Capítulo 2 -Jeremy Bentham: O Utilitarista como o Grande Irmão

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2.1. Do laissez-faire ao estatismo

Jeremy Bentham (1748-1832) começou como um smithiano devotado, mas mais consistentemente apegado ao laissez-faire. Durante seu período de interesse relativamente breve na economia, ele se tornou mais e mais estatista. Seu estatismo intensificado era meramente um aspecto de sua maior — e altamente infeliz — contribuição à economia: seu utilitarismo filosófico consistente. Esta contribuição, que abre uma ampla comporta para o despotismo estatal, ainda permanece como legado de Bentham para a economia neoclássica contemporânea.

Bentham nasceu em Londres como filho de um advogado abastado, passou sua infância em Oxford, e foi aceito para a prática jurídica em 1772. Mas rapidamente ficou claro que Bentham não estava interessado em uma carreira como advogado. Ao invés disso, ele se estabeleceu para viver com sua riqueza herdada e se tornar um filósofo recluso, teorista legal, e “idealizador” ou louco, eternamente se esforçando para fazer esquemas para a reforma legal e política que ele apresentava com entusiasmo para os grandes e poderosos.

O primeiro grande e duradouro interesse de Bentham foi no utilitarismo (que examinaremos adiante), e que ele iniciou com sua primeira obra publicada com a idade de 28 anos, o Fragment on Government (1776).

Pela maior parte de sua vida, Bentham operou como o Grande Homem[1], rabiscando caoticamente em manuscritos infinitos e prolixos elaborando seus projetos de reformas e códigos legais. A maior parte dos manuscritos permaneceu não publicada até muito depois de sua morte. O próspero Bentham viveu em uma casa grande cercada por lacaios e discípulos, que copiavam revisão após revisão de sua prosa ilegível para prepará-las para uma eventual publicação. Ele conversava com seus discípulos no mesmo jargão inventado com que ele temperava seus escritos. Conversador enérgico, Bentham não tolerava discordância vinda de seus aliados e discípulos; como seu jovem e precoce discípulo John Stuart Mill posteriormente lembrou com sutileza gentil, Bentham “falhou em enxergar luz vinda de outras mentes”. Por causa desta característica, Bentham estava cercado não por discípulos alertas e respeitáveis mas por aliados largamente incompreensivos que, nas palavras perceptivas do professor William Thomas, “olhavam para o seu trabalho com um certo ceticismo resignado como se suas falhas fossem o resultado de excentricidades para além do alcance do criticismo e de objeção”. Como continua Thomas:

“A ideia de que ele estava cercado por um bando de discípulos que tiravam de seu sistema uma busca pela crítica de cada aspecto da sociedade contemporânea, que eles mais tarde aplicariam a várias instituições com necessidade de reforma, é o produto da fábrica de mitos liberal posterior. Até onde eu sei, o círculo de Bentham é bastante diferente do de qualquer outro pensador político. Consistia não muito de homens que encontravam em seu trabalho uma explicação convincente do mundo social ao redor deles e se juntavam com ele para aprender mais de seus pensamentos, mas mais de homens surpreendidos em uma confusão cheia de expectativa pelo progresso de uma obra que eles gostariam de ajudar a completar, mas que permaneceu enlouquecedoramente elusiva e obscura.”[2]

O que Bentham precisava desesperadamente era de editores de sua obra que fossem empáticos e sinceros, mas seu relacionamento com seus seguidores impossibilitou que isto acontecesse. “Por esta razão”, acrescenta Thomas, “a massa continuamente acumulada de manuscritos permaneceu amplamente numa terra incognita, até mesmo para membros íntimos do nosso círculo”. Como resultado, por exemplo, uma obra tão central que se encontrava em manuscrito, Of Laws in General, surpreendentemente permaneceu sem edição, tampouco publicada, até os dias de hoje.

Se alguém fosse fazer esse papel, seria o seguidor excepcional de Bentham, James Mill, com quem lidamos mais adiante (Capítulo 3). De muitas formas, Mill tinha a capacidade e a personalidade para cumprir a tarefa, mas havia dois problemas fatais: primeiro, Mill se recusou a abandonar sua própria obra intelectual para se subordinar exclusivamente ao auxílio do Mestre. Como escreve Thomas, “Mais cedo ou mais tarde, todos os discípulos de Bentham encararam a escolha de absorção ou independência”. Apesar de ele ser um seguidor devotado do utilitarismo benthamista, a personalidade de Mill era tal que a absorção estava, para ele, fora de questão.

Segundo, o desleixado e volátil Bentham precisava desesperadamente de organização, e o vigoroso, sistemático, didático e intimidador James Mill era o homem para organizá-lo. Mas, como esperado, Bentham, o Grande Homem, não se deixava organizar por ninguém. O choque de personalidades era grande demais para que seu relacionamento fosse algo mais do que um companheirismo superficial, mesmo durante o discipulado de Mill, antes de Mill alcançar a independência econômica de seu rico patrono. Assim, em exasperação, Mill escreveu para um amigo próximo que também era amigo de Bentham sobre este: “A dor que ele parece sentir com o mero pensamento de ser chamado a dedicar sua atenção a uma questão, você não consegue conceber”. Ao mesmo tempo, Bentham, mesmo muito depois, confidenciou seu ressentimento odioso a Mill ao seu último discípulo, John Bowring: “ele nunca entrara em discussão comigo voluntariamente. Quando ele discordava de mim ele ficava quieto […] Ele espera subjugar todos por seu tom dominante — convencer a todos por sua positividade. Sua forma de falar é opressiva e autoritária.” Não há forma melhor de sumarizar o choque de personalidades entre eles.[3]

O primeiro trabalho publicado de Bentham, o Fragment on Government (1776), conseguiu para o jovem Bentham uma entreé para os principais círculos políticos, particularmente entre os amigos do Lorde Shelburne. Estes incluíam políticos Whig como o Lorde Camdem e William Pitt, o mais novo, e dois homens que rapidamente se tornaram amigos próximos de Bentham e seus primeiros discípulos, Étienne Dumont de Genebra e Sir Samuel Romilly. Dumont viria a se tornar o principal exportador da doutrina Benthamista para a Europa continental.

Enquanto a reforma utilitária política e legal continuou a ser seu principal interesse ao longo de sua vida, Bentham leu e absorveu o Riqueza das Nações entre o fim da década de 1770 e o começo da década de 1780, rapidamente se tornando um discípulo devoto. Apesar de Bentham não elogiar praticamente nenhum outro autor, ele habitualmente se referia a Adam Smith como “o pai da economia política”, um “grande mestre”, e um “escritor de gênio consumado”. No começo da década de 1780, o irmão de Bentham, Samuel, um engenheiro abastado, foi encorajado pela Imperatriz Catarina, a Grande, a organizar diversos projetos industriais. Samuel convidou Jeremy para ficar com ele na Rússia, coisa que ele fez do meio da década de 1780 até o fim de 1787, com uma visão de apresentar um “código [legal] que abarca tudo” para capacitar aquela déspota a governar seu Reino mais eficientemente.

Bentham caracteristicamente nunca completou o código para Catarina, mas, enquanto na Rússia, ele descobriu – falsamente, como descobrimos depois – que William Pitt, agora o primeiro-ministro, estava se preparando para incitar uma redução na taxa máxima legal de juros de 5 para 4%. Agitado, Bentham escreveu e rapidamente publicou, em 1787, sua primeira obra, e a única bem conhecida, sobre economia: o cintilante e extremamente crítico Defense of Usury. Tentando trazer mais consistência ao laissez-faire smithiano, Bentham argumenta contra todas as leis de usura. Ele baseou sua visão rigidamente no conceito de liberdade de contrato, declarando que “nenhum homem maduro e de mente sã, agindo livremente, e de olhos abertos, deve ser impedido […] de fazer uma tal barganha, no caminho para obter dinheiro, que ele considere apropriada”. A pressuposição, em qualquer situação, é a liberdade de contrato: “Você, que restringe contratos; você, que impõe restrições na liberdade do homem, é você […] que deve justificar suas ações.” Ademais, como pode a “usura” ser um crime quando é uma troca por consentimento mútuo do credor e do devedor? “A usura”, Bentham conclui, “se é uma ofensa, é uma ofensa cometida com consentimento, isto é, com o consentimento da parte supostamente prejudicada, [e, portanto,] não pode merecer um lugar no catálogo de ofensas, a não ser que o consentimento seja obtido de maneira injusta ou sem liberdade: no primeiro caso, coincide com fraude; no segundo, com extorsão.”

