[N. do T.: o artigo a seguir foi publicado no periódico The Review of Austrian Economics, em 1992. Ele foi escrito em decorrência do recente colapso da URSS e de seus satélites no Leste Europeu. Rothbard mostra como seria a maneira correta de países comunistas adotarem uma economia de livre mercado. Obviamente, a Rússia não seguiu o conselho. Já a Estônia, a República Tcheca e a Polônia têm se esforçado. Esse plano de Rothbard, contudo, pode ser perfeitamente aplicado a economias socialistas e quase-socialistas, como a cubana, a venezuelana, a argentina e, por que não?, a brasileira.]
Todos no Leste Europeu e na União Soviética estão aparentemente ansiosos para desestatizar, instituir mercados livres e privatizar. Os planos proliferam, e inúmeros economistas ocidentais são consultados sobre como realizar essa intimidante tarefa. É consenso geral que os burocratas estão atravancando o processo, mas há também uma confusão generalizada entre os próprios proponentes do livre mercado. De nada ajuda o fato de que esses economistas ocidentais, a quem o antigo bloco oriental está recorrendo para obter ajuda, não fizeram absolutamente nada para entender – e menos ainda para resolver – esse problema desde que há sessenta anos Stalin estabeleceu o socialismo na União Soviética e há cinqüenta anos os soviéticos o impuseram no Leste Europeu.
Isso aconteceu porque, desde meados dos anos 1930, quase todos os economistas ocidentais aceitaram a noção de que não há nenhum problema de cálculo em um ambiente socialista; e muitos, por conseqüência, aceitaram a idéia de que a economia soviética era um sucesso e estava em constante crescimento, de modo que ela iria ultrapassar rapidamente a economia norte-americana.[1]
Como não desestatizar
Ao examinar a maneira como se deve desestatizar, devemos primeiramente estudar vários caminhos que já se tornaram populares, mas que, entretanto, decididamente não são a maneira correta de se atingir esse objetivo que presumivelmente temos em comum.
Como não proceder em uma desestatização pode ser realçado pela história de um amigo meu, que recentemente me contou sobre um colega soviético em seu departamento. Esse colega veio para os EUA para estudar diligentemente o problema de como criar um mercado de futuros na URSS. Mas ele estava completamente bloqueado pelo fato de não conseguir imaginar quais leis ou decretos o estado soviético deveria baixar para poder implementar por lá um mercado de futuros que funcionasse como o dos EUA. Ou seja, ele não conseguia achar uma maneira de planejar o mercado de futuros.
Aqui está, portanto, um ponto crucial: você não pode planejar mercados. Por sua própria natureza, tudo o que você pode fazer é dar completa liberdade às pessoas, de maneira que elas possam interagir e comercializar, e dessa forma desenvolver os mercados por conta própria. De maneira similar, vários países socialistas, vendo a importância dos mercados de capitais do Ocidente, vêm tentando desenvolver um mercado de ações, mas com pouco sucesso. Primeiro, novamente, porque o mercado de ações não pode ser planejado; segundo, porque, como veremos mais adiante, você não pode ter um mercado que dê direitos de propriedade ao capital se ainda não há praticamente nenhum proprietário privado do capital existente.
É, novamente, um consenso que o livre mercado deve ser implementado rapidamente, e que implementá-lo em estágios, de maneira lenta e gradual, só irá atrasar a meta indefinidamente. Bem sabe-se que aquela gigante burocracia socialista irá se apoderar de tal atraso com o intuito de dificultar todo o objetivo. Mas há também razões adicionais para que haja tal rapidez. Uma delas é que, como o livre mercado é uma rede interconectada e entrelaçada de agentes, essa rede é composta de inúmeras partes que se integram de maneira intrincada em uma rede de produtores e empreendedores que trocam títulos de propriedade entre si, motivados por uma busca por lucros e por uma tentativa de se evitar prejuízos, e que fazem tais cálculos através do livre sistema de preços.
Se houver hesitações, de maneira que se liberem apenas poucas arestas de cada vez, isto apenas irá impor distorções contínuas que irão enfraquecer o funcionamento dos mercados e desacreditá-lo aos olhos de um já receoso e desconfiado público. Mas há ainda um outro ponto vital: o fato de que você não pode planejar os mercados se aplica também aos planos de implementá-los gradualmente. Por mais que possam se iludir a si próprios, os governos e seus conselheiros econômicos não são sábios deuses do Olimpo, que reinam sobre a arena econômica e que sabem planejar competente e cuidadosamente como instalar um mercado passo a passo, de maneira sempre muito bem calculada, decidindo o que fazer em primeiro, e depois em segundo, etc. Economistas e burocratas são tão bons em planejar gradualismos como são em impor qualquer outro aspecto do mercado.
