Vivíamos ainda no município de Chicomba quando, certo dia, o meu pai decidiu deslocar-se ao município da Matala, a fim de ir comprar peixe fresco para revenda. A família estava toda ansiosa porque o peixe era muito escasso em face do contexto de guerra que vivíamos. O meu pai voltou no dia seguinte, mas sem peixe nenhum. Contou-nos que, quando regressava, foi abordado por militares das FAPLAS, que, sem qualquer justificação, se apossaram do peixe. Ficamos muito tristes, mas nada podíamos fazer, já que a apreensão tinha sido executada por uma autoridade instituída. Anos mais tarde, refugiamo-nos para o município da Matala, num contexto de muitas dificuldades. Vínhamos de um Município em que a principal actividade económica era a agricultura, pelo que o novo contexto exigia reinventarmo-nos. Havia os senhores, Chivinga e o Gama, que possuíam lojas onde os comerciantes ambulantes compravam mercadorias para revenda. Os senhores João Boy e Mendonça possuíam moagens, onde as pessoas acorriam para produzir a fuba de milho. Aos poucos as praças foram-se alastrando pela vila da Matala, com pessoas empreendendo para a auto-sobrevivência. O comércio era a principal actividade para sobrevivência e as praças eram os verdadeiros supermercados. Ainda assim, esses empreendedores enfrentavam muitos obstáculos. O comércio era uma actividade muito arriscada, porque havia emboscadas que muitas vezes resultavam no assalto das mercadorias ou mesmo na morte dos comerciantes, mas, apesar disso, havia um pequeno número de empreendedores audazes, graças aos quais foi possível a sobrevivência da população refugiada e não só. Nesse mesmo período, havia também a perseguição sistemática das autoridades aos comerciantes por conta do comércio que era proibido, resultando em saques de bens e prisões arbitrárias desses empreendedores.
Nos dias de hoje, é comum assistir a cenas de violência perpetrados por fiscais que retiram mercadorias aos comerciantes ambulantes, com a justificativa de venda em lugares proibidos. Com toda essa repreensão institucional, os comerciantes e outros empreendedores continuam firmes porque sabem que precisam disso para sobreviver. Portanto, as relações entre o Estado angolano e os empreendedores foi sempre muito conflituosa, aliás essa é a natureza de todos estados.
Foi ainda no final do ano de 2023 que a empresa Shoprit foi encerrada temporariamente por um Órgão de inspecção estatal da cidade do Lubango, província da Huíla, certamente resultando desse acto enormes prejuízos financeiros. No mesmo ano, o proprietário de um bar na cidade do Lubango, veio a público anunciar o encerramento definitivo, alegando que a Administração Municipal o estava a infernizar, preferindo então parar com a sua actividade económica definitivamente. Depois foi a vez da empresa Casa Azul igualmente fechar as suas portas. Não estando muito por dentro das razões de encerramento, não me restam dúvidas de que a razão esteja sempre ligada a alguma burocracia ou impedimento estatal.
Em 2014, um órgão inspectivo ou de fiscalização brasileira apreendeu o queijo de um pequeno produtor como sanção por falta de documentação e, sentindo-se injustiçado, João Machado – o produtor – não teve outro caminho senão suicidar-se. Igualmente no Brasil, um grupo de jovens que se dedica à lavagem de carros na rua, foi severamente multado em cerca de 4000 reais por não possuírem alvará de bombeiros. Nesse caso, como no primeiro, houve bastante repercussão social. No último caso, a lei acabou sendo revogada de tão absurda que era.
Todos esses episódios retratam bem o tipo de relacionamento do estado com os empreendedores. Mas não é só do estado que os empreendedores apanham. Existe também um forte sentimento de inveja e uma cultura de dinheiro fácil que opõe também os empreendedores e população no geral. Há uma cultura de roubo bem enraizado em que os empreendedores sãos as principais vítimas, para além da forte estigmatização social, considerando suas actividades como actos de misticismo ou feiticismo. Como no caso das autoridades e do comportamento dos cidadãos, há uma forte inibição dos actos de empreender, causando o abrandamento ou a restrição da divisão do trabalho e concomitantemente o empobrecimento gradual da sociedade.
Como dizia Mises,
o que é chamado de progresso econômico é o efeito conjunto das atividades dos três grupos progressistas ou classes – dos poupadores, os cientistas-inventores e os empresários, operando numa economia de mercado, na medida em que não é sabotada pelos esforços da maioria não progressistas, dos rotinistas e pelas políticas públicas por ela sustentada.[1]
No actual cenário, em que as pessoas no geral optaram em viver através de meios políticos, isto é, viver às custas dos outros, são raras as pessoas que empregam meios económicos para a sua sobrevivência, para além de que sofrem uma forte discriminação pública, por serem tidas como anacrónicas. Basta ver o desdém com que se olha para uma zungueira, um vendedor de um mercado informal ou um camponês.
Os verdadeiros empreendedores na nossa sociedade são uma ave rara e é a estes a quem devemos a nossa vida. São o nosso Atlas, que, na mitologia grega, representa um dos titãs que foi condenado por Zeus para sustentar o mundo nos ombros por toda a eternidade. Há um Atlas em cada zungueira, em cada agricultor, vendedor da praça, em todos os comerciantes e empresários que, com trabalho próprio, sem nunca dependerem do estado, conseguem os seus próprios meios de subsistência. A sociedade colapsava totalmente se cada um dos poucos Atlas que temos se revoltar, como bem narra Ayn Rand.
Então, os empresários, comerciantes, zungueiras, agricultores, empreendedores, em geral, são o Atlas da sociedade. São eles que asseguram e protegem a sociedade do caos social. Um governo sério deve proteger, acarinhar essa classe social, pois não há progresso social com a marginalização dessa classe.
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Notas
[1] Ludwig von Mises, Ação Humana – Um Tratado de Economia, Instituto Rothbard, São Paulo, 2010.