Em seu apêndice ao Defense of Usury, Bentham reafirma e refina a defesa de Turgot e Smith da poupança. A poupança resulta em um acúmulo de capital: “Quem guarda dinheiro, como é a frase, agrega proporcionalmente à massa geral de capital […] O mundo pode aumentar seu capital somente de uma forma: a saber, pela parcimônia.” Esta ideia leva ao princípio de que “o capital limita a troca”, que a extenção da troca ou produção é limitada pela quantidade de capital que foi acumulado. Resumidamente: “as trocas de cada nação são limitadas pela quantidade de capital.”

A implicação laissez-faire, como Bentham viu, é que a ação ou gasto governamental não pode aumentar a quantidade total de capital na sociedade; só pode desviar o capital do livre mercado para usos menos produtivos. Como resultado, “nenhuma regulação e nenhum esforço, qualquer que seja, seja da parte dos súditos ou dos governantes, pode aumentar a quantidade de riqueza produzida durante um dado período para uma quantidade além do que os poderes produtivos ou a quantidade de capital em mãos […] são capazes de produzir”.

O Defense of Usury teve um grande impacto na Bretanha e em outros lugares. O Dr. Thomas Reid, o distinto filósofo de “senso comum” escocês que sucedeu Adam Smith na cadeira de filosofia moral em Glasgow, endossou fortemente o livro. O grande Conde de Mirabeau, a força líder antes dos primeiros estágios da revolução francesa, fez com que o livro fosse traduzido para o francês. E nos Estados Unidos, o tratado passou por diversas edições, e inspirou vários estados a revogar suas leis contra a usura.

No curso do Defense, há indicações de análise valiosa. O empréstimo é definido como “trocar dinheiro presente por dinheiro futuro”, e outras insinuações da preferência temporal ou da espera como uma chave para a poupança incluem frases tais como a de que aquele que poupa tem “a resolução a sacrificar o presente pelo futuro”. Bentham também insinua que parte dos juros cobrados incluem uma compensação pelo risco, uma espécie de acréscimo de seguro pelo risco de perda que o credor corre.

Durante a década de 1780, Bentham também estava escrevendo seu “Essay on Reward”, publicado somente meio século depois como Rationale of Reward. Nele, Bentham escreveu entusiasmadamente sobre a “Competição como busca por recompensas”, e louvou as “vantagens resultantes da mais ilimitada liberdade de competição”. Era sobre este princípio de livre competição e oposição aos monopólios governamentais que “o pai da economia política” havia, nas palavras excessivamente entusiasmadas de Bentham, “criado uma nova ciência”.

Em sua próxima obra econômica, o não publicado “Manual of Political Economy” (1795), Bentham continuou o tema laissez-faire de “Não existe mais troca do que capital”. O governo, ele enfatizou, só consegue desviar fundos de investimentos do setor privado; não consegue aumentar o nível total do investimento. “O que quer que seja dado a um ramo qualquer, é igualmente retirado do resto […] Qualquer estadista que pensa em aumentar a soma da troca através da regulação, é a criança cujo olho é maior que a barriga.” Pelo fim deste mesmo trabalho, no entanto, uma nuvem não maior do que a mão de um homem[4] apareceu, e eventualmente tomou controle da análise econômica de Bentham. Bentham começou seu rápido declínio em direção ao ralo inflacionista. Em uma espécie de apêndice à obra, ele afirma que o papel-moeda governamental pode aumentar o capital se os recursos não forem “completamente empregados”. Não há análise, como, é claro, nunca houve no cânone inflacionista, de por que estes recursos estavam “sem emprego” em primeiro lugar, i.e., porque seus proprietários os privaram de uso. A resposta deve ser: por que o dono do recurso demandava um preço ou salário excessivamente alto: a inflação é portanto uma forma de enganar os proprietários de recursos para que eles diminuam suas reais demandas.

Não demorou muito para que Jeremy Bentham descesse ao pantano pegajoso de Adam Smith e sair do que seria a lei de Say de volta ao mercantilismo e ao inflacionismo. Pouco tempo depois, em uma não publicada “Proposal for the Circulation of a [New] Species of Paper Currency” (1796), Bentham com alegria casou seu espírito “idealizador” e construtivista com seu recém-descoberto inflacionismo. Ao invés de títulos flutuantes e pagamento de juros sobre eles, o governo, ele propôs, deveria simplesmente monopolizar toda a emissão de notas de papel no reino.

O governo poderia então emitir as notas, de preferência que não carreguem juros, ad libitum, e guardar os juros para si mesmo.

Bentham dificilmente estava em seu melhor quando respondeu à questão de qual limite poderia haver para esta emissão governamental do papel. O limite, ele respondeu, obviamente seria “a quantidade de papel-moeda no país”. O editor moderno de Bentham adequadamente escarnece este disparate: “É como dizer que “o céu é o limite” quando não sabemos o quão alto o céu pode ser.”[5]

Em seus escritos posteriores sobre o assunto, Bentham procurou por algum limite para a emissão de papel, mas sem sucesso. Mas seu compromisso com um caminho amplamente inflacionista se aprofundou posteriormente. Em seu não terminado “Circulating Annuities” (1800), ele desenvolveu mais seu esquema a favor da circulação de papéis governamentais, e louvou a utilidade de manutenção da inflação nos tempos de guerra. De fato, Bentham faz um ataque completo às ideias de Turgot, Smith e Say e de fato declara que o emprego do trabalho é diretamente proporcional à quantidade de dinheiro: “Adição nenhuma jamais é feita à quantidade de trabalho em qualquer lugar, mas apenas por uma adição feita à quantidade de dinheiro naquele lugar […] Neste ponto de vista, então, o dinheiro, parece, é a causa, e a causa sine qua non, do trabalho e da riqueza geral.” A quantidade de dinheiro é tudo; como na doutrina smithiana! De fato, Bentham foi adiante no Circulating Annuities, escarnecendo seu alegado mentor por denunciar a preocupação mercantilista com a acumulação estatal de ouro e prata e com uma balança “favorável” de troca. Não há absurdo, declarou Bentham,

na exultação testemunhada pelos homens públicos em observar em que grau o que é chamado de balança comercial está em favor deste país […] Seduzido pelo orgulho da descoberta, Adam Smith, ao tirar suas palavras da boca, tentou ridicularizar com uma base doentia a preferência dada ao ouro e à prata.

Depois de, mais uma vez, clamar pela eliminação do papel bancário em benefício de um monopólio governamental da emissão de papel (no fragmentário “Paper Mischief Exposed”, 1801), Bentham alcançou o ápice do inflacionismo em seu “The True Alarm” (1801). Em sua obra não publicada, Bentham não somente continuou o tema do emprego total, mas também resmungou sobre os efeitos ditos horríveis da acumulação, do dinheiro guardado do consumo que foi acumulado ao invés de investido. Neste caso, desastre: uma queda nos preços, lucros e produção. Em nenhum lugar Bentham reconhece que o acúmulo e uma queda geral nos preços também significa uma queda nos custos, e nenhuma redução necessária no investimento ou produção. De fato, Bentham trabalhou sobre a falácia de Mandeville sobre os efeitos benéficos e unicamente energizantes do gasto vultosos. Da forma mercantilista e proto-keynesiana, a poupança é acúmulo maligno enquanto o consumo volumoso anima a produção. Como pode o capital ser mantido, quem dirá aumentado, sem poupança, não é explicado neste modelo bizarro.

