O sindicalismo é, nos dias de hoje, um movimento social muito comum e bastante poderoso, estabelecido para a defesa das condições sociais e interesses dos trabalhadores.
E, de facto, a vida dos trabalhadores não tem sido fácil. Diariamente assistimos ao aumento contínuo e generalizado de preços no mercado, o que faz com que cada vez mais o poder de compra dos salários diminua. No cômputo geral, os salários auferidos pelos trabalhadores não chegam para cobrir as necessidades como a alimentação, o que faz com que esses estejam atolados permanentemente em dívidas. É muito difícil manter a vida sendo trabalhador, quer do sector privado como do sector público. O pior é que, enquanto os bens e serviços no mercado estão constantemente a subir, as entidades patronais, por sua vez, optam em manter fixos os salários por longos anos. A maioria das pessoas hoje não tem certeza se terá uma refeição durante o dia. Por sua vez, o número de mendigos e pedintes espalhados pelas ruas aumentou consideravelmente, como prova clara do empobrecimento da sociedade. Por conta disso, actualmente o mercado de trabalho a nível mundial tem sido palco de inúmeras e sucessivas greves em todos os sectores da actividade económica. Professores, enfermeiros, médicos, funcionários do sector privado e público no geral, periodicamente, realizam greves, tendo como principal reivindicação o aumento de salários. Durante o primeiro semestre de 2024, uma greve geral foi realizada em Angola, cuja reivindicação principal era o aumento do salário mínimo nacional para 250 mil Kwanzas, equivalente a 290 Usd. Para além do salário mínimo nacional, os sindicatos exigiam também o aumento do salário da função pública, a redução do imposto sobre o rendimento do trabalho para 15%, subsídios para funcionários em zonas recônditas, entre outras.
Diante de inúmeras reivindicações e pautas defendidas pelos sindicatos, algumas questões podem ser levantadas sobre a sua actuação. Sendo que a principal reivindicação dos trabalhadores tem sido sobre o aumento dos salários, como se pode então aumentar os salários economicamente? Num País como Angola, onde o estado é o principal empregador, que impacto social causa o aumento de salários de forma arbitrária ou por decreto? A luta deve ser por mais aumentos salariais ou por mais poder de compra? Qual deve afinal ser o posicionamento correcto de uma instituição sindical?
Bem, o sindicalismo, tal como se apresenta nos dias de hoje, é fruto de algum erro epistemológico e histórico relacionado com a teoria de classes sociais. Durante o século XIX, um grupo de teóricos libertários de laissez-faire dedicou-se num determinado período ao estudo de uma teoria sociológica e histórica de classes sociais. Compunha esse grupo de teóricos James Mill, Jean Baptist Say, Charles Comte, Charles Dunoyer entre outros. Para esses teóricos, o percurso da história humana foi sempre marcado por duas classes conflitantes, composta pela classe dominante – que domina ou governa o estado, controlando todo aparato estatal – e a classe dos dominados – formada pela sociedade em geral ou por grupos de produtores fora do aparato do estado. Para ficar claro, deve entender-se como classe de governantes ou dominantes todos indivíduos ou instituições que vivem ou lucram com o estado, isto é, indivíduos, grupo de indivíduos ou instituições que vivem sem produzir, como são os funcionários públicos, políticos, lobistas e todas empresas que trabalham ou lucram com estado.
Assim, depois de identificadas as classes sociais e os conflitos existentes entre elas, a tarefa teórica seguida pelos libertários foi a de descobrir como construir uma sociedade sem classes, isto é, uma sociedade sem classes conflitantes e com mais liberdade. A solução encontrada pelos teóricos que vimos citando é o “industrielisme” ou sociedade industrial. Como Rothbard aponta,
A emergência de uma sociedade industrial exigiu um livre mercado internacional para possibilitá-la funcionar; portanto, Comte e Dunoyer consideram como inevitável que uma economia de livre mercado se difunda pela Europa e, eventualmente, pelo mundo, dissolvendo as classes dominantes e trazendo uma região e um mundo libertários, um mundo livre da opressão do estado.[1]
Portanto, essa é a teoria histórico-sociológica das classes e, como vimos, fundamentada por um livre mercado e os direitos de propriedade privada, que, nas palavras de Comte e Dunoyer significaria que “o governo dos homens seria substituído pela administração de coisas”.
