Capítulo 13 – A Fisiocracia na França de Meados de Século XVIII

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1. A seita

 

A primeira escola autoconsciente do pensamento econômico se desenvolveu na França pouco depois da publicação do Essai de Cantillon. Eles chamavam a si mesmos “os economistas”, mas depois vieram a ser chamados de “fisiocratas”, devido ao seu princípio político-econômico fundamental: a fisio-cracia (o governo da natureza). Os fisiocratas tinham um líder autêntico — o criador do paradigma fisiocrata — um propagandista principal, e vários muito bem empregados discípulos e editores de revistas. Os fisiocratas promoviam uns aos outros, avaliavam muito bem o trabalho uns dos outros, encontravam-se frequentemente e periodicamente em salões para entregar artigos e discutir os ensaios uns dos outros, e geralmente se comportavam como um movimento autoconsciente. Eles tinham uma cadre de fisiocratas “hardcore”, e uma sombra de aliados e simpatizantes influentes. Infelizmente, os fisiocratas rapidamente tomaram a dimensão de um culto assim como de uma escola, despejando elogios generosos e acríticos em seu líder, que então se tornou um guru assim como o criador de um importante paradigma no pensamento econômico.

O fundador, líder e guru da fisiocracia foi o Dr. François Quesnay (1694-1774), uma alma curiosa, carismática e inquieta, características típicas dos intelectuais do iluminismo do século XVIII. Apaixonado pelas ciências físicas, como muitos intelectuais eram, à sombra de Isaac Newton, Quesnay, filho de um fazendeiro abastado, leu bastante sobre a sua profissão escolhida, a medicina. Ganhando fama como um cirurgião e médico, Quesnay escreveu tratados médicos e também se tornou um especialista em ciência agrícola, tendo escrito sobre sua tecnologia. Em 1749, com 55 anos de idade, Quesnay se tornou o médico pessoal da amante do rei Luís XV, Madame de Pompadour, e alguns anos depois também se tornou o médico pessoal do próprio rei.

Foi no fim da década de 1750, no meio de seus 60 anos, que o Dr. Quesnay começou a entrar em tópicos econômicos. A fundação do movimento fisiocrata pode ser datada precisamente no momento em julho de 1757 em que o guru encontrou seu principal adepto e propagandista. Foi quando o Dr. Quesnay encontrou o inquieto, inconstante, entusiasmado e ligeiramente maluco Victor Riqueti, o Marquês de Mirabeau (1715-89). Mirabeau, um aristocrata descontente com muito tempo de sobra nas mãos, havia acabado de publicar as primeiras partes de uma obra de muitas partes, um best-seller grandiloquentemente intitulado L’ami des hommes (O Amigo dos Homens). Este trabalho encantou muitos homens franceses através de sua extravagância e falta de sistema, bem como de seu uso curioso de um estilo arcaico do século XVII. Enquanto escrevia L’ami des hommes, Mirabeau foi um quase-discípulo do tardio Cantillon, glosando e publicando o Essai, mas o contato com Quesnay logo o converteu no principal braço-direito e propagandista do médico. As meditações de um médico excêntrico aparentemente inofensivo agora haviam se tornado uma Escola do Pensamento, uma força a ser considerada.

As altas posições dos dois fisiocratas fundadores serviram bem a eles. A posição crucial de Quesnay na corte, assim como a fama e posição aristocrática de Mirabeau, deram poder e influência há um movimento. Ainda assim, a economia política era perigosa na época do absolutismo e da censura, e Quesnay prudentemente publicou sua obra sob pseudônimos ou através de seus discípulos. De fato, Mirabeau foi preso por algumas semanas em 1760 por causa de seu livro, Théorie de l’impôt (Teoria do Imposto), mas, especificamente por seu ataque violento à taxação opressiva e no sistema financeiro, ou à “criação de impostos”, em que o rei vendia os direitos de taxar para empresas privadas ou a “agricultores”. Ele foi liberado, no entanto, pela boa vontade de Madame de Pompadour.

Os fisiocratas conduziram as suas operações através de uma sucessão de revistas, e através de salões periódicos, alguns conduzidos na casa do Dr. Quesnay, os mais proeminentes nos seminários nas noites recorrentes às terças, na casa do Marquês de Mirabeau. As figuras de liderança dos fisiocratas foram: Pierre François Mercier de la Rivière (1720-93), cujo livro L’odre natural et essentiel des sociétés politiques (A Ordem Natural e Essencial das Sociedades Políticas) (1767) foi a principal obra sobre filosofia política da escola; Abbé Nicolas Baudeau (1730-92), o editor e jornalista dos fisiocratas; Guillaume François Le Trosne (1728-80), jurista e economista; e o membro mais novo do grupo, o secretário, editor, e oficial do governo Pierre Samuel Du Pont de Nemours (1739-1817), que mais tarde migraria aos Estados Unidos para fundar a famosa família manufatureira de pólvora.

De forma alguma o aspecto de culto do grupo dos fisiocratas se mostra de forma mais clara do que nos adjetivos usados sobre seu mestre. Seus seguidores diziam que Quesnay se parecia com Sócrates, e eles habitualmente se referiam a ele como “o Confúcio da Europa”. De fato, apesar do fato de que Adam Smith e outros falaram de sua grande “modéstia”, Dr. Quesnay se identificava com a alegada sabedoria e glória do sábio chinês. Mirabeau foi longe a ponto de proclamar que as três maiores invenções da história da humanidade foram a escrita, o dinheiro, e o famoso diagrama de Quesnay, a Tableau économique.

A seita durou menos de duas décadas, indo por água abaixo rapidamente depois da metade da década de 1770. Diversos fatores foram responsáveis pelo declínio precipitado. Um deles foi a morte de Quesnay, em 1774, e o fato de que em seus últimos anos o físico tinha perdido muito de seu interesse em seu culto e havia focado seu trabalho na matemática, onde ele alegava ter resolvido o velho problema da quadratura do círculo. Ademais, o declínio como ministro das finanças de seu companheiro de viagem, A. R. J. Turgot, dois anos depois, e a desgraça lançada sobre Mirabeau por uma campanha pública de difamação lançada por sua esposa e por seus filhos mais ou menos ao mesmo tempo, fizeram a fisiocracia perder influência. E o advento do Riqueza das Nações de Smith no mesmo ano rapidamente levou ao infeliz hábito de ignorar todo o pensamento pré-smithiano, como se a nova ciência da “economia política” tivesse sido criada somente e ex nihilo por Adam Smith.

 

2. Laissez-faire e livres negociações

 

Os fisiocratas enfatizaram duas áreas principais: economia política e análise técnica econômica, e a diferença na qualidade de suas respectivas contribuições é tão grande que é quase espantosa. Na economia política geral, eles eram geralmente perceptivos e fizeram grandes contribuições, enquanto na economia técnica eles introduziram falácias notórias e frequentemente bizarras, que ainda atormentariam a economia por um longo tempo ainda a vir.