James Mill e David Ricardo foram considerados benthamistas leais, e isto eles eram na filosofia utilitária e em uma crença na democracia política. Na economia, no entanto, a história era diferente, e Mill e Ricardo, seguros como rochas na lei de Say e na análise de Turgot e Smith, foram firmes em desencorajar com sucesso a publicação do “The True Alarm”. Ricardo zombou de quase toda a economia benthamista posterior e, no caso do dinheiro e da produção, fez as questões apropriadas: “Por que deveria um mero aumento no dinheiro ter qualquer outro efeito além do de diminuir seu valor? Como causaria qualquer aumento na produção de mercadorias […] Dinheiro não pode invocar bens […] mas bens podem criar dinheiro.” O tema central de Bentham […] “de que dinheiro é a causa das riquezas” – este, Ricardo rejeitou firme e claramente.

Em seu penúltimo trabalho relevante sobre economia, Jeremy Bentham retornou a posição passada. Ele havia estrelado a parte econômica de sua carreira com um ataque duro às leis de usura; terminou-a ao defender controle máximo de preços sobre o pão. Por quê? Porque a massa do público favorece o pão barato (com certeza!), e então haveria um padrão “racional” e “determinado” para o preço bom e moral do pão, um padrão que aparentemente o livre contrato e o livre mercado não podem definir. O que seria um tal padrão? Mostrando que para Bentham o utilitarismo ad hoc e análise de custo-benefício haviam tirado completamente qualquer economia sã de sua tutela, ele respondeu que haveria de ser empírico e ad hoc. Lançando lógica econômica ao vento, Bentham sustentou que as autoridades deveriam fixar um preço máximo “moderado”, que pesaria os custos e benefícios, as vantagens e desvantagens, de cada preço possível. E Bentham assegurou os seus leitores de sua moderação: ele “não intencionava que [sua proposta] fosse um chicote ou escorpião para a punição dos criadores ou vendedores de grãos”. Mas este seria o resultado inevitável.

O empirismo ad hoc estava agora desenfreado em Bentham. Admitindo que todas as tentativas anteriores para estabelecer controle máximo dos preços foram desastrosas, como qualquer outro institucionalista ou historicista posterior, Bentham negou qualquer relevância, já que as circunstâncias de cada tempo e lugar particular são necessariamente diferentes. Resumidamente, Bentham negou a economia inteira – isto é, negou a possibilidade de leis serem abstraídas de circunstâncias particulares e se aplicarem a todas as trocas ou ações em todos os lugares.

Argumentando contra os oponentes do controle de preços, Bentham frequentemente usou um raciocínio que era tortuoso e mesmo absurdo. Por exemplo, à acusação de que o controle máximo de preços levaria à tentativa de consumo excedendo a oferta (um dos maiores problemas com o controle de preços), Bentham insistiu que isto não poderia acontecer na Bretanha, onde a Poor Law assegurava pagamento de bem-estar aos pobres com um aumento no preço do pão. A opinião de que, uma hora ou outra, a curva da demanda seria vertical e não cairia é em qualquer século um selo de ignorância econômica, e Bentham agora passou no teste. Por séculos, escritores e teóricos souberam que a demanda aumenta conforme o preço cai, e Bentham agora estava escrevendo como se a economia nunca tivesse existido – e nunca pudesse existir.

Já que a consistência era o reino da desprezada lógica dedutiva, Bentham negou que sua oposição às leis da usura houvesse qualquer relação com sua defesa do controle de preços do pão. Mas enquanto ele ainda sustentava que sua análise inicial estava correta, ele agora oferecia uma revisão crucial: ele não havia percebido que uma vantagem notável de uma lei sobre a usura é que o governo pode então pegar emprestado de modo mais barato (às custas, é claro, da eliminação de mutuários privados marginais). E ele continuou a admitir que ele agora havia encontrado esta “vantagem” decisiva, de modo que ele colocaria as leis de usura na agenda governamental: “Eu devo esperar observar vantagens nesta questão que predominam sobre suas desvantagens em todos as outras.”  Resumidamente, Bentham, o alegado “individualista” e expoente do laissez-faire, acha que a vantagem ao governo supera todas as desvantagens privadas!

De novo sobre suas visões iniciais sobre a usura, Bentham negou que ele jamais houvesse acreditado em quaisquer tendências auto ajustadoras e equilibradoras do mercado, que as taxas de juros adequadamente ajustam a poupança e o investimento. Ele prosseguiu em um revelador ataque contra o laissez-faire e os direitos naturais, para demonstrar de uma vez por todas a incompatibilidade entre o utilitarismo, por um lado, e o laissez-faire ou direitos de propriedade, por outro:

Eu não tenho, eu não tive, e nunca terei qualquer horror, sentimental ou anárquico, à mão do governo. Eu deixo para Adam Smith, e os defensores dos direitos do homem […] falar de invasões à liberdade natural, e dar qualquer argumento especial contra esta ou aquela lei, um argumento cujo efeito seria colocar um sinal negativo sobre todas as leis. A interferência do governo, tão frequentemente quanto nas minhas visões misturadas da questão, tem como resultado o mínimo de peso a mais para lado da vantagem, e é um evento que eu presencio com tanta satisfação quanto eu deveria [presenciar] sua tolerância, e com muito mais do que eu deveria [presenciar] sua negligência.

Pergunta-se por qual padrão místico o “científico” Bentham conseguiu medir as vantagens e desvantagens de cada lei particular.

Três anos depois, em 1804, Jeremy Bentham perdeu o interesse na economia, um fato ao qual nós devemos ser eternamente gratos. Só é infeliz que este decréscimo de zelo não ocorreu meia década antes. O caso de Jeremy Bentham, no entanto, deve ser instrutivo àquela tropa de economistas que tentam conciliar filosofia utilitária com economia de livre mercado.

Poderia se pensar que o mestre do utilitarismo teria contribuído com a análise de utilidade na economia, mas Bentham estranhamente provou que estava interessado somente nos campos “macro” do pensamento econômico. A única exceção veio no largamente infeliz True Alarm (1801), no qual Bentham não somente declarou que “todo o valor está fundado na utilidade”, mas também entrou em uma crítica persuasiva ao alegado “paradoxo do valor” de Adam Smith. A água, Bentham notou, pode ter e tem valor econômico, enquanto diamantes têm sim valor de uso como um fundamento de seu valor econômico. Continuando, Bentham aborda a refutação marginalista ao paradoxo do valor:

A razão pela qual não se pensa que a água tenha qualquer valor com a troca em vista é que ela é igualmente vazia de valor tendo em vista o uso. Se toda a quantidade [de água] requerida estiver disponível, o excedente não tem nenhum tipo de valor. Seria o mesmo no caso do vinho, do grão, e de tudo mais. A água, fornecida como é pela natureza sem qualquer esforço humano, é mais provável de ser encontrada em abundância, o que faz dela desnecessária; mas há muitas circunstâncias em que ela tem um valor de troca superior ao do vinho.

2.2 Utilitarismo pessoal

Como vimos, visões estritamente econômicas de Jeremy Bentham, especialmente quando ele deslizou de volta para o mercantilismo, não tiveram um impacto significativo no pensamento econômico, mesmo sobre seus próprios discípulos filosóficos tais como James Mill e Ricardo. Mas suas visões filosóficas, introduzidas na economia por estes mesmos discípulos, deixaram um impacto infeliz e permanente no pensamento econômico: elas proveram a economia com sua filosofia social subjacente e dominante. E esta dominância não seria menos poderosa por ser geralmente implícita e inexaminada.