No entanto, essa mesma teoria correctamente elaborada viria ao longo do tempo sofrer de golpe fatal que alteraria profundamente o seu significado original. Essa confusão foi introduzida por Saint-Simon, que, tendo partido da ideia original dos teóricos libertários de classes, introduziu uma tremenda confusão ao separar as classes conflitantes entre a classe de empregadores e assalariados no livre mercado, com a classe de governantes, segundo ele, sendo constituída pelos verdadeiros representantes do industrielisme, isto é, uma aliança de intelectuais tecnocratas investidores, coordenados por um banco central. Desse modo, com a confusão de Saint-Simon, a composição da classe de dominantes deixa de ser ocupada por políticos e lobistas e passa a ser ocupada por empreendedores e investidores. A partir daí deixaram de ser os políticos, isto é, os indivíduos e instituições não produtivas a explorarem a classe governada, mas sim os empresários que passam a ter agora a função de não só explorarem, mas também coarctar a liberdade dos trabalhadores e da sociedade no geral. Essa nova abordagem passou então estar interligada com a velha teoria de Adam Smith de valor-trabalho, o que reforçou ainda mais a crença na exploração dos empregadores, investidores e empreendedores à classe dos trabalhadores ou dos assalariados.
Agora que se acredita que toda produção se origina do trabalho e que o lucro ou a mais-valia que os capitalistas recebem representa roubo aos trabalhadores, a tarefa dos defensores da liberdade passou então, erradamente, a estar focada na defesa dos trabalhadores contra os gananciosos e exploradores capitalistas, pedindo, por isso, pela expropriação da mais-valia e pelo estabelecimento de um sistema social no qual os trabalhadores ganham o valor completo da sua produção. Assim, ao invés de um sistema social livre baseado em contratos, alguns teóricos libertários das classes sociais passaram a defender um sistema regulado ou intervencionado, elaborando um conjunto de leis positivas para a defesa dos trabalhadores. Aliás, a própria teoria do valor-trabalho deu origem a ideia da existência de alguma exploração nas trocas ou nas permutas e, a partir daí, toda troca passou a ser vista também como uma exploração ao consumidor.
Foi a partir desse erro na abordagem da teoria de classes que surgiu o movimento sindical enquanto instituição em defesa dos trabalhadores contra o roubo e exploração dos capitalistas. Essa abordagem está errada na medida em que toda relação laboral é contratual. Significa isso que as partes assinam esses acordos de livre vontade, o que implica a existência de coincidência subjectiva de vontades, ou, nas palavras de Adam Smith, pela “harmonia-de-interesse do livre mercado”. Portanto, quando aceito trabalhar numa área qualquer por um salário de 100 mil Kwanzas, é porque percebo que os 100 mil kwanzas valem mais do que o tempo e o trabalho a ser despendido no exercício dessa actividade laboral específica, sendo recíproco para quem me contratou. Esse é o fundamento legal ou jurídico de todo contrato de trabalho. E talvez seja importante ressaltar isso: ao contrário da confusão que é feita sobre a existência de uma possível correlação ou equivalência entre o trabalho e a produção, o que é verdade é que todo contrato de trabalho é fundado unicamente no argumento legal ou jurídico. Esse fundamento legal consiste no dever do trabalhador cumprir com as obrigações acordadas, não tendo por isso qualquer vínculo com o resultado da produção que ocorre sob risco e responsabilidade do contratante, empregador ou capitalista. Por isso é que em caso de prejuízos, o contratante é ainda assim obrigado a cumprir com as obrigações para com o trabalhador. Portanto, a ideia de exploração fundada no valor-trabalho tem apenas fundamento legal, que, no caso, termina a partir do momento em que se cumpre com todas as cláusulas contratuais. O trabalhador não pode reivindicar sobre a produção já que a sua acção não visa esse propósito, o que exclui qualquer resquício de exploração. Consequentemente, se o trabalhador não se vincula à produção, isto é, não se compromete com os resultados do processo produtivo, então, também não tem qualquer vínculo com o lucro. Ademais, o lucro é o resultado de uma actividade económica especulativa e imprevista que, pela sua natureza e essência, não pode vincular o trabalhador. Desse modo, não existe qualquer relação entre o lucro e o salário a ser pago ao trabalhador.