Na economia política, os fisiocratas estavam entre os primeiros pensadores do laissez-faire, jogando fora com desprezo toda a bagagem mercantilista. Eles clamaram por liberdade total de negociações e de empreendimentos internamente e externamente, não perturbados por subsídios, monopólios ou restrições. Na remoção de tais restrições e exações, o comércio, a agricultura e toda a economia floresceriam. Nas negociações internacionais, enquanto aos fisiocratas faltava o mecanismo fluxo de preço-espécie do brilhante e sofisticado Cantillon, eles eram muito mais corajosos do que ele em atacar todas as falácias e restrições mercantilistas. É absurdo e autocontraditório, eles ressaltaram, que uma nação tente vender uma grande parcela a países estrangeiros e comprar muito pouco; a venda e a compra são somente dois lados de uma mesma moeda. Ademais, os fisiocratas anteciparam a ideia da economia clássica de que o dinheiro não é crucial, de que, a longo prazo, as mercadorias — bens reais — podem ser trocadas umas pelas outras, sendo o dinheiro simplesmente um intermediário. Por isso, o objetivo principal não é acumular bulião, ou seguir a quimera de uma balança de negociações permanentemente favorável, e sim ter um alto padrão de vida em termos de produtos reais. Buscar acumular dinheiro em espécie significa que as pessoas em uma nação estão desistindo de bens reais para adquirir mero dinheiro; portanto, eles estão perdendo e não ganhando riqueza em termos reais. De fato, toda a finalidade do dinheiro está em trocá-lo por riqueza de verdade, se as pessoas insistirem em acumular uma quantidade imensa de dinheiro em espécie sem uso, elas perderão riqueza permanentemente.

Quando Turgot se tornou o ministro financeiro da França em 1774, seu primeiro ato foi decretar a libertação de importação e exportação de grãos. O preâmbulo de seu édito, redigido por seu assessor Du Pont de Nemours, sumarizou a política de laissez-faire dos fisiocratas — e de Turgot — de maneira fina e sucinta: a nova política de livres negociações, declarou-se, foi designada

“para animar e estender o cultivo da terra, cujo produto é a mais real e certa riqueza de um estado; para manter a abundância de celeiros e de milho estrangeiro, para prevenir a queda do milho a um preço que desencorajaria o produtor; para remover o monopólio ao derrubar a licença privada em favor da livre e total competição e ao manter, entre diferentes países, aquela comunicação de trocas de superfluidades por necessidades as quais são tão confortáveis para a ordem estabelecida pela Providência Divina”.[1]

Apesar do fato de que os fisiocratas eram oficialmente a favor da completa libertação das negociações, sua paixão obsessiva — e isso reflete a economia frequentemente bizarra deles — estava repelindo todas as restrições da livre exportação de grãos. É compreensível que eles se concentrariam na eliminação de uma restrição de longo prazo, mas eles pareciam mostrar pouco zelo pela liberdade da importação de grãos ou pela libertação da exportação de manufaturas. Tudo isso estava embalado no entusiasmo inabalável dos fisiocratas por preços agrícolas altos, quase como um bem em si mesmo. De fato, os fisiocratas desaprovavam a exportação de produtos manufaturados como competindo com, e diminuindo o preço das, exportações agrícolas. Dr. Quesnay foi longe ao ponto de escrever que “feliz é a terra que não exporta manufaturas porque as exportações agrícolas mantêm os preços agrícolas a um nível alto demais para permitir que a classe estéril venda seus produtos no exterior”. Como veremos adiante, “estéril” por definição significava todos que estão fora da agricultura.

 

3. O precursor do laissez-faire: o Marquês d’Argenson

 

Enquanto os fisiocratas foram os primeiros economistas a ressaltar e desenvolver o argumento em favor do laissez-faire, eles também distinguiram precursores dentre os estadistas e mercadores na França. Como vimos, o conceito de laissez-faire se desenvolveu entre os opositores liberais clássicos ao absolutismo do fim do século XVII na França eles incluíram mercadores como Thomas Le Gendre e oficiais utilitários como Belesbat e Boisguilbert.

Fechando a lacuna entre os escritores do laissez-faire do século XVIII e os fisiocratas das décadas de 1760 e 1770, temos o eminente estadista, René-Louis de Voyer de Paulmy, Marquês d’Argenson (1694-1757). O herdeiro de uma longa linha de ministros, magistrados, e intendants, a ambição de d’Argenson era se tornar o primeiro-ministro e salvar a França de uma revolução vindoura ao instituir o laissez-faire. Leitor voraz e escritor prolífico em toda a sua vida, d’Argerson só publicou em toda a sua vida alguns poucos artigos em seu Journal Oeconomique, no começo da década de 1750, e estes não foram impressos, mas circularam amplamente em sua forma de manuscrito. Por um bom tempo, d’Argerson foi erroneamente creditado pelos historiadores por dar origem ao termo “laissez-faire” em um dos artigos de seu Journal de 1751.

Apesar de d’Argerson não ter originado o termo, laissez-faire era seu repetido clamor às autoridades francesas, clamor que ele continuou a enfatizar mesmo depois de suas ideias terem sido descartadas como excêntricas por todos os seus colegas no governo. Como intendant em seus primeiros anos na fronteira flamenga, d’Argerson foi surpreendido com o que ele percebeu ser a superioridade econômica e social das pessoas e dos livres mercados pela fronteira em Flandres. Ele então foi grandemente influenciado pelos escritos de Fénélon, Belesbat e Boisguilbert.

D’Argerson viu o amor-próprio e o interesse por si mesmo como a mola mestra da ação humana, como trazendo energia e produtividade na busca da felicidade de cada homem. A vida social humana, para d’Argerson, tem a “tendência natural à harmonia quando as restrições e a harmonia e o estímulo artificiais são removidos”. Olhando para um monarca iluminado para remover esses subsídios e restrições artificiais, d’Argerson ressaltou que na sociedade ideal, o soberano teria muito pouco a fazer. “Estraga-se qualquer coisa ao se intrometer demais […] O melhor governo é aquele que governa menos”. Então o Marquês antecipou a famosa frase atribuída a Thomas Jefferson.

D’Argerson concluiu que “cada indivíduo [deve] ser deixado sozinho para trabalhar em seu próprio interesse, ao invés de sofrer restrições e precauções doentias. Então tudo correrá maravilhosamente […]”. Então, continuando o argumento proto-hayekiano feito por Belesbat:

“É precisamente esta perfeição da liberdade que faz uma ciência do comércio impossível, no sentido em que nossos pensadores especulativos a entendem. Eles querem direcionar o comércio segundo suas ordens e regulações; mas para fazer isso seria necessário ser bastante íntimo dos interesses envolvidos no comércio […] de um indivíduo a outro. Na ausência de tal conhecimento, isto [uma ciência do comércio] só pode ser […] muito pior do que a ignorância de seus efeitos negativos […] Portanto, laissez-faire! (Eh, qu’on laissez-faire!)”

