CAPÍTULO 7- AS ORDENS PROFISSIONAIS E O POLICIAMENTO DO CONHECIMENTO

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As ordens profissionais são um fenómeno muito comum nas sociedades modernas, em cuja vida política exercerem muita influência. Essas instituições funcionam como uma extensão do sistema educativo, uma espécie de dois anos a mais de estágio ou pós-graduação necessários para o exercício de uma profissão. Possuem poderes de certificar e autorizar o exercício de uma profissão para a qual, a prior, uma pessoa já se tenha qualificado. Elas chegam a ser, no fundo, mais poderosas que as próprias universidades, já que possuem o direito de anular temporariamente a certificação concedida por essas. É uma coisa enigmática o facto de que uma pessoa se forma em medicina, por exemplo, e não pode exercer essa profissão porque precisa de uma outra certificação acrescida, emitida por uma instituição não escolar.

Como dissemos, as ordens profissionais impactam, de diversas formas, a vida das pessoas de uma forma geral. De facto, muitos questionamentos surgem quando analisamos o fenómeno das ordens profissionais: De onde emana o poder destas instituições? Porque é que elas existem tão poderosas? O que realmente visam essas instituições?

Bem, em primeiro lugar, ao contrário da ideia de que essas instituições servem para defender, da melhor forma, os interesses dos consumidores, através do fornecimento dos melhores serviços, o que é verdade é que elas representam uma guilda monopolista do exercício de uma profissão. Elas proíbem o exercício da profissão a pessoas diplomadas ou não diplomadas independentemente da sua qualificação.

É importante recordar que as pessoas aprendem as profissões de diversas formas, podendo ser por meio das escolas convencionais, através da leitura própria ou por meio das empresas. Ao proibirem o exercício das profissões, as ordens profissionais não só criam monopólio profissional, como também exercem algum controlo social, policiando o conhecimento na sociedade. Neste sentido, pode-se dizer que há duas motivações essenciais com as ordens profissionais. A primeira é de ordem económica e visa evitar a concorrência por meio da proibição do exercício da profissão entre profissionais diplomados ou não, embora a sua intenção primordial seja o impedimento dos não diplomados em escolas convencionais. Efectivando-se esse impedimento, as ordens criam barreiras de entrada que dificultam e impedem a entrada de novos profissionais em seus mercados e, desse modo, diminuem artificialmente o nível de competição e concomitantemente os preços dos serviços aumentam, enquanto a qualidade dos serviços baixa, pois, o mecanismo fecha as portas para mais inovação entre os prestadores desses serviços. Nesse caso, o impedimento do exercício da profissão gera a situação de poucos profissionais disponíveis para atender a uma demanda maior, fazendo com que os preços da profissão subam e a qualidade baixe, enquanto esse peso social é repassado aos consumidores. Quer isso dizer que quem paga com a regulamentação é o consumidor, na forma de preços altos e baixa qualidade, o que contraria a falaciosa ideia tão propalada de as ordens protegerem os consumidores.

Ocorre também que essa proibição do exercício da profissão afecta igualmente os consumidores, que agora não mais podem decidir sobre quem contratar ou, até mesmo, eles próprios executarem tarefas mais simples que eles seriam capazes de realizar. A restrição das ordens profissionais tem o efeito de, também, deliberadamente, impedirem o acesso ao mercado de trabalho aos profissionais e empresas nas ocupações licenciadas, relegando-os ao desemprego. Mais uma vez, com o monopólio da profissão estabelecido, a lógica económica de servir os consumidores inverte-se e assim a economia passa a ser um instrumento ao serviço dos produtores, das corporações ou cartéis. Não fosse essa inversão, a profissão estaria aberta às regras do mercado, onde o conhecimento seria o indicador principal para contratar, abrindo caminho para a concorrência entre os profissionais diplomados e não só. Quando assim ocorre, abrem-se as portas para a inovação e produtividade. Sem a protecção conferida pelas ordens profissionais, os empreendedores precisam de competir para melhor servir o cliente e melhorar a qualidade do serviço e baixar o seu custo.