Portanto, embora em alguns casos sejam admissíveis as reivindicações dos trabalhadores pelo aumento de salários, elas só se tornam válidas quando aceites voluntariamente pelas entidades contratantes. O lucro é o reconhecimento económico da ousadia dos empreendedores e capitalistas. O fundamento económico do lucro que tem sido usado até mesmo pelos austríacos, baseado na preferência temporal alta dos trabalhadores, em contraste com a preferência baixa dos capitalistas, é, quanto a mim, muito rebuscado, e cuja pretensão é legitimar o vínculo entre a produção e o trabalho ou o lucro e o salário. Pela natureza dos conceitos de trabalho e da produção, não existe qualquer equivalência entre eles. Enquanto o trabalho é constituído a partir de uma relação jurídica, o lucro, por sua vez, é fundado numa relação económica.
E voltando agora para as questões colocadas no início deste texto, de facto, o aumento de salários só é possível e justificável numa condição de elevada produtividade da empresa. Todo e qualquer negócio só é operável dentro de um determinado nível de custos, e, na medida em que esses sejam superados pelos proveitos. A não ser por um progresso tecnológico acentuado, que estimule uma produção maior e com menos custos, ou uma supervalorização da produção por parte dos consumidores, não pode haver formas de aumentar os salários dos trabalhadores. E mesmo que haja condições objectivas para tal aumento, nestes casos, a reivindicação sobre o tal aumento só será justificável por razões de natureza económica, que cabem ao capitalista. O poder de decisão sobre a reivindicação salarial cabe exclusivamente à entidade empregadora ou ao capitalista, que só pode estar fundada no objectivo de agraciar aos trabalhadores com mais salários para incentiva-los para mais produção ou por concorrência da mão-de-obra no mercado, motivado por razões de não perder para a concorrência trabalhadores altamente experientes, qualificados e competitivos.
Já no campo jurídico, não há qualquer justificação para o aumento de salários, havendo naturalmente um contrato em vigor, que, como vimos, não vincula a mão-de-obra ao lucro. Portanto, a reivindicação sobre mais salários só é justificável por razões de natureza económica, cujo poder de decisão cabe à entidade empregadora. É importante ressaltar que a justificação de natureza económica referenciada acima é, deveras, muito importante para ser negligenciada pelos empregadores. Uma equipa de trabalho bem sincronizada, experiente e qualificada é a chave para o sucesso de qualquer empresa. Dessa forma, a obrigatoriedade por aumentos salariais periódicos pela entidade empregadora opera-se por razões económicas, sendo possível satisfazer na medida em que houver as condições económicas objectivas, isto é, capacidade financeira da empresa e também da lei da oferta e procura.
Então, e como foi dito acima, aumentos salariais feitos de forma arbitrária ou por decreto só causam prejuízos à própria empresa e à economia no geral. Mais especificamente, quando se aumenta o salário acima da avaliação do mercado, as empresas são forçadas a cortar os seus custos, diminuindo a mão-de-obra, ou então a abrir falência, já que os custos podem superar os proveitos. As consequências dessas medidas resultam em aumento do desemprego e da generalização da pobreza, já que a medida comprime os investimentos.
No caso de Angola, onde o estado é o principal empregador, é preciso dizer-se de antemão que os salários pagos aos funcionários públicos são todos estabelecidos de forma arbitrária, ou seja, não seguem qualquer lógica económica, o que pressupõe que são todos fixados acima da avaliação do mercado. Depois de fixados os salários, o estado terá então de recorrer às suas fontes de receitas, nomeadamente: a tributação, a inflação, impressão da moeda e ao endividamento. Quer a inflação, quer o endividamento representam apenas formas diferentes de tributação, que, como sabemos, enxugam a poupança para o consumo. A poupança drenada dos agentes económicos reprime o investimento e aumenta a propensão para o consumo, o que empobrece gradualmente a sociedade até à miséria social completa. Esse processo de empobrecimento social é multiplicado, como vimos, quer pelo desemprego e falências de empresas criadas por aumentos arbitrários de salários no mercado, quer também pela tributação directa e indirecta causada pelo aumento dos salários no sector estatal, o que agrava ainda mais a condição periclitante dos indivíduos.