Para se obter uma liberdade genuína, o papel do governo e de seus conselheiros deve ser restringido a um só: liberar seus vassalos por completo, da maneira mais rápida possível, de modo que todos os grilhões e amarras sejam totalmente rompidos. Depois disso, o papel adequado do governo fica ainda mais simples: sair e se manter fora do caminho dos indivíduos.
Um dos caminhos para a liberdade adotado pelo ex-presidente Gorbachev foi o de atacar duramente os vilões do mercado negro. Poderíamos precipitadamente concluir que a mentalidade do bloco oriental ainda tem um longo caminho a percorrer até que entenda em definitivo a liberdade, não fosse o detalhe de que há também pouquíssimos ocidentais que entendem de fato essa questão. Os agentes do mercado negro não são vilões; se algumas vezes eles se assemelham a vilões, e agem como eles, é simplesmente porque suas atividades empreendedoriais passaram a ser consideradas ilegais. O “mercado negro” é simplesmente o mercado, o mercado que os soviéticos alegam estar querendo implementar, mas que se tornou “negro” exatamente porque foi declarado ilegal. É nesse mercado mutilado e distorcido, mas que ainda está lá, nessa menosprezada área “negra”, que os soviéticos irão encontrar o mais disponível dos mercados. Ao invés de atacá-lo, o governo deveria imediatamente libertá-lo e legalizá-lo.
Não confisque o dinheiro das pessoas
A União Soviética sofre com o problema do “excesso de rublos”, isto é, há muitos rublos perseguindo poucos bens. Reconhece-se que o “excesso” é o resultado de um abrangente controle de preços, através do qual o governo fixou preços muito abaixo dos preços de equilíbrio de mercado. Ao longo dos anos, o governo soviético imprimiu dinheiro vorazmente para poder financiar seus gastos, e esse aumento da oferta monetária, junto com uma oferta de bens cada vez mais definhada, resultado do colapso do planejamento socialista, criou uma escassez exacerbada e um excesso de oferta de dinheiro em relação aos bens disponíveis.
Também é sabido que a escassez terminará e o excesso de rublos será extinto tão logo os preços forem descongelados e liberados para se mover. Mas o governo teme a ira de insatisfeitos consumidores. Talvez isso aconteça, mas não se deve fazer o que Gorbachev fez, isto é, seguir o caminho nada inspirado feito pelo presidente brasileiro Collor de Mello, que se dizia “pró-mercado”, mas que, em março de 1990, em uma tentativa de reverter a hiperinflação, congelou arbitrariamente 80 por cento de todas as contas bancárias. Gorbachev fez algo um pouco melhor quando repentinamente decretou a inutilidade de todas as notas rublas de alto valor, permitindo que apenas uma pequena quantidade delas fosse trocada por denominações menores. Isso não é maneira de se eliminar um excesso de moedas; na melhor das hipóteses, a cura é muito pior do que a doença.
Em primeiro lugar, nesse suposto ataque ao mercado negro, o que aconteceu de fato é que foi a poupança do soviético médio que saiu destruída, já que os agentes do mercado negro eram astutos o bastante para já terem adquirido metais preciosos e moeda estrangeira. Mas ainda mais importante: ao fazer isso, o governo desferiu o segundo golpe de um ataque duplo ao cidadão comum e à economia. O primeiro golpe ocorreu quando o governo inflou a oferta monetária de modo que pudesse incorrer em sua típica e devastadora gastança. Assim, após o dinheiro ter sido gasto e os preços terem subido – de maneira aberta ou reprimida -, o governo voltou à cena e, com toda a sua sabedoria, começou a gritar contra os horrores da inflação e passou a culpar o mercado negro, os consumidores gananciosos, os ricos, ou quem quer que seja, e deu início ao segundo e monstruoso golpe: confiscar o dinheiro muito tempo após ele já ter passado para mãos privadas. Mesmo que haja alguém que considere esse processo um “livre mercado”, ele certamente é algo confiscatório, injusto, estatista e representa também um duplo arranjo de impostos implícitos que sobrecarregam a economia.