 

4. Lei natural e direitos de propriedade

 

Não somente foram os fisiocratas geralmente defensores consistentes do laissez-faire, como também apoiaram a operação de um livre mercado e direitos naturais da pessoa e da propriedade. John Locke e os Levellers na Inglaterra haviam transformado as noções vagas e holísticas da lei natural em conceitos claros, firmemente individualistas, dos direitos naturais de cada ser humano. Mas os fisiocratas foram os primeiros a aplicar totalmente os conceitos de direitos naturais e direitos de propriedade à economia de livre mercado. Em certo sentido, eles completaram o trabalho de Locke e trouxeram o total Lockeanismo à economia. Quesnay e os outros também foram inspirados pela versão iluminista, tipicamente do século XVIII, da lei natural: onde os direitos do indivíduo de pessoa e propriedade estavam profundamente envolvidos em um arcabouço de leis naturais que haviam sido criadas pelo criador e que eram claramente descobríveis à luz da razão humana. De maneira profunda, então, a teoria dos direitos naturais do século XVIII era uma variante refinada da lei natural escolástica medieval e pós-medieval. Os direitos eram então claramente individualistas e não societal ou respondendo ao estado; e o arcabouço de leis naturais era descobrível pela razão humana. O protestante holandês do século XVII, e em essência escolástico protestante, Hugo Grócio, profundamente influenciado pelos escolásticos espanhóis tardios, desenvolveu uma teoria da lei natural que ele corajosamente declarou como verdadeiramente independente da questão de se Deus a criou ou não. As sementes de seu pensamento estavam em São Tomás de Aquino e nos escolásticos católicos tardios, mas isso nunca foi formulado tão clara e firmemente quanto por Grócio. Ou, colocado em termos que haviam fascinado os filósofos políticos desde Platão: Deus amava o bem porque era de fato bom, ou algo é bom porque Deus ama este algo? A primeira resposta tem sido desde sempre a daqueles que acreditam na verdade objetiva e na ética objetiva, isto é, que algo pode ser bom ou ruim de acordo com as leis objetivas da natureza e da realidade. A segunda tem sido a resposta dos fideístas que acreditam que não existem direitos ou ética objetivos, e que somente a puramente arbitrária vontade de Deus, como expresso na revelação, pode fazer as coisas boas bons ou ruins para a humanidade. A afirmação de Grócio foi a afirmação definitiva da posição objetivista e racionalista, já que as leis naturais são, para ele, descobríveis pela razão humana, e o iluminismo do século XVIII foi essencialmente o desenrolar da estrutura grociana. Para Grócio, o iluminismo adicionou Newton, em sua visão do mundo como um conjunto de harmoniosas e interativas, precisamente, senão mecanicamente, leis naturais. E enquanto Grócio e Newton eram cristãos fervorosos como eram quase todos em sua época, o século XVIII, começando com suas premissas, facilmente caíram no deísmo, em que Deus, o grande “relojoeiro”, ou criador deste universo de leis naturais, desapareceu da cena e permitiu que sua criação continuasse a funcionar sozinha.

Do ponto de vista da filosofia política, no entanto, pouco importava se Quesnay e os outros (Du Pont era de descendência huguenote) eram católicos ou deístas: qualquer que fosse sua cosmovisão, sua atitude para com a lei natural e os direitos naturais poderia ser a mesma em qualquer caso.

Mercier de la Rivière saltou em sua L’Ordre naturel que o plano geral da criação de Deus havia provido leis naturais para o governo de todas as coisas, e que o homem certamente não poderia ser uma exceção a esta regra. O homem só precisaria saber, através de sua razão, as condições que levariam à sua maior felicidade e então seguir este caminho. Todas as doenças da humanidade surgem da ignorância ou desobediência dessas regras. Natureza humana, o direito à autopreservação implica o direito à propriedade, e qualquer propriedade individual nos produtos do homem tirados do solo exige propriedade da própria terra. Mas o direito à propriedade não seria nada sem a liberdade para usá-la, então a liberdade é derivada do direito de propriedade. As pessoas florescem como animais sociais, e através do comércio e da troca de propriedade, maximizam a felicidade de todos. Ademais, desde que as faculdades dos seres humanos são por natureza diversas e desiguais, uma desigualdade de condição surge naturalmente de um igual direito à liberdade de todos os homens. Dessa forma, os direitos de propriedade e os de mercado, concluiu Mercier, constituem uma ordem social que é natural, evidente, simples, imutável e conduz à felicidade de todos.

Ou, como Quesnay declarou em seu Le Droit naturel (A Lei Natural): “Todo homem tem um direito natural ao livre exercício de suas faculdades, desde que não as empregue para machucar a si mesmo ou a outros. Este direito à liberdade implica, como um corolário, no direito à propriedade”, e a única função do governo é defender este direito.[2]

Muitos governantes da Europa foram fascinados e intrigados por esta elegante nova doutrina da fisiocracia, e esforçaram-se para descobrir mais sobre seus maiores teóricos. O Delfim da França uma vez reclamou para Quesnay sobre sua dificuldade em ser um rei, e o médico respondeu que isso era na realidade bastante simples. “Então”, perguntou o Delfim, “o que você faria se fosse rei?” “Nada”, foi resposta imediata, decidida e magnificamente libertária do Dr. Quesnay. “Mas então quem governaria?”, falou, atrapalhado, o Delfim. “A lei”, isto é, a lei natural, foi a resposta certeira, mas sem dúvida insatisfatória, de Quesnay.

Uma resposta semelhante foi certamente insatisfatória para Catarina, a Grande, czarina de todas as Rússias, que mandou chamar Mercier de la Rivière, jurista e uma vez intendant (governador) de Martinique, para instruí-la em como governar. Pressionado sobre no que a “lei” deveria ser baseada, Mercier respondeu à Imperatriz: “em somente uma coisa, madame, a natureza das coisas e do homem”. “Mas como pode então um rei saber que leis dar a um povo?”, continuou a czarina. Para a qual Mercier respondeu afiado: “Dar ou fazer leis, Madame, é uma tarefa que Deus não deu a ninguém. Ah! Quem é o homem, para se achar capaz de ditar leis para seres que ele nem mesmo conhece […]?” A ciência do governo, Mercier adicionou, é estudar e conhecer as “leis que Deus tão evidentemente encravou na própria organização do homem, quando Ele ao homem deu existência”. Mercier adicionou o pertinente aviso: “Buscar ir além disto seria um grande infortúnio e uma empreitada destrutiva”.

A czarina foi educada, mas certamente não se sentiu agradada. “Monsieur”, ela respondeu brevemente, “foi um prazer falar convosco. Desejo-te um bom dia”.