O utilitarismo proveu à economia a habilidade de fazer um círculo quadrado: permitiu-na fazer pronunciamentos e tomar posições firmes sobre as políticas públicas, enquanto ainda pretendo ser pragmática, “científica”, e, portanto, “imparcial”. Conforme o século XIX procedeu e a economia começou a se tornar uma profissão separada, uma guilda com o seu próprio código e suas próprias práticas, tornou-se possuidora de um desejo incontrolável de imitar o sucesso e o prestígio das ciências físicas “rígidas”. Mas os “cientistas” deveriam ser objetivos, desinteressados, não enviesados em seus trabalhos científicos. Foi portanto assumido que a defesa de princípios morais ou de filosofia política por economistas significava, de alguma forma, a introdução do vírus do “viés”, “preconceito”, e uma atitude não-científica na disciplina da economia.

Esta atitude de imitação crua das ciências físicas ignorou o fato de que as pessoas e objetos inanimados são crucialmente diferentes: pedras ou átomos não têm valores nem fazem escolhas, enquanto pessoas inerentemente valorizam e escolhem. Ainda assim, seria perfeitamente possível que economistas confinassem a si mesmos a analisar as consequências de tais valores e escolhas, contanto que eles não tomassem um lado nas políticas públicas. Mas economistas se coçam para tomar tais posições; na verdade, o interesse nas políticas é geralmente a principal motivação para embarcar em um estudo da economia em primeiro lugar. E advogar por políticas – dizer que o governo deveria ou não deveria fazer A, B ou C – é ipso facto tomar uma posição valorativa e uma posição implicitamente ética. Não há jeito de contornar este fato, e o melhor que pode ser feito é fazer desta ética uma busca racional pela resposta de o que é melhor para o homem de acordo com sua natureza. Mas a busca da ciência “imparcial” bloqueou este caminho, e então economistas, ao adotar o utilitarismo, foram capazes de fingir ou enganarem a si mesmos para dizer que eles estavam sendo estritamente científicos, enquanto despejavam noções éticas duvidosas e não-analisadas na economia.

Desta forma, a economia acolheu o pior dos dois mundos, implicitamente se enterrando em falácias e vieses em nome da imparcialidade teimosa. A infecção benthamista da economia com o bacilo do utilitarismo nunca foi curada e permanece tão difundida e predominante como sempre.

O utilitarismo consiste em duas partes fundamentais: utilitarismo pessoal, e utilitarismo social, o último sendo construído sobre o primeiro. Ambos são falaciosos e perniciosos, mas o utilitarismo social, no qual estamos mais interessados aqui, adiciona muitas falácias, e seria insano mesmo se assumissemos o utilitarismo pessoal.

O utilitarismo pessoal, como apresentado por David Hume no meio do século XVIII, assume que cada indivíduo é governado somente pelo desejo de satisfazer suas emoções, suas “paixões”, e que estas emoções de felicidade ou infelicidade são dados primários inanalisáveis. A única função da razão humana é o seu uso como um meio, para mostrar a alguém como atingir seus objetivos. Não é função da razão estabelecer os próprios objetivos dos homens. A razão, para Hume e para utilitários posteriores, é somente serva, uma escrava das paixões. Não há lugar, então, para que a lei natural estabeleça qualquer ética para humanidade.

Mas o que, então, deve ser feito sobre o fato de que a maior parte das pessoas decidem sobre seus fins por princípios éticos, os quais não podem ser considerados redutíveis a uma emoção pessoal original? Ainda mais vergonhoso para o utilitarismo é o fato óbvio de que a emoção é frequentemente serva de tais princípios, e claramente não é um dado definitivo, mas, ao invés disso, é determinado pelo que acontece com tais princípios. Assim, alguém que adota fervorosamente uma certa filosofia ética ou política se sentirá feliz quando quer que esta filosofia tenha sucesso no mundo, e triste quando encontrar obstáculos. Emoções são então servas dos princípios, ao invés do contrário.

Apegado a tais anomalias, o utilitarismo, se orgulhando de ser anti-místico e científico, tem que ir contra os fatos e introduzir uma mistificação própria. Porque então tem que dizer que ou as pessoas só acham que adotaram princípios éticos governantes, e/ou que eles deveriam abandonar tais princípios e se ater somente a sentimentos não-analisados. Resumidamente, o utilitarismo tem que ou fugir frente aos fatos óbvios a qualquer um (uma metodologia que é certamente descaradamente não-científica) e/ou adotar uma visão ética não-analisada própria, em ataque a todas (as outras) visões éticas. Mas isso é místico, levado por valores, e refuta por si mesmo a própria doutrina antiética (ou melhor, de qualquer doutrina ética que não é escrava de paixões não-analisadas).

Em qualquer um dos casos, o utilitarismo refuta a si mesmo por violar seu próprio axioma de não ir além de emoções e avaliações dadas. Ademais, é uma experiência humana comum, mais uma vez, que desejos subjetivos não são absolutos, dados e imutáveis. Eles não são hermeticamente selados e blindados de persuasão, sejam eles racionais ou de outra ordem. A própria experiência e os argumentos de outros podem persuadir e persuadem as pessoas a mudar seus valores. Mas como poderia isto acontecer se todos os desejos e avaliações pessoais fossem puramente dados e portanto não sujeitos à alteração pela persuasão intersubjetiva de outros? Mas se esses desejos não são dados, e são mutáveis pela persuasão da argumentação moral, deve seguir-se então que, contrariamente às suposições do utilitarismo, princípios éticos supra-subjetivos que podem ser argumentados e que podem ter um impacto nos outros e em suas avaliações e objetivos existem sim.

Jeremy Bentham adicionou uma falácia posterior ao utilitarismo que cresceu e virou moda na Grã-Bretanha desde os dias de David Hume. Mais brutalmente, Bentham procurou reduzir todos os desejos e valores humanos do qualitativo para o quantitativo; todos os objetivos poderiam ser reduzidos à quantidade, e todos os valores aparentemente diferentes – e.g. alfinetes e poesia – poderiam ser reduzidos a meras diferenças de quantidade e grau. O impulso a reduzir a qualidade drasticamente como quantidade mais uma vez apelou para a paixão científica entre economistas. A quantidade é uniformemente o objeto de investigação nas ciências físicas, sólidas; então a preocupação pelos componentes qualitativos no estudo da ação humana não conota misticismo e uma atitude desleixada e não-científica? Mas, mais uma vez, os economistas esqueceram que a quantidade é precisamente o conceito adequado para lidar com pedras ou átomos; estas entidades não possuem consciência, não avaliam e não escolhem; portanto os seus movimentos podem e devem ser catalogados com precisão quantitativa. Mas seres humanos individuais, ao contrário, são conscientes, e adotam valores e agem sobre eles. As pessoas não são objetos sem motivação, sempre descrevendo um caminho quantitativo. As pessoas são qualitativas, isto é, respondem às diferenças qualitativas, e elas avaliam e escolhem sobre esta base. Reduzir a qualidade à quantidade, portanto, distorce gravemente a verdadeira natureza dos seres humanos e da ação humana, e ao distorcer a realidade, mostra-se o contrário do verdadeiramente científico.

A contribuição duvidosa de Jeremy Bentham à doutrina utilitária pessoal – além de ser seu maior propagador e popularizador conhecido – foi quantificá-la e cruelmente reduzi-la ainda mais. Tentando fazer uma doutrina ainda mais “científica”, Bentham tentou dar um padrão “científico” para emoções tais como felicidade e infelicidade: quantidades de prazer e dor. Todas as noções vagas de felicidade e desejo, para Bentham, podem ser reduzidas às quantidades de prazer e dor: prazer “bom”, dor “ruim”. O homem, portanto, simplesmente tenta maximizar o prazer e minimizar a dor. Neste caso, o indivíduo – e o cientista observando – pode se envolver em um “cálculo do prazer e da dor” replicável, que Bentham chamou de “o cálculo do prazer”[6] que pode ser usado para conseguir o resultado adequado no aconselhamento para ação ou não-ação em qualquer situação dada. Todo homem, portanto, pode engajar no que os economistas benthamitas de hoje em dia chamam de “análise de custo-benefício”; em qualquer situação, pode aferir os benefícios – unidades de prazer – pesá-los contra os custos – unidades de dor – e ver qual sobrepõe o outro.

