamente o que também é — e mais apropriadamente — referido como um esquema de proteção? Com certeza, E fará a paz entre A e B, mas apenas para que ele próprio possa roubar ambos de forma mais lucrativa. Certamente E está mais bem protegido, mas quanto mais ele está protegido, menos A e B estão protegidos de ataques de E. A segurança coletiva, ao que parece, não é melhor do que a segurança privada. Ao contrário, é a segurança privada do Estado, E, alcançada através da expropriação, ou seja, do desarmamento econômico de seus súditos. Além disso, os estatistas, de Thomas Hobbes a James Buchanan, argumentaram que um Estado protetor, E, viria como resultado de algum tipo de contrato “constitucional”.[1] No entanto, quem em sã consciência concordaria com um contrato que permitisse ao protetor determinar unilateralmente — e irrevogavelmente — a quantia que o protegido deve pagar por sua proteção? O fato é que nunca alguém concordou![2]

Deixe-me interromper minha discussão e voltar à reconstrução do mito Hobbesiano. Uma vez assumido que, para instituir uma cooperação pacífica entre A e B, é necessário ter um estado E, segue-se uma dupla conclusão. Se existe mais de um estado — E1, E2, E3 —, assim como presumivelmente não pode haver paz entre A e B sem E, também não pode haver paz entre os estados E1, E2 e E3 enquanto eles permanecerem em um estado de natureza (ou seja, um estado de anarquia) em relação um ao outro. Consequentemente, para alcançar a paz universal, a centralização política, a unificação e, finalmente, o estabelecimento de um único governo mundial são necessários.

É útil indicar o que pode ser considerado não controverso. Para começar, o argumento está correto, até onde vai. Se a premissa está correta, então a consequência explicitada também está. Os pressupostos empíricos envolvidos na descrição hobbesiana parecem ser, à primeira vista, confirmados pelos fatos também. É verdade que os estados estão constantemente em guerra uns com os outros, e uma tendência histórica para a centralização política e um governo global realmente parece estar ocorrendo. As brigas surgem apenas com a explicação desta tendência e fato, e a classificação de um estado mundial unificado como uma melhoria no fornecimento de segurança privada e proteção. Parece haver uma anomalia empírica para a qual o argumento hobbesiano não é considerado. O motivo do conflito entre diferentes estados E1, E2 e E3, de acordo com Hobbes, é que eles estão em um estado de anarquia vis-à-vis ao outro. No entanto, antes da chegada de um único estado mundial, não só estão E1, E2 e E3 em um estado de anarquia em relação ao outro, mas, na verdade, todos os súditos de um estado estão em um estado de anarquia vis-à-vis a todos os súditos de qualquer outro estado. Desse modo, tanto guerra quanto agressão devem existir entre os cidadãos de vários estados como entre diferentes estados. Empiricamente, porém, não é assim. As negociações privadas entre estrangeiros parecem ser significativamente menos belicosas do que negociações entre diferentes governos. Isso também não parece surpreendente. Afinal, o agente estado E, ao contrário de cada um de seus sujeitos, pode contar com tributação interna na condução de seus “negócios estrangeiros”. Dada sua agressividade natural humana, não é óbvio que E vai ser mais descarado e agressivo em sua conduta para com os estrangeiros se ele pode externalizar o custo de tal comportamento para os outros? Certamente, eu estaria disposto a assumir maiores riscos e me envolver em mais provocações e agressões se eu pudesse fazer os outros pagarem por isto. E certamente haveria uma tendência de um estado — um esquema de proteção — de querer expandir seu monopólio de proteção territorial às custas de outros estados e, assim, fazer com que o governo mundial seja o resultado final da competição interestadual.[3] Mas como isso é uma melhoria na provisão de segurança e proteção privada? O oposto parece ser o caso. O estado mundial é o vencedor de todas as guerras e o último sobrevivente do esquema de proteção. Isso não o torna particularmente perigoso? Não será o poder físico de qualquer governo mundial esmagador em comparação ao de qualquer um de seus súditos?

 

II.

 

Deixe-me fazer uma pausa em minhas considerações teóricas abstratas para dar uma breve olhada nas evidências empíricas sobre o assunto em questão. Conforme observado no início, o mito da segurança coletiva é tão amplo quanto é consequente. Eu não estou ciente de nenhuma pesquisa sobre esse assunto, mas arriscaria dizer que o mito hobbesiano é aceito quase inquestionavelmente por bem mais de 90 por cento da população adulta. No entanto, acreditar em algo não o torna verdadeiro. Em vez disso, se o que alguém acredita é falso, as ações desse alguém o levarão ao fracasso. E enquanto as evidências? Apoiariam elas a Hobbes e a seus seguidores, ou confirmam as angústias e controvérsias anarquistas?

Os EUA foram explicitamente fundados como um estado “protetor” à la Hobbes. Deixe-me citar para este incidente a declaração de independência feita por Jefferson:

Consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas: que todos os homens são criados iguais, dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, como a vida, a liberdade e a procura da felicidade. E a fim de assegurar esses direitos, governos são instituídos entre os homens, derivando seus justos poderes do consentimento dos governados.

Aqui está: O governo dos EUA foi instituído para cumprir uma e apenas uma tarefa: a proteção da vida e da propriedade. Desse modo, deve fornecer o exemplo perfeito para julgar a validade do argumento hobbesiano quanto ao status dos estados como protetores. Depois de mais de dois séculos de estatismo protetor, qual é o status de nossa proteção e cooperação pacífica humana? O experimento americano de estatismo protetor foi um sucesso?

De acordo com os pronunciamentos de nossos governantes estaduais e seus guarda-costas intelectuais (dos quais há mais do que nunca antes), estamos melhor protegidos e mais seguros do que nunca. Estamos supostamente protegidos do aquecimento e resfriamento global; da extinção de animais e plantas; de abusos de maridos e esposas, pais e empregadores; de pobreza, doença, desastre, ignorância, preconceito, racismo, sexismo, homofobia e inúmeros outros inimigos e perigos públicos. Na verdade, no entanto, as coisas são muito diferentes. A fim de nos fornecer toda essa “proteção”, os gestores estadistas expropriam mais de 40 por cento das receitas dos produtores privados ano após ano. A dívida e irresponsabilidades governamentais têm aumentado ininterruptamente, aumentando assim a necessidade de expropriações futuras. Devido à substituição do ouro pelo papel moeda do governo, a insegurança financeira aumentou drasticamente e somos continuamente roubados pela depreciação da moeda. Cada detalhe da vida privada, propriedade, comércio e contrato são regulamentados por montanhas cada vez mais altas de leis (legislação), criando assim incerteza jurídica permanente e perigo moral. Em particular, fomos gradualmente despojados do direito à exclusão implícito no próprio conceito de propriedade privada. Como vendedores, nós não podemos vender para, e como compradores, não podemos comprar de quem quer que nós desejemos. E como membros de associações, não temos permissão para entrar em qualquer aliança restritiva que acreditamos ser de benefício mútuo. Como americanos, devemos aceitar os imigrantes que não queremos como nossos vizinhos. Como professores, não podemos nos livrar de alunos mal-comportados. Como empregadores, estamos presos a funcionários incompetentes ou destrutivos. Como proprietários, somos forçados a lidar com maus inquilinos. Como banqueiros e seguradoras, não somos permitidos de evitar riscos ruins. Como proprietários de restaurantes ou bares, nós devemos acomodar clientes indesejáveis. E como membros de associações privadas, somos obrigados a aceitar indivíduos e ações que violem nossas próprias regras e restrições. Em suma, quanto mais o estado aumentou seus gastos com segurança “social” e segurança “pública”, mais nossos direitos de propriedade privada foram corroídos, mais nossa propriedade foi expropriada, confiscada, destruída ou depreciada, e mais fomos privados do próprio fundamento de toda proteção: independência econômica, solidez financeira e riqueza pessoal.[4] O caminho de cada presidente e de praticamente cada membro do congresso está repleto de centenas de milhares de vítimas anônimas de ruína econômica pessoal, falência financeira, emergência, empobrecimento, desespero, dificuldades e frustrações.