Já a segunda motivação é de ordem política, e cujo objectivo é o controlo e o policiamento do conhecimento; ou seja, visa tornar os cidadãos obedientes ao poder político instituído. E essa é a motivação principal da institucionalização das ordens profissionais. Como sabemos, o modelo político mundial actual tem como sua divisa principal a subjugação do indivíduo ao colectivo. Portanto, operacionaliza-se por meio do colectivismo, restringindo a liberdade individual. Assim, para o funcionamento de tal sistema, necessário se torna controlar as acções dos indivíduos, coagindo-os dentro das acções colectivas. Não fosse esse controlo por meio da coação, não seria possível o modelo político actual funcionar, o que geraria caos e concomitantemente a abolição de tal sistema. Portanto, o controlo social coercivo é a base sobre a qual assenta o sistema político moderno. Sem esse controlo, o rei andaria “nu” e assim perderia toda autoridade e legitimidade. Percebe-se então que o sistema político actual é uma tramóia.

No seu artigo “O verdadeiro assalto do Banco Central”, Fernando Chiocca, narra sobre um assalto ocorrido no Banco Central em Fortaleza, no Brasil. Nesse assalto, ocorrido em 2005, o grupo de criminosos cavou um túnel de 77 metros até o cofre do Banco Central, levando consigo R$164 milhões. Apesar do sucesso policial em desvendar o assalto e condenar os implicados, Fernando Chiocca faz um questionamento bastante interessante. Para ele, a investigação policial foi superficial, ao não levar em consideração a justa titularidade da coisa roubada. Como ele coloca:

“A primeira coisa que faltou para a polícia foi apurar devidamente o objeto do roubo. O que foi roubado? A resposta deles foi “dinheiro”. Porém, aquelas 3 toneladas de notas de 50 reais não são dinheiro. Uma investigação da ciência económica poderia fornecer aos policiais a conclusão de que a moeda fiduciária emitida monopolisticamente pelo Banco Central e imposta coercivamente pela lei de curso forçado é dinheiro falso. O Banco Central realmente teve suas notas roubadas, mas se eu estivesse imprimindo dinheiro falso na minha garagem e fosse roubado, não seria função da polícia tentar recuperar minhas notas e sim me prender e acabar com minha produção de dinheiro falsificado. Mas neste caso do assalto ao Banco Central, a polícia ajudou o falsificador a recuperar parte de seu dinheiro falso e nada fez para dar fim a sua falsificação.”

Na verdade, aqui, a falta da aplicação da justiça não é só da polícia. Certamente, um esquema de assalto colossal como esse foi um evento que envolveu muitos profissionais de justiça, desde Procuradores, Juízes, Advogados, e outras entidades estatais que intervêm no processo de investigação criminal. E como vimos, assim como a polícia, nenhum desses intervenientes fez tal questionamento. Aqui ressalta a ideia de que, apesar da advocacia ser categorizada como profissão liberal, a sua cartelização limitou a sua acção e fez com que essa classe passasse a pautar a sua acção na simples obediência à legislação imposta pela classe política dominante, sem se importarem com a verdade dos factos. Não fosse o controlo imposto pela cartelização da actividade advocatícia, todo o esquema que envolve a falsificação monetária perpetrado pelo Banco Central brasileiro seria desvendado e o estado seria condenado à prisão perpétua. Com efeito, todos os advogados a nível mundial denunciariam tal esquema e o resultado seria a condenação do estado a escala mundial, o que implicaria o desaparecimento universal do Estado e a repressão de toda mentalidade estatista.

