O ideal do desenvolvimento económico é, na actualidade, o centro de toda a acção política universal. Países de todo mundo, partidos de todos espectros políticos, organizações internacionais, instituições financeiras e até religiosas, carregam nas suas agendas a pretensão da realização desse ideal económico universal. Em suma, nos dias de hoje o ideal de desenvolvimento económico universal tornou-se o remédio de todas as nações a ponto de ser considerado como um direito humano.
Esse ideal surgiu muito recentemente na história política humana, principalmente a partir da Segunda Guerra Mundial e com o processo da descolonização. De um lado, a produção material proporcionada pela Revolução Industrial era bastante evidente no mundo ocidental (Europa e América do Norte) e, do outro lado, a “pobreza” extrema dos países recentemente independentes (em África e na Ásia), o que colocava em relevo as grandes desigualdades económicas entre países. Foi nesse contexto global que o ideal de desenvolvimento surgiu no vocabulário das ciências sociais e passou a ser o instrumento político poderoso quer a nível da política interna de cada País, quer também a nível de instituições internacionais engajadas para um governo mundial mais forte.
Recorde-se que embora seja uma abordagem recente, o profundo ideal que conceito de desenvolvimento económico persegue é antigo e está relacionado com o processo de surgimento e evolução do sistema político ocidental. Na Europa antiga, a política teve a sua essência no ideal da justiça. E, de acordo com a narrativa política ocidental, o ideal de uma sociedade justa podia ser alcançado por três pressupostos essenciais, nomeadamente: por meio da virtude, do bem comum e da liberdade. A virtude aparece na filosofia política através de Aristóteles. Esse autor defendeu a ideia de que a justiça está inevitavelmente relacionada com questões sobre a honra, a virtude e a natureza de uma vida boa. De acordo com esse ponto de vista, a justiça requer a correcção das desvantagens sociais e económicas que dê a todos oportunidades justas de sucesso ou mais igualdade. Já o bem comum ou utilitarismo surge com David Hume e Jeremy Bentham, tendo o último defendido a ideia segundo a qual “o mais elevado objectivo da justiça é maximizar a felicidade, assegurando a hegemonia do prazer sobre a dor”. Ou seja, para Bentham, a justiça consiste em “maximizar a utilidade”. Por fim, temos os defensores da liberdade como único instrumento da justiça que consiste em respeitar e preservar as escolhas feitas por adultos conscientes. Entre os vários defensores dessa corrente temos o filósofo Immanuel Kant.[1]
Foi esse embate ideológico que forneceu a justiça como um instrumento de legitimidade da instituição de um governo. Ressalte-se que as perspectivas do bem comum e da virtude foram as mais disseminadas e que serviram de modelos de justiça para a maioria dos países. Note-se, ainda, que, ao longo da história, o conceito de desenvolvimento económico seguiu a evolução da compreensão da justiça e, assim, de acordo com essa perspectiva, um País desenvolvido significa, em última instância, um País justo. Foi então esse ideal da justiça que trouxe às ciências sociais a preocupação com o desenvolvimento económico.
Olhando para a perspectiva histórica, inicialmente, a visão dos governos no mundo ocidental estava ligada aos aspectos da protecção da propriedade privada e da garantia da ordem social. Desse modo, o desenvolvimento económico consistia numa sociedade baseada na liberdade, funcionando por meio do livre mercado e respeito à propriedade privada. Foi por isso que o conceito de desenvolvimento humano nasceu como um processo de ampliação das escolhas das pessoas para que elas tenham capacidades e oportunidades para serem aquilo que desejam ser, ou, como definido pelos economistas Bauer e Yamey, “a ampliação do espectro de alternativas abertas às pessoas como consumidoras e produtoras”. E, de facto, essa é a teoria correcta sobre a justiça ou sobre o desenvolvimento económico.
Desse ponto de vista, o conceito do desenvolvimento económico tem a sua base na liberdade, podendo então ser conceptualizado como todo modo de vida específico baseado no respeito à propriedade privada. Assim sendo, a liberdade e o crescimento económico tornam-se indicadores fulcrais para o desenvolvimento económico. A liberdade é inerente à natureza humana. Tendo sido feito com a faculdade racional, o homem torna-se um ser livre desde o momento que nasce, ao mesmo tempo que se difere de todos outros homens. A diversidade faz com que cada homem escolha os fins mais adequados para a sua autorrealização, gerando desse modo a divisão de trabalho. Estendida a divisão de trabalho e na medida em que as pessoas compreendam tal instituição, surge a acumulação de capital e consequentemente o crescimento económico, que, ao longo do tempo, gera a prosperidade social. Portanto, o desenvolvimento económico entendido como critério da liberdade, para além de paz e harmonia, gera prosperidade social. E assim, tendo surgido como critério de justiça, o desenvolvimento económico torna-se uma instituição política e económica ao serviço da paz e prosperidade social.