 

5. O imposto único sobre a terra

 

Libertários de direitos naturais e do laissez-faire sempre encontram vários problemas ou lacunae em suas teorias. Uma delas é o imposto. Se todo indivíduo tem direitos invioláveis à propriedade, e esses direitos devem ser garantidos pelo governo, o imposto, em si uma violação dos direitos de propriedade, apresenta-se como um problema imediato para os teóricos do laissez-faire. Quão altos devem ser os impostos, e quem deveria pagá-los?

O liberalismo clássico, embora incipiente, nasceu na França como uma oposição ao absolutismo estatista do rei Luís XIV nas últimas décadas do século XVII e nos primeiros anos do século XVIII. Uma das propostas favoritas desses liberais, conforme estabelecido por Marshal Vauban e por Sieur de Boisguilbert, entre outros, era a de um imposto único, um imposto proporcional sobre toda a renda ou propriedade. A ideia era que esse simples e direto imposto universal substituiria a monstruosa e prejudicial rede de taxação que havia crescido na França do século XVII.

Para resolver o problema do imposto, Dr. Quesnay e os fisiocratas fizeram sua própria ideia original do imposto único (l’impôt unique) — um imposto único sobre a terra. A ideia era que o imposto deveria ser baixo, e que seria proporcional e restrito somente a uma taxação sobre a terra e sobre os proprietários de terras.

A justificativa do impôt unique se baseia na singular visão fisiocrata de que somente a terra é produtiva. A terra produz porque cria matéria; enquanto todas as outras atividades, como a troca, o comércio, a manufatura, os serviços, etc. são “estéreis”, ainda que admitidamente úteis, porque eles somente reembaralham ou transformam a matéria sem a criar. Se somente a terra é produtiva, e todas as outras atividades são estéreis, segue-se, de acordo com os fisiocratas, que todos os outros impostos acabarão caindo sobre a terra, através do sistema de preços. Portanto, a escolha é entre taxar a terra indiretamente e remotamente, prejudicando e distorcendo as atividades econômicas, ou taxar a terra abertamente e uniformemente através do imposto único, livrando, então, a atividade econômica de uma carga tributária temível.

A partir do ponto de vista da teoria econômica, a famosa doutrina fisiocrata de que somente a terra é produtiva deve ser considerada bizarra e absurda. É certamente uma tremenda perda de inteligência se comparado a Cantillon, que identificou a terra e o trabalho como os fatores produtivos originais, e os empreendedores como motor da economia de mercado que ajustam os recursos às demandas dos consumidores e à incerteza do mercado. É certamente verdade que a agricultura era a principal ocupação na época, e que a maioria do comércio era transporte e venda dos produtos agrícolas, mas isso dificilmente redime ou suaviza a absurdidade da doutrina da terra como o único fator produtivo.

É possível que uma explicação para essa doutrina estranha seja aplicar aos fisiocratas o insight do professor Roger Garrison sobre a cosmovisão básica de Adam Smith. Smith, em uma versão menos bizarra do viés fisiocrata, defendeu que somente a produção material — em contraste com serviços intangíveis — é “produtiva”, enquanto os serviços e materiais não são produtivos. Garrison ressalta que o contraste aqui não é realmente entre bens materiais e imateriais e serviços, mas entre bens de capital e bens de consumo — que são basicamente ou serviços diretos ou um fluxo de serviços a serem disponíveis no futuro. Portanto, para Smith, trabalho “produtivo” é somente esforço aplicado nos bens de capital, para construir capacidade produtiva para o futuro. O trabalho em serviços diretos para os consumidores é “não-produtivo”. Resumidamente, Smith, apesar de sua reputação como um defensor do livre mercado, recusa-se a aceitar alocações de livre mercado para a produção de bens de consumo vis-à-vis bens de capital; ele preferia mais investimento e crescimento do que o mercado prefere.

Da mesma forma, não poderia ser verdade que os fisiocratas tinham uma visão semelhante? Os fisiocratas, também, enfatizavam os bens materiais, e a agricultura era o principal produto material. Os fisiocratas também estavam altamente preocupados com o crescimento econômico, com o crescente investimento e com a produção nacional, e especialmente com maiores investimentos de capital na agricultura. Na verdade, os fisiocratas estavam desapontados com a escolha do livre mercado, queriam fortalecer a demanda dos consumidores por produtos agrícolas em particular. Um maior consumo de produtos da fazenda era benéfico de acordo com os fisiocratas, enquanto o alto consumo de bens manufaturados promoveria despesas “improdutivas” e afastaria as desejáveis compras de produtos agrícolas.

Alguns economistas foram longe ao ponto de especular que os fisiocratas deveriam ter se deleitado com uma política de apoio aos preços agrícolas. O professor Spiegel acredita que se os fisiocratas

“tivessem sido confrontados com uma escolha entre o laissez-faire e a intervenção em favor do apoio aos preços de fazenda, eles teriam escolhido a intervenção. O meio para resolver o problema econômico que ocupava o primeiro lugar em suas mentes era o desenvolvimento de uma agricultura doméstica, ao invés de uma confiança incondicional na iniciativa privada dentro de um contexto de competição.”[3]

Talvez a dica para a aplicação da ideia de Garrison seja a atitude comum de Smith e os fisiocratas quanto às leis da usura. Apesar de sua geralmente consistente defesa dos direitos absolutos e invioláveis de propriedade, e da libertação das negociações dentro e fora de uma nação, Quesnay e os fisiocratas defenderam as leis sobre a usura, negando a liberdade de emprestar e tomar emprestado. Adam Smith tinha uma aberração semelhante. Smith, como veremos mais adiante (capítulo 16), e como Garrison ressaltou, tomou esta posição em um esforço consciente para tirar o crédito de especuladores e consumidores “improdutivos” de alto risco e de alta taxa de juros e dá-lo para investidores “produtivos” e de baixo risco. De maneira similar, Quesnay denunciou as restrições no investimento e no crescimento de capital resultantes de uma alta taxa de juros e da competição de tomadores de empréstimos improdutivos limitando o crédito que de outra forma iria para a agricultura capitalizada. As leis sobre a usura foram levantadas sobre bases moralistas tradicionais de uma alegada “esterilidade” do dinheiro. Mas, para os fisiocratas, toda atividade exceto a agricultura era “improdutiva”, e então o problema foi antes a competição que tal empréstimo impôs ao “setor produtivo”. Como coloca Elizabeth Fox-Genovese: “Quesnay […] Argumenta que a alta taxa de juros constitui nada mais nada menos do que um imposto sobre a vida produtiva da nação — tanto sobre aqueles que não tomam emprestado quanto sobre aqueles que o fazem”.[4]

É verdade que parte da atenção fisiocrata recaía sobre a dívida governamental, e é certamente verdade que a dívida governamental aumenta as taxas de juros e leva o capital de setores produtivos para setores improdutivos. Mas há duas falhas nessa abordagem. Primeiro, nem toda dívida não-agrícola é uma dívida governamental e, portanto, nem toda alta taxa de juros é uma “taxa” sobre os produtores. Isso nos leva à visão excêntrica dos fisiocratas de que somente a terra é produtiva. As leis sobre a usura prejudicariam não somente a dívida governamental, mas também outras formas de empréstimo. E, segundo, parece estranho autorizar a dívida governamental e depois tentar mitigar seus infelizes efeitos através da abordagem bruta de impor restrições sobre a usura. Seria certamente mais simples, mais direto e menos prejudicial resolver o problema em sua origem, reivindicar a eliminação da dívida governamental. As leis sobre usura só fazem as coisas piores, e danificam o crédito livre e produtivo.

