Os estados pós-medievais adquiriam a maior parte de suas avidamente desejadas receitas por meio da tributação. Porém, além da espoliação direta de seus súditos, os estados sempre se sentiram atraídos pela ideia de poderem criar seu próprio dinheiro. Entretanto, antes da invenção do dinheiro de papel, a criação de dinheiro feita pelo estado era limitada a adulterações ocasionais do processo de cunhagem, atividade essa da qual ele há muito já havia adquirido o monopólio compulsório.
A adulteração das moedas era um processo feito todo de uma única vez, e não podia ser utilizado, como o estado gostaria, para criar dinheiro continuamente de modo a encher os cofres do estado com dinheiro a ser utilizado para pagar pela construção de palácios, pirâmides e outros bens de consumo para o aparato estatal e sua elite dominante.
O instrumento altamente inflacionário do dinheiro de papel foi primeiramente descoberto no mundo ocidental em Quebec, província francesa no Canadá, em 1685. Monsieur Meules, o governador intendente (agente do rei) de Quebec, apertado em busca de novos fundos — como todo governante —, decidiu aumentar sua receita dividindo algumas cartas de baralho em quatro partes, marcando cada uma delas com diferentes denominações da moeda francesa, e então utilizando-as para pagar salários e materiais. Esse dinheiro de cartas, que mais tarde passou a ser trocado por moeda real, rapidamente se transformou em tickets de papel reiteradamente emitidos.
A primeira forma mais familiar de dinheiro de papel governamental começou cinco anos depois, em 1690, na colônia britânica de Massachusetts. Massachusetts havia enviado soldados para uma de suas costumeiras expedições para pilhar a riqueza da próspera Quebec francesa, porém desta vez eles apanharam, perderam e voltaram sem nada. Como o pagamento da classe militar de Massachusetts sempre advinha da venda em leilão dos objetos que pilhavam dos franceses de Quebec, e como agora isso não mais era possível, a soldadesca ficou extremamente irritada.
O governo de Massachusetts, acossado por exigências de pagamentos salariais feitas por uma classe militar agora amotinada, não conseguiu arrumar empréstimos com comerciantes de Boston, que astutamente sabiam que o histórico de crédito do governo não era dos mais elevados. Finalmente, Massachusetts descobriu a conveniência de simplesmente emitir 7.000 libras em notas de papel, as quais supostamente seriam redimidas em espécie dali a alguns anos. Inevitavelmente, é claro, esses “alguns anos” começaram a se alongar indefinidamente no horizonte temporal, e o governo, deliciado com essa recém-descoberta forma de adquirir receitas de forma aparentemente sem custo, simplesmente entregou-se ao prazer de sair colocando papeis na impressora, e rapidamente emitiu mais 40.000 libras. Fatidicamente, o dinheiro de papel havia nascido.
Duas décadas depois, o governo francês, sob a influência de um fanático inflacionista, o teórico escocês John Law, também abriu as torneiras da inflação do papel-moeda na França. Já o governo inglês recorreu a um dispositivo mais sutil para realizar o mesmo objetivo: criou uma nova instituição na história — um banco central.
Para se entender a história da Inglaterra dos séculos XVII e XVIII, é preciso levar em consideração as guerras perpétuas em que o estado inglês continuamente se engajava. Guerras significavam gigantescas necessidades financeiras para a Coroa. Antes do advento do banco central e do dinheiro de papel, qualquer governo que não estivesse disposto a tributar seus súditos até a alma para poder financiar o custo total de suas guerras tinha de recorrer ao endividamento. Porém, se essa dívida pública continuasse subindo, e os impostos não fossem aumentados, inevitavelmente alguém teria de ceder, pois uma hora a dívida teria de ser paga.
Antes do século VXII, os empréstimos eram geralmente feitos por bancos, e “bancos” eram instituições para as quais capitalistas emprestavam fundos que eles haviam poupado. Não havia bancos com o intuito de receber depósitos para contas-correntes. Os comerciantes que quisessem um lugar seguro para guardar seu ouro depositavam-no na Casa da Moeda do Rei, localizada na Torre de Londres — uma instituição acostumada a guardar ouro. Esse hábito, entretanto, acabou se revelando extremamente custoso, pois o Rei Carlos I, altamente necessitado de dinheiro logo após a eclosão da guerra civil em 1638, simplesmente confiscou a enorme soma de 200.000 libras de ouro que estavam guardadas na Torre — e anunciou que isso era apenas um “empréstimo” dos depositantes. Compreensivelmente abalados por essa experiência, os comerciantes começaram a depositar seu ouro nos cofres de ourives privados, os quais também estavam acostumados ao armazenamento e custódia de metais preciosos. Tais ourives emitiam certificados de depósitos para esses metais. Rapidamente, esses certificados começaram a circular e a funcionar como cédulas de dinheiro — consequência de seus serviços de depósito bancário.