A imagem parece ainda mais desanimadora quando consideramos relações estrangeiras. Nunca em toda a sua história o continental Estados Unidos foi atacado territorialmente por qualquer exército estrangeiro. (Pearl Harbor foi o resultado de uma provocação anterior dos EUA, e os ataques de 11 de setembro foram perpetrados por uma organização terrorista.) No entanto, os EUA têm a distinção de ter tido um governo que declarou guerra contra grande parte de sua própria população e se envolveu no assassinato arbitrário de centenas de milhares de seus próprios cidadãos. Além disso, enquanto as relações entre cidadãos americanos e estrangeiros não parecem ser incomumente controversas, quase desde o início nos EUA, o governo buscou incansavelmente o expansionismo agressivo. Começando com a Guerra Hispano-Americana, culminando na Primeira e Segunda Guerra Mundial, e continuando até o presente, o governo dos EUA envolveu-se em centenas de conflitos estrangeiros e ascendeu à posição de líder imperialista mundial. Assim, quase todos os presidentes desde a virada do século XX também foram responsáveis pelo assassinato, matança ou fome de inúmeros estrangeiros inocentes pelo mundo. Em suma, embora nos tornemos mais desamparados, empobrecidos, ameaçados e inseguros, o governo dos EUA tornou-se cada vez mais descarado e agressivo. No nome de segurança “nacional”, ele nos “defende”, dotado de enormes estoques de armas de agressão e destruição em massa, intimidando sempre novos “Hitlers”, grandes ou pequenos, e todos os suspeitos simpatizantes hitleristas em qualquer lugar fora do território dos EUA.[5]

A evidência empírica, portanto, parece clara. A crença em um estado protetor parece ser um erro evidente, e o experimento americano em estatismo protetor, um fracasso completo. O governo dos EUA não nos protege. Ao contrário, não existe maior perigo para nossa vida, propriedade e prosperidade do que o governo dos EUA, e o presidente dos EUA em particular é o perigo mais ameaçador, capaz de arruinar todos que se opõem a ele e destruindo o globo inteiro.

 

III.

 

Os estatistas reagem como os socialistas quando confrontados com o péssimo desempenho econômico da União Soviética e seus satélites. Eles não negam necessariamente os fatos decepcionantes, mas tentam afastá-los alegando que esses fatos são os resultados de uma discrepância sistemática (desvio) entre estatismo “real” e estatismo “ideal” ou “verdadeiro” (ou seja, socialismo). Até hoje, os socialistas afirmam que o “verdadeiro” socialismo não foi refutado por evidências empíricas, e que tudo teria terminado bem e a prosperidade inigualável teria resultado se apenas Trotsky e Bukharin, ou melhor ainda, sua própria marca do socialismo, em vez de Stalin, tivesse sido implementada. Da mesma forma, os estatistas interpretam todas as evidências aparentemente contraditórias como apenas acidental. Se apenas algum outro presidente tivesse ido ao poder nesta ou naquela virada na história ou se apenas esta ou aquela mudança ou emenda constitucional fosse adotada, tudo teria saído lindamente, e uma segurança incomparável e a paz teria sido o resultado. Na verdade, isso ainda pode acontecer no futuro, se suas próprias políticas forem empregadas.

Aprendemos de Ludwig von Mises como responder a estratégia de evasão (imunização) dos socialistas.[6] Enquanto a característica definidora — a essência — do socialismo, ou seja, a ausência da propriedade privada dos fatores de produção, permanecer em vigor, nenhuma reforma será de alguma ajuda. A ideia de uma economia socialista é uma contradição em termos, e a afirmação de que o socialismo representa um modo mais eficiente e “superior” de produção social é absurda. A fim de alcançar seus próprios fins eficientemente e sem desperdício no âmbito de uma economia de troca baseada na divisão de trabalho, é necessário que se faça o cálculo monetário (contabilidade de custos). Em todos os lugares fora do sistema de economia primitivo autossuficiente de uma única família, o cálculo monetário é a única ferramenta de ação racional e eficiente. Apenas comparando entradas e saídas aritmeticamente em termos de um meio comum de troca (dinheiro) uma pessoa pode determinar se suas ações são bem-sucedidas ou não. Em contraste distinto, socialismo significa não ter economia, sem economia nenhuma, porque sob estas condições, cálculo monetário e contabilidade de custos são impossíveis por definição. Se não existe propriedade privada em fatores de produção, então não existem preços para qualquer fator de produção; portanto, é impossível determinar se eles são empregados economicamente ou não. Assim, o socialismo não é um modo de produção mais elevado, mas caos econômico e regressão ao primitivismo.

Como responder à estratégia de evasão dos estatistas tem sido explicado por Murray N. Rothbard.[7] Mas a lição de Rothbard, embora igualmente simples, clara e de implicações ainda mais importantes, permaneceu até hoje muito menos conhecida e apreciada. Contanto que a característica definidora — a essência — de um estado permanece no local, explicou ele, nenhuma reforma, seja do quadro de funcionários ou da constituição, será de qualquer utilidade. Dado o princípio do governo — monopólio judicial e o poder de tributar — qualquer noção de limitar seu poder e proteger a vida e propriedade individual é ilusória. Sob os auspícios monopolísticos, o preço da justiça e proteção deve aumentar e sua qualidade diminuir. Uma agência de proteção financiada por impostos é uma contradição em termos e levará sempre a mais impostos e menos proteção. Mesmo se um governo limitasse suas atividades exclusivamente para a proteção de direitos à propriedade preexistentes (como todo estado “protetor” deve fazer), a questão adicional de quanta segurança deveria ser proporcionada surgiria. Motivado (como todo mundo) por interesse próprio e a desutilidade do trabalho, mas com o poder único de tributar, a resposta do governo será invariavelmente a mesma: maximizar os gastos com proteção — e quase toda a riqueza de uma nação pode ser gasta pelo custo da proteção e, ao mesmo tempo, minimizar a produção de proteção. Além disso, um monopólio judicial deve conduzir a uma degradação da qualidade da justiça e da proteção. Se só se pode apelar ao governo no que tange a justiça e proteção, a justiça e proteção serão pervertidas a favor do governo — apesar das constituições e os tribunais supremos. Afinal, constituições e tribunais supremos são constituições e tribunais estatais, e quaisquer limitações à ação governamental que eles podem conter é determinado por agentes da própria instituição. Assim, a definição de propriedade e a proteção será continuamente alterada e o âmbito de jurisdição expandido para vantagem do governo.

Consequentemente, Rothbard apontou, segue-se que, assim como o socialismo não pode ser reformado, mas deve ser abolido a fim de alcançar prosperidade, então, a instituição de um estado não pode ser reformada, mas deve ser abolida para se alcançar justiça e proteção. “A defesa na sociedade livre (incluindo tais serviços de defesa para pessoa e propriedade como proteção policial e decisões judiciais),” concluiu Rothbard,

teria, portanto, de ser fornecida por pessoas ou empresas (a) que obtiveram sua renda voluntariamente ao invés de coerção e (b) não — como o Estado faz — arrogar para si mesmo um monopólio obrigatório da proteção ou justiça […] As empresas de defesa teriam de ser tão livremente competitivas e não coercitivas contra os não invasores quanto são todos os outros fornecedores de bens e serviços no livre mercado. Os serviços de defesa, como todos os outros serviços, seriam comercializáveis e apenas comercializáveis.[8]

Isto é, todo proprietário de propriedade privada seria capaz de participar das vantagens da divisão do trabalho e buscar melhor proteção de sua propriedade do que aquela proporcionada por meio da legítima defesa, pela cooperação com outros proprietários e suas propriedades. Qualquer um pode comprar, vender ou negociar de outra forma com qualquer outra pessoa em relação aos serviços de proteção e serviços judiciais, e pode-se, a qualquer momento, descontinuar unilateralmente qualquer cooperação com outras pessoas e recorrer à defesa autossuficiente ou mudar suas afiliações protetoras.

 

IV.

 

Tendo reconstruído o mito da segurança coletiva — o mito do estado — e criticado em bases teóricas e empíricas, devo agora assumir a tarefa de construir o caso positivo para segurança e proteção privada. Para dissipar o mito da segurança coletiva, não basta apenas compreender o erro envolvido na ideia de um estado de proteção. Isto é tão importante, se não mais, quanto obter um entendimento claro de como a alternativa de segurança não estatal efetivamente funcionaria. Rothbard, com base na análise inovadora do economista franco-belga Gustave de Molinari,[9] nos deu um esboço do funcionamento de um sistema de livre mercado de proteção e defesa.[10] Da mesma forma, estamos em dívida com Morris e Linda Tannehill por seus insights e análises brilhantes neste respeito.[11] Seguindo o exemplo deles, prosseguirei com minha análise e fornecerei uma visão mais abrangente do  sistema alternativo — não estatista —de produção de segurança e sua capacidade de lidar com ataques, não apenas de indivíduos ou gangues, mas, em particular, também de estados.