Para sermos mais claros, a falsificação monetária por parte dos Bancos Centrais ocorre graças ao mecanismo das reservas fraccionárias. Esse mecanismo fraudulento permite que os bancos se apossem do dinheiro confiado para guarda e o emprestem de forma exponencial aos diversos agentes.  Para além da inflação e da redistribuição da riqueza dos produtores para não produtores, as reservas fraccionárias permitem uma seria de efeitos nocivos para a sociedade. No sistema bancário livre, os bancos funcionam como fiadores da coisa depositada, com a promessa de pagamento de algum valor, no momento de levantamento da coisa depositada. Isso implicava que os bancos não deveriam usar a coisa depositada para outro fim, nem inventariar os depositos nos seus balanços patrimoniais. Significa isso que no mercado livre, as reservas bancárias são de 100%, o que impossibilita qualquer mecanismo de falsificação de dinheiro. Os bancos serviam apenas como guardiões do dinheiro e os fiadores tinham o direito de reaver o depósito sempre que quisessem. Qualquer iniciação da fraude seria imediatamente detectada e assim o banco perderia toda a sua reputação comercial. Implica isso dizer que o mecanismo de reservas fraccionárias não pode ser operacionalizado no mercado livre.

Assim, para o surgimento do mecanismo das reservas fraccionarias, foi preciso mais uma vez ser legitimado de forma fraudulenta. Para fugir do dinheiro sólido das reservas bancárias 100%, os banqueiros tiveram de convencer as autoridades de que os depósitos não são uma fidúcia, mas apenas uma dívida de boa-fé. A intenção dos banqueiros é que uma vez aceite esse esquema, eles terão então maior facilidade de fraudulentar.  Assim, a Inglaterra foi o primeiro paz a criar o sistema de reservas fraccionarias que só foram possíveis graças à intervenção fraudulenta dos tribunais daquele País. A partir da Inglaterra, essas decisões judiciais se espalharam para o mundo todo. Como Rothbard aponta,

“No primeiro caso importante, Carr v. Carr, em 1811, o juiz britânico, Sir William Grant, decidiu que uma vez que o dinheiro pago em um depósito bancário tinha sido pago não especificamente, não foi reservado em um saco fechado (ou seja, como um “depósito específico”) a transacção se tornou um empréstimo em vez de uma fidúcia. Cinco anos depois, no caso chave de Devaynes v. Noble, um dos advogados argumentou correctamente que “um banqueiro é antes um fiador dos fundos do cliente do que seu devedor, … porque o dinheiro em … [suas] mãos é mais um depósito do que uma dívida, e pode, portanto, ser imediatamente exigido e pego.”

Mas o mesmo juiz Grant insistiu novamente que “dinheiro pago ao banqueiro se torna imediatamente uma parte de seus ativos gerais; e ele é apenas um devedor da quantia.” No ápice do caso culminante Foley v. Hill and Others, decididos pela Câmara dos Lordes em 1848, Lord Cottenham, repetindo o raciocínio dos casos anteriores, faz uma colocação com uma lucidez estonteante: O dinheiro colocado na custódia de um banqueiro é, para todos os casos e propósitos, o dinheiro do banqueiro, para fazer o que quiser com o dinheiro; ele não é culpado de quebra de confiança alguma ao por isso em ação; ele não responde perante o dono se ele pôr o dinheiro em risco, se ele se envolver em uma especulação perigosa; ele não é obrigado a mantê-lo ou a tratá-lo como propriedade de seu dono; mas ele é, obviamente, responsável pela quantia, pois ele foi contratado.”[1]

A partir dessa fraude, nascia então o esquema monetário que permite ao estado e aos bancos imprimirem desordenadamente e assim aumentarem a massa monetária em circulação de forma desordenada. Como se viu, as reservas fraccionárias foram contestadas por advogados e público em geral, mas, por força do poder instituído, foi ainda assim possível impô-lo. Não fosse o poder de controlo exercido pelo estado sobre o exercício da advocacia, dificilmente uma fraude como essa teria forma de ser operacionalizada. Então, o estado percebe que, para sobreviver – e fazendo jus à sua natureza fraudulenta –, precisa sistematicamente de controlar a produção do conhecimento e toda a forma do exercício profissional, proibindo e expulsando das associações profissionais todo profissional que se posicione fora do conhecimento programado. Prova disso é o número cada vez maior de profissionais que têm sido cassadas as suas licenças profissionais ou que têm sido censurados em função dos seus posicionamentos.  É o caso do psicólogo Jordan Peterson que, por pouco, teria a sua cédula profissional cassada pela ordem dos psicólogos canadenses em virtude dos seus twitters. No caso, a ordem exigia que, para além da retratação pública, Jordan Peterson fosse reeducado, e esse programa correctivo envolvia encontros frequentes com um psicólogo custeado por si e, no fim, poder-se-ia emitir um relatório certificando progresso em matérias transmitidas.[2]