Em pouco tempo, o governo de Carlos II passou a necessitar de grandes quantias de dinheiro para as guerras inglesas contra os holandeses. Os impostos foram significativamente elevados, e a Coroa pegava empréstimos vultosos com os ourives. No final de 1671, o Rei Carlos II pediu aos banqueiros mais empréstimos para financiar uma nova frota. Ao receber a negativa dos ourives, o rei proclamou, no dia 5 de janeiro de 1672, uma “interrupção no Tesouro”, isto é, uma deliberada recusa em pagar quaisquer juros sobre o principal de toda a dívida pública pendente. Parte dessa dívida “interrompida” era dívida do governo para com fornecedores e pensionistas, mas a esmagadora maioria dela era para com os ludibriados ourives. Com efeito, do total de 1,21 milhões de libras da dívida interrompida, 1,17 milhões eram dívidas para com os ourives.
Cinco anos depois, em 1677, a Coroa relutantemente começou a pagar juros sobre a dívida interrompida. Porém, até o momento da expulsão e fuga de Jaime II para a França, em 1688, somente pouco mais de 6 anos de juros haviam sido pagos sobre uma dívida de 12 anos. Ademais, os juros foram pagos a uma taxa arbitrária de 6%, mesmo com o rei tendo originalmente prometido pagar juros a taxas que variavam de 8 a 10%.
Os ourives foram ainda mais intensamente prejudicados pelo novo governo de Guilherme e Maria II, levados ao poder pela Gloriosa Revolução de 1688. O novo regime simplesmente se recusou a pagar qualquer taxa de juros sobre o principal da dívida interrompida. Os infelizes credores levaram o caso aos tribunais, porém, embora os juízes tivessem concordado em princípio com o argumento dos credores, sua decisão foi invalidade pelo Lord Keeper [funcionário da Coroa encarregado de proteger o Grande Selo do Reino Unido], que candidamente argumentou que os problemas financeiros do governo devem ter prioridade sobre a justiça e os direitos de propriedade.
O episódio da “interrupção” da dívida teve seu desfecho quando a Câmara dos Comuns decretou, em 1701, que metade da dívida deveria simplesmente ser abolida — e que os juros sobre a outra metade deveriam começar a ser pagos no final de 1705, à incrível taxa de 3%. E essa taxa ínfima ainda viria a ser reduzida mais tarde, para 2,5%.
As consequências dessa declaração de insolvência da parte do rei foram as previsíveis: o crédito foi severamente prejudicado, e o desastre financeiro atingiu em cheio os ourives, cujos certificados de depósitos não mais eram aceitos pelo público; tampouco podiam os ourives devolver o ouro a seus depositantes. A maioria desses ourives credores do governo foi à falência na década de 1680, e vários outros terminaram suas vidas na cadeia, que era para onde iam os devedores, pois não devolveram o ouro aos seus donos originais, em decorrência do calote do governo. O incipiente sistema bancário de depósitos havia recebido um golpe devastador, um golpe que só seria superado com a criação de um banco central.
A interrupção do Tesouro, portanto, vinda somente duas décadas após o confisco do ouro na Torre de Londres, conseguiu destruir praticamente de uma só vez o sistema bancário de depósitos privados e o crédito do governo. Porém, intermináveis guerras contra a França estavam agora começando. De onde o governo tiraria dinheiro para financiá-las?[1]
A salvação veio na forma de um grupo de promotores, liderado por Scot William Paterson. Em 1693, a Câmara dos Comuns formou um comitê especial para estudar o problema de como levantar fundos para as guerras. Paterson aproximou-se desse comitê e propôs um extraordinário novo esquema. Em troca de uma série de importantes privilégios especiais concedidos a ele pelo estado, Paterson e seu grupo formariam o Banco da Inglaterra (Bank of England), o qual emitiria cédulas novas, a maioria das quais seria utilizada para financiar o déficit do governo. Em suma: como não havia um número suficiente de poupadores privados dispostos a financiar o déficit, Paterson e companhia estavam graciosamente dispostos a comprar títulos do governo, os quais seriam comprados com cédulas recém-criadas pelo Banco da Inglaterra, ganhando com isso uma série de privilégios especiais. Assim que o Parlamento devidamente autorizou a criação do Banco da Inglaterra em 1694, o próprio rei Guilherme e vários membros do Parlamento apressaram-se em se tornar acionistas dessa nova fonte de criação de dinheiro.