Existe um acordo generalizado entre liberais-libertários assim como Molinari, Rothbard e Tannehills, bem como a maioria dos outros comentaristas sobre o assunto, que a defesa é uma forma de seguro, e despesas com defesa representam uma espécie de seguro especial (preço). Assim, como Rothbard e Tannehills em particular enfatizariam, dentro da estrutura de uma economia moderna complexa baseada na divisão mundial do trabalho, os candidatos mais prováveis para oferecer proteção e os serviços de defesa são agências de seguros. Quanto melhor for a proteção da propriedade segurada, menores serão os pedidos de indenização e, portanto, os custos de uma seguradora. Assim, fornecer proteção eficiente é do interesse financeiro de cada seguradora. Com efeito, embora restrito e dificultado pelo estado, mesmo agora as seguradoras fornecem uma ampla gama de serviços de proteção e indenização (compensação) às partes privadas prejudicadas.

As seguradoras cumprem um segundo requisito essencial. Obviamente, qualquer pessoa que ofereça serviços de proteção deve parecer capaz de cumprir suas promessas para encontrar clientes. Isso é, ele deve possuir os meios econômicos — a mão de obra, bem como os recursos físicos — necessários para cumprir a tarefa de lidar com os perigos, reais ou imaginários, do mundo real. Neste contexto, as seguradoras também parecem ser candidatas perfeitas. Elas operam em escala nacional e até internacional, e possuem grandes propriedades espalhadas por amplos territórios e além das fronteiras de um único estado. Consequentemente, elas têm um interesse próprio em uma proteção eficaz e são “grandes” e poderosas economicamente. Além disso, todas as seguradoras estão conectadas por meio de uma rede de acordos contratuais de assistência mútua e arbitragem, bem como um sistema de agências internacionais de resseguro, representando um poder econômico combinado que supera o da maioria dos governos existentes.

Deixe-me analisar mais a fundo e esclarecer sistematicamente esta sugestão: que proteção e defesa são “seguros” e podem ser fornecidos por seguradoras. Para atingir esse objetivo, duas questões devem ser abordadas. Em primeiro lugar, não é possível garantir-se contra todos os riscos de vida. Eu não posso me segurar contra cometer suicídio, por exemplo, ou contra queimar minha própria casa, ficar desempregado, não ter vontade de levantar-se da cama pela manhã, ou não sofrer por perdas de empreendedorismo, porque em cada caso tenho controle total ou parcial sobre a probabilidade do respectivo resultado. Riscos como estes devem ser assumidos individualmente. Ninguém além de mim pode lidar com eles. Portanto, a primeira pergunta deve ser: o que torna proteção e defesa um risco segurável em vez de não segurável? Afinal, como acabamos de ver, isso não é evidente. Na verdade, nem todos têm um controle considerável sobre a probabilidade de um ataque e invasão de sua pessoa e propriedade? Eu não provoco deliberadamente um ataque por agredir ou provocar outra pessoa, por exemplo, e não é a proteção, então, um risco não segurável, como suicídio ou desemprego, pelo qual cada pessoa deve assumir a responsabilidade exclusiva?

A resposta é que é um sim e não. Sim, na medida em que ninguém pode possivelmente oferecer proteção incondicional, isto é, seguro contra qualquer invasão. Ou seja, a proteção incondicional só pode ser fornecida, se for o caso, por cada indivíduo por conta própria e para si mesmo. Mas a resposta é não, no que diz respeito à proteção condicional. Apenas ataques e invasões que são provocados pela vítima não podem ser segurados. Ataques não provocados e, portanto, “acidentais” podem ser, no entanto, segurados.[12] Ou seja, a proteção se torna um bem segurável somente se, na medida em que um agente de seguros restringe contratualmente as ações do segurado de modo a excluir todas as possíveis “provocações” de sua parte. Várias companhias de seguros podem discordar sobre a definição específica de provocação, mas não pode haver diferença entre as seguradoras no que diz respeito ao princípio de que todos devem sistematicamente excluir (proibir) todas as provocações e ações agressivas entre seus próprios clientes.

Por mais elementar que esse primeiro insight na natureza essencialmente defensiva — não agressiva e não provocativa — do seguro-proteção possa parecer, é de fundamental importância. Por um lado, isso implica que qualquer agressor e provocador conhecido seria incapaz de encontrar uma seguradora e, portanto, seria economicamente isolado, fraco e vulnerável. Por outro lado, isso implica que qualquer um que queira mais proteção do que isso proporcionado pela autodefesa autossuficiente poderia fazê-lo somente se ele se submeter a normas específicas de conduta não agressiva e civilizada. Além disso, quanto maior o número de segurados — e em uma economia moderna de trocas, a maioria das pessoas quer mais do que apenas autodefesa para sua proteção — maior seria a pressão econômica sobre o restante não segurado para adotar os mesmos padrões ou padrões semelhantes de conduta social não-agressiva. Além disso, como resultado da competição entre seguradoras por pagarem clientes voluntariamente, uma tendência de queda dos preços de propriedade seguradas surgiria.

Ao mesmo tempo, um sistema de seguradoras concorrentes teria um impacto duplo no desenvolvimento da lei e, assim, contribuiria ainda mais para reduzir o conflito. Por um lado, o sistema permitiria sistematicamente uma adicional variabilidade e flexibilidade de lei. Em vez de impor um conjunto uniforme de padrões a todos (conforme as condições estatistas), agências de seguros poderiam e competiriam entre si, não apenas pelo preço mas, em particular, também por meio da diferenciação do produto e desenvolvimento. As seguradoras poderiam e diferenciariam e distinguir a si próprias quanto ao código de comportamento imposto e esperado de seus clientes, no que diz respeito às normas de prova e procedimento e/ou à classificação e atribuição de prêmios e punições. Poderia existir e existiria lado a lado, por exemplo, seguradoras católicas aplicando a lei canônica, seguradoras judaicas aplicando a lei mosaica, muçulmanos aplicando a lei islâmica, e não crentes aplicando a lei secular de uma variante ou outra, todos eles sustentados e competindo por uma clientela voluntária. Os consumidores poderiam escolher, e às vezes mudar, a lei aplicada a eles e a sua propriedade. Ou seja, ninguém seria forçado a viver sob a lei “estrangeira”; portanto, uma fonte proeminente de conflito seria eliminada.

Por outro lado, um sistema de seguradoras oferecendo códigos jurídicos concorrentes promoveria uma tendência à unificação da lei. A lei — católica, judaica, romana, germânica, etc. — doméstica seria aplicável e vinculativa apenas nas pessoas e em suas propriedades seguradas, na seguradora e em todos outros segurados pela mesma seguradora sob a mesma lei. O direito canônico, por exemplo, se aplicaria apenas aos católicos professos e lidariam apenas com o conflito intra-católico e resolução de conflitos. No entanto, também seria possível para um católico interagir, entrar em conflito e desejar ser protegido dos assinantes de outros códigos legais, por exemplo, um muçulmano. Disto nenhuma dificuldade surgiria, desde que as leis islâmica e católica cheguem à mesma conclusão ou semelhante em relação ao caso e às partes conflitantes em questão. Mas se os códigos de lei concorrentes chegassem a conclusões distintas (como aconteceria em pelo menos alguns casos em virtude do fato de que o governo e a produção privada de defesa representam códigos de lei diferentes), surgiria um problema. O segurado gostaria de ser protegido contra a contingência de conflito intergrupal, também, mas a lei “doméstica” (intragrupo) seria de nenhum proveito a este respeito. Na verdade, no mínimo, dois códigos de lei “domésticos” distintos estariam envolvidos, e eles chegariam a diferentes conclusões. Em tal situação, não poderia se esperar que uma seguradora e os assinantes de seu código legal, dizem os católicos, simplesmente subordinariam seu julgamento a de outra seguradora e sua lei, digamos a dos muçulmanos, ou vice-versa. Em vez disso, cada seguradora — católica e muçulmana — teria de contribuir para o desenvolvimento da lei intergrupal, ou seja, a lei aplicável em casos de desacordo entre seguradoras concorrentes e códigos legais. E porque as disposições da lei intergrupal que uma seguradora ofereceu aos seus clientes podem parecer crível para eles — e, portanto, um bem, apenas se e na medida em que as mesmas disposições também forem aceitas por outras seguradoras (e quanto mais delas, melhor) — a competição promoveria o desenvolvimento e o refinamento de um corpo de leis que incorpora o mais amplo — intergrupo, transcultural, etc. — consenso legal-moral e acordos e, assim, representaria o maior denominador comum entre vários códigos de leis concorrentes.[13]

Mais especificamente, porque seguradoras concorrentes e códigos legais poderiam e iriam discordar quanto ao mérito de pelo menos alguns dos casos apresentados junto a eles, cada seguradora seria obrigada a submeter a si mesma e a seus clientes, nestes casos, pela arbitragem de um terceiro grupo. Este terceiro grupo não seria apenas independente das duas partes discordantes, mas seria, ao mesmo tempo, a unanimidade da escolha de ambas as partes. E como objetos de escolha unânime, os árbitros então representariam, ou mesmo personificariam, o “consenso” e o “acordável”. Eles seriam combinados por causa de sua capacidade comumente percebida de encontrar e formular de modo mutuamente aceitável, ou seja, “justas”, soluções em casos de desacordo entre grupos. Além disso, se um árbitro falhar nesta tarefa e chegar a conclusões que foram percebidas como “injustas” ou “tendenciosas” por qualquer uma das seguradoras e/ou seus clientes, essa pessoa, provavelmente, não será escolhida novamente como árbitro no futuro.

