Eu já fui de esquerda. Mas uma esquerda bem “barbie” mesmo, própria da minha geração. Nem tocava na palavra revolução, não cogitava qualquer tipo de luta armada, repudiava o falar alto e certeiro, tipicamente masculino, e gente que curtia arma. Eu não era burra, sabia que era tudo muito superficial e não cavoucava em busca da lógica das posições tomadas. Eu me sentia “em casa” sendo de esquerda, era atraída pelas cores, pelo perfume: pelas falas carregadas do termo liberdade, pelo discurso do “ser feliz sendo livre para ser quem você é”, pelas festas – aliás, eu adoro dançar, fui alvo fácil nessa – pelos prazeres inconsequentes sustentados através da narrativa de que qualquer retorno negativo que trouxessem a você teria a culpa atribuída a um sistema remoto ou a um sujeito abstrato.
Muito antes do lockdown eu percebi as inconsistências da ideologia. Liberdade é, para esses grupos, conceito atribuído a um tipo de sistema que se propõe a subverter uma ordem pré-estabelecida, hierarquias baseadas em mérito, bem como outras regras orgânicas que acabaram contribuindo para o nosso processo civilizatório. A liberdade deles cria uma massa homogênea de ex-indivíduos que repetem as mesmas ideias, querem as mesmas coisas e, mais do que isso, consideram essencial para a conquista da “liberdade” que alguém lhes entregue o que querem e, ao mesmo tempo, absorva os resultados possivelmente negativos de suas escolhas.
Não me entenda errado. Eu não acho que devamos fazer o contrário e proibir indivíduos de selecionar o caminho que querem seguir, ainda que ele seja desviante de determinado padrão, o que quero aqui é apontar três características importantes, que circundam a ideia de liberdade propagada pela esquerda, e que podem ajudar a elucidar a alta aceitação, pelo menos retórica, de imposições como o lockdown: liberdade para esquerda é um modelo específico de comportamento; esse modelo deve ser concedido a seus membros por meio de uma organização centralizada, e essa mesma organização deve remediar os resultados pouco desejados dos comportamentos previstos no modelo.
Os mais atentos já haviam percebido as inconsistências na narrativa de liberdade dos socialistas: sempre as mesmas ideias, mecanismos sofistas de sufocamento do debate, o fato de se valorizar qualquer corpo que não fosse padrão – o padrão é o limite da liberdade de escolha –, ou a aplicação de uma mentalidade paternalista para explicar porque aquela escolha, feita livremente pelo indivíduo, foi na verdade fruto de uma imposição remota do suposto sistema. Porém, mesmo com tudo isso, a esquerda contava com um bom disfarce, escondia-se sob uma carapaça grossa cuja estética gritava antiautoritarismo, preocupação com os vulneráveis e diversidade.
A “pandemia” desgastou essa carapaça. Os socialistas validam deliberadamente atos arbitrários de policiais, a violência do Estado contra indefesos e os métodos cada vez mais implacáveis de limitação da liberdade.
Os mesmos que culpavam policiais pelo resultado trágico em qualquer confronto, sem nem procurar saber detalhes do ocorrido, por vezes defendendo ostensivamente a libertação de comprovados malfeitores, que proferiam um discurso impecável a favor do trabalhador e chamavam de retrógrada toda e qualquer advertência ou conselho favoráveis à prudência no processo de busca por prazer e diversão, agora, assistem calados à, ou até mesmo corroboram com a prisão de trabalhadores inofensivos, e não pestanejam ao colocar um dedo em riste para responsabilizar a diversão de um indivíduo pela morte de milhares de pessoas, narrativa que já é, em si, repugnante – que finge uma relação de causa e efeito –, ainda fazendo questão de enfatizar de maneira moralista o prazer experimentado, ao opô-lo à tragédia mencionada e, para além de uma recomendação de comportamento, clamam por penalidades contra esses momentos recreativos.
Lembrando que esses são os mesmos que gritam “ditadura!” quando há qualquer tentativa de contenção de surubas e uso de drogas em universidades públicas. Justificam qualquer irresponsabilidade, inconstância e egocentrismo com a narrativa da saúde mental, mas querem a cabeça daqueles que, em pânico – por vezes fruto de condições mentais como depressão, ansiedade, distúrbios de humor –, clamam por um pouco de atividade ou alguma rotina fora de suas casas.
