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VIII – O Poder Divino dos Reis e das Maiorias

Se fosse verdade que a sociedade não fosse naturalmente organizada, se fosse verdade que as leis que governam seu movimento fossem constantemente modificadas ou refeitas, os legisladores necessariamente teriam que possuir uma autoridade imutável, sagrada. Sendo os continuadores da Providência na terra, eles teriam que ser considerados quase que iguais a Deus. Se fosse de outra forma, não seria impossível para eles completarem suas missões? Com efeito, não se pode intervir nas questões humanas, não se pode tentar direcioná-las e regulá-las, sem diariamente ofender uma multidão de interesses. A não ser que se creia que aqueles no poder têm um mandado de uma entidade superior, os interesses prejudicados resistirão.

Daí vem a ficção do direito divino.

Essa ficção foi certamente a melhor imaginável. Se você tem sucesso em persuadir uma multidão de que o próprio Deus escolheu certos homens ou certas classes para legislar sobre a sociedade e governá-la, ninguém vai sonhar em se revoltar contra os apontados pela Providência, e tudo que o governo fizer será aceito. Um governo baseado no direito divino é imperecível.

A única condição para isso é a de que se creia no direito divino.

Se assumirmos o pensamento de que os líderes das pessoas não recebem suas inspirações diretamente da Providência, que eles obedecem puramente a impulsos humanos, o prestígio que os cerca desaparecerá. Suas decisões soberanas terão resistência, assim como as pessoas resistem a qualquer criação humana cuja utilidade não foi claramente demonstrada.

Assim, é fascinante ver os cuidados que os teóricos do direito divino tomam para estabelecer a sobrehumanidade das classes em possessão do governo humano.

Ouçamos, por exemplo, o sr. Joseph de Maistre:

“O homem não faz soberanos. No máximo, ele pode servir como um instrumento para destronar um soberano e entregar seu Estado para outro soberano, ele próprio já um príncipe. Além disso, nunca existiu uma família soberana de origem plebeia. Se esse fenômeno surgisse, ele marcaria uma nova época na terra.

“(…) É escrito: Sou eu quem faz soberanos. Este não é apenas uma frase religiosa, uma metáfora de um pregador; é a verdade literal pura e simples. É a uma lei do mundo político. Deus faz reis, ao pé da letra. Ele prepara as classes reais, as cria no centro de uma nuvem a qual esconde suas origens. Finalmente elas surgem, coroadas com glória e honra, elas tomam seus lugares.3

De acordo com esse sistema, o qual incorpora a vontade da Providência em certos homens e a qual investe esses escolhidos, esses ungidos com uma autoridade quasi-divina, os sujeitos evidentemente não tendo direito algum. Eles precisam se submeter, sem questionar, aos decretos da autoridade soberana, como se fossem os decretos da própria Providência.

Segundo Plutarco, o corpo é o instrumento da alma e a alma é o instrumento de Deus. Segundo a escola do direito divino, Deus seleciona certas almas e as usa como instrumentos para governar o mundo.

Se os homens tivessem fé nessa teoria, certamente nada poderia perturbar um governo baseado no direito divino.

Infelizmente, eles perderam completamente a fé.

Por quê?

Porque um belo dia eles decidiram questionar e raciocinar, e ao questionar, ao raciocinar, eles descobriram que seus governos não os governavam melhor que eles, simples mortais sem contato com a Providência, poderiam fazê-lo.

Foi o livre exame que pôs em descrédito a ficção do direito divino, ao ponto em que os sujeitos dos monarcas ou das aristocracias baseadas no direito divino só os obedecem enquanto acharem que é de seus próprios interesses obedecê-los.

E a ficção comunista teve melhor sorte?

De acordo com a teoria comunista, da qual Rousseau é o alto-pastor, a autoridade não vem de cima, mas de baixo.

O governo não olha mais para a Providência para sua autoridade, ele olha para a autoridade unida, para a nação única, indivisível e soberana.

Isso é que os comunistas, os partidários da soberania popular, assumem. Eles assumem que a razão humana tem o poder de descobrir as melhores leis e a organização que mais perfeitamente serve à sociedade; e que, na prática, essas leis se revelam a partir da conclusão de um livre debate de opiniões conflitantes. Se não houver unanimidade, se ainda houver dissenso após o debate, a maioria está certa, pois ela é composta de um número maior de indivíduos racionais. (Esses indivíduos, é claro, são supostamente iguais, caso contrário toda a estrutura entra em colapso.) Consequentemente, eles insistem que as decisões da maioria se tornem a lei e que a minoria seja obrigada a se submeter a ela, mesmo que isso seja contrário às suas convicções mais profundas e que fira seus interesses mais preciosos.

Essa é a teoria, mas, na prática, a autoridade da decisão da maioria realmente tem esse caráter irresistível, absoluto, que se assume? É sempre, em toda instância, respeitada pela minoria? Poderia ela ser?

Exemplifiquemos.

Suponhamos que o socialismo tenha sucesso na sua propagação junto às classes trabalhadoras do interior como já tem entre as classes trabalhadoras das cidades; que ele consequentemente se torne a maioria no país e que, se beneficiando dessa situação, mande uma maioria socialista à Assembleia Legislativa e nomeie um presidente socialista. Suponha que essa maioria e que esse presidente, investidos de autoridade soberana, decretem a imposição de um imposto sobre os ricos de três bilhões, para organizar o trabalho dos pobres, como o sr. Proudhon demandou. É provável que a minoria se submetesse pacificamente a essa espoliação iníqua e absurda, embora legal, embora constitucional?

Não, sem nenhuma dúvida ela não hesitaria em negar à maioria sua autoridade e em defender sua propriedade.

Sob esse regime, como sob o precedente, somente se obedece quem possui a autoridade somente enquanto se pensa que é do próprio interesse obedecê-la.

Isso nos leva a afirmar que o fundamento moral da autoridade não é nem tão sólido nem tão amplo, sob um regime de monopólio ou de comunismo, como poderia ser sob um regime de liberdade.

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3 Du principe générateur des constitutions politiques, prefácio.

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