Consequentemente, contratos de proteção e segurança viriam à existência como o primeiro resultado fundamental da competição entre seguradoras por uma clientela que paga voluntariamente. Seguradoras (ao contrário dos estados) oferecem aos seus clientes contratos com propriedades bem específicas e descrições de produtos, deveres e obrigações claramente definidos. Da mesma forma, a relação entre seguradoras e árbitros seria definida e regida por contrato. Cada parte de um contrato, pela duração ou até o cumprimento do contrato, estaria vinculado aos seus termos e condições; e cada mudança nos termos ou condições de um contrato exigiria o consentimento unânime de todas as partes envolvidas. Ou seja, sob competição (ao contrário de condições estatistas), nenhuma “legislação” existiria ou poderia existir. Nenhuma seguradora poderia fugir (como um estado pode) “prometendo” a seus clientes “proteção” sem que eles saibam como ou a que preço, e insistindo que poderia, se assim o desejasse, mudar unilateralmente os termos e condições da relação protetor-cliente. Os clientes de seguros demandariam algo significativamente “melhor” e as seguradoras cumpririam e forneceriam contratos e leis constantes, em vez de promessas, alterações e mudanças na legislação. Além disso, como resultado da cooperação contínua de várias seguradoras e árbitros, uma tendência para a unificação da propriedade e do direito contratual e a harmonização das regras de procedimento, evidências e resolução de conflitos (incluindo questões como responsabilidade, delito, compensação e punição) seria posta em andamento. Devido ao seguro de proteção de compra, todos ficariam presos a uma empresa competitiva global para reduzir conflitos e aumentar a segurança. Além disso, cada alegação de conflito e dano, independentemente de onde e por quem ou contra quem, cairia na jurisdição de uma ou mais agências de seguros específicas, e seria tratado por uma lei “doméstica” da seguradora individual ou pelas provisões da lei “internacional” e processos acordados previamente por um grupo de seguradoras, garantindo assim (ex ante) estabilidade e certeza jurídicas completas e perfeitas.

 

V.

 

Agora, uma segunda questão deve ser abordada. Mesmo se o status de proteção defensiva como um bem seguro é concedido, existem formas distintas de seguro. Vamos considerar apenas dois exemplos característicos: seguro contra desastres naturais, como terremotos, inundações, furacões e seguros contra acidentes industriais ou desastres, como mau funcionamento, explosões e produtos defeituosos. O primeiro pode servir como um exemplo de seguro coletivo ou mútuo. Alguns territórios estão mais sujeitos a desastres naturais do que outros; consequentemente, a demanda e o preço do seguro serão maiores em algumas áreas que outras. No entanto, cada local dentro de uma determinada fronteira territorial é considerado pela seguradora como homogêneo com respeito ao risco em questão. A seguradora presumivelmente conhece a frequência e extensão do evento em questão da região como um todo, mas ela não sabe nada sobre o risco particular de qualquer localização específica dentro do território. Neste caso, cada pessoa com seguro pagará o mesmo por valor segurado, e o que será cobrado em um período de tempo presumivelmente será suficiente para cobrir todas as reivindicações de danos durante o mesmo período de tempo (caso contrário, o setor de seguros incorrerá em perdas). Assim, os riscos individuais específicos são agrupados e segurados mutuamente. Por outro lado, o seguro industrial pode servir como um exemplo de seguro individual. Ao contrário de desastres naturais, o risco segurado é o resultado da ação humana, isto é, dos esforços de produção. Cada processo de produção está sob o controle de um indivíduo produtor. Nenhum produtor pretende falhar ou experimentar um desastre, e como vimos, apenas desastres acidentes — não intencionais — são seguráveis. No entanto, mesmo que a produção seja amplamente controlada e geralmente bem-sucedida, todo produtor e tecnologia de produção está sujeito a contratempos e acidentes ocasionais além de seu controle — uma margem de erro. No entanto, uma vez que é o resultado (pretendido ou não) de esforços de produção individual e técnicas de produção, este risco de acidentes industriais é essencialmente diferente de um produtor e processo de produção para outro. Assim, os riscos de diferentes produtores e tecnologias de produção não podem ser agrupados, e cada produtor deve ser segurado individualmente. Nesse caso, a seguradora terá de saber a frequência do evento questionável ao longo do tempo, mas ela não pode saber a probabilidade do evento em qualquer ponto no tempo, exceto que o mesmo produtor e a tecnologia de produção esteja sempre em operação. Não há presunção de que os valores cobrados durante qualquer período serão suficientes para cobrir todas as alegações de danos surgidas durante aquele período. Em vez disso, a presunção com fins lucrativos é que todos os valores cobrados ao longo de muitos períodos de tempo serão suficientes para cobrir todas as alegações durante o mesmo período de tempo multiperíodo. Consequentemente, nesse caso, uma seguradora deve deter reservas de capital a fim de cumprir sua obrigação contratual, e ele deve tomar o valor presente dessas reservas no cálculo de seus prêmios.

A segunda questão consiste em que tipo de seguro pode proteger contra a agressão e a invasão por outros agentes. Pode ser oferecido como seguro de grupo, como para desastres naturais, ou deve ser oferecido na forma de seguro individual, como no caso de acidentes industriais?

Observe que ambas as formas de seguro representam apenas os dois possíveis extremos de um continuum, e que a posição de qualquer risco particular neste continuum não é definitivamente fixada. Devido aos avanços científicos e tecnológicos em meteorologia, geologia ou engenharia, por exemplo, riscos que antes eram considerados homogêneos (permitindo seguro mútuo) podem tornar-se cada vez mais desomogenizados. Digno de nota é essa tendência no domínio dos seguros médicos e de saúde. Com os avanços da genética e da engenharia genética — impressão digital genética — riscos médicos e de saúde anteriormente considerados homogêneos (inespecíficos) com respeito a um grande número de pessoas tornaram-se cada vez mais específicos e heterogêneos.

Com isso em mente, algo específico pode ser dito sobre o seguro de proteção em particular? Eu acho que sim. Depois de tudo, enquanto todo seguro exige que o risco seja acidental do ponto de vista da seguradora e do segurado, o acidente de uma invasão agressiva é distintamente diferente daqueles desastres naturais ou individuais. Considerando que desastres naturais e acidentes industriais são o resultado de forças naturais e da operação das leis da natureza, a agressão é o resultado das ações humanas; e considerando que a natureza é “cega” e não discrimina os indivíduos, seja no mesmo ponto no tempo ou ao longo do tempo, um agressor pode discriminar e deliberadamente mirar em vítimas específicas e escolher o momento de seu ataque.

 

VI.

 

Deixe-me primeiro comparar o seguro de proteção de defesa com seguro contra desastres naturais. Uma analogia entre os dois é frequentemente feita, e é instrutivo examinar até que ponto ela se mantém. A analogia é que, assim como todo indivíduo dentro de certas regiões geográficas é ameaçado pelo mesmo risco de terremotos, inundações e furacões, o mesmo acontece com cada habitante dentro do território dos EUA ou Alemanha, por exemplo, correm o mesmo risco de serem vitimados por um ataque estrangeiro. Alguma semelhança superficial — a qual abordarei brevemente — não obstante, é fácil reconhecer duas deficiências fundamentais na analogia. Por um lado, as fronteiras de regiões de terremotos, enchentes ou furacões são estabelecidas de acordo com critérios físicos objetivos e, portanto, podem ser referidas como “natural”. Em contraste distinto, as fronteiras políticas são fronteiras “artificiais”. As fronteiras dos EUA mudaram ao longo do século XIX, e a Alemanha não existia como tal até 1871 e era composto por 38 países separados. Certamente, ninguém iria querer alegar que essa redefinição das fronteiras dos Estados Unidos ou da Alemanha foi o resultado da descoberta de que o risco de segurança de cada americano ou alemão dentro do melhor dos EUA ou Alemanha foi, ao contrário da anteriormente sustentada crença oposta, homogêneo (idêntico).