E então Quesnay — ele mesmo o filho de um fazendeiro abastado — estava muito mais interessado em subsidiar crédito a fazendeiros e a manter tomadores de empréstimos competitivos excluídos, do que em parar a dívida governamental.

Há outra forma de explicar a atitude fisiocrata quanto à terra como único produtor. E essa é se concentrar no proposto impôt unique. Mais especificamente, os fisiocratas defendiam que as classes produtivas eram as de fazendeiros, que alugavam a terra dos proprietários de terras e as cultivavam. Os proprietários só eram parcialmente produtivos, o parcialmente vindo dos investimentos de capital que eles punham nos fazendeiros. Mas os fisiocratas estavam convictos de que os retornos dos fazendeiros foram danificados por sua competição no aluguel de terras, de modo que, na prática, todo o “produto líquido” (produit net) — o único produto líquido na sociedade — é colhido pelos proprietários de terra da nação. Portanto, o imposto único deveria ser um imposto proporcional somente sobre os proprietários de terras.

O professor Norman J. Ware interpretou a fisiocracia e sua ênfase na produtividade como sendo somente da terra como uma mera racionalização dos interesses da classe de proprietários de terra. Essa hipótese foi levada a sério por muitos historiadores do pensamento econômico. Mas vamos nos perguntar: que tipo de doutrina egoísta diz: “Por favor, coloque todos os impostos sobre mim”? Os beneficiários das políticas fisiocratas certamente seriam todas as classes econômicas menos os proprietários de terras, incluindo a própria classe de fazendeiros da qual Dr. Quesnay fazia parte.[5]

 

6. Valor “objetivo” e custos de produção

 

Apesar de os fisiocratas terem insights úteis sobre economia política e sobre a importância do livre mercado, suas contribuições diferenciadas à economia técnica não somente estavam erradas, como em alguns casos se mostraram um desastre para a disciplina econômica futura.

O mainstream do pensamento econômico, geralmente mergulhado nos tratados escolásticos, por séculos defendeu que o valor, e, portanto, os preços, dos bens eram determinados no mercado por sua utilidade e escassez, isto é, pelas valorações do consumidor de uma dada oferta de um produto. A economia escolástica e pós-escolástica havia praticamente resolvido o velho “paradoxo do valor” dos diamantes e do pão, ou dos diamantes e da água: como pode ser que o pão, tão útil para o homem, valha tão pouco no mercado, enquanto o diamante, um mero enfeite, é tão caro? A solução era que se as quantidades da oferta fossem levadas em conta, a aparente contradição entre o “valor de uso” e o “valor de troca” desaparece. A oferta de pão é tão abundante que qualquer dada fatia terá um valor ínfimo — de uso ou de troca — enquanto os diamantes são tão escassos que vão possuir um alto preço no mercado. O “valor”, então, não pertence em abstrato a uma classe de bens; é atribuído pelos consumidores a unidades específicas e reais, e tal valor é inversamente proporcional a oferta de um bem. A única coisa que faltava para completar a explicação era o insight “marginal” dado pelos austríacos e outros neoclássicos na década de 1870. Os escolásticos viram que a utilidade de qualquer bem diminui conforme sua quantidade aumenta; a única coisa que faltava era a análise marginal de que compras e valorações do mundo real focam na próxima unidade (a unidade “marginal”) de um bem. Utilidade decrescente é utilidade marginal decrescente. Mas enquanto a pedra angular da teoria do valor, da utilidade e da subjetividade ainda faltava, já havia o suficiente em jogo para que se provesse uma explicação convincente do valor e do preço.

Apesar de sua problemática introdução do “valor intrínseco” como uma quantidade de terra e de trabalho na produção, Cantillon havia continuado nessa tradição escolástica tardia e proto-austríaca, e havia de fato feito muitas contribuições a esta, particularmente no estudo do dinheiro e do empreendedorismo. Foram os fisiocratas que romperam com séculos de pensamento econômico sólido e contribuíram com o que viria a se tornar, nas mãos de Smith e de Ricardo, uma destruição reacionária e obscurantista da análise correta do valor.

Dr. Quesnay começa a sua análise do valor desconsiderando séculos de teoria do valor e tragicamente rompendo com os conceitos de “valor de uso” e “valor de troca”. O valor de uso reflete as necessidades e os desejos individuais dos consumidores, mas, de acordo com Quesnay, esses valores práticos de diferentes bens têm pouca ou nenhuma relação um com o outro, ou, portanto, com os preços. O valor de troca, ou preços relativos, por outro lado, não tem nenhuma relação com as necessidades do homem ou com os acordos entre “barganhantes” e contratantes. Em vez disso, Quesnay, o aspirante a “cientista”, rejeitou o valor subjetivo e insistiu que os valores dos bens são “objetivos” e misticamente embutidos em vários bens, independente das valorações subjetivas dos consumidores. Essa personificação objetiva, de acordo com Quesnay, é o custo de produção, que de alguma forma determina o “preço fundamental” de todo bem. Como até Cantillon reconheceu como verdade, esse custo de produção “objetivo” parece ser, de alguma forma, determinado externamente, por fora do sistema.

 

7. O tableau économique

 

Não tão devastadora para o desenvolvimento da economia quanto a sua falácia do custo de produção ou do “trabalho produtivo”, mas mais irritante hoje em dia, é o Tableau économique de Quesnay, a invenção que seu exaltador, Mirabeau, chamou de uma das três grandes invenções humanas de todos os tempos. O Tableau, publicado pela primeira vez em 1758, era um cartaz incompreensível, cheio de jargões, que se propunha a mostrar o fluxo das despesas de uma classe econômica para outra. Geralmente descartada como turgida e irrelevante já em sua época, foi redescoberta pelos economistas do século XX, que estão fascinados por causa de sua grande incompreensibilidade. Melhor ainda para publicar artigos em periódicos!

O Tableau économique do Dr. Quesnay foi louvado por antecipar muitos dos mais aclamados desenvolvimentos da economia do século XX: conceitos agregativos, análise de entrada e saída, econometria, demonstração do equilíbrio de “fluxo circular”, a ênfase keynesiana nos gastos e na demanda do consumidor, e o “multiplicador” keynesiano. Nos anos recentes, dezenas de milhares de palavras foram amavelmente gastas nas tentativas de entender o que o Tableau tem a dizer, e de reconciliar isso com suas próprias equações e com a economia do mundo real.