Infelizmente, uma das “lições” que muitos do Leste Europeu absorveram dos economistas ocidentais é a suposta necessidade de se aumentar impostos agudamente e torná-los progressivos. Impostos são parasíticos e estatistas; eles debilitam energias, a poupança e a produção. Impostos invadem e agridem os direitos de propriedade. Quanto maiores os impostos, mais socialista se torna a economia; quanto menores, mais a economia se aproxima da verdadeira liberdade e da genuína privatização, o que significa um sistema de direito irrestrito à propriedade privada. A tentativa do primeiro ministro polonês, Tadeusz Mazowiecki, de implantar um programa de privatizações e livre mercado na Polônia foi fortemente obstruída pela imposição de impostos progressivos e muito maiores do que eram antes.
Assim, como parte da mudança rumo à liberdade e a desestatização, os impostos devem ser drasticamente reduzidos, não aumentados.
Não há privatização quando empresas estatais se tornam donas de outras empresas
Devo ao Dr. Yuri Maltsev a informação de que o tão apregoado plano Shatalin para a União Soviética, que supostamente deveria implantar privatizações e livre mercado em 500 dias, de fato não representava privatização alguma. Aparentemente, empresas estatais existentes em cada área industrial, ao invés de serem de fato privatizadas – isto é, se tornarem propriedade de indivíduos particulares -, passariam a pertencer completamente (ou 80 por cento) a outras empresas da mesma indústria. Isso significaria que gigantescas empresas estatais monopolistas continuariam sendo empresas estatais monopolistas, além de serem oligarquias auto-perpetuantes quando de fato deveriam passar a ser empresas geridas por meios genuinamente privados. Privatização tem de significar propriedade privada.[2]
Os pontos de desestatização apresentados a seguir devem necessariamente ser escritos ou lidos sequencialmente, mas não precisam ser executados nessa ordem: todos eles podem, e devem, ser instituídos imediatamente de uma só vez.
Os dois primeiros pontos estão implícitos na parte anterior desse artigo. Um deles é legalizar o mercado negro, isto é, tornar todos os mercados livres e legítimos. Isso significa que a propriedade privada de todos aqueles envolvidos em tais mercados – bem como todas as pessoas também envolvidas – deve estar protegida contra qualquer depredação governamental, o que significa um direito de propriedade totalmente assegurado. Isso também significa que todos os bens e serviços até hoje considerados ilegais devem ser imediatamente legalizados, sejam eles legais no Ocidente ou não, e que todas as transações devem ser executadas livremente, isto é, que os preços devem ser determinados voluntariamente entre as partes envolvidas na troca. Portanto, todos os controles de preços determinados pelo governo devem ser abolidos imediatamente.
Se tais preços para as reais transações tiverem que ser mais altos do que os pseudo-“preços” determinados pelo governo, que sejam. Qualquer reclamação dos consumidores deve ser simplesmente ignorada; qualquer consumidor que ainda prefira o regime anterior de preços fixos para bens não existentes estará, obviamente, livre para boicotar os novos preços e tentar achar fontes de oferta mais baratas em outro lugar. Meu palpite, entretanto, é que os consumidores irão rapidamente se ajustar a essa mudança ocorrida em dose única, principalmente se considerarmos que uma abundância sem precedentes de bens de consumo irá rapidamente inundar os mercados.
A propósito, quando digo “legalizar” refiro-me simplesmente a abolir o antigo status de fora-da-lei; não é minha intenção promover exercícios semânticos para fazer uma distinção entre “legalizar” e “descriminar”.
Diminua drasticamente todos os impostos
Uma outra implicação da nossa análise prévia é que os impostos devem ser drasticamente cortados. Em toda a literatura sobre taxação há uma discussão excessiva sobre quais tipos de impostos devem ser implantados e quem deve pagar por eles e porquê, mas muito pouco se fala da alíquota máxima ou da quantia total de impostos que deve ser coletada. Se a carga tributária é pequena o bastante, então o formato ou o caráter da distribuição dos impostos de fato faz pouca diferença.
Colocando de maneira mais incisiva: se toda a carga tributária se mantiver abaixo de um por cento, então economicamente não importa, de fato, se os impostos incidem sobre a renda, as vendas, o consumo, a propriedade ou os ganhos de capital. Ao invés disso, o que importa é se concentrar na quantidade do produto social que está sendo desviado para a moela improdutiva do governo, e manter esse fardo em níveis ultra-mínimos.