Acontece que, num dado momento da história, essa abordagem da liberdade enquanto critério para se aferir a justiça deu lugar às abordagens utilitarista e da virtude, que, como vimos, concebiam a justiça como a correcção das desvantagens sociais e económicas e a atribuição a todos das mesmas oportunidades de sucesso. Vemos aqui uma maior preocupação com a construção de um “mundo que queremos”, que foi transportado para a ciência. Com a nova abordagem, o foco no crescimento económico, que prioriza os recursos ou renda produzida por um país, é transferido para a abordagem de desenvolvimento humano, que procura olhar directamente para as pessoas, suas oportunidades e capacidades, considerando aspectos sociais, culturais e políticas que influenciam a qualidade da vida humana ou o bem comum. Surge dessa forma o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), publicado anualmente pelo PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento).
Criado por Mahbub ul Haq, com a colaboração do economista indiano Amartya Sen, o IDH mede o progresso de uma nação a partir de três dimensões: renda, saúde e educação. Esses indicadores que formam o IDH são calculados da seguinte forma:
– Saúde – pela longevidade ou esperança média de vida;
– Educação – média de anos de educação de adultos, medida pelo número médio de anos de educação recebidos durante a vida por pessoas a partir de 25 anos e o acesso das crianças à vida escolar;
– Renda ou padrão de vida, medida pela Renda Nacional Bruta (RNB) per capita expressa em poder de paridade de compra (PPP) constante, em dólar, tendo 2005 como ano de referência.
Apesar do IDH ampliar de certa forma a perspectiva sobre o desenvolvimento humano, viu-se depois de alguns anos que a sua perspectiva era também limitada, porque não abrangia aspectos relacionados com “felicidade” das pessoas, “o melhor lugar no mundo para se viver”, democracia, o grau de participação, equidade, sustentabilidade, que são outros aspectos importantes para se avaliar o desenvolvimento humano. A partir de 2010 novas metodologias foram incorporadas para o cálculo do IDH, que incluíam indicadores complementares como: Índice de Desenvolvimento Humano Ajustado à Desigualdade (IDHAD), Índice de Desigualdade de Género (IDG) e o Índice de Pobreza Multidimensional (IPM), cada um deles abordando uma área específica. O Índice de Desenvolvimento Humano Ajustado à Desigualdade (IDHAD) mede o nível de desigualdade das populações de um País em todas as três dimensões do IDH, nomeadamente, na educação, saúde e renda. Já o Índice de Desigualdade de Género (IDG) mede as desigualdades com base no género em três dimensões – saúde reprodutiva, autonomia e actividade económica. A saúde reprodutiva é medida pelas taxas de mortalidade materna e de fertilidade entre as adolescentes; a autonomia é medida pela proporção de assentos parlamentares ocupados por cada género e a obtenção de educação secundária ou superior por cada género; e a actividade económica é medida pela taxa de participação no mercado de trabalho para cada género.
Dentro dos índices de desigualdade temos ainda o Índice de Gini, criado pelo matemático italiano Corrado Gini, como instrumento para medir o grau de concentração de renda em determinado grupo, apontando as diferenças entre os rendimentos dos mais pobres e dos mais ricos. Numericamente, varia de zero a um. O valor zero representa a situação de igualdade, ou seja, todos têm a mesma renda, ao passo que o valor um (1) está no extremo oposto, isto é, representa a condição de uma só pessoa deter toda a riqueza. É calculado comparando os 20% mais pobres com os 20% mais ricos. Temos ainda o índice de Palma, uma medida de desigualdade usada para avaliar a distribuição de renda ou riqueza dentro de uma população. Ela é calculada dividindo a parcela de renda ou riqueza detida pelos 10% mais ricos da população pela parcela detida pelos 40% mais pobres. Nesse caso, se a proporção de Palma for alta, isso indica um maior nível de desigualdade, enquanto uma proporção de Palma menor sugere uma distribuição mais equitativa de recursos. Temos ainda dentro dos índices da desigualdade a medida Plataforma Geográfica Interactiva (PGI), que evidencia as diversidades e desigualdades territoriais.