Em uma discussão que o professor John Plamenatz chama de “a razão das paródias”, Bentham tenta dar “dimensões” objetivas ao prazer e à dor, de modo a estabelecer a rigidez científica de seu cálculo de prazer. Estas dimensões, afirma Bentham, são sete: intensidade, duração, certeza, proximidade, fecundidade, pureza, e extensão. Bentham afirma que, ao menos conceitualmente, todas estas qualidades podem ser mensuradas, e então multiplicadas juntas para chegar na quantidade de dor e prazer resultante de qualquer ação.

Simplesmente mostrar a teoria de Bentham das sete dimensões deve ser suficiente para demonstrar sua completa loucura. Estas emoções ou sensações são qualitativas e não quantitativas, e nenhuma destas “dimensões” pode ser multiplicada ou pesada em conjunto. Novamente, Bentham levantou uma infeliz analogia cientificista com objetos físicos. Um objeto tridimensional é um em que cada objeto é linear, e portanto em que todas estas unidades lineares podem ser multiplicadas umas pelas outras para chegar a unidades de volume. Na avaliação humana, mesmo com prazer e dor, não há unidade comum a cada uma de suas “dimensões”, e portanto não há forma de multiplicar as unidades. Como Professor Plamenatz firmemente pontua:

a verdade é que mesmo um Deus onisciente não poderia fazer tais cálculos, porque a própria noção deles é impossível. A intensidade de um prazer não pode ser mensurada contra sua duração, nem sua duração contra sua certeza ou incerteza, nem esta última propriedade contra a sua proximidade ou longinquidade.[7]

Plamenatz adiciona que é verdade, como Bentham afirma, que as pessoas frequentemente comparam caminhos de ação, e escolhem aqueles que acham mais desejáveis. Mas isto só significa que as pessoas escolhem entre alternativas, não que participam de cálculos quantitativos de unidades de prazer e dor.

Mas uma coisa pode ser dita sobre a doutrina grotesca de Bentham. Pelo menos Bentham tentou, não importa quão falaciosamente, basear sua análise de custo-benefício em um padrão objetivo de benefício e custo. Teoristas utilitários posteriores, junto com o corpo da economia, eventualmente abandonaram o cálculo de prazer e de dor. Mas ao fazê-lo, eles também desistiram de qualquer tentativa de prover qualquer padrão para basear custos e benefícios ad hoc em algum tipo de base inteligível. Desde então, o apelo ao custo e benefício, mesmo a nível pessoal, tem sido necessariamente vago, sem sustentação e arbitrário.

Ademais, John Wild eloquentemente contrasta a ética pessoal utilitária com a ética da lei natural:

A ética utilitária não faz distinção clara entre apetite cru ou interesse, e aquele desejo deliberado ou voluntário que é fundido com a razão prática. O valor, o prazer, ou satisfação é o objeto de qualquer interesse, não importa o quão incidental ou distorcido possa ser. Distinções qualitativas são simplesmente ignoradas, e o bem é concebido de uma forma puramente quantitativa como máximo de prazer ou satisfação [possível]. Razão não tem nada a ver com a extração de um apetite são. Um desejo não é mais legítimo do que outro. A razão é a escrava da paixão. Toda a sua função é exaurida no trabalho de esquemas pela maximização de tais interesses que calham de aparecer por probabilidade ou outras causas irracionais […]

Contra isso, a teoria da lei natural sustenta que há uma distinção clara entre apetites básicos e desejos deliberados e extraídos com a cooperação da razão prática. O bem não pode ser adequadamente concebido de forma puramente quantitativa. Interesses aleatórios que obstruem a completa realização de tendências comuns são condenados como antinaturais […] Quando a razão se torna escrava da paixão, a liberdade humana é perdida e a natureza humana é distorcida […]

[A] ética da lei natural separa claramente as necessidades e direitos essenciais dos direitos incidentais. O bem não é adequadamente entendido como uma mera maximização de propósitos qualitativamente indiferentes, mas uma maximização daquelas tendências que qualitativamente conformam-se à natureza do homem e que surgem através da deliberação racional e da escolha livre […] Há um padrão universal estável, sustentado sobre algo mais firme do que as areias movediças do apetite, ao qual um apelo pode ser feito mesmo das máximas concordâncias de uma sociedade corrupta. Este padrão é a lei da natureza que persiste contanto que o homem persista – que é, portanto, incorruptível e inalienável, e que justifica o direito à revolução contra uma ordem social corrupta e tirânica.”[8]

Finalmente, em adição aos problemas do cálculo de prazer e de dor, o utilitarismo pessoal aconselha que as ações sejam julgadas não por sua natureza mas por suas consequências. Mas, na análise não-benthamista, meramente de custo-benefício (em vez de análise “objetiva” de prazer e de dor), como pode alguém mensurar as consequências de qualquer ação? E por que é considerado mais fácil, quem dirá mais “científico”, julgar consequências do que julgar um ato em si mesmo por sua natureza? Ademais, é frequentemente bastante difícil descobrir quais serão as consequências de qualquer ação contemplada. Como devemos encontrar consequências secundárias, terciárias etc., isso sem falar das mais imediatas? Suspeitamos que Herbert Spencer, em sua crítica ao utilitarismo, estava correto: é frequentemente mais fácil saber o que está certo do que saber o que é conveniente.[9]

2.3 Utilitarismo social

Ao estender o utilitarismo do pessoal para o social, Bentham e seus seguidores incorporaram todas as falácias do primeiro, e adicionaram mais ainda. Se cada homem tentar maximizar o prazer (e minimizar a dor), então toda a regra ética social, para os benthamitas, é de buscar sempre “a maior felicidade do maior número”, em um cálculo social de felicidade em que cada homem conta por um, nem mais nem menos.

A primeira questão é a questão poderosa da auto-refutação: se cada homem é necessariamente governado pela regra de maximizar o prazer, então por que estão estes filósofos utilitários fazendo algo bastante diferente, isto é, buscar um princípio social abstrato (“a maior felicidade do maior número”)?[10] E por que o princípio moral abstrato deles – porque ele é o que é – é legítimo, enquanto todos os outros, tal como os direitos naturais, são bruscamente dispensados como sem significado? Que justificativa há para a grandíssima fórmula da felicidade? Não há qualquer resposta; é simplesmente assumido como axiomático, acima de qualquer questionamento.

Em adição à natureza auto-refutativa dos utilitaristas tendendo a um princípio moral abstrato primordial – e não-analisado –, o princípio em si mesmo é, no melhor dos casos, duvidoso. O que é tão bom sobre o “maior número”? Suponha que a vasta maioria das pessoas em uma sociedade odeiam e insultam os ruivos, e desejam muito matá-los. Suponha ainda que há somente alguns poucos ruivos existentes em uma dada época, de modo que sua perda não deixaria a marca de uma queda de nível na produção geral nas rendas dos não-ruivos restantes. Devemos então dizer que é “bom”, depois de fazer nosso cálculo de felicidade social, que a vasta maioria execute animadamente os ruivos, e assim maximizem seu prazer ou sua felicidade? E se não, por que não? Como Felix Adler sarcasticamente coloca, os utilitários “proclamam a maior felicidade do maior número de pessoas como o fim social, mas falham em fazer inteligível a razão de a felicidade do maior número de pessoas ser convincente como um fim sobre aqueles que calham de pertencer ao número menor”.[11]

Ademais, a pressuposição igualitária de cada pessoa contando precisamente como um é dificilmente evidente em si mesma. Por que não algum sistema de pesos? Novamente, nós temos um objeto de fé não-examinado e não-científico no seio do utilitarismo.