Conquanto nesse caso a forma de taxação não importe economicamente, ainda assim ela importaria politicamente. Um imposto sobre a renda, por exemplo, por mais baixo que seja, ainda iria manter um sistema opressivo, onde há uma polícia secreta prontamente disposta a investigar a renda e os gastos de qualquer cidadão e, consequentemente, toda a sua vida. Ainda que economistas pensem ao contrário, não existe um imposto ou um sistema de impostos que seja neutro para o mercado.[3]
Entretanto, qualquer que seja a taxação que venha a existir após a desestatização, ela deve ser a mais neutra possível. Isso significa que, além de alíquotas muito baixas e uma pequena quantidade total de impostos, a taxação deve ser a mais desobstruída e inofensiva possível, e deve tentar imitar rigorosamente o mercado ao máximo que puder. Tal imitação pode incluir a venda voluntária pelo governo de bens e serviços a um dado preço, ou ainda a determinação de um preço para se participar de uma votação eleitoral. É claro que a venda de bens e serviços por parte do governo seria drasticamente limitada em nosso sistema desestatizado, por causa do enorme escopo da privatização das atividades governamentais. A privatização será tratada mais abaixo.
Revogue o poder que o governo tem de criar dinheiro
Existem três maneiras através das quais qualquer governo gera suas receitas: tributação, criação (impressão) de dinheiro, e a venda de bens e serviços.[4] É impossível existir um genuíno livre mercado ou uma genuína desestatização enquanto for permitido ao governo falsificar dinheiro, criar dinheiro do nada, seja ele notas de papel ou depósitos bancários. Tal criação de dinheiro funciona como uma forma de taxação oculta e insidiosa, que rouba a propriedade e os recursos dos produtores. Pôr fim à falsificação significa tirar o governo da gerência das questões monetárias, o que implica eliminar tanto o papel-moeda governamental como o banco central. Também significa desnacionalizar as moedas correntes, como o rublo, o florim (Hungria), o zloty (Polônia), etc., e retorná-las às mãos do mercado privado.
Desnacionalizar a moeda é algo que só pode ser atingido ao se redefinir os papéis-moeda em termos de unidades de peso de algum metal transacionado no mercado, preferivelmente o ouro. Quando os bancos centrais forem liquidados, eles terão de desovar todas as suas reservas de ouro; como último ato, eles poderiam trocar todo o papel-moeda por moedas de ouro, com a razão de troca entre ambos determinada pela divisão do estoque de ouro do governo por todo o dinheiro existente.
Embora – dada a vontade de se desestatizar – esse processo de desnacionalização não seja tão complexo ou difícil quanto possa parecer à primeira vista, ele pode de fato demorar mais do que o único dia requerido para as outras partes do nosso plano.[5] Poderia então haver etapas de transição que durassem mais do que um dia: isto é, poderia se permitir que o rublo ou o florim flutuasse livremente e fosse conversível em outras moedas à taxa de câmbio de mercado.
Ainda assim seria imperativo tirar das mãos do governo nacional o poder de criação de dinheiro; uma possível maneira de se fazer isso, e uma segunda etapa de transição, seria tornar o rublo conversível em moedas mais sólidas, como o dólar, a uma taxa fixa. Até que se retorne a um genuíno padrão-ouro e se liquide definitivamente o banco central, faz-se importante restringir o poder do governo criar dinheiro congelando permanentemente todas as atividades do banco central, incluindo as operações de mercado aberto (open-market), empréstimos de redesconto e emissões de notas. Desnecessário dizer que uma lei ou decreto limitando ou congelando o próprio governo não é um ato de intervenção na economia ou na sociedade. Muito pelo contrário.
Assim como os mercados negros e todos os outros mercados privados estariam agora liberados, o mesmo ocorreria com as instituições de crédito privado, que estariam agora livres para se desenvolver, recebendo e fazendo empréstimos com a poupança de terceiros.
Uma dúvida deve ter acometido o leitor: se os impostos devem ser drasticamente reduzidos e o governo deve ser destituído do seu poder de imprimir ou criar dinheiro, então como é que o governo vai financiar seus gastos e suas operações?
A resposta é: ele não teria que se preocupar com isso, pois restariam pouquíssimas coisas para o governo fazer. (Isso será explicado mais detalhadamente na discussão sobre privatização, mais abaixo).
A economia socialista é uma economia controlada, povoada e gerenciada por uma gigantesca burocracia. Essa burocracia seria imediatamente demitida, e seus membros finalmente se tornariam livres para achar empregos produtivos e desenvolver suas habilidades – quaisquer que sejam – no agora rapidamente crescente e próspero setor privado.