Na medida em que o Tableau de Quesnay antecipa todos esses desenvolvimentos, tão pior é para ambos o precursor e para a ideia posterior! É verdade que o Tableau mostra que, em última análise, bens reais são trocados por bens reais, com dinheiro como um intermediário, e que todo mundo é tanto consumidor quanto produtor no mercado. Mas esses simples fatos eram conhecidos há séculos, e gráficos, linhas (os aclamados “zigue-zagues” de Quesnay) e números somente obscurecem, ao invés de ressaltar, sua importância. No máximo, os gráficos elaboram os padrões de gasto e renda sem nenhum propósito.[6] Ademais, o Tableau é holístico, agregativo, e macroeconômico, sem nenhuma base sólida no individualismo metodológico da sólida microeconômica.

O Tableau não somente introduziu o pensamento macro, sem fundamento e fraco na economia; também sabotou o futuro ao antecipar o keynesianismo. Glorificava as despesas, incluindo o consumo, e se preocupava com a poupança, a qual tendia a ser considerada como prejudicial à economia ao “vazar” o fluxo circular constante de gastos. Esta ênfase na importância vital de manter os gastos era falha e superficial por ignorar duas considerações fundamentais: a poupança é gasta em bens de investimento, e a chave para a harmonia e o equilíbrio é o preço — menor gasto pode sempre ser facilmente equilibrado no mercado por uma queda nos preços. Pode ser dito como uma lei verídica que qualquer imagem ou análise do sistema econômico que desconsidera os preços só pode ser maluca; e o Tableau économique foi o primeiro — contudo não o último — modelo econômico que fez exatamente isso.

O Dr. Quesnay, é claro, deu a seu modelo do fluxo circular a sua própria distorção fisiocrata: era particularmente importante que se continuasse gastando os produtos agrícolas “produtivos”, e que se evitasse o desvio de gastar em produtos “estéreis” e “improdutivos”, isto é, em qualquer outra coisa. Keynes, é claro, teve que evitar o viés fisiocrata quando ele ressuscitou uma análise similar.

Enquanto os méritos analíticos dos conceitos de macroeconomia, análise de entrada e saída e econometria são, no melhor dos casos, bastante duvidosos, eles são certamente piores do que nada, se os números forem incorretos. Mas as equações de Quesnay são espúrias, para a França de seu tempo e para qualquer outra época. E o aspirante a grande matemático cometeu muitos erros simples na aritmética e na apresentação de seu amado Tableau. No melhor dos casos, então, o Tableau era uma bobagem elaborada; no pior dos casos, falsa, enganosa e que induz ao erro. E de nenhuma forma o Tableau fez qualquer coisa senão desviar e distrair a atenção da análise e do insight econômico genuínos.

Depois de contemplar essa obra de tolice extravagante, é um alívio voltar nossa atenção ao ataque satírico violento contra o Tableau feito por um estatista e conservador adversário dos fisiocratas, o advogado Simon Nicolas Henri Linguet (1736-94). Em seu Réponse Aux Docteurs modernes (Resposta aos Modernos Doutores) (1771), Linguet começa ridicularizando a ideia de que os fisiocratas não eram um culto ou seita:

“A evidência mostra: suas palavras misteriosas, physiocratie, produit net; seu jargão místico, ordre, science, le maitre [o mestre], seus títulos de honra jogados a seus patriarcas; suas coroas espalhadas pelas províncias em pessoas, se excelentes, obscuras […] Não são uma seita? Vocês têm um grito de guerra, bandeiras, uma marcha, um trombeteiro [Du Pont], um uniforme para seus livros, e um gesto como os dos maçons. Não são uma seita? Não se pode sequer tocar um de vocês que todos correm a seu auxílio. Vocês saúdam e glorificam uns ao outros, e atacam e intimidam seus oponentes em termos imensuráveis.”

Linguet então volta sua atenção escarnecedora ao Tableau:

“Vocês fazem um tom inspirado e discutem seriamente em que dia exato o símbolo da sua fé, a obra prima, o Tableau économique nasceu — um símbolo tão misterioso que livros enormes não podem explicar. É como o Corão de Muhhamad. Vocês queimam suas vidas por seus princípios, e falam de seu apostolado. Vocês atacam [o Abbé] Galliani e a mim porque nós não fazemos reverência por esse hieroglífico ridículo que é seu sagrado Evangelho. Confúcio desenhou uma tabela, o I-Ching, de 64 termos, também conectados por linhas, para mostrar a evolução dos elementos, e seu Tableau économique é uma boa comparação a ela, mas ele chega 300 anos tarde demais. Ambos são parecidos em serem igualmente ininteligíveis. O Tableau é um insulto ao senso comum, à razão, e à filosofia, com suas colunas de equações de reproduction nette terminando sempre em um zero, símbolo marcante dos frutos do estudo de qualquer um simples o suficiente para tentar, em vão, entendê-lo.”[7]

8. Estratégia e influência

 

Um problema que qualquer pensador liberal laissez-faire precisa encarar é: dado que a interferência governamental deve ser mínima, que forma deveria ter esse governo? Quem deveria governar?

Para os liberais franceses do fim do século XVII ou XVIII, parecia haver somente uma única resposta: o governo é e sempre será regido por um monarca absoluto. Rebeldes oposicionistas foram esmagados no começo e no meio do século XVII, e daí em diante somente uma resposta era pensável: o rei deve ser convertido às verdades e à sabedoria do laissez-faire. Qualquer ideia de inspirar ou lançar um movimento de oposição em massa contra o rei estava simplesmente fora de questão; não era parte de qualquer diálogo concebível.

Os fisiocratas, assim como os liberais clássicos do começo do século XVIII, não eram simples teóricos. A nação estava caótica, e eles possuíam uma alternativa política que estavam tentando promover. Mas, se a monarquia absoluta era a única forma de governo concebível para a França, a única estratégia possível para os liberais era simples, ao menos no papel; converter o rei. E então a estratégia dos liberais clássicos, desde o esforço de Abbé Claude Fleury e de seu hábil aluno, o Arcebispo Fénélon no fim do século XVII, até os fisiocratas e Turgot no fim do século XVIII, era converter o governante.

Os liberais estavam em boa posição para prosseguir com a estratégia no que pode ser chamada de sua planejada “revolução a partir do topo”. Pois todos eles se situavam em postos importantes na corte. O Arcebispo Fénélon colocou suas esperanças no Delfim, criando o duque de Borgonha como um fervoroso liberal clássico. Mas nós vimos que esses planos cuidadosamente planejados se tornaram cinzas quando o duque morreu por doença em 1711, apenas quatro anos antes da morte do próprio Luís.