Há uma segunda deficiência óbvia. A natureza — terremotos, inundações, furacões — está cega em sua destruição. Ela não discrimina locais e objetos mais e menos valiosos, mas “ataca” indiscriminadamente. Em contraste distinto, um agressor-invasor pode discriminar e o faz. Ele não ataca ou invade locais e coisas sem valor, como o Deserto do Saara, mas tem como alvo locais e coisas valiosas. Sendo as outras coisas iguais, quanto mais valioso é um local e um objeto, mais provavelmente será o alvo de uma invasão.

Isso levanta a próxima questão crucial: se as fronteiras políticas são arbitrárias e os ataques nunca são indiscriminados, mas direcionados especificamente a lugares e coisas valiosas, há alguma fronteira não arbitrária separando diferentes zonas de riscos à segurança (ataque)? A resposta é sim. Essas fronteiras não arbitrárias são aquelas de propriedade privada. A propriedade privada é o resultado da apropriação e/ou produção de determinados objetos ou efeitos físicos por indivíduos específicos em locais específicos. Cada produtor-apropriador (proprietário) demonstra com suas ações que ele considera as coisas apropriadas e produzidas como valiosas (bens), caso contrário ele não teria se apropriado ou produzido elas. As fronteiras da propriedade de todos são objetivas e determináveis intersubjetivamente. Elas são simplesmente determinadas pela extensão e dimensão das coisas apropriadas e/ou produzidas por qualquer indivíduo em particular. E as fronteiras de todos os lugares e coisas valiosas são coextensivas com as fronteiras de todas as propriedades. A qualquer momento do tempo, todo lugar e coisa de valor é propriedade de alguém; apenas lugares e coisas sem valor não pertencem a ninguém.

Cercado por outros homens, cada apropriador e produtor também pode se tornar o objeto de um ataque ou invasão. Cada propriedade — em contraste com as coisas (matéria) — é necessariamente valiosa; então, todo dono de propriedade se torna um possível alvo de outros desejos agressivos dos homens. Consequentemente, a escolha de cada proprietário da localização e forma de sua propriedade será, entre incontáveis outras considerações, também influenciada por questões de segurança. Assim, todos irão preferir locais e formas de propriedade mais seguros que locais e formas menos seguros. Independentemente de onde um proprietário e sua propriedade estão localizados e qualquer que seja a forma física da propriedade, cada proprietário, em virtude de não abandonar sua propriedade mesmo em vista de potencial agressão, demonstra sua vontade pessoal de proteger e defender esses bens.

No entanto, se os limites da propriedade privada são as únicas fronteiras não arbitrárias mantidas em relação sistemática com o risco de agressão, segue-se que, tantas outras zonas de segurança como propriedades imobiliárias separadas existem, e que essas zonas não são maiores do que a extensão dessas propriedades. Ou seja, ainda mais que no caso de acidentes industriais, o seguro de propriedade contra agressão parece ser um exemplo de proteção individual em vez de proteção coletiva (mútua).

Considerando que o risco de acidente do processo de uma produção individual é tipicamente independente de sua localização — de forma que se o processo fosse replicado pelo mesmo produtor em diferentes localizações, sua margem de erro permaneceria a mesma — o risco de agressão contra a propriedade privada — a planta de produção — é diferente de um local para outro. Por sua própria natureza como bens apropriados e produzidos de forma privada, a propriedade é sempre separada e distinta. Cada propriedade está localizada em um local diferente e sob o controle de um indivíduo diferente, e cada local enfrenta um risco de segurança único. Pode fazer a diferença para minha segurança, por exemplo, se resido no campo ou na cidade, em uma colina ou em um vale, ou perto ou longe de um rio, oceano, porto, ferrovia ou rua. Na verdade, até mesmo locais contíguos não correm o mesmo risco. Pode fazer a diferença, por exemplo, se eu resido mais alto ou mais baixo na montanha do que meu vizinho, mais a montante ou a jusante, mais perto ou mais distante do oceano, ou simplesmente norte, sul, oeste ou leste dele. Além disso, cada imóvel, onde quer que esteja localizado, pode ser moldado e transformado por seu proprietário de forma a aumentar sua segurança e reduzir a probabilidade de agressão. Posso adquirir uma arma ou um cofre, por exemplo, ou posso ser capaz de derrubar um avião atacante do meu quintal ou possuir uma arma laser que pode matar um agressor a milhares de quilômetros de distância. Assim, nenhum local e nenhuma propriedade são como qualquer outra. Cada proprietário terá que ser segurado individualmente, e para isso, toda seguradora de agressão deve conter reservas de capital suficientes.

 

VII.

 

A analogia normalmente elaborada entre seguro contra desastres naturais e agressões externas é fundamentalmente falha. Assim como a agressão nunca é indiscriminada, mas seletiva e direcionada, o mesmo ocorre com a defesa. Todo mundo tem diferentes locais e coisas para defender, e o risco de segurança de ninguém é igual ao de outra pessoa, no entanto, a analogia contém um pouco de verdade. Qualquer semelhança entre desastres naturais e agressão externa, no entanto, não é devido à natureza da agressão e defesa, mas à natureza específica da agressão e defesa do estado (guerra inter-estados). Conforme explicado acima, um estado é uma agência que exerce um monopólio territorial compulsório da proteção e do poder de tributar, e qualquer agência será comparativamente mais agressiva porque pode externalizar os custos de tais comportamentos em seus sujeitos. No entanto, a existência de um estado não apenas aumenta a frequência da agressão, mas muda toda a sua natureza. A existência de estados — e especialmente de estados democráticos — implica que a agressão e a defesa (guerra) tenderão a serem transformadas em guerra total — indiscriminada.[14]

Considere por um momento um mundo completamente sem Estado. Enquanto a maioria dos proprietários seriam segurados individualmente muitas vezes por grandes companhias de seguros multinacionais dotadas de enormes reservas de capital, a maioria, senão todos os agressores, correriam maus riscos sem qualquer seguro. Nesta situação, todo agressor ou grupo de agressores gostaria de limitar seus alvos, de preferência para propriedade não segurada, e evitar todos os “danos colaterais”; caso contrário, seria confrontado com uma ou muitas agências profissionais de defesa economicamente poderosas. Desse modo, toda violência defensiva seria altamente seletiva e direcionada. Todos os agressores seriam indivíduos ou grupos específicos, localizados em locais específicos e equipados com recursos específicos. Em resposta a ataques a seus clientes, as seguradoras direcionaram especificamente esses locais e recursos para retaliação e evitariam qualquer dano colateral, pois caso contrário, ficaria enredado e sujeito a outras seguradoras.

Tudo isso muda fundamentalmente em um mundo estatista, com guerras inter-estados. Se um estado, os EUA, ataca outro, por exemplo o Iraque, isso não é apenas um ataque por um número limitado de pessoas, equipadas com recursos limitados e localizadas em um local claro e identificável. Com efeito, é um ataque de todos os americanos e com todos os seus recursos. Todo americano supostamente paga impostos para o governo dos EUA e assim é de facto, sendo isso desejado ou não, implicado em toda agressão governamental. Portanto, embora seja obviamente falso afirmar que todo americano enfrenta um risco igual de ser atacado pelo Iraque (baixo ou inexistente como tal risco é, é certamente maior na cidade de Nova York do que em Wichita, Kansas, por exemplo), todo americano é submetido igualmente em relação ao seu próprio ativo, se não for sempre voluntária, participação em cada uma das agressões de seu governo.

Em segundo lugar, assim como o atacante é um estado, o Iraque é o atacado. Como sua contraparte dos EUA, o governo iraquiano tem o poder de taxar sua população ou alistá-la nas forças armadas. Como contribuinte ou recrutado, todo iraquiano está envolvido na defesa de seu governo, assim como todo americano está envolvido no ataque do governo dos EUA. Assim, a guerra se torna uma guerra de todos os americanos contra todos os iraquianos, ou seja, guerra total. A estratégia de ambos, o estado atacante e o defensor, será alterada em conformidade. Enquanto o atacante ainda deve ser seletivo em relação aos alvos de seu ataque — se por nenhuma outra razão, mesmo as agências tributárias (estados) são, em última análise, limitadas pela escassez — o agressor tem pouco ou nenhum incentivo para evitar ou minimizar os danos colaterais. Ao contrário, considerando que a saúde de toda a população nacional está envolvida no esforço defensivo, dano colateral, seja de vidas ou propriedades, é até desejável. Não existe uma distinção clara entre combatentes e não-combatentes. Todos são inimigos, e toda propriedade fornece suporte para o governo atacado. Portanto, tudo e todos se tornam um jogo justo. Da mesma forma, o estado defensor ficará pouco preocupado sobre danos colaterais resultantes de sua própria vingança contra o atacante. Cada cidadão do estado agressor é um inimigo, e todas as suas propriedades são propriedades inimigas e, portanto, um possível alvo. Além disso, cada estado, de acordo com este caráter de guerra inter-estados, desenvolverá e empregar mais armas de destruição em massa, como bombas atômicas, em vez de armas de precisão de longo alcance, como um laser imaginário.