Por fim, o Índice de Pobreza Multidimensional (IPM), que mede as privações múltiplas em educação, saúde e renda nos mesmos domicílios. Dentre os vários indicadores deve ser realçada a medida da pobreza de renda, medida pelo percentual da população que vive abaixo de US$1,25 por dia.[2]
Com base no exposto, percebe-se que o Índice de Desenvolvimento Humano enquanto instrumento económico foi orquestrado dentro da lógica do intervencionismo estatal na economia. Aliás, como os próprios defensores desse mecanismo defendem, ele foi desenvolvido para fornecer dados relevantes à agenda global e também para a elaboração de políticas públicas dos países. Para já, a educação, enquanto indicador do IDH, visa, como vimos atrás, a intervenção do estado na educação dos indivíduos desde a infância até a fase adulta, tudo isso para incutir a mentalidade da uniformidade, obediência à autoridade estatal instituída e a incapacidade do homem de lidar com a natureza. Portanto, o IDH é, nesse quesito, um reforço ou auxílio do sistema educativo para o alcance dos objectivos acima elencados.
As medidas da saúde e renda, enquanto indicadores do IDH, visam, por sua vez, reforçar o poder do estado, enquanto impõem a sua obediência. A medida da saúde passa a legitimar a instituição do estado e a sua importância, inculcando a ideia de caos numa sociedade sem estado. A da renda visa o ideal da igualdade, o que contrasta com a natureza humana, ao mesmo tempo que promove o espírito de ociosidade através das políticas de bem-estar social. Nesse quesito, a renda passa ser a justificativa das políticas públicas e do sistema de bem-estar social. Todas essas formas de intervenção estatal, como vimos, não são motivadas pela solidariedade para com os pobres, mas sim, para os ganhos da própria classe política.
Os indicadores complementares são igualmente instrumentos políticos que visam controlar a liberdade individual. Com o Índice de Desenvolvimento Humano Ajustado à Desigualdade (IDHAD), procura-se anular a desigualdade, o que já demonstramos ser impossível pela diversidade humana e pela própria natureza. Vimos que a desigualdade é um factor da promoção da divisão do trabalho e da cooperação social. Vimos ainda que a desigualdade tem o seu lado bom, já que a riqueza dos criadores acaba por beneficiar mais o restante da população do que simplesmente os próprios criadores. Na mesma direcção do controlo da liberdade individual aponta o Índice de Desigualdade de Género (IDG), que é um indicador que procura impor a igualmente de género, o que mais uma vez contrasta com a natureza. Os géneros, de forma natural, forjam a desigualdade entre os seres humanos, com homens mais hábeis em certas actividades e as mulheres também em outras, provendo dessa forma a divisão de trabalho e a cooperação. O género que se ocupar em actividades económicas mais arriscadas e difíceis ou escassas, naturalmente, tenderá a ser mais remunerado do que o outro, causando desse modo a desigualdade natural. Essa mesma desigualdade ocorre entre homens e entre mulheres e, ainda, entre homens e mulheres residentes em diferentes países. O Índice de Desigualdade de Género (IDG) tem também sido usado para se anular a existência de géneros, com movimentos sociais impondo relações homoafectivas. Todos esses movimentos pretendem, no fundo, destruir a família e consequentemente a propriedade privada e, assim, anular ou liquidar a humanidade.
Finalmente, o Índice de Pobreza Multidimensional (IPM), cuja intenção é a de impor a igualdade de padrão de vida de todas as famílias ou indivíduos do mundo. Parte da errada ideia de que todos os povos têm a mesma capacidade produtiva, independentemente do lugar em que estejam e, por isso, a riqueza deveria ser igual para todos os cidadãos. Havendo desigualdade de renda, a riqueza deve ser redistribuída para impor a igualdade de padrão de vida. Para os defensores desse indicador, as relações económicas são sempre de exploração, com cada rico obtendo sua riqueza explorando os pobres. Esse índice é o principal motor da forte tributação que os países sofrem, tendo como consequência o empobrecimento social gradual, com o agravante desse empobrecimento incidir com maior realce sobre a própria classe pobre.