Isso nos traz a um fascinante problema que, conquanto estivesse há muito nos corações e mentes das pessoas oprimidas pelo socialismo, só agora se tornou um inesperado e dinâmico debate político. O que deve ser feito com a cúpula do Partido Comunista, com a nomenklatura, com o vasto aparato da até então toda-poderosa polícia secreta? Deveria a justiça finalmente ser-lhes aplicada através de uma série de julgamentos por crimes estatais, seguidos de uma punição adequada e condigna? Ou será que o passado deve ser esquecido, uma anistia geral declarada e ex-agentes da KGB contratados como seguranças ou detetives particulares? Confesso uma ambivalência nessa questão, ao comparar os pedidos simultâneos por justiça e por paz social. Felizmente, a decisão pode ser deixada por conta das pessoas da ex-União Soviética e do Leste Europeu. Não há muito que um economista, mesmo um economista pró-livre mercado, possa dizer para ajudar a solucionar tal questão.
Privatize ou cancele as operações governamentais
Isso nos leva ao último ponto, mas jamais o menos importante, da nossa plataforma de desestatização: privatizar as operações governamentais. Já que teoricamente toda a produção – ou praticamente a maior parte dela – nos países socialistas estava nas mãos do estado, o mais importante desiderato, a rota crucial para se chegar a um sistema de propriedade privada e livre mercado, é privatizar as operações do governo.
Mas simplesmente dizer “privatizar” não é o suficiente. Em primeiro lugar, há muitas operações governamentais, principalmente nos estados socialistas, que não queremos privatizar. Queremos, sim, aboli-las completamente. Por exemplo, como libertários e desestatizantes que somos, não iríamos querer privatizar campos de concentração, ou os Gulags, ou mesmo a KGB. Imagine? Iríamos ter uma oferta eficiente de campos de concentração e de “serviços” de uma polícia secreta! Que Deus não tal permita!
Eis aqui um ponto que deve ser realçado. A suposição básica de toda análise da renda nacional e do PIB é que todas as operações governamentais são produtivas, que elas contribuem em seus gastos para o produto nacional e para o bem-estar comum. Mas se realmente acreditamos na liberdade e na propriedade privada, devemos concluir que muitas dessas operações não representam “serviços” sociais sob qualquer hipótese, mas, sim, desserviços para a economia e para a sociedade, um “mal” ao invés de um “bem”.
Isso significa que a desestatização tem de envolver a abolição, e não a privatização, de tais operações, como (além dos campos de concentração e das instalações da polícia secreta) todas as comissões e agências reguladoras, bancos centrais, escritórios da receita federal e, é claro, todos os departamentos que administram as funções que serão privatizadas.[6]
Bens e serviços genuínos devem, portanto, ser privatizados. Como isso deve ser feito? Em primeiro lugar, todos os serviços privados que queiram concorrer com antigos monopólios estatais devem ser liberados e desimpedidos. Isso legalizaria não apenas o mercado negro, mas também toda a concorrência contra as atuais operações governamentais. Mas o que fazer com a enorme quantidade de empresas e bens de capital governamentais? Como eles devem ser privatizados?
Vários métodos possíveis já foram sugeridos, mas eles podem ser agrupados em três tipos básicos. Um deles é a distribuição igualitária. Cada cidadão soviético ou polonês receberia pelos correios uma cota de ações garantindo a propriedade de uma fração de várias empresas ou ativos estatais. Assim, digamos que a siderúrgica XYZ deve se tornar propriedade privada. Se 300 milhões de ações da empresa XYZ tiverem sido emitidas, e supondo que haja 300 milhões de habitantes, então cada cidadão receberá uma ação, que imediatamente se torna transferível e permutável à vontade. A impossibilidade prática desse sistema é evidente. O número de pessoas seria muito grande e as ações seriam poucas para permitir que cada indivíduo tivesse uma ação. Ademais, haveria uma incontável quantidade e variedade de ações sendo despejadas na cabeça do cidadão comum, que ficaria perdido.
Muito desse caos é eliminado na sugestão do ministro das finanças tcheco, Vaclav Klaus, que propôs que cada cidadão recebesse vouchers que poderiam ser trocados por um certo número ou por uma certa variedade de ações de propriedade de várias empresas no mercado. Mas mesmo esse Plano Klaus apresenta graves problemas filosóficos em sua solução. Ele iria consagrar o princípio da esmola governamental, feita sob o manto do distributivismo igualitário, dada a cidadãos que não têm porque merecê-la. Desta forma, seria desastroso que esse princípio inauspicioso e moralmente repreensível formasse a base do nosso recém-criado sistema libertário de direitos de propriedade.