Assim, a semelhança entre a guerra e as catástrofes naturais — sua destruição e devastação aparentemente indiscriminada — é exclusivamente uma característica de um mundo estatista.

 

VIII.

 

Isso traz o último problema. Nós vimos que, bem como toda propriedade é privada, toda defesa deve ser segurada individualmente por seguradoras capitalizadas, assim como o seguro de acidentes industriais. Também vimos que ambas as formas de seguro diferem em um aspecto fundamental. No caso de seguro de defesa, a localização da propriedade segurada importa. O valor cobrado pelo seguro será diferente em diferentes locais. Além disso, os agressores podem se mover, seu arsenal de armas pode mudar, e todo o caráter da agressão pode alterar com a presença de estados. Assim, mesmo dada a localização inicial da propriedade, o preço por valor segurado pode alterar com mudanças no ambiente social ou arredores deste local. Como um sistema de agências de seguros competitivas responderia a esse desafio? Em particular, como trataria da existência de estados e da agressão do estado?

Para responder a essas questões, é essencial voltarmos a algumas visões econômicas elementares. Ceteris paribus, donos de propriedades privadas em geral e donos de negócios em particular preferem locais com baixo custo de proteção (valor do seguro), valores de propriedade crescentes para aqueles com custo de proteção elevado e com valores de propriedade em queda. Em consequência, existe uma tendência na direção da migração de pessoas e bens que estão em áreas de alto risco e cujo valor de propriedade está em queda, para áreas de baixo risco e valor de propriedade crescente. Além disso, os custos de proteção e valor da propriedade estão diretamente relacionados. Ceteris paribus, alto custo de proteção (grande risco de ataque) implica em menores valores de propriedade ou em valores decrescentes, e baixos custos de proteção implicam em maiores valores de propriedade ou em valores crescentes. Essas leis e tendências moldam a operação de um sistema competitivo de agências de seguros de propriedades.

Considerando que um monopólio financiado por impostos vai manifestar uma tendência a aumentar o preço e custo da proteção, agências privadas de seguros de baixo custo irão se esforçar para reduzir o custo de proteção, e assim provocar uma queda nos preços. Ao mesmo tempo, agências de seguros estão mais interessadas do que qualquer um em fazer com que os preços das propriedades sejam elevados, pois isso não implica só no fato de que suas próprias propriedades sejam mais apreciadas, mas também de que haverá mais propriedades de outras pessoas para que eles possam assegurar. Em contraste, se o risco de agressão aumenta e o valor da propriedade cai, existe menos valor para ser assegurado enquanto o custo da proteção e o valor do seguro aumentam, implicando em más condições de negócios para o assegurador. Consequentemente, companhias de seguros seriam economicamente pressionadas de maneira permanente a promover situações mais favoráveis, e evitar condições desfavoráveis.

Essa estrutura de incentivo tem um impacto fundamental na operação das seguradoras. Primeiro, quanto ao caso aparentemente mais fácil de proteção a criminosos e crimes comuns, um sistema de competição entre seguradoras levaria a uma mudança dramática na política atual de crimes. Para reconhecer a extensão dessa mudança, é instrutivo olhar para o presente e para a política estatista de crimes familiares. Enquanto é de interesse dos agentes estatais combater crimes privados comuns (apenas na medida em que haver alguma propriedade para que eles possam taxar), como são agentes financiados por impostos eles têm pouco ou nenhum interesse em serem particularmente efetivos na tarefa de prevenir tais crimes, ou caso já tenha ocorrido, em indenizar as vítimas, e apreender e punir os infratores. Além do mais, dentro das condições democráticas, o insulto será adicionado à injúria, pois se todos — tanto agressores como não agressores, e moradores de locais com alta taxa de criminalidade, bem como aqueles com que moram em locais mais seguros — podem votar e ser eleitos a departamentos do governo, entra em efeito uma sistemática de redistribuição de direitos de propriedade daqueles que não são agressores para aqueles que são agressores, e daqueles que residem em áreas de baixa criminalidade para aqueles que vivem em áreas de alta taxa de criminalidade, e assim o crime será realmente promovido. Assim, o crime e a demanda por serviços de segurança privada de todos os tipos ficarão em alta o tempo todo. E de maneira mais escandalosa, em vez de indenizar as vítimas de crimes que não evitou (pois deveria), o governo força as vítimas a pagarem novamente como contribuintes pelo custo da apreensão, prisão, reabilitação e/ou o entretenimento de seus próprios agressores. E em vez de exigir preços de proteção mais altos em locais de alta criminalidade, e preços menores em locais de pouca criminalidade, como seguradoras em competição fariam, o governo faz exatamente o oposto. O governo taxa mais áreas com pouco crime e valor de propriedade altos, do que áreas com alta criminalidade e pouco valor de propriedade, ou ainda subsidia os moradores destes últimos locais — as favelas — as custas dos primeiros, erodindo as condições sociais desfavoráveis ao crime enquanto promove as condições favoráveis a ele.[15]

A operação de seguradoras competitivas apresentaria um contraste notável. Por um lado, se uma seguradora não pudesse prevenir um crime, teria de indenizar a vítima. Assim, acima de tudo, as seguradoras gostariam de ser eficazes na prevenção do crime. Se elas ainda não pudessem evitá-lo, elas gostariam de ser eficientes na identificação, apreensão e punição de infratores, porque ao encontrar e prender um infrator, a seguradora poderia forçar o criminoso — ao invés da vítima e sua seguradora — a pagar pelos danos e custos de indenização.

De maneira mais específica, assim como as seguradoras atualmente mantém e atualizam continuamente um inventário local detalhado de valores de propriedade, então elas manteriam e atualizam continuamente um inventário local detalhado de crimes e criminosos. Em igualdade de circunstâncias, o risco de agressão contra qualquer local de propriedade privada aumenta com a proximidade, número e recursos de potenciais agressores. Assim, as seguradoras estariam interessadas em coletar informações sobre crimes reais e criminosos conhecidos e suas localizações, e seria de interesse mútuo delas minimizar danos à propriedade para compartilhar essas informações entre si (assim como os bancos agora compartilham informações sobre riscos de maus créditos entre si). Além disso, as seguradoras também estariam particularmente interessadas em coletar informações sobre crimes (ainda não cometidos e conhecidos) e agressores em potencial, e isso levaria a uma revisão fundamental e melhoria nas estatísticas — estatistas — sobre crimes atuais. No objetivo de prever a futura incidência de crimes e, assim, calcular seu preço atual (apólice), as seguradoras correlacionariam a frequência, descrição e caráter de crimes e criminosos com o ambiente social em que ocorrem e operam. E, sempre sob pressão competitiva, elas se desenvolveram e refinaram continuamente um sistema elaborado de indicadores demográficos e sociológicos de crimes.[16] Ou seja, cada vizinhança seria descrita, e seu risco avaliado, em termos de uma infinidade de indicadores de crime, como a composição de seus habitantes como os seus sexos, faixas etárias, raças, nacionalidades, etnias, religiões, línguas, profissões e rendas.

Consequentemente, e em distinto contraste com a situação atual, toda redistribuição de riquezas interlocais, regionais, raciais, nacionais, étnicas, religiosas, e linguísticas desapareceriam, e uma fonte constante de conflito social seria removida permanentemente. Em vez disso, a estrutura de preço emergente (apólice) tenderia a refletir com precisão o risco de cada local e seu ambiente social particular, de modo que uma pessoa só precisaria pagar pelo risco de seguro de si mesma e daqueles associados à sua vizinhança particular. Mais importante, com base em seu sistema de estatísticas continuamente atualizado e refinado sobre crimes e valores de propriedade, e ainda motivadas pela tendência de migração de alto risco e baixo valor (ou seja, “más”) para locais de baixo risco e alto valor (ou seja, “boas”), um sistema competitivo de seguradoras de proteção promoveria uma tendência para o progresso civilizacional (ao invés de descivilização).