Ao conceber a pobreza como padrão universal, o Índice de Pobreza Multidimensional adopta o padrão de vida ocidental, propriamente o europeu, como modelo mundial que deve ser seguido. O propósito desse índice passou a ser o de converter todos os povos fora do Ocidente aos valores culturais ocidentais para que aprendam os “bons costumes”. Tendo em vista esse propósito, a construção da civilização passa por assimilar todos aspectos culturais vigentes na Europa, desde a língua, a religião, a alimentação e, até, a forma da organização política. Foi essa imposição cultural e económica que ocasionou o surgimento da classificação ou a terminologia entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos, ou avançados e atrasados. Com essa terminologia, os países desenvolvidos passaram a ser todos aqueles que têm o mesmo padrão de vida europeu ou assimilaram o estilo de vida europeu, enquanto os atrasados ou subdesenvolvidos, aqueles que apresentam estilos de vida diferentes dos europeus. Assim, o ideal do desenvolvimento económico universal tornou-se num atalho desconhecível entre povos fora do Ocidente, cujo desbravamento ou desenvolvimento cabe exclusivamente aos europeus. Tornou-se num ideal que aos europeus cabe buscar e os demais povos assimilar. Assim, o Índice de Pobreza Multidimensional passou a ser um instrumento de colonização de povos ao procurar impor a cultura ocidental.
Mas o problema com o Índice de Pobreza Multidimensional não para por aí. Uma vez assumido como padrão universal o modo de vida ocidental, surge então a problemática das ajudas internacionais para o alcance do desenvolvimento económico. A primeira forma de ajuda surge na forma de doações realizadas pelas instituições internacionais de caridade, também chamadas de Organizações não-Governamentais (ONGs). Essas organizações, ao perpetuarem as ajudas em bens e serviços, colocam os pobres dos países beneficiários na condição de dependência perpétua, pois incentivam a ociosidade, ao invés do estímulo à produção. O sistema funciona da seguinte forma: Os grupos empresariais de países ocidentais fazem lobby junto dos seus governos para a obtenção de subsídios à produção, permitindo-lhes praticar preços baixos ou mesmo possuir excedente para financiar as doações que são enviadas aos chamados países pobres. Essa situação acaba por gerar uma concorrência desleal, bloqueando o sistema produtivo local, colocando os produtores locais na pobreza. Noutros casos, as ajudas internacionais criam novos hábitos alimentares ou de consumo, forçando populações locais ao consumo de produtos que eles não têm potencialidades para produzir, colocando-os na eterna dependência.
A segunda forma de ajuda é feita na forma de financiamentos por meio de ajudas financeiras aos governos, feitas por organizações internacionais como Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional. Essas instituições funcionam dentro de um lobby internacional muito forte dos financiadores internacionais. Para além dos juros que são pagos na fase da devolução desses empréstimos, esses financiadores fazem lobby para explorarem recursos naturais geralmente confiscados pelos estados aos camponeses locais. Para além dessas ajudas imporem aos países que as recebem uma forte tributação empobrecedora, elas funcionam ainda como um mecanismo de exploração por meio do confisco das terras. Esse confisco permite que os recursos naturais sejam geridos entre a classe política local e as empresas estrangeiras, perpetuando desse jeito a colonização ocidental. Portanto, o desenvolvimento económico, visto na perspectiva utilitária e de virtude, torna-se num presente armadilhado e envenenado que, para além de destruir a civilização de muitos países, também torna esses países eternamente pobres.
Ora, se o percurso histórico nos levou para essa confusão de termos, como podemos então analisar o fenómeno do desenvolvimento económico universal de modo a torná-lo uma busca de todos os povos? Sendo um ideal universal, como o legitimamos em cada contexto?
As respostas a essas questões remetem naturalmente para o retorno à velha percepção do fenómeno do desenvolvimento económico alicerçado na liberdade individual ou na justiça. Como vimos, a abordagem sobre desenvolvimento económico surgiu ancorada na ideia da justiça. Assim, vimos que a justiça só é possível quando uma sociedade tem a liberdade como valor social fundamental. O exercício dessa liberdade, como é óbvio, gerará diversidade humana e extensão da divisão de trabalho. Estabelecida a divisão de trabalho dentro de um sistema social de livres trocas, gera-se então uma sociedade de livre mercado que cada vez mais gerará prosperidade social. Em suma, o desenvolvimento económico na escala mundial só é possível com liberdade e crescimento económico que geram, como dissemos, o modo de vida específico baseado no respeito à propriedade privada.
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Notas
[1] Michael J. Sandel, Justiça: o que é fazer a coisa certa?.
[2] Michael Pereira de Lira, Desenvolvimento econômico.