Seria muito melhor entronizar o venerável princípio do homesteading (princípio da apropriação original – uma espécie de usucapião) na base do nosso novo e desestatizado sistema de propriedade. Ou, para reviver o velho slogan marxista: “toda a terra para os camponeses, todas as fábricas para os operários!” Isso iria estabelecer o básico princípio lockeano que diz que a posse de uma propriedade deve ser adquirida “mesclando-se o trabalho com o solo” ou com outros recursos que não têm dono.
A desestatização é um processo cujo objetivo é destituir o governo de suas atuais “posses” e de seu controle sobre as coisas, e devolver esse arbítrio aos indivíduos. De certo modo, abolir a propriedade governamental sobre ativos coloca esses ativos imediata e implicitamente em um estado em que estão sem dono. Sendo assim, um uso prévio desses ativos, de acordo com o princípio do homesteading, pode fazer com que eles rapidamente se convertam em propriedade privada. O princípio do homesteading afirma que estes ativos devem ser transferidos, não para o público abstrato em geral como no princípio da distribuição igualitária, mas para aqueles que realmente trabalharam com estes recursos: isto é, os seus respectivos trabalhadores, camponeses e gestores. É claro que estes direitos devem ser genuinamente privados; isto é, a terra para os camponeses individuais, enquanto os bens de capital ou as fábricas vão para os trabalhadores na forma de ações particulares e negociáveis. A propriedade não deve ser concedida a coletivos ou cooperativas ou trabalhadores ou camponeses de forma holística, o que apenas traria de volta os males do socialismo numa forma sindicalista descentralizada e caótica.
É desnecessário dizer que, para que essas ações sejam de fato propriedade privada, elas devem ser transferíveis e permutáveis de acordo com a vontade de seus portadores. Muitos planos criados pelos países socialistas prevêem “ações” que devem ser mantidas pelo operário ou camponês e que, por um período de anos, podem ser vendidas apenas para o governo, que já era o dono anterior dessas ações. Isso claramente viola o ponto central da desestatização. Outros planos sugeridos impõem severas restrições à transferência de propriedade para estrangeiros. Novamente, uma genuína privatização requer plena propriedade privada, incluindo a venda para estrangeiros.
Ademais, não há nada de errado em “vender o país” aos estrangeiros. Na realidade, quanto mais os estrangeiros comprarem “o país”, melhor, pois isso significaria rápidas injeções de capital externo, o que levaria a um rápido aumento da prosperidade e do crescimento econômico naquele empobrecido bloco socialista.
Ao se garantir ações aos operários das fábricas, imediatamente surge um problema que é semelhante à pergunta sobre o que fazer com a cúpula comunista e com a KGB: deveria a nomenklatura administrativa receber fatias das ações de propriedade?
Ao aconselhar os soviéticos em um discurso proferido em Moscou no início de 1990, o economista Paul Craig Roberts disse que o povo soviético poderia ou fatiar as gargantas da nomenklatura ou fatiar ações de propriedade e entregá-las para eles; em nome da paz social e de uma transição suave para uma economia livre, ele recomendou a segunda opção. Como escrevi mais acima, eu não seria tão rápido em contrariar os clamores por justiça; mas gostaria de apontar novamente uma terceira alternativa possível: não fazer nenhuma dessas duas coisas, e liberar a nomenklatura para procurar empregos produtivos no setor privado. O ponto filosófico em questão é saber até que ponto, se é que há algum, as atividades desses gerenciadores na velha economia soviética eram produtivas, tornando-os dessa forma aptos a participarem de um homesteading, e até que ponto eles eram paralisantes e contra-produtivos, e dessa forma merecedores de nada melhor do que uma rude exoneração.[7]
Um terceiro método comumente sugerido para a privatização merece ser rejeitado peremptoriamente: que o governo venda seus ativos em leilão público ao ofertante que se dispuser a pagar o preço mais alto. Um grande defeito dessa abordagem é que, já que o governo é dono de praticamente todos os ativos, onde o público iria conseguir todo o dinheiro para comprá-los? A não ser que todos fossem vendidos a preços muito baixos, o que seria equivalente a uma distribuição gratuita.