Governos — e governos democráticos em particular — destroem vizinhanças “boas” e promovem “más” vizinhanças por meio de suas políticas fiscais e de transferência. Eles também fazem isso, e possivelmente com um efeito ainda mais prejudicial, através de sua política de integração forçada. Essa política tem dois aspectos. Por um lado, para os proprietários e residentes de “boas” localizações e vizinhanças que enfrentam um problema de imigração, a integração forçada significa que eles devem aceitar, sem discriminação, cada imigrante, como passageiros ou turistas em vias públicas, como consumidores, clientes, residentes ou vizinhos. Eles são proibidos por seus governos de excluir qualquer pessoa, incluindo qualquer pessoa que eles considerem um risco potencial indesejável, que venha da imigração. Por outro lado, para os proprietários e moradores de “maus” locais e vizinhanças (que experimentam a emigração ao invés da imigração), a integração forçada significa que eles são impedidos de uma autoproteção eficaz. Ao invés de serem autorizados a se livrar do crime por meio da expulsão de criminosos conhecidos de sua vizinhança, eles são forçados por seu governo a viver em associação permanente com seus agressores.[17]

Os resultados de um sistema de seguradoras de proteção privada estariam em contraste marcante com esses familiares efeitos contra-civilizatórios e tendências da proteção estatal contra o crime. Para ter certeza, as seguradoras seriam incapazes de eliminar as diferenças entre vizinhanças “boas” e “más”. Na verdade, essas diferenças podem até se tornar mais pronunciadas. No entanto, impulsionadas por seu interesse em aumentar os valores das propriedades e diminuir os custos de proteção, as seguradoras promoveriam uma tendência de melhorar enaltecendo e cultivando vizinhanças “boas” e “más”. Assim, em vizinhanças “boas” as seguradoras adotariam uma política de imigração seletiva. Ao contrário dos estados, elas não poderiam e não iriam querer desconsiderar as inclinações discriminatórias entre os segurados em relação aos imigrantes. Ao contrário, ainda mais do que qualquer um de seus clientes, as seguradoras estariam interessadas na discriminação, ou seja, em admitir apenas aqueles imigrantes cuja presença contribui para um menor risco de crime e aumento dos valores de propriedade, e na exclusão daqueles cuja presença leva a um risco mais alto e valores de propriedade mais baixos. Ou seja, ao invés de eliminar a discriminação, as seguradoras racionalizariam e aperfeiçoariam sua prática. Com base em suas estatísticas sobre crime e valores de propriedade, e a fim de reduzir o custo de proteção e aumentar valores de propriedade, as seguradoras iriam formular e continuamente refinar várias regras e procedimentos restritivos (excludentes) relativos à imigração e imigrantes e, assim, dar precisão quantitativa — na forma de preços e diferenças de preços — para o valor da discriminação (e o custo da não discriminação) entre potenciais imigrantes (como de alto ou baixo risco e valor produtivo).

De maneira parecida, em vizinhanças “más”, os interesses das seguradoras e do segurado coincidiriam. As seguradoras não gostariam de suprimir as inclinações dos segurados de querer expulsar criminosos conhecidos. Elas racionalizariam essas tendências por oferecer cortes de preços seletivos (dependendo das operações de remoção específicas). Com efeito, em cooperação umas com as outras, as seguradoras iriam querer expulsar criminosos conhecidos não apenas de sua vizinhança imediata, mas da civilização completamente, para desertos ou para a fronteira aberta da selva amazônica, do Saara, ou de regiões polares.

 

IX.

 

E a defesa contra um Estado? Como as seguradoras iriam nos proteger da agressão do Estado?

Primeiro, é essencial lembrar que os governos, como monopólios compulsórios financiados por impostos, são inerentemente desperdiçadores e ineficientes em tudo o que fazem. Isso também se aplica à tecnologia e produção de armas, e para inteligência e estratégia militar, especialmente em nossa era de tecnologia avançada. Consequentemente, os estados não seriam capazes de competir dentro do mesmo território contra seguradoras financiadas voluntariamente. Além disso, a mais importante e geral entre as regras restritivas relativas à imigração e concebidas pelas seguradoras para reduzir os custos de proteção e aumentar o valor dos bens, seria uma regra relativa aos agentes governamentais. Os Estados são inerentemente agressivos e representam um perigo permanente para todas as seguradoras e segurados. Assim, as seguradoras em particular gostariam de excluir ou restringir severamente — como um risco potencial de segurança — a imigração (entrada territorial) de todos os agentes governamentais conhecidos, e elas induzirem o segurado, seja como uma condição de seguro ou de um valor de apólice mais baixo, excluir ou limitar estritamente qualquer contato direto com qualquer agente governamental conhecido, seja como visitante, comprador, cliente, morador ou vizinho. Ou seja, onde quer que as seguradoras operassem (em todos os territórios livres), os agentes do estado seriam tratados como párias indesejáveis, potencialmente mais perigosas do que qualquer criminoso comum. Consequentemente, os estados e seus funcionários seriam capazes de operar e residir apenas em territórios separados e nas periferias de territórios livres. Além disso, devido à produtividade econômica comparativamente mais baixa dos territórios estatais, os governos seriam continuamente enfraquecidos pela emigração de seus residentes mais produtivos.

Agora, o que aconteceria se tal governo decidisse atacar ou invadir um território livre? Seria mais fácil falar do que fazer! Quem é o que ele atacaria? Não haveria oponente estatal. Apenas os proprietários de propriedades privadas e suas agências de seguros privados existiriam. Ninguém, muito menos as seguradoras, presumivelmente se envolveria em uma agressão ou mesmo provocação. Se houvesse alguma agressão ou provocação contra o estado, seria a ação de uma pessoa em particular e, neste caso, o interesse do estado e das seguradoras coincidiriam plenamente. Ambos gostariam de ver o invasor punido e responsabilizado por todos os danos. Mas sem nenhum agressor inimigo, como o estado poderia justificar um ataque, para não falar de um ataque indiscriminado? E certamente teria de justificá-lo, pois o poder de cada governo, mesmo o mais despótico, em última instância repousa na opinião e no consentimento, como La Boétie, Hume, Mises e Rothbard explicaram.[18] Reis e presidentes podem emitir uma ordem de ataque, é claro, mas deve haver muitos homens dispostos a executar sua ordem para colocá-la em prática. Deve haver generais recebendo e seguindo a ordem, soldados dispostos a marchar, matar e ser mortos e produtores domésticos dispostos a continuar produzindo para financiar a guerra. Se essa vontade consensual estivesse ausente porque as ordens dos governantes do estado eram consideradas ilegítimas, mesmo o governo aparentemente mais poderoso se tornaria ineficaz e entraria em colapso, como os exemplos do Xá do Irã e da União Soviética ilustraram. Portanto, do ponto de vista dos líderes do estado, um ataque em territórios livres seria considerado extremamente arriscado. Nenhum esforço de propaganda, por mais elaborado que seja, faria o público acreditar que seu ataque não passava de uma agressão contra vítimas inocentes. Nesta situação, os governantes do estado ficariam felizes em manter o controle monopolista sobre seu território atual, em vez de correr o risco de perder a legitimidade e todo o seu poder em uma tentativa de expansão territorial.

Por mais improvável que isso possa ser, e se um estado ainda atacasse e/ou invadisse um território livre vizinho? Nesse caso, o agressor não encontraria uma população desarmada. Apenas em territórios estatais a população civil é caracteristicamente desarmada. Em todos os lugares, os Estados buscam desarmar seus próprios cidadãos para que possam melhor tributá-los e expropriá-los. Em contraste, as seguradoras em territórios livres não desejariam desarmar o segurado. Elas nem poderiam. Pois quem gostaria de ser protegido por alguém que o exigiu como primeiro passo, desistir de seu último meio de autodefesa?! Ao contrário, as seguradoras estimulariam o porte de armas entre seus segurados por meio de cortes seletivos de preços.

Além da oposição de uma cidadania privada armada, o Estado agressor enfrentaria a resistência não apenas de uma, mas de todo o tipo de seguradoras e resseguradoras. No caso de um ataque e invasão bem-sucedidos, essas seguradoras enfrentam enormes pagamentos de indenização. Ao contrário do estado agressor, no entanto, essas seguradoras seriam empresas eficientes e competitivas. Ceteris paribus, o risco de um ataque — e, portanto, o preço do seguro de defesa — seria maior em locais próximos a territórios estatais do que em locais distantes de qualquer Estado. Para justificar esse preço mais alto, as seguradoras teriam de demonstrar prontidão defensiva em relação a qualquer possível agressão do Estado a seus clientes na forma de serviços de inteligência, posse de armas e materiais adequados, tropas e treinamento. Em outras palavras, as seguradoras estariam efetivamente equipadas e treinadas para a contingência de um ataque do Estado e prontas para responder com uma estratégia de defesa dupla. Por outro lado, no que diz respeito às suas operações em territórios livres, as seguradoras estariam prontas para expulsar, capturar ou matar todos os invasores enquanto tentam evitar ou minimizar todos os danos colaterais. Por outro lado, no que diz respeito às suas operações em território estatal, as seguradoras estariam preparadas para atacar o agressor (o estado) por retaliação. Ou seja, as seguradoras estariam prontas para contra-atacar e matar — seja com armas de precisão de longo alcance ou comandos de assassinato — agentes estatais do topo da hierarquia do governo, reis, presidentes ou um primeiro-ministro, enquanto buscam evitar ou minimizar todos os danos colaterais à propriedade de civis inocentes (agentes não estatais). Elas iriam, assim, encorajar a resistência interna contra o governo agressor, promover sua deslegitimação e, possivelmente, incitar a libertação e transformação do território estatal em um país livre.