Finalmente, enquanto o utilitarismo falsamente assume que ou moral ou ético seja um dado puramente subjetivo para cada indivíduo, ele, ao contrário, assume que estes desejos subjetivos podem ser adicionados, subtraídos, e pesados entre vários indivíduos na sociedade de modo a resultar no cálculo de uma felicidade social máxima. Mas como pode uma “utilidade social” ou “custo social” objetivo e calculável surgir de desejos puramente subjetivos, especialmente considerando que os desejos ou utilidades subjetivos são estritamente ordinais, e não podem ser comparados, adicionados ou subtraídos entre pessoas diferentes? A verdade, então, é o oposto das pressuposições centrais do utilitarismo. Os princípios morais, que o utilitarismo rejeita como mera emoção subjetiva, são intersubjetivos e podem ser usados para persuadir diversas pessoas; enquanto utilidades e custos são puramente subjetivos a cada indivíduo e portanto não podem ser comparados ou ponderados entre pessoas.

Talvez a razão pela qual Bentham furtivamente muda de um “prazer máximo” no utilitarismo pessoal para a “felicidade” no campo social seja que falar do “maior prazer do maior número”  seria muito abertamente cômico, já que a emoção ou sensação de prazer é bastante claramente não adicionável ou subtraível entre pessoas. Substituir pela mais vaga e ampla “felicidade” permitiu a Bentham saltar sobre tais problemas.[12]

O utilitarismo de Bentham o levou a uma “agenda” crescentemente numerosa para a intervenção governamental na economia. Algumas partes desta agenda nós já vimos acima. Outros itens incluem: um estado de bem-estar social; a taxação para uma redistribuição igualitária da riqueza ao menos parcial; conselhos governamentais, institutos e universidades; atividades públicas para curar o desemprego bem como para encorajar o investimento privado; seguro governamental; regulação de bancos e corretores; garantia de quantidade e qualidade de bens.

2.4 O grande irmão: o panóptico

A economia utilitária foi frequentemente – e, da minha perspectiva propriamente dita – acusada de tentar substituir a ética por “eficiência” em advogar pelo desenvolvimento das políticas públicas. “Eficiência”, em contraste com a “ética”, soa insensível, durão e “científico”. Ainda assim, exaltar a “eficiência” só joga o problema ético para baixo do tapete. Em detrimento de quais interesses, às custas de quem, deve a eficiência social ser buscada? Em nome de uma ciência espúria, “a eficiência” frequentemente se torna uma máscara para a exploração, para a pilhagem de um grupo de pessoas pelo benefício de outro. Frequentemente, economistas utilitários têm sido acusados de estarem dispostos a aconselhar a “sociedade” sobre como construir os “campos de concentração” mais eficientes. Aqueles que defendem que esta acusação é um reductio ad absurdum injusto deveriam contemplar a vida e o pensamento do príncipe dos filósofos utilitários, Jeremy Bentham. Em um sentido profundo, Bentham foi um reductio ad absurdum ambulante do benthamismo, uma lição viva sobre os resultados de sua própria doutrina.

Foi em 1768, com a idade de 20 anos, que Jeremy Bentham, voltando para a sua alma mater, Oxford, para uma formatura de ex-aluno, que encontrou por acaso uma cópia do Essay on Government de Joseph Priestley, e esbarrou na frase que mudou e dominou sua vida daí em diante: “a maior felicidade do maior número de pessoas”. Mas, como Gertrude Himmelfarb pontua em seus ensaios cintilantes e devastadores sobre Bentham, de todas as suas numerosas maquinações e brincadeiras em busca deste objetivo ilusório, a mais próxima do coração de Jeremy era seu plano pelo panóptico. Ao visitar seu irmão Samuel na Rússia, na década de 1780, Bentham descobriu que seu irmão havia desenhado um panóptico como um trabalho de oficina, e Bentham imediatamente entendeu a ideia do panóptico como o lugar ideal para uma prisão, uma escola, uma fábrica – de fato, para toda a vida social. “Panóptico”, em grego, significa “que tudo vê”, e o nome era altamente adequado para o objeto em vista. Outro sinônimo benthamista para o panóptico era “a Casa de Inspeção”. A ideia era maximizar a supervisão de prisioneiros, alunos, indigentes, empregados por um inspetor que tudo vê, que estaria sentado em uma torre no centro de uma construção em forma de teia de aranha circular, capaz de espiar todas as celas na periferia. Por espelhos e outros dispositivos, cada um na teia de aranha nunca poderia saber de onde um inspetor estaria olhando em qualquer dado momento. Assim, o panóptico atingiria o objetivo de uma sociedade 100% inspecionada e supervisionada sem os meios; já que todos poderiam estar sob inspeção a qualquer momento sem saber disso.

Os apologistas de Bentham reduziram esse esquema meramente ao de um “reformatório”, mas Bentham tentou deixar claro que todas as instituições sociais seriam englobadas pelo panóptico; que deveria servir como um modelo para “casas de indústria, casas de trabalho, abrigos para os pobres, fábricas manuais, hospícios, leprosários, hospitais e escolas”. Um ateu e dificilmente próximo de citações bíblicas, Bentham ainda assim se tornou rapsódico sobre a ideia social de um panóptico, citando dos Salmos: “Tu sabes o meu assentar e o meu levantar; de longe entendes o meu pensamento […]”

Como a Professora Himmelfarb aptamente coloca:

Bentham não acreditava em Deus, mas acreditava nas qualidades apoteotizadas em Deus. O Panóptico era uma realização do ideal divino; espionando as maneiras do transgressor por meios de um esquema arquitetural engenhoso, tornando a noite no dia com luz artificial e refletores, mantendo os homens captivos por um sistema intricado de inspeção.[13]

O objetivo de Bentham era aproximar, ou simular, a “perfeição ideal” da completa e contínua inspeção de todos. Por causa do “olho invisível” do inspetor, cada preso iria conceber a si mesmos em um estado de total e de contínua inspeção, atingindo assim a “aparente onipresença do inspetor”.

Consistente com o utilitarismo, o arranjo social foi decidido sob o déspota social, que age “cientificamente” em nome da maior felicidade de todos. Com esse nome, sua regra maximiza a “eficiência”. Assim, no projeto original de Bentham, todo preso seria mantido em confinamento solitário, visto que isso maximizaria o seu estar “seguro e quieto”, sem chance de multidões indisciplinadas ou de planejamentos de fuga.

Ao argumentar por seu panóptico, Bentham em um ponto reconhece as dúvidas e reservas das pessoas que parecem querer inspeção máxima de suas crianças ou outras acusações. Ele reconhece uma possível acusação de que seu inspetor seria excessivamente despótico, ou até mesmo que o encarceramento e o confinamento solitário de todos poderia ser “produtor de uma imbecilidade”, de modo que um homem antes livre não seria, em sentido próprio, totalmente humano: “E se o resultado desse artifício sofisticadamente forjado não pudesse construir um conjunto de máquinas feitas à semelhança do homem?” Para essa questão crítica, Jeremy Bentham deu uma resposta bruta, brusca e quintessencialmente brutal: quem se importa? Ele disse. A única questão pertinente era: “iria a felicidade ser mais provável de ser maximizada ou diminuída por essa disciplina?” Para nosso “cientista” da felicidade, não havia dúvidas da resposta: “chame-os de soldados, chame-os de monges, chame-os de máquinas; contanto que eles sejam uns felizes, não me importarei”.[14] Assim fala o prototípico humanitário com a guilhotina, ou ao menos com a senzala.