Meio século depois, o Dr. Quesnay, novamente trabalhando por meio de uma amante do rei, dessa vez a Madame de Pompadour, usou sua posição na corte para tentar converter o governante. O sucesso na França foi somente parcial. Quando Turgot, que concordou com os fisiocratas sobre o laissez-faire, tornou-se o ministro das finanças e começou a colocar as reformas liberais em prática, ele rapidamente deu de cara com uma entrincheirada oposição que o removeu de seu escritório depois de apenas dois anos. Suas reformas foram enraivecidamente repelidas. Os líderes dos fisiocratas foram exilados pelo rei Luís XVI, o jornal foi rapidamente censurado, e a Mirabeau foi ordenado que cancelasse seus famosos seminários das noites de terça.

A estratégia dos fisiocratas provou-se um fracasso, e não havia mais a que atribuir o fracasso senão aos caprichos de um monarca particular. Pois mesmo se o monarca pudesse ser convencido de que a liberdade conduz seus súditos à felicidade e à prosperidade, seus próprios interesses frequentemente são de maximizar as exações do estado e, portanto, o seu próprio poder e riqueza. Ademais, o monarca não governa sozinho, mas como a cabeça de uma coalizão de burocratas, nobres, monopolistas privilegiados e lordes feudais. Ele governa, em suma, como a cabeça de uma elite de poder, ou de uma “classe governante”. É teoricamente concebível, mas pouco provável, que um rei e o resto da classe governante fossem querer adotar uma filosofia e uma economia política que acabará com o seu poder e que os colocaria, efetivamente, fora de jogo. Certamente não aconteceu na França e, depois da falha dos fisiocratas e de Turgot, veio a Revolução Francesa.

Eventualmente, os fisiocratas de fato conseguiram converter alguns governantes, apesar de não conseguirem converter o monarca da França. Seu maior discípulo entre os governantes do mundo — e um dos mais entusiastas e louváveis — foi Carl Friedrich, o margrave do ducado de Baden (1728-1811), na Alemanha. Convertido pelas obras de Mirabeau, o margrave escreveu um sumário da fisiocracia, e tentou instituir o sistema em seu reino. O margrave propôs livres negociações de milho à Assembleia Legislativa Alemã, e em 1770, ele introduziu o impôt unique a 20 por cento do “produto líquido” agrícola em três vilarejos de Baden. O chefe auxiliar do margrave estava administrando o experimento, o entusiasmado fisiocrata alemão Johann August Schlettwein (1731-1802), professor de economia da Universidade de Giessen. O experimento, no entanto, foi abandonado em alguns poucos anos em dois dos vilarejos, embora o imposto único tenha continuado no vilarejo de Dietlingen até 1792. Por alguns anos, o margrave também trouxe Du Pont de Nemours para ser seu conselheiro e o tutor de seu filho.

Em uma reunião notável, o fervoroso margrave de Baden perguntou a seu mestre Mirabeau se o ideal fisiocrático era ou não o de tornar líderes soberanos desnecessários. Talvez todos eles pudessem ser reformados para fora da existência. O margrave havia divinizado a base anarquística — ou ao menos republicana — subjacente ao laissez-faire liberal e à doutrina do direito natural. Mas Mirabeau, dedicado como todos os fisiocratas à monarquia absoluta, recuou, bruscamente lembrando a seu pupilo mais novo que mesmo o papel do soberano sendo em idealidade limitado, ele ainda seria o dono do domínio público e o preservador da ordem social.

Muitos outros governantes da Europa ao menos esbarraram com a fisiocracia. Um dos mais envolvidos foi Leopoldo II, grão-duque da Toscana, posteriormente imperador da Áustria, que ordenou a seus ministros que se consultassem com Mirabeau e executassem algumas das reformas fisiocratas. Um companheiro foi o imperador José II da Áustria. Outro entusiasta da fisiocracia foi Gustavo III, rei da Suécia, que conferiu a Mirabeau a grande Cruz da recém-fundada Ordem de Wasa, em honra da agricultura. Du Pont, por sua vez, foi feito cavaleiro da Ordem. Na prática, quando o jornal dos fisiocratas foi censurado com a queda de Turgot, o rei Gustavo e o margrave de Baden se juntaram para ajudar Du Pont a editar um jornal que seria publicado em seus reinos.

Mas o apelo fisiocrático à monarquia perdeu o pouco efeito que tinha depois do início da revolução francesa. De fato, depois da revolução, a fisiocracia, com seu viés pró-agricultura e devoção à monarquia absoluta, foi desacreditada na França e no resto da Europa.

 

9. Daniel Bernoulli e a fundação da economia matemática

Não devemos sair do assunto do Tableau sem antes mencionar um francês-suíço contemporâneo de Cantillon que prefigurou o Tableau em um único sentido: pode-se dizer que ele foi o fundador, no sentido mais amplo, da economia matemática. Como tal, sua obra continha algumas das típicas falhas e falácias desse método.

Daniel Bernoulli (1700-82) nasceu em uma família de distintos matemáticos. Seu tio, Jacques Bernoulli (1654-1705) foi o primeiro a descobrir a teoria da probabilidade (em sua obra em latim, Ars conjectandi, 1713) e seu pai Jean (1667-1748) foi um dos primeiros desenvolvedores do cálculo, um método que foi descoberto no fim do século XVII. Em 1738, Daniel, tentando resolver um problema de teoria da probabilidade e da teoria da aposta [theory of gambling] através do uso do cálculo, esbarrou no conceito da lei da utilidade marginal decrescente do dinheiro. O ensaio de Bernoulli foi publicado em latim como um artigo em um periódico acadêmico.[8]

Bernoulli presumivelmente não estava familiarizado com a chegada a uma lei semelhante, embora em forma não-matemática, pelos escolásticos espanhóis salmantinos Tomás de Mercado e Francisco Garcia por volta de dois séculos antes. Certamente ele não mostrou qualquer familiaridade com suas teorias monetárias ou com qualquer outro aspecto da economia, para esse assunto. E, sendo um matemático, ele errou até mesmo em seu próprio ponto particular, introduzindo uma forma da Lei da Utilidade Marginal Decrescente que voltaria para infernizar o pensamento econômico em séculos futuros. O uso da matemática necessariamente leva o economista a distorcer a realidade ao fazer da teoria conveniente para o simbolismo e a manipulação matemáticas. A matemática domina, e a realidade da ação humana fica de fora.

Uma das falhas fundamentais da formulação de Bernoulli foi colocar seu simbolismo em forma de razão ou de fração. Caso se insista em colocar o conceito de utilidade marginal decrescente do dinheiro para cada indivíduo em uma forma simbólica, poder-se-ia dizer a riqueza de um homem, ou totalidade de seus ativos monetários, a qualquer tempo é x, e a utilidade ou satisfação é designada como u, e se Δ é o símbolo universal para a mudança, então

 diminui conforme x aumenta

Mas mesmo essa formulação relativamente inócua estaria incorreta, já que a utilidade não é uma coisa, não é uma entidade mensurável, não pode ser dividida, portanto é ilegítimo colocá-la em forma de razão, como o numerador de uma fração inexistente. A utilidade não é nem uma entidade mensurável nem poderia, mesmo se fosse possível, ser comensurada com uma unidade monetária envolvida no denominador.