William Paterson incitou o governo inglês a conceder às cédulas do Banco da Inglaterra o status de moeda de curso forçado; mas isso já era ir longe demais, até mesmo para a Coroa Britânica. Porém, o Parlamento concedeu ao banco o privilégio de manter os depósitos de todos os fundos do governo.
Essa nova instituição, um banco central privilegiado pelo governo, rapidamente demonstrou seu poder inflacionário. O Banco da Inglaterra rapidamente emitiu a enorme soma de 760.000 libras, a maioria das quais foi utilizada para comprar títulos da dívida do governo. Essa emissão teve um imediato e substancial impacto inflacionário, e, em dois anos, o Banco da Inglaterra já se encontrava insolvente após uma corrida bancária — uma insolvência jubilosamente incitada por seus concorrentes, os ourives, que alegremente corriam para o Banco da Inglaterra exigir a restituição das cédulas que ele emitiu excessivamente por moedas metálicas.
Nesse ponto, o governo inglês tomou uma decisão fatal: em maio de 1696, ele simplesmente permitiu que o Banco da Inglaterra “suspendesse as restituições em espécie”. Ou seja, permitiu que o banco se recusasse indefinidamente a cumprir suas obrigações contratuais — restituir suas cédulas emitidas em ouro —, e, ao mesmo tempo, autorizou-o a continuar displicentemente em funcionamento, emitindo cédulas e obrigando seus devedores a lhe pagar as dívidas. O banco retomou as restituições em espécie dois anos mais tarde, mas tal ato criou um precedente para o sistema bancário britânico e americano dali em diante. Sempre que um banco inflacionasse demais a oferta monetária e isso o levasse a problemas financeiros, o governo prontamente entraria em cena e permitiria que ele suspendesse as restituições em espécie. Durante as últimas guerras com a França, no final do século XVIII e início do século XIX, o governo permitiu que o banco suspendesse as restituições durante duas décadas.
No mesmo ano, 1696, o Banco da Inglaterra passou por outro susto: o fantasma da concorrência. Um grupo financeiro formados por Tories [membros do Partido Conservador] tentou estabelecer um banco nacional voltado para empréstimos para o setor agrário, para competir com o banco central, então dominado pelos Whigs [partido rival de tendências progressistas]. A tentativa fracassou, mas o Banco da Inglaterra rapidamente agiu para induzir o Parlamento a aprovar uma lei, em 1697, proibindo a criação de novos bancos corporativos na Inglaterra. Qualquer novo banco que viesse a ser criado teria de ser de sociedade limitada ou de propriedade exclusiva, limitando assim severamente a amplitude da concorrência com o Banco da Inglaterra.
Ademais, qualquer falsificação das cédulas do Banco da Inglaterra agora podia ser punida com a morte. Em 1708, após a série de privilégios já concedida, o Parlamento criou outro privilégio crucial: agora era ilegal para qualquer banco corporativo que não fosse o Banco da Inglaterra, e para qualquer sociedade bancária com mais de seis pessoas, emitir suas cédulas, o que garantiu que apenas as cédulas do Banco da Inglaterra circulassem. Mais ainda: as sociedades anônimas bancárias e as parcerias de mais de seis pessoas também estavam proibidas de fazer qualquer tipo de empréstimos de curto prazo. O Banco da Inglaterra agora teria de competir apenas com bancos minúsculos.
Assim, ao final do século XVII, as nações da Europa Ocidental, particularmente a Inglaterra e a França, haviam descoberto uma nova e preciosa maneira de engrandecer o poder do estado: auferir receitas por meio da criação inflacionária de dinheiro de papel, seja por meio do governo ou, mais sutilmente, por meio de um privilegiado e monopolístico banco central.
Na Inglaterra, bancos privados que recebiam depósitos foram inspirados a proliferar (especialmente suas contas-correntes) sob esse manto de proteção, e o governo agora finalmente podia expandir a dívida pública para poder lutar suas infindáveis guerras. Durante a guerra francesa de 1702—13, por exemplo, o governo conseguiu financiar 31% de seu orçamento por meio de dívida pública.
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Nota
[1] Dos 66 anos que vão de 1688 a 1755, 34 foram totalmente gastos em guerras contra a França. Mais da metade. Guerras posteriores, como as de 1756—1763, 1777—1783 e 1794—1814, foram ainda mais espetaculares, de modo que, dos 126 anos compreendidos entre 1688 e 1814, nada menos que 67 foram gastos pela Inglaterra em guerras contra a “ameaça francesa”.
Esse artigo foi extraído do livro An Austrian Perspective on the History of Economic Thought, vol. 1,Economic Thought Before Adam Smith