Mas há um outro problema que é muito mais importante e que raramente é abordado nas privatizações: por que o governo mereceria ser o proprietário da receita das vendas desses ativos? Afinal, uma das principais razões para a desestatização é que o governo não merece ser o proprietário dos ativos produtivos do país. Mas já que ele não merece ser o dono desses ativos, por que ele mereceria ser o dono do valor monetário deles? E ainda nem estamos considerando a subseqüente pergunta: o que o governo deve fazer com os fundos após tê-los recebido?[8]
Um quarto princípio da privatização não pode ser negligenciado; aliás, deve receber prioridade. Infelizmente, por sua própria natureza, essa quarta alternativa não tem como se tornar um princípio geral. Ela diz que o governo deve devolver toda a propriedade roubada e confiscada para seus donos originais, ou para seus herdeiros. Conquanto isso possa ser feito para muitos lotes de terra, que estão fixos em uma determinada área, ou para algumas jóias em particular, que também tenham sido confiscadas, na maioria dos casos, principalmente em se tratando de bens de capital, não há como identificar o dono original a quem se deve devolver a propriedade.[9] Dada a natureza do caso, achar os legítimos proprietários de uma terra é mais fácil no Leste Europeu do que na União Soviética, já que um tempo muito menor se passou desde o roubo original. No caso dos bens de capital construídos pelo estado, não existem proprietários a ser identificados. A razão pela qual esse princípio deve receber prioridade onde quer que seja aplicado é porque os direitos de propriedade implicam, acima de tudo, restituir ao dono original a propriedade que lhe foi roubada. Ou, colocando de outra forma: um ativo só se torna filosoficamente sem dono, e portanto disponível para o homesteading, apenas quando o dono original, caso tenha existido, não pode ser achado.
Há ainda um incômodo problema remanescente: quão grande devem ser as novas empresas privadas? Nos países socialistas, cada indústria de uma determinada área geralmente está incorporada a uma empresa monopolista, que controla todo o setor. Portanto, se cada empresa for privatizada e transformada em uma empresa de tamanho equivalente ao anterior, o tamanho de cada uma delas será muito maior do que o tamanho ótimo para um livre mercado. Um problema fundamental, obviamente, é que em uma economia socializada não há como alguém saber qual será o tamanho ótimo ou o número de empresas em um ambiente de liberdade absoluta.
É claro que, de certa forma, os erros cometidos na mudança rumo à liberdade tendem a se corrigir por conta própria após o livre mercado ter sido estabelecido, podendo haver tanto uma fragmentação como uma consolidação do tamanho e do número ótimo de empresas. Por outro lado, não devemos cometer o erro de assumir jubilosamente que os custos ou as ineficiências desse processo podem ser desconsiderados. Seria preferível ter já desde o início da privatização uma idéia do nível ótimo.
Assim, talvez cada instalação – ou cada grupo de instalações de uma determinada área – possa ser inicialmente privatizada como uma empresa separada. Desnecessário dizer que um aspecto muito importante de um livre mercado, e desse processo de otimização, é que se deve permitir que o mercado tenha completa liberdade para trabalhar: isto é, fundir, associar ou dissolver empresas da maneira que achar lucrativo.
Conclusão
As dimensões do Plano Rothbard de desestatização já devem estar claras agora:
1. Enormes e drásticas reduções de impostos, cargos públicos e gastos governamentais.
2. Privatização completa dos ativos governamentais: quando possível, retorná-los aos donos originalmente expropriados ou aos seus herdeiros; quando não, conceder ações aos operários e camponeses produtivos que trabalharam nesses ativos.
3. Assegurar completo e irrestrito direito de propriedade para todos os donos de propriedades privadas. Dado que o direito total sobre a propriedade envolve a completa liberdade de se trocar e transferir propriedade, não deve haver nenhuma interferência governamental em tais trocas.
4. Anular o poder que o governo tem de criar dinheiro do nada, sendo que a melhor maneira de se fazer isso é através de uma reforma fundamental que, de uma só vez, liquide o banco central e use o seu ouro para redimir as notas e os depósitos existentes. Essa nova moeda será definida em termos de unidade de peso de ouro em relação às moedas em circulação.
Tudo isso poderia e deveria ser feito em um único dia, apesar de que a reforma monetária poderia ser feita em etapas que tomariam alguns dias a mais.
Um ponto que não foi especificado: exatamente quão baixos devem ser os impostos, os cargos públicos e os gastos governamentais, e quão completa deve ser a privatização? A melhor resposta é aquela que foi dada pelo grande Jean-Baptiste Say, que deveria ser reconhecido por muitas outras coisas além da Lei de Say: “O melhor esquema para as finanças [públicas] é gastar o mínimo possível; e o melhor imposto será sempre o que for o menor”[10] Em resumo, o melhor governo é aquele que gasta, taxa e emprega o mínimo e privatiza ao máximo.
