Definindo a liberdade

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1- Aborto

            Certa ocasião, na década de 1960, quando o aborto ainda era ilegal, enquanto visitava o centro cirúrgico como residente de G.O. (ginecologia e obstetrícia), eu presenciei o aborto de um feto pesando aproximadamente um quilo. Ele foi posto num cesto, gritando e lutando para respirar enquanto o pessoal médico fingia não notar. Logo, os choros cessaram. Essa dolorosa experiência me levou a pensar mais seriamente sobre este importante tema. 

No mesmo dia no Centro Obstétrico, estava ocorrendo um parto prematuro e o recém-nascido era só um pouco maior do que o que acabara de ser abortado. Mas nesta sala, todos faziam de tudo para salvar a vida do bebê. Minha conclusão naquele dia foi de que nós estávamos ultrapassando os limites da moralidade ao escolher e decidir quem deveria viver e quem deveria morrer. Aquelas eram vidas humanas. Não havia nenhuma base moral consistente para estimar o valor da vida sob aquelas circunstâncias.

 

Algumas pessoas acreditam que ser pró-escolha é estar do lado da liberdade. Eu nunca entendi como um ato de violência, matar um ser humano, ainda que pequeno e num local específico, possa ser apresentado como um valoroso direito. Referir-se unicamente ao custo para a mãe, de levar uma gravidez até o termo, corresponde a ignorar toda consideração de qualquer direito legal do nascituro. Acredito que a consequência moral de arrogantemente se aceitar o aborto, diminui o valor da vida com um todo.

 

Hoje em dia é amplamente aceito um direito constitucional de abortar um feto humano. Naturalmente, a constituição nada menciona sobre aborto, assassinato, homicídio culposo nem quaisquer outros atos de violência. Na constituição estão listados somente quatro crimes: falsificação, pirataria, traição e escravização. As legislações criminal e civil foram deliberadamente deixadas para os estados. É um grande desvio o tribunal federal declarar o aborto como um direito constitucional, passando por cima de todas as leis estaduais regulando o procedimento. No mínimo, o governo federal tem uma responsabilidade de proteger a vida — não de dar permissão para destruí-la. Se um estado viesse a legalizar o infanticídio, ele poderia ser acusado de não manter a forma republicana de governo que é requerida pela constituição.

 

Se nós, pelo bem da argumentação, ignorarmos os argumentos legais a favor ou contra o aborto e não tivermos nenhuma lei proibindo-o, ainda teríamos sérias decorrências sociais. Há ainda profundas questões morais, de anuência, e questões fundamentais relativas à origem da vida e aos direitos dos indivíduos. Há dois argumentos que se chocam: uns alegam que qualquer aborto depois da concepção deveria ser ilegal; outros defendem que a mãe tem o direito sobre seu corpo e ninguém deveria interferir com sua decisão. É espantoso para mim, que muitas pessoas do grupo pró-escolha com as quais conversei, raramente se interessam por escolha em outras circunstâncias. Quase toda a regulamentação federal visando nos proteger de nós mesmos (leis contra o fumo, banimento de narcóticos, cintos de segurança obrigatórios, por exemplo) é prontamente defendida pelos esquerdistas que advogam pela “escolha”. Naturalmente, para o grupo pró-escolha, a escolha preciosa que debatemos é limitada à mãe e não ao nascituro.

 

O fato é que o feto tem direitos legais — à herança, o direito de não ser ferido ou abortado pelo tratamento médico inábil, por violência ou acidentes. Ignorar esses direitos é algo arbitrário e relativiza os direitos, no caso do pequeno ser humano vivo. O único ponto que deveria ser debatido é o de natureza moral: se o feto tem ou não algum direto à vida. Cientificamente não se questiona que o feto é humano e está vivo; e se não for morto, ele amadurecerá num ser humano adulto. Simples assim. Por isso, para mim, o momento a partir do qual nós consideramos que o feto passa a ser “humano” após a concepção é arbitrário.

 

É interessante observar o desconforto dos mais fervorosos defensores do aborto, diante da pergunta se eles apoiam o direito da mãe de abortar no nono mês da gravidez. Eles definitivamente não apoiam tal ato, mas todos seus argumentos pró aborto no primeiro mês são igualmente aplicáveis à gravidez  mais tardia. Ainda se trata do corpo da mãe. Ainda a escolha é dela. De fato, ocorrendo mudanças de circunstâncias na vida da mãe, bem podem surgir fortes razões sociais incentivando-a para evitar o nascimento, e assumir suas obrigações, mesmo no terceiro trimestre. Este é um dilema para os da corrente pró-escolha, e eles devem ser desafiados a dizer onde a linha divisória deveria ser desenhada.