Mas há uma particularidade na relação de salários entre o sector privado e estatal que precisa de ser dita. A demanda por aumento de salários pelos funcionários públicos tem o efeito de transferir todo ónus tributário aos trabalhadores do sector privado. Como dissemos, o aumento de salários no sector público aumenta a tributação directa e indirecta, que, no fundo, é toda ela repassada aos trabalhadores do sector privado ou aos camponeses, zungueiras, pequenos comerciantes, artesãos e pequenos produtores. Em suma, todo aumento salarial dos funcionários públicos é pago e suportado pelos trabalhadores do sector privado, o que, para além de os empobrecer gradualmente, cria uma relação perpétua de classes, com a classe dos funcionários públicos dominantes explorando e escravizando de forma perene e sem piedade a classe dos trabalhadores privados ou a classe dominada. À medida em que esse processo exploratório ocorre ao longo do tempo, desenvolve-se entre os indivíduos uma mentalidade parasitária, fazendo com que todos demandem empregos do sector público, aumentando ainda mais a máquina burocrática dos funcionários públicos. Haverá, com isso, poucos agentes produtivos e mais consumidores ou parasitas, o que gera também mais carga empobrecedora.
Por todas essas consequências do sindicalismo moderno, traduzidas no empobrecimento gradual da sociedade, causado pelo desemprego, produção diminuta, inflação, endividamento e tributação, fica claro que esse movimento se tornou num cartel ou num grupo lobista que procura por benefícios próprios, prejudicando a verdadeira classe dos trabalhadores. Portanto, as várias pautas reivindicadas pelos movimentos sindicais têm sido um veneno aplicado aos próprios trabalhadores. Assim, um antídoto é necessário para inverter o quadro lastimável em que a classe dos trabalhadores se encontra.
Vimos, no princípio, que, de acordo com os teóricos libertários, o objectivo de uma sociedade sem conflitos de classes só seria alcançável por meio do livre mercado. Esses teóricos advogaram por livres contratos nas relações laborais e também por um comércio mais livre. Na verdade, todo esse fardo social causado pelo sindicalismo só pode ser combatido abolindo a classe dominante e estabelecendo relações económicas baseadas na divisão social de trabalho. Esse processo envolve um mercado mais livre, o que implica a abolição de todas as formas de estatismo na forma de tributação, inflação, endividamento estatal e mercantilismo ou proteccionismo e qualquer intervencionismo na economia e na vida social. Havendo um mercado mais livre, não só é abolida a exploração social, como também é aumentada a produção e a lucratividade, o que redundará no aumento permanente do poder de compra dos salários e concomitantemente no bem-estar social. É preciso em suma inverter a base epistemológica sobre a qual repousa o sindicalismo moderno e retornar à sua forma original, isto é, a de um conflito entre a classe estatal dominante e a classe trabalhadora explorada. Significa isso dizer que não existe qualquer relação de exploração entre os trabalhadores e os capitalistas que os empregam.
De facto, muitos dos teóricos que endossaram o surgimento do movimento sindical aperceberam-se ao longo do tempo do erro que estavam cometendo e retornaram à forma original da abordagem. Um desses teóricos é Thomas Hodgskin, que passou a defender a “doutrina da harmonia-de-interesse do livre mercado” como a mais adequada nas relações laborais. Como Rothbard aponta, “Ele não via mais os sindicatos como um remédio, muito menos como uma panacéia. Cada vez mais, ele via que o único caminho para reconciliar o trabalhismo e o laissez-faire era pressionar pela revogação de toda intervenção governamental, na verdade, de toda lei positiva que não é simplesmente uma reafirmação da lei natural e dos direitos naturais.”[2]
Então, um sindicato livre deve lutar por uma sociedade sem conflitos, consubstanciada num governo das coisas em substituição do governo dos homens.
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Notas
[1] Murray Rothbard, História do Pensamento Econômico: Uma Perspectiva Austríaca (Editora Konkin, 1ª edição), p.564.
[2] Ibid., p.590.