Um último ponto: fui criticado por colegas libertários ao apresentar propostas desse tipo porque elas envolvem ação por parte do governo. Não seria inconsistente e algo estatista que um libertário advogasse qualquer tipo de ação governamental? Isso me parece um argumento tolo. Se um ladrão roubou a propriedade de alguém, e eu digo que esse ladrão deve se desfazer dessa propriedade roubada e devolvê-la ao dono, essa minha postura dificilmente poderia ser considerada como uma defesa da “ação de roubar”. Em um estado socialista, o governo se arrogou a si próprio todo o poder e todo o direito de propriedade sobre o país. A desestatização – e a mudança rumo a uma sociedade livre – envolve necessariamente a ação desse governo se desfazer de suas posses, entregando-as aos seus donos privados e liberando esses indivíduos da sua rede de controle estatal. Em um sentido mais profundo, livrar-se de um estado socialista requer que esse estado realize um ato derradeiro, rápido e glorioso de auto-imolação, após o qual ele sumirá de cena. E esse é um ato que pode ser aplaudido por qualquer amante da liberdade, mesmo que ele seja um ato do governo.
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[1] Murray N. Rothbard: “Ludwig von Mises and the Collapse of Socialism,” discurso feito no encontro anual da Allied Social Science Association, em Washington, D.C., 1990, e publicado como “The End of Socialism and the Calculation Debate Revisited,” Review of Austrian Economics, 5, nº 2 (1991): 51-76.
[2] Como escreveu Maltsev: “Quando os soviéticos dizem privatização, no entanto, eles não aplicam ao termo o mesmo sentido que nós damos a ele. O plano [Shatalin] iria obrigar que 80 por cento das ações de qualquer empresa passassem a pertencer a outras empresas da mesma área, e não ao público. Para usar uma analogia norte-americana, seria como se a General Motors fosse dona de 80 por cento das ações da Ford e vice versa, e que fosse ilegal qualquer outro arranjo.” Maltsev observa que Stanislav Shatalin, e o autor original de seu plano para a República da Rússia, Grigory Yavlinsky, “são ambos econometricistas que passaram toda sua vida matematizando as desilusões do marxismo-leninismo. Ambos são planejadores centrais de longa data que ficaram desencantados com o socialismo maduro.” Yuri N. Maltsev, “A 600-Day Failure?” The Free Market (Novembro, 1990).
[3] Ver Murray N. Rothbard, “The Myth of Neutral Taxation,” Cato Journal 1 (Outono, 1981): 519-64.
[4] Uma quarta forma de se obter receita, pegando empréstimos junto ao público, depende estritamente das outras três fontes citadas.
[5] Ver Yuri N. Maltsev, “A One Day Plan for the Soviet Union,” Antithesis 2 (Janeiro/Fevereiro, 1991): 4, e para uma descrição anterior, “The Maltsev One-Day Plan,” The Free Market (Novembro, 1990): 7.
[6] É importante constatar que, se uma atividade governamental é um mal ao invés de um bem, nós iríamos querer que sua performance, enquanto ela existisse, fosse a mais ineficiente possível. Uma das mais odiadas organizações européias da Idade Moderna foi a dos “coletores”, indivíduos que compravam do rei o direito de coletar impostos por um certo período de tempo. É de se pensar: será que iríamos querer que a Receita Federal fosse privatizada, e o imposto de renda coletado pela IBM ou pelo McDonald’s com o total apoio do poder estatal? Reza a lenda que certa vez o industrialista Charles F. Kettering tentou animar um amigo no hospital, que estava reclamando sobre o crescimento acelerado do governo, dizendo a seguinte frase: “Anime-se, Jim! Graças a Deus ainda não temos um governo do tamanho equivalente ao que pagamos.”
[7] Yuri Maltsev recomenda a implementação do plano de homesteading, adotando-se o esquema de distribuição sugerido por Vaclav Klaus em casos em que o homesteading não fosse viável. Maltsev, “A One-Day Plan for the Soviet Union.”
[8] Um argumento proeminente para que o governo venda seus ativos é que esse processo teria o efeito anti-inflacionário de absorver o temido “excesso de rublos”. A falácia dessa chocante argumentação é que, a menos que os funcionários do governo proponham fazer uma fogueira pública com os rublos, o excesso não seria reduzido de modo algum. O governo simplesmente iria gastar os rublos arrecadados, e eles permaneceriam em circulação.
[9] Na Hungria, o Partido dos Pequenos Agricultores foi criado para enfatizar que a privatização deveria ter como prioridade devolver a terra aos donos que foram expropriados ao sul da Hungria.
[10] Jean-Baptiste Say, Tratado sobre Economia Política, 6ª ed. (Filadélfia: Claxton, Remsen & Haffelfinger,1880), p. 449. Ver também Rothbard, “The Myth of Neutral Taxation” pp. 551-554.