 

X.

 

Fechei o ciclo com meu argumento. Em primeiro lugar, mostrei que a ideia de um estado protetor e a proteção estatal da propriedade privada se baseia em um erro teórico fundamental e que esse erro teve consequências desastrosas: a destruição e insegurança de toda propriedade privada, e a guerra perpétua. Em segundo lugar, mostrei que a resposta correta para a questão de quem deve defender os proprietários privados da agressão é a mesma que para a produção de todos os outros bens ou serviços: proprietários privados, cooperação baseada na divisão de trabalho e competição no mercado. Terceiro, eu expliquei como um sistema de seguradoras privadas de lucros e perdas minimizaria efetivamente a agressão, seja por criminosos privados ou estados, e promoveria uma tendência à civilização e paz perpétua. A única tarefa pendente é implementar essas percepções: retirar o consentimento e a vontade de cooperação do estado e promover sua deslegitimação na opinião pública de modo a persuadir outros a fazer o mesmo. Sem a percepção pública errônea e o juízo do estado como justo e necessário, e sem a cooperação voluntária do público, mesmo o governo aparentemente mais poderoso implodiria e seus poderes viriam por evaporar. Assim, libertados, recuperamos nosso direito à autodefesa e seríamos capazes de recorrer a agências de seguros liberadas e não regulamentadas para obter assistência profissional eficiente em todas as questões de proteção e resolução de conflitos.

 

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Notas

[1]     James M. Buchanan and Gordon Tullock, The Calculus of Consent (Ann Arbor: University of Michigan Press, 1962); James M. Buchanan, The Limits of Liberty (Chicago: University of Chicago Press, 1975); para uma crítica, cf. Murray N. Rothbard, “Buchanan and Tullock’s Calculus of Consent,” em idem, The Logic of Action II: Applications and Criticisms from the Austrian School (Cheltenham, U.K.: Edward Elgar, 1995); idem, “The Myth of Neutral Taxation,” The Logic of Action II; Hans-Hermann Hoppe, The Economics and Ethics of Private Property (Boston: Kluwer Academic Publishers, 1993), cap.1.

[2]     Veja, sobre isso em particular, Lysander Spooner, No Treason: The Constitution of No Authority (Larkspur, Colo.: Pine Tree Press, 1966).

[3]     Ver Hans-Hermann Hoppe, “The Trouble With Classical Liberalism,” Triple R. Rothbard-Rockwell Report 9, no. 4 (1998).

[4]     Ver Hans-Hermann Hoppe, “Where The Right Goes Wrong,” Triple R. Rothbard-Rockwell Report 8, no. 4 (1997).

[5]     Ver The Costs of War: America’s Pyrrhic Victories, editado por John V. Denson (New Brunswick, N.J.: Transaction Publishers, 1997); idem, “A Century of War: Studies in Classical Liberalism” (Auburn, Ala.: Ludwig von Mises Institute, 1999). Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, por exemplo, o governo dos Estados Unidos interveio militarmente na China (1945-46), Coreia (1950-53), China (1950-53), Irã (1953), Guatemala (1954), Indonésia (1958), Cuba (1959-60), Guatemala (1960), Congo (1964), Peru (1965), Laos (1964-73), Vietnã (1961–73), Camboja (1969–70), Guatemala (1967-69), Granada (1983), Líbano (1983), Líbia (1986), El Salvador (anos 1980), Nicarágua (1980), Panamá (1989), Iraque (1991-99), Bósnia (1995), Sudão (1998), Afeganistão (1998 e 2002), Iugoslávia (1999) e Iraque (2003). Além disso, o governo dos Estados Unidos possui tropas estacionadas em quase 150 países ao redor do mundo.

[6]     Ludwig von Mises, Socialism (Indianapolis: LibertyClassics, 1981); Hans-Hermann Hoppe, A Theory of Socialism and Capitalism (Boston: Kluwer Academic Publishers, 1989), capítulo. 6.

[7]     Murray N. Rothbard, The Ethics of Liberty (New York: New York University Press, 1998), caps. 22 e 23.

[8]     Murray N. Rothbard, Power and Market (Kansas City: Sheed Andrews and McMeel, 1977), p. 2.

[9]     Gustave de Molinari, The Production of Security (New York: Center for Libertarian Studies, 1977).

[10]   Rothbard, Power and Market, cap. 1; idem, For A New Liberty (New York: Collier, 1978), caps. 12 e 14.

[11]   Morris Tannehill e Linda Tannehill, The Market for Liberty (New York: Laissez Faire Books, 1984), esp. part 2.

[12]   Sobre a “lógica” do seguro, ver Ludwig von Mises, Human Action, Scholar’s Edition (Auburn, Ala.: Ludwig von Mises Institute, 1998), cap. 6; Murray N. Rothbard, Man, Economy, and State (Auburn, Ala.: Ludwig von Mises Institute, 1993), pp. 498 ff.; Hans-Hermann Hoppe, “On Certainty and Uncertainty, Or: How Rational Can Our Expectations Be?” Review of Austrian Economics 10, no. 1 (1997); ver também Richard von Mises, Probability, Statistics and Truth (New York: Dover, 1957); Frank H. Knight, Risk, Uncertainty, and Profit (Chicago: University of Chicago Press, 1971).

[13]   Veja sobre isso em Hans-Hermann Hoppe, Eigentum, Anarchie und Staat (Opladen: Westdeutscher Verlag, 1987), pp. 122-26.

[14]   Sobre a relação entre estado e guerra, e sobre a transformação histórica da guerra limitada (monárquica) para a guerra total (democrática), ver Ekkehardt Krippendorff, Staat und Krieg (Frankfurt / M.: Suhrkamp, 1985); Charles Tilly, “War Making and State Making as Organized Crime” in Bringing the State Back In, editado por Peter B. Evans, Dietrich Rueschemeyer e Theda Skocpol (Cambridge, Reino Unido: Cambridge University Press, 1985); John F.C. Fuller, The Conduct of War (Nova York: Da Capo Press, 1992); Michael Howard, War in European History (Nova Iorque: Oxford University Press, 1976); Hans-Hermann Hoppe, “Time Preference, Government, and the Process of De-Civilization” em The Costs of War, editado por John V. Denson (New Brunswick, N.J.: Transaction Publishers, 1997); Erik von Kuehnelt-Leddihn, Leftism Revisited (Washington, D.C.: Regnery, 1990).

[15]   Sobre crime e punição, passado e presente, consulte Terry Anderson e P.J. Hill, “The American Experiment in Anarcho-Capitalism: The Not So Wild, Wild West,” Journal of Libertarian Studies 3, no. 1 (1979); Bruce L. Benson, “Guns for Protection, and other Private Sector Responses to the Government’s Failure to Control Crime,” Journal of Libertarian Studies 8, no. 1 (1986); Roger D. McGrath, Gunfighters, Highwaymen and Vigilantes: Violence on the Frontier (Berkeley: University of California Press, 1984); James Q. Wilson e Richard J. Herrnstein, Crime and Human Nature (New York: Simon and Schuster, 1985); Edward C. Banfield, The Unheavenly City Revisited (Boston: Little, Brown, 1974).

[16]   Para uma visão geral de até que ponto as estatísticas oficiais — estatais —, em particular sobre o crime, deliberadamente ignoram, deturpam ou distorcem os fatos conhecidos por razões das chamadas políticas públicas (políticas de correção), ver J. Philippe Rushton, Race, Evolution and Behavior (New Brunswick, N.J.: Transaction Publishers, 1995); Michael Levin, Why Race Matters (Westport, Conn.: Praeger, 1997).

[17]   Veja Hans-Hermann Hoppe, “Free Immigration or Forced Integration?” Chronicles (July 1995).

[18]   Etienne de la Boétie, The Politics of Obedience: The Discourse of Voluntary Servitude (New York: Free Life Editions, 1975); David Hume, “Of the First Principles of Government,” in idem, Essays: Moral, Political and Literary (Oxford: Oxford University Press, 1971); Ludwig von Mises, Liberalism: In the Classical Tradition (São Francisco: Cobden Press, 1985); Murray N. Rothbard, Egalitarianism as a Revolt Against Nature and Other Essays (Washington, D.C.: Libertarian Review Press, 1974).

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