Bentham estava só ansiando por modificar o confinamento solitário de cada prisioneiro no panóptico apenas por causa dos grandes gastos de construir uma cela inteira para cada pessoa. A economia era uma preocupação eminente no funcionamento do panóptico — economia e produtividade. Bentham estava preocupado em maximizar o trabalho forçado dos prisioneiros. No final das contas, “A indústria é uma benção; porque pintá-la como uma maldição?” Sete horas e meia por dia suficientes para o sono, e uma hora e meia para refeições, pois, no final das contas, ele admoestou, “que não se esqueça, momentos de refeições são momentos de descanso: alimentação é recreação.” Não há razão porquê prisioneiros não deveriam ser forçados a trabalhar 14 ou até 15 horas por dia, seis dias por semana. De fato, Bentham escreveu para um amigo que ele tem tido “medo” de revelar muitas de suas propostas, “por medo de ser espancado”. Ele tinha em mente que os prisioneiros trabalhassem não menos de “proveitosas dezesseis horas e meia” por dia, vestindo-os sem meias, camisas ou chapéus, e os alimentando exclusivamente de batatas, as quais naquele tempo eram tidas até mesmo pelos cidadãos mais pobres como servindo apenas como lavagem para animais. A roupa de cama era para ser a mais barata possível, com sacos sendo usados em vez de lençóis e redes no lugar de camas.

A preocupação principal de Bentham com a economia e com a produtividade é entendível por meio de um elemento crucial para seu plano panóptico — um elemento frequentemente negligenciado por historiadores posteriores. Pois o Grande Inspetor era para ser ninguém mais ninguém menos que o próprio Bentham. As prisões do reino, e presumivelmente escolas e fábricas, eram para ser contratadas de Bentham, que seria o contratador, inspetor e aquele que lucraria com o esquema. Não há dúvidas, então, que Bentham tinha tamanha confiança suprema na habilidade do inspetor de maximizar sua própria felicidade junto da felicidade do “maior número” de prisioneiros do panóptico ao mesmo tempo. O ganho de longo prazo de Bentham, senão a “maior felicidade” dos prisioneiros, era também para ser assegurada por provisões de longo prazo que manteriam prisioneiros “livres” na escravidão quase permanente do inspetor. No plano final de Bentham para seu panóptico, nenhum prisioneiro seria solto a não ser que ele se alistasse no exército ou na marinha; ou tivesse um título de £50 posto por ele por um “chefe de família responsável”. Deve-se perceber que £50 era uma baita soma naquela época, quando o trabalhador comum sem habilidade recebia um salário por volta de 10 xelins por semana — ou por volta de um salário de dois anos. O título era para ser renovado anualmente, e qualquer falha em renovar seria sujeita ao prisioneiro ser reingressado no panóptico, “embora devesse ser vitalício.” Por que qualquer chefe de família responsável estaria interessado em colocar um título de £50 para um ex-prisioneiro? Para Bentham, a resposta era clara: apenas se os prisioneiros estivessem querendo contratar seu trabalho para aquele chefe de família, com o entendimento de que o chefe de família teria o mesmo poder sobre o trabalhador como “aquele do pai sobre seu filho, ou de um mestre sobre seu aprendiz”. Visto que esse título gigantesco tinha de ser renovado a todo ano, o ex-prisioneiro era imaginado por Bentham como um escravo perpétuo para o chefe de família. Se não houvesse título, o prisioneiro teria de ser deportado para um “estabelecimento subsidiário”, também regido segundo os princípios do panóptico. E quem melhor para dirigir tais estabelecimentos senão o principal contratante da prisão, i.e., o próprio Bentham? De fato, todas as condições do panóptico foram designadas para induzir os prisioneiros ou outros prisioneiros a serem escravizados pelo contratante (Bentham) praticamente pela vida inteira.

Em vista da principal preocupação de Bentham com o panóptico, e de sua explícita identificação de si mesmo como o contratante, precisamos relembrar do que Himmelfarb aponta como sendo:

a estranha, quase intencional desatenção dos biógrafos e historiadores para a mais marcante característica do plano é a causa decisiva de sua rejeição. Para eles, Bentham era um filantropo que sacrificou anos de sua vida e a maior parte de sua fortuna para a causa exemplar da reforma penal e que era inexplicavelmente, como um biógrafo colocara, “não era para ser permitida a beneficiar seu país.” A maioria dos livros sobre Bentham e até mesmo algumas das mais respeitáveis histórias de reforma penal não mencionam tanto o sistema de contrato em conexão com o Panóptico, muito menos identificam Bentham como o contratante proposto.[15]

Finalmente, o Panóptico de Bentham era suposto a estar intimamente conectado com uma máquina de processamento de madeira que seu irmão Samuel inventou na Rússia por volta do mesmo tempo do projeto de Panóptico. Que melhor uso para milhares, talvez muitos milhares de prisioneiros do que estarem ocupados em trabalho mal pago processando enormes quantias de madeira? A máquina de processamento de madeira de Samuel se provou como sendo muito custosa para ser construída e impulsionada por uma engrenagem a vapor; então por que não, nos próprios termos de Bentham, “o trabalho humano ser extraído de uma classe de pessoa, sob cuja parte nem destreza nem boa vontade eram para ser reconhecidas […] agora substituídas pela engrenagem a vapor […]?

Que Bentham não visou confinar o panóptico para a classe de prisioneiros é mostrado particularmente por seu esquema de albergue panóptico. Escrito originalmente em 1797 e re-emitido em 1812, o Pauper Management Improved de Bentham imaginou uma sociedade por ações, como a Companhia das Índias Orientais, contratadas pelo governo para operar 250 “casas industriais” cada uma para armazenar 2000 pobres sujeitos a autoridade “absoluta” de um contratante-inspetor-governador, em uma construção e sofrendo sob um regime muito similar à prisão do panóptico.

Quem iria constituir a classe de pobres vivendo sob regime de trabalho escravo do albergue do panóptico? Para Bentham, para a companhia — da qual ele, é claro, seria a cabeça — seriam designados “poderes coercitivos” para pegar qualquer um “que não tenha meios de subsistência visíveis ou propriedades atribuíveis, nem meios de subsistência honestos e suficientes”. Nessa definição bastante elástica, o cidadão médio seria legalmente encorajado a ajudar e favorecer os poderes coercitivos da empresa do asilo, apreendendo qualquer pessoa que ele considerasse com meios de subsistência insuficientes e mandando-o para o asilo panóptico.

A escala imaginada por Bentham da rede de albergue do panóptico não era outra coisa senão grandiosa. As casas eram para confinar não apenas 500.000 pobres mas também seus filhos, que eram para continuar ligados à companhia, então mesmo se seus pais fossem dispensados ainda eram mantidos enquanto aprendizes até o início de seus 20 anos, mesmo se casados. Esses aprendizes estariam confinados em 250 casas adicionais de panóptico, trazendo o número total de prisioneiros nas casas de indústria a não menos de um milhão. Se considerarmos que a população total da Inglaterra naquela época era de apenas nove milhões, isso significa que Bentham previa o confinamento ao trabalho escravo, regimentado e explorado por ele mesmo, de pelo menos 11% da população do país. De fato, às vezes Bentham imaginava que seus panópticos encarcerariam até três quintos da população britânica.

Jeremy Bentham concebeu seu panóptico em 1786, aos 38 anos; cinco anos depois, ele publicou o esquema e lutou muito por ele por mais duas décadas, também insistindo em vão que a França e a Índia adotassem o esquema. O Parlamento finalmente rejeitou o plano em 1811. Pelo resto de sua longa vida, Bentham lamentou a derrota. Perto do fim de sua vida, aos 83 anos, Bentham escreveu uma história do caso, paranoicamente convencido de que o rei George III havia sabotado o plano por uma vingança pessoal decorrente da oposição de Bentham, durante a década de 1780, à guerra projetada do rei contra Rússia. (O título do livro é “History of the War Between Jeremy Bentham and George III, por Um dos Beligerantes”). Bentham lamentou, “imagine como ele me odiou […] E para ele, todos os pobres no país, bem como todos os prisioneiros no país, poderiam ter estado em minhas mãos”.[16] De fato uma tragédia!