Suponha que ignoremos essa falha fundamental e aceitemos a razão como um tipo de versão poética da lei verdadeira. Ainda assim, esse é somente o começo do problema. Porque em seguida Bernoulli (e os economistas matemáticos daí em diante) procedeu em multiplicar a conveniência matemática ilicitamente, transformando seus símbolos na nova forma de cálculo. Se esses aumentos de renda ou utilidade são reduzidos ao infinitesimal, pode-se usar ambos: o simbolismo e as poderosas manipulações do cálculo diferencial. Aumentos infinitamente pequenos são os primeiros derivativos da quantidade em qualquer dado momento, e os Δ acima podem se tornar os primeiras derivativos, d. E então, as discretas descontinuidades da ação humana podem magicamente se transformar nos arcos e curvas suaves dos familiares retratos geométricos da teoria econômica moderna.

Mas Bernoulli não parou aí. Pressupostos e métodos falaciosos são empilhados uns sobre os outros como Pelion sobre Ossa. O próximo passo em direção a uma conclusão dramática, em aparência precisa, é que a utilidade marginal de cada homem não somente decresce conforme sua riqueza aumenta, mas decresce em proporção inversa fixa à sua riqueza. De forma que, se b é uma constante e a utilidade é y ao invés de u (presumivelmente pela conveniência de colocar a utilidade no eixo y e a riqueza no eixo x), então

 Que evidência tem Bernoulli para esta suposição absurda, para sua afirmação de que um aumento na utilidade será “inversamente proporcional à quantidade de bens já possuídos”? Absolutamente nenhuma, e este alegado cientista exato tem somente pura suposição para oferecer.[9] Não há razão, na verdade, para assumir qualquer proporcionalidade constante como essa. Nenhuma evidência disso pode ser encontrada, porque o próprio conceito de proporção constante em uma entidade não-existente é absurdo e sem significado. Utilidade é uma valoração subjetiva, uma classificação feita pelo indivíduo, e não há medida ou extensão, e, portanto, nenhum jeito, de que seja proporcional a si mesma.

Depois de apresentar essa falácia notória, Bernoulli colocou a cereja do bolo ao ignorantemente assumir que a utilidade marginal do dinheiro de todo indivíduo se move na exata mesma e constante proporção, b. Economistas modernos estão familiares com a dificuldade, ou melhor, a impossibilidade, de mensurar utilidades entre pessoas. Mas eles não dão um peso suficiente para esta impossibilidade. Uma vez que a utilidade é subjetiva a cada indivíduo, não pode ser mensurada ou sequer comparada entre pessoas. Mas mais que isso; “utilidade” não é uma coisa ou uma entidade; é simplesmente o nome para uma valoração subjetiva na mente de cada indivíduo. Portanto não pode ser mensurada mesmo dentro da mente de cada indivíduo, muito menos calculada ou mensurada de uma pessoa para outra. Mesmo cada pessoa individual só pode comparar valores ou utilidades ordinariamente; a ideia de “mensurá-las” é absurda e sem significado.

Dessa teoria multiplamente ilegítima, Bernoulli falaciosamente concluiu que “não há dúvida que um ganho de mil ducados é mais significante para um homem pobre do que para um homem rico, apesar de ambos ganharem a mesma quantidade”. Isso depende, é claro, dos valores e das utilidades subjetivas daquele homem rico ou do pobre em particular, e essa dependência nunca pode ser mensurada ou mesmo comparada por ninguém, seja por observadores externos ou por qualquer uma das duas pessoas envolvidas.[10]

A contribuição duvidosa de Bernoulli fez seu caminho na matemática, tendo sido adotada pelo grande teórico da probabilidade francês do começo do século XIX Pierre Simon, Marquês de Laplace (1749-1827), em seu renomado Théorie analytique des probabilités (1812). Mas foi felizmente completamente ignorada no pensamento econômico[11] até que foi desenterrada por Jevons e a parte dos teóricos da utilidade marginal inclinados à matemática do fim do século XIX. Essa negligência foi certamente ajudada pelo fato de o livro ter sido escrito em latim; uma tradução para o alemão não apareceu até 1896, e uma tradução para o inglês não apareceu até 1954.

 

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Notas

[1]     Citado em Henry Higgs, The Physiocrats (1897, Nova York: The Langland Press, 1952), p. 62.

[2]     Veja a paráfrase feita por Higgs, ibid., p. 45.

[3]     Henry William Spiegel, The Growth of Economic Thought (2ª ed., Durham, NC: Duke University Press, 1983), p. 192.

[4]     Elizabeth Fox-Genovese, The Origins of Physiocracy (Ithaca: Cornell University Press, 1976), p. 241.

[5]     Absorvi esse insight das palestras do professor Joseph Dorfman sobre a história do pensamento econômico na Universidade de Columbia. Pelo que eu sei, essa visão nunca chegou a ser impressa.

[6]     Foley fornece a interessante especulação de que o Tableau économique do Dr. Quesnay foi fortemente influenciado por sua concepção errônea de como o sangue circula no corpo humano. V. Foley, “The Origin of the Tableau Economique”, History of Political Economy 5 (Primavera 1973), pp. 121-50.

[7]     Em Higgs, op. cit., nota 1, pp. 149-50.

[8]     Como “Specimen Theoriae Novae de Mensura Sortis”, em Commentarii Academiae Scientiarum Imperialis Petropolitanae, Tomus (1738), pp. 175-92. O artigo foi traduzido por Louise Sommer como “Exposition of a New Theory on the Measurement of Risk”, Econometrica, 22 (Jan. 1954), pp. 23ff.

[9]     Schumpeter aponta que Bernoulli observou que essa suposição havia sido antecipada em uma década pelo matemático Cramer, que, no entanto, havia assumido que a utilidade marginal diminuía em uma proporção constante, não de x, mas da raiz quadrada de x. Alguém se pergunta como se deve escolher entre qualquer uma dessas afirmações absurdas. A lição é que quando a ciência genuína é substituída por suposições arbitrárias, os duques tornam-se selvagens e qualquer suposição é tão boa ou tão ruim quanto qualquer outra. J. A. Schumpeter, History of Economic Analysis (Nova York: Oxford University Press, 1954), p. 303.

[10]   Emil Kauder observa a afirmação de Oskar Morgenstern de que, embora “a comparação interindividual de utilidades não possa ser justificada”, ainda “vivemos fazendo continuamente tais comparações […]”. Claro que sim, mas esse processo não tem nada a ver com ciência e, portanto, não tem lugar na teoria econômica, seja na forma literária ou matemática. Emil Kauder, A History of Marginal Utility (Princeton, NJ: Princeton University Press, 1965), p. 34n.

[11]   Com uma exceção isolada, o importante economista alemão do século XIX, Friedrich Benedikt Wilhelm von Herrmann (1795-1868), Staatswirtschaftliche Untersuchungen (1832).

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