 

Outro aspecto deste debate precisa ser resolvido: se um médico de aborto, por qualquer motivo, conduzir um aborto de terceiro trimestre, recebe generosos honorários e isso é perfeitamente legal em alguns estados. No entanto, se uma adolescente apavorada, talvez nem mesmo sabendo que está grávida, dá à luz a um bebê e o mata imediatamente depois, neste caso a polícia cai em cima acusando-a de homicídio. A pergunta é: em quê é essencialmente diferente um bebê no minuto anterior ao parto e o mesmo bebê no minuto subsequente ao parto? Biologicamente e moralmente, em nada. Deveríamos também ter uma resposta para a triste pergunta sobre o que deveria ser feito com um recém-nascido que inadvertidamente sobrevivesse ao aborto.  Isto ocorre mais do que você poderia imaginar. Médicos têm sido acusados de assassinato em casos de mortes de bebês após o parto, mas quase nunca isso é justo. A questão real é: como pode o valor atribuído a uma criança humana ser tão relativo?

 

Nesta era do aborto, com quase um milhão deles realizados a cada ano nos Estados Unidos, a sociedade manda a mensagem de que valorizamos menos os pequenos e os fracos. A maior parte dos jovens opta pelo aborto por motivos econômicos: eles acham que não podem sustentar o bebê e deveriam esperar mais.[1] Por que é que considerações de ordem moral não suplantam esses temores? Por que essas mulheres deixam de considerar outras opções — como a adoção — mais seriamente? A sociedade ensinou a elas que um feto-bebê não tem direito à vida, portanto não tem valor real. E por que, para começar, tantas mulheres jovens se colocam sob risco ao terem que tomar decisões como essa? A disponibilidade do aborto, muito provavelmente, muda comportamentos e, na realidade, aumenta o número de casos de gravidez indesejada.

 

A diferença ou falta de diferença, entre um bebê no minuto posterior ao nascimento e no minuto anterior ao parto, precisa ser quantificada. Nem o congresso nem os tribunais são capazes desta tarefa. Esta é uma questão fundamental a ser determinada pela própria sociedade baseada nos valores morais adotados por ela.

 

Abortar raramente é uma solução no longo prazo: a mulher que aborta uma vez tem maior probabilidade de fazer outro aborto.[2] É apenas um paliativo mais simples do que mudar um estilo de comportamento pessoal já desenvolvido. Minha posição é que a problemática do aborto é uma questão mais social e moral do que de natureza legal. Nos anos 1960, quando eu fazia residência em G.O., os abortos eram feitos desafiando-se a lei. A sociedade havia mudado e a maioria concordou que as leis também deveriam ser mudadas. Em 1973, com Roe v. Wade, a Suprema Corte se alinhou às mudanças dos padrões morais.[3]

 

Portanto, se é para ter menos abortos, a sociedade deverá mudar novamente. A lei não será capaz de conseguir isso. No entanto, isso não significa que aos estados não seja permitido ter leis que lidem com a questão do aborto. Gravidezes muito iniciais e as vítimas de estupro podem ser tratadas com a pílula do dia seguinte – que nada mais é do que utilizar a pílula anticoncepcional de uma forma especial. Essas gravidezes muito iniciais não poderiam jamais ser patrulhadas, independentemente de qualquer coisa. Tais circunstâncias deveriam ser lidadas individualmente, de acordo com a própria escolha moral de cada um.

 

À medida que o governo falido assume mais do nosso sistema de saúde, será inevitável que ele racione por decreto o atendimento médico. Escolher e decidir quem deve viver e quem deve morrer pode soar repugnante do ponto de vista moral, mas é lá que se chega, em um mundo com meios escassos e decisões sobre como eles devem ser empregados tomadas com base em critérios políticos. Um governo federal vai permanecer muito envolvido com o aborto, direta ou indiretamente, pelo fato de financiá-lo.