Jeremy Bentham começou na vida como um Tory, um típico crente no “despotismo esclarecido” do século XVIII. Ele precisava dos déspotas esclarecidos, seja Catarina, a Grande, da Rússia, ou George III, para implementar suas reformas e caprichosos esquemas para “a maior felicidade do maior número”. Mas a falha em pôr o panóptico em prática soou a ele como sons de monarquia absoluta. Como ele escreveu, “Eu […] nunca suspeitei que as pessoas no poder fossem contra a reforma. Eu supus que eles apenas queriam conhecer o que era bom para incorporá-lo.” Desiludido, Bentham permitiu a si mesmo ser convertido, parcialmente por seu grande discípulo James Mill, à democracia radical, e para a panóplia do que veio a ser chamado de radicalismo filosófico. Como Himmelfarb resume o novo radicalismo, sua inovação “foi fazer da maior felicidade do maior número dependente do maior poder do maior número” o maior poder a ser alojado em uma “legislação omnicompetente”.[17] E se, como Himmelfarb coloca, a “maior felicidade do maior número” pode requerer “a maior miséria dos poucos”, então que assim seja.

Pouco parece um exagero quando Douglas Long compara a perspectiva social de Bentham com aquela do  totalitarista “científico”, B.F. Skinner. Bentham escreveu perto do fim de sua vida que as palavras “liberdade” e “liberal” estavam entre “as mais perniciosas” na língua inglesa, porque elas obscurecem os genuínos problemas, que são “felicidade” e “segurança”. Para Bentham, o estado é o berço necessário da lei, e é dever de todo cidadão individual obedecer a essa lei. O que o público precisa e quer não é liberdade, mas sim “segurança”, para a qual o poder do estado soberano precisa ser insubordinado e infinito. (E quem irá guardar o cidadão de seu soberano?) Para Bentham, como Long coloca:

em virtude de sua própria natureza a ideia de liberdade, mais que qualquer outro conceito, punha uma ameaça contínua a completude e estabilidade que Bentham via em sua “ciência da natureza humana”. A qualidade indeterminada e em aberto da visão libertária do homem era alienígena para Bentham. Ele visou em verdade a perfeição da física social neo Newtoniana[18]

É certamente apto, senão grandiloquente, que Bentham viu a ele mesmo como “O Newton do mundo moral”.

Os radicais filosóficos, apesar de sua proclamada devoção ao laissez-faire, adotaram não apenas o credo democrático tardio de Bentham, mas também sua devoção ao panóptico. John Stuart Mill, até mesmo em sua versão mais anti benthamista no curso de sua eternamente oscilante carreira, nunca criticou o panóptico. Mais fortemente, o brilhante “Lenin” de Bentham, James Mill, apesar de seu anseio em enterrar as visões econômicas estatistas de Bentham, admirou o panóptico como uma extravagância do próprio Mestre. Em um artigo sobre “Prisões e Disciplina das Prisões”, escrito para a Encyclopedia Britannica em 1822 ou 1823, Mill elevou o panóptico aos céus, como “perfeitamente exposto e provado” sobre o grande princípio da utilidade. Todo aspecto do Panóptico recebeu os elogios de Mill: a arquitetura, as redes em vez de camas, a inspeção que via tudo, o sistema de trabalho, o sistema de contrato, a escravidão perpétua dos “prisioneiros libertos”. O elogio generoso de Mill foi tanto privado quanto público, pois em uma carta ao editor da Encyclopedia, Mill insistiu que o panóptico “parece-me se aproximar da perfeição”.

 

 

____________________________

Notas

[1]           Nota do Tradutor: O Grande Homem aqui faz referência à Teoria do Grande Homem.

[2]          William E.C. Thomas, The Philosophic Radicals: Nine Studies in Theory and Practice 1817–1841 (Oxford: The Clarendon Press, 1979), p. 25.

[3]          Veja, ibid., pp. 35–6.

[4]           Nota do Tradutor: Referência bíblica, o trecho em questão é referência a I Reis 18:44.

[5]          Werner Stark, “Introduction”, em Stark (ed.), Jeremy Bentham’s Economic Writings (Londres: George Allen & Unwin, 1951), II, 18–19.

[6]          Nota do Tradutor: Trata-se do cálculo felicífico, também conhecido como cálculo hedonista. Mas, para melhor compreensão geral, traduziu-se o termo como cálculo de prazer, acreditando não ter criado com isso perda significativa de conteúdo para aqueles que já estão familiarizados com Bentham e acreditando estarmos facilitando o caminho para aqueles que tem seu primeiro contato com o autor apenas neste momento.

[7]          John Plamenatz, The English Utilitarians (2nd ed., Oxford: Basil Blackwell, 1958), pp. 73–4.

[8]          John Wild, Plato’s Modern Enemies and the Theory of Natural Law (Chicago: University of Chicago Press, 1953), pp. 69–70.

[9]          Herbert Spencer, Social Statics (Nova York: Robert Schalkenbach Foundation, 1970), pp. 3ff.

[10]        Como Plamenatz aponta, Bentham e seus seguidores afirmam “que nenhum homem pode desejar qualquer prazer exceto o seu”, e ainda, paradoxalmente, “ambos insistem que a maior felicidade, não importa de quem, é o único critério de moralidade”. Plamenatz, op. cit. nota 4, pág. 18. E o professor Veatch aponta que “os utilitaristas sempre tiveram alguma dificuldade em mostrar por que alguém tem a obrigação de pensar nos outros. Se alguém começa baseando sua ética em princípios diretamente hedonistas, afirmando que o prazer é a única coisa próxima de algum valor na vida e recomendando que o agente moral simplesmente faça o que lhe agrada, é evidentemente difícil fazer a transição de tal ponto de partida para a afirmação adicional de que esse mesmo agente moral deve se preocupar não apenas com seu próprio prazer, mas igualmente com o prazer dos outros”. Henry B. Veatch, Rational Man: A Modern Interpretation of Aristotelian Ethics (Bloomington, Indiana: Indiana University Press, 1962), pp. 182–3.

[11]        Felix Adler, The Relation of Ethics to Social Science’, em H.J. Rogers, (ed.), Congress of Arts and Science (Boston: Houghton Mifflin, 1906), VII, p. 673. Peter Geach também aponta que “e se, mesmo em termos utilitários, mais felicidade social pode ser obtida seguindo os desejos do número menor?”  Veja Peter Geach, The Virtues (Cambridge: Cambridge University Press, 1977), pp. 91ff.

[12]        Existem muitas outras falhas profundas no utilitarismo. Por um lado, mesmo supondo que a felicidade pode ser somada ou subtraída entre as pessoas, por que não poderia ser obtida mais felicidade social total seguindo os desejos do número menor? E o que então? Veja Geach, op. cit., nota 8. Além disso, a suposição utilitarista de completa indiferença moral entre utilidades ou preferências subjetivas muitas vezes se mostrará contra-intuitiva. Quantas pessoas, por exemplo (a maioria?) sustentarão teimosamente com os utilitaristas que o desejo de alguém de ver uma pessoa inocente ferida deve contar tão plenamente no cálculo social quanto outras preferências menos prejudiciais? Cf. Murray N. Rothbard, The Ethics of Liberty (Atlantic Highlands, NJ: Humanities Press, 1982), p. 213.

[13]        Gertrude Himmelfarb, Victorian Minds (1970, Gloucester, Mass.: Peter Smith, 1975), p. 35.

[14]          Ibid., p. 38.

[15]          Ibid., pp. 58–9.

[16]        Ibid., p. 71.

[17]        Ibid., p. 76.

[18]        Douglas C. Long, Bentham on Liberty (Toronto: University of Toronto Press, 1977), p. 164. Como Long escreveu: Bentham “ampliou sua visão das funções atribuíveis a um legislador até que elas […] parecessem incluir todas as formas imagináveis de controle social sobre o universo das ações humanas”.  Ibid., p. 214.

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