Esses e muitos outros casos mostram o poder que as ordens profissionais têm em proibir o exercício da profissão e controlar o conhecimento dos seus membros, tendo em conta o padrão estabelecido. E o poder das ordens profissionais não se limita apenas ao monopólio do exercício profissional e ao policiamento do conhecimento. As ordens profissionais são também organismos tributários que, mensalmente, cobram impostos (quotas) aos seus associados. Nesse quesito, elas chegam a ser financeiramente mais poderosas do que as unidades estatais orçamentadas. Uma unidade orçamental elabora um orçamento que é aprovado e depois executado tendo em conta a capacidade arrecadadora do próprio estado. Estando em execução, as unidades orçamentais são obrigadas de acordo com a lei, a prestação de contas ao Ministério das Finanças que por sua vez compila um relatório anual a ser apresentado à Assembleia Nacional. Aqui nota-se claramente que a realização da despesa está limitada à arrecadação da receita, para além de que, periodicamente, há uma prestação de contas para aqueles que contribuem para tais despesas.

O processo é totalmente diverso nas ordens. A princípio, não há qualquer ligação entre receitas e despesas entre ordens profissionais. Quer isso dizer que as receitas das ordens profissionais não estão consignadas a determinadas despesas, para além de que não existe um orçamento prévio a ser cumprido. Em regra, elas arrecadam mais do que gastam e não há uma prestação de contas efectiva aos seus associados. Isso faz com que essas associações tenham mais poderes, isto é, mais poder tributário do que instituições públicas directas. E fazendo jus a esse poder, para além de arbitrariedade no estabelecimento dos impostos a cobrar aos associados, muitos profissionais com licenças, têm sido proibidos de exercer a profissão por falta do pagamento de quotas. Em 2021, por exemplo, 88 médicos no Sul do país viram suas licenças suspensas por não pagarem quotas e, como consequência, muitas pessoas ficaram privadas de serviços médicos. No meio dessa confusão, muitos escândalos financeiros têm vindo à tona.

Segundo o Jornal Expansão, em 2022, uma sindicância foi realizada junto à Ordem dos Contabilistas e a mesma propunha a expulsão do presidente do Conselho Directivo, do vice-presidente e de um vogal, por usurpação de poderes e improbidade pública por haver indícios fortes de enriquecimento ilícito. A sindicância constatou que o presidente e o vice ganhavam mais de dois milhões de kwanzas por mês, cada. Sendo uma das maiores ordens de Angola, ela gere um orçamento anual superior a mil milhões de kwanzas, o que lhe coloca numa posição de unidades orçamentais, a dimensão do orçamento de uma Administração Municipal. Segundo ainda os dados do jornal Expansão, a organização conta com 13.650 associados, sendo que 368 milhões Kz vêm das quotas dos associados, 485 milhões são gerados pela formação inicial ou estágios e 78,9 milhões de kwanzas são arrecadados com a formação contínua. Só de quotas dos seus 13.650 inscritos, a ordem totaliza uma receita mensal fixa de 30,7 milhões de kwanzas, um valor que mede a grandeza do poder tributário da organização.

Esses exemplos mostram, de facto, a dimensão política e financeira dessas instituições. Elas operam tão poderosas graças ao poder concedido pelo estado. Portanto, o estado atribui monopólio e poder tributário a essas associações e, por sua vez, exerce controlo ou policiamento do conhecimento, permitindo-lhe legitimar as suas acções, que, pelo que sabemos, são baseadas na fraude.

 

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Notas

[1] Murray N. Rothbard, Pelo Fim do Banco Central, (Editora Konkin-Agosto de 2021).

[2] Jornal Gazeta do Povo, 2024.

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