 

Uma coisa que eu acredito é que o governo federal nunca deveria cobrar imposto de cidadãos da corrente pró-vida (contrários ao aborto), para pagar os abortos. A constante pressão dos defensores da pró-escolha, para que o aborto seja coberto pela saúde pública, deve ser listada entre as posturas mais estúpidas que já existiram, e inclusive sob o ponto de vista deles próprios.  Tudo o que conseguirão é mais motivação contrária a eles, tanto dentre aqueles da corrente pró-vida quanto os de sua própria corrente, contrários ao uso de impostos.

 

Uma sociedade que prontamente é permissiva em relação ao aborto, estimula ataques à liberdade individual. Se toda a vida já não é preciosa, como toda a liberdade poderá ser tratada como importante? Parece que se algumas vidas podem ser descartadas, nosso direito de escolher pessoalmente o que é melhor para nós fica mais difícil de ser defendido.  Eu me convenci de que resolver a questão do aborto é necessário para uma defesa saudável de uma sociedade livre.

 

A disponibilidade do aborto, e seu uso frequente, têm levado muitos jovens a mudarem seu comportamento. Sua aceitação geral e legalização não trouxeram influência favorável sobre a sociedade. Ao contrário, resultaram numa diminuição tanto do respeito pela vida como pela liberdade.

 

Estranho é que, mesmo considerando que minhas convicções morais são semelhantes às deles, vários grupos nacionais pró-vida têm sido hostis à minha posição quanto ao aborto. Mas eu também acredito na constituição, e é com base nela que entendo ser atribuição da instância estadual restringir a violência contra qualquer ser humano. Discordo da nacionalização do assunto e rejeito a decisão Roe v. Wade que legaliza o aborto em todos os 50 estados. A lei que eu propus teria limitado a jurisdição da Suprema Corte sobre o aborto. Uma lei deste tipo provavelmente teria permitido aos estados proibirem o aborto mediante pedido, assim como em todos os trimestres da gravidez.  Isso não fará parar todos os abortos. Apenas uma sociedade verdadeiramente moral poderá fazê-lo.

 

Os indivíduos pró-vida oponentes da minha abordagem são menos respeitadores da lei e da constituição. Em vez de entenderem que minha posição permite aos estados minimizarem ou banirem os abortos, eles alardeiam que minha posição apoia a legalização do aborto pelos estados. É apenas um contorcionismo da lógica. Exigir uma solução nacional e somente nacional, como pedida por alguns, dará ensejo exatamente ao processo que tornou a prática do aborto tão prevalente.  Por fim aos abortos nacionalmente legalizados por ordem da Suprema Corte não é nem uma resposta prática ao problema nem um argumento forte do ponto de vista constitucional.

Remover a jurisdição dos tribunais federais pode ser feito com a maioria dos votos do congresso e a assinatura do presidente. Isto é muito mais simples do que esperar pelo dia em que a Suprema Corte reforme a decisão Roe v. Wald, ou proponha uma emenda constitucional.  Meu palpite é que os ataques maldosos desses grupos são mais voltados a desacreditar por completo minha defesa da liberdade e da constituição do que à questão do aborto. Esses mesmos grupos têm muito pouco interesse em ser pró-vida quando se trata das guerras ilegais e não declaradas no Oriente Médio, ou de guerras preventivas (agressivas) por razões religiosas. Um paradoxo interessante!

 

Minha posição não se opõe a procurar certos juízes para serem nomeados para a Suprema Corte, ou mesmo ter uma definição constitucional para a vida. Retirar a jurisdição da esfera dos tribunais federais resultaria em menos abortos muito mais cedo, mas isso não nos desobrigaria de um esforço nacional para mudar a Suprema Corte ou a constituição incluindo nela uma emenda. Isso faz pensar porque é tão forte a resistência contra uma abordagem prática e constitucional para o problema. Quase todo mundo conhece o juramento de Hipócrates que inclui a promessa de não praticar abortos. Nos anos 1960, a maior parte das escolas de medicina, em vez de encarar o problema, simplesmente eliminou a tradição dos graduandos proferirem o juramento. Foi o caso de minha classe em 1961. Agora pense nisso: o juramento sobreviveu durante tantos anos e então deram um fim nele, exatamente antes da cultura da droga e da Guerra do Vietnã, quando ele era mais desesperadamente necessário.

 

Em 1988, quando meu filho, o médico Rand Paul se formou, o juramento era feito voluntariamente numa cerimônia especial de bacharelado. Mas, estranhamente, o texto do juramento tinha sido alterado para excluir a provisão de não praticar aborto. Hoje em dia, tristemente, os candidatos às escolas de medicina são examinados e podem ser rejeitados ou, pelo menos intimidados a respeito do tema do aborto.

 

Como médico libertário pró-vida, meu melhor conselho é que, independentemente dos aspectos legais, o pessoal médico simplesmente diga não para os procedimentos ou processos que sejam pró-morte, ou que, de algum modo diminuam o respeito pela vida. Deixem os advogados, os políticos e mercenários e os médicos não éticos lidarem com a implementação de leis que regulam a morte.

 

Desregulamentar o mercado de adoção também faria boa diferença para a redução do aborto. Essa desregulamentação deixaria mais margem para as entidades sem fins lucrativos encontrarem pais adotivos, e para apoiarem as mães de forma que elas pudessem absorver as despesas e os custos da gravidez até o final. Pequenas mudanças, mas que farão uma grande diferença aqui.

 

Para terminar, este é o meu programa para médicos pró-vida e para o pessoal médico:

 

  • Não realizar abortos por conveniência ou por razões sociais.
  • Não ser agente ativo de eutanásia.
  • Não participar de modo algum — direta ou indiretamente — em tortura.
  • Não participar de experimentação humana. Não me refiro aos testes de novos medicamentos com o consentimento das pessoas. O experimento Tuskegee, no qual soldados negros sifilíticos foram deliberadamente maltratados, é um exemplo.
  • Não se envolver com o estado na execução de criminosos ou de modo algum aprovar a execução de uma pena de morte.
  • Não participar de programas oficiais em que a assistência médica seja racionada por razões econômicas ou sociais que relativizam o valor da vida.
  • Não dar apoio político ou filosófico a guerras de agressão, as chamadas guerras preventivas.

 

 

 

8

 

 

 

Paul, Ron. 1983. Abortion and Liberty. Lake Jackson: Foundation for Rational Economics and Education.

 

 

 

 



[1]  Akinrinola Bankole, et al., “Reasons Why Women Have Induced Abortions: Evidences from 27 Countries.” [Por que as mulheres fazem abortos: Evidências em 27 Países] International Family Planning Perspectives (1998).

[2] Susan A. Cohen, “Repeat Abortion, Repeat Unintended Pregnancy, Repeated and Misguided Government Policies.” [Abortos sucessivos, Sucessão de Gravidezes não Desejadas, Sucessão de Políticas Governamentais Erradas] Guttmacher Policy Review, Spring 2007, Volume 10, Number 2.

 

[3] (N. do T.): Roe v. Wade, (1973) é um marco nas decisões da Suprema Corte dos Estados Unidos a respeito do tema aborto. Naquela data, a Suprema Corte decidiu que a 14a emenda, entendida também como assegurando o direito à privacidade, deve ser estendida para aceitar a decisão da mulher para abortar, mas que tal direito deve ser contrabalançado à luz dos dois legítimos interesses do estado, concernentes à regulamentação dos abortos: proteger a vida pré natal e proteger a saúde da mulher. Mais tarde, a Suprema Corte decidiu que a pessoa tem o direito de abortar até o momento da viabilidade do feto. A sentença de Roe define “viável” como sendo “potencialmente capaz de viver fora do útero da mãe, mesmo que com ajuda artificial”, o que é usualmente posto no sétimo mês (28 semanas)”.

 

 

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Ron Paul
é médico e ex-congressista republicano do Texas. Foi candidato à presidente dos Estados Unidos em 1988 pelo partido libertário e candidato à nomeação para as eleições presidenciais de 2008 e 2012 pelo partido republicano. É autor de diversos livros sobre a Escola Austríaca de economia e a filosofia política libertária como Mises e a Escola Austríaca: uma visão pessoal, Definindo a liberdade, O Fim do Fed – por que acabar com o Banco Central (2009), The Case for Gold (1982), The Revolution: A Manifesto (2008), Pillars of Prosperity (2008) e A Foreign Policy of Freedom (2007). O doutor Paul foi um dos fundadores do Ludwig von Mises Institute, em 1982, e no ano de 2013 fundou o Ron Paul Institute for Peace and Prosperity e o The Ron Paul Channel.

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