A esquerda que se rebela contra injustiças e imposições arbitrárias só existe nas narrativas, um tanto extasiantes, que servem para conter os desavisados enquanto os poderosos se nutrem da passividade que é produzida pelo bem estar viciante, por sua vez, fruto da ilusão de que alguém está preparando um mundo melhor para eles. O bom socialista quer é conforto, e a noção ilusória de liberdade só serve para alimentar esse prazer. É quase um estado de transe.
As aparentes contradições apresentadas em alguns parágrafos anteriores na verdade servem perfeitamente a esse sistema controlador tão sonhado pela esquerda. Você migra de causa conforme o auge do momento e assim arrasta consigo o disfarce eterno. Fala-se uma coisa, distrai-se aquele que ainda não foi convencido, enquanto faz-se outra. Isso não é grande novidade para quem conhece o modus operandi do controlador.
Prenuncia-se mais liberdade em um futuro que nunca chega e, em troca dessa promessa, cede-se até a última liberdade real, até o último espaço de atuação individual possível no mundo como tal. Vivem como os personagens do 1984 que são convencidos dia após dia, interminavelmente, por repetição, de que tiveram uma ração maior de chocolate no dia anterior e de que terão ainda mais no futuro caso colaborem com Grande Irmão nesse momento tão difícil, aceitando a limitação da quantidade, imposta pelo partido, “apenas” no dia em questão e cultuando ainda a crença de que, sem o ditador, eles não teriam chocolate algum.
Liberdade causa dor, nos obriga a carregar nossas próprias cruzes, a viver tentando remediar consequências de escolhas que, por vezes, fazemos às cegas. O socialista não quer isso. E há, ainda, o socialista travestido de liberal, que justifica a coerção estatal pontual com a repetição da teoria clássica de que liberdade vem com responsabilidade. Esquece-se, contudo, de que responsabilidade é um valor individual, ela implica em se preparar, através das virtudes, para fazer boas escolhas dentro de um campo limitado de absorção do conhecimento – já que a centralização dele, na tentativa de enxergar a realidade como um todo, é impossível. Fosse algo além disso, qualquer entidade centralizada poderia se fortalecer arbitrariamente escolhendo ao seu bel-prazer o momento de se “responsabilizar” pela escolha do indivíduo – momento este que, como bem sabemos, estende-se por uma eternidade.
Bom, é isso mesmo que a esquerda quer: alguém para culpar por aquilo que os faz sofrer, seja um resultado de suas escolhas ou apenas efeito do acaso; alguém para mentir-lhes sobre a possibilidade de resolução e controle de toda e qualquer crise. O socialista prefere padecer no mundo real e barganhar seu espaço de livre atuação, desde que continue tendo sua imaginação frequentemente alimentada pela ilusão de que “alguém tem que fazer algo”, “alguém fará algo”, “se não for resolvido, é culpa de alguém”. Para ele isso é melhor do que reconhecer que coisas doloridas podem e vão acontecer e que, por vezes, ele terá que lidar com elas sozinho, já que essa é a dádiva da mentalidade individual, dádiva esta que ele enxerga como suplício.
Na crise atual, em que tantas liberdades foram lavradas, o socialista nem finge mais que quer ser livre. Ele se contenta em emitir um palavrório meio desarticulado composto por pura “trash talk” a respeito do que fará assim que a quarentena acabar; ah, mas não pense que é pouco não: assim que o Estado permitir, ele vai se esbaldar em liberdade, e nada de responsabilidade, pois essa fica a cargo do Grande Irmão. Ele nem simula mais que se preocupa com o pobre, só murmura sem jeito um plano merrecas de suposto auxílio estatal, é a sua tentativa de comprar a liberdade alheia por x reais ao mês, achando que está de boa monta, já que a deles venderam por menos.
O devaneio produzido é tão grande, que ele realmente crê que o Estado muda as leis de Deus, as leis da natureza, a ponto de controlar o vírus por decreto. O socialista aglomera um dia antes da lei impedir que ele o faça, mesmo depois da narrativa governamental apontar para a suposta intensificação da ameaça – ele não pensa por conta própria, ele não vai tomar essa decisão sozinho.
Ele vai à praia e chama os amigos para uma cervejinha, já que “ninguém é de ferro”, “eu fiquei longe de todo mundo”, “usei máscara” e, afinal, “já fiz meu teste”, “já fui vacinado”, mas ai de quem aparecer na mira dele fazendo o mesmo. O socialista típico sempre acha um jeito de ser a exceção, e isso faz parte da estratégia, é um jeito de manter o rebanho calmo, afinal o povo precisa de circo e, propagando a ideia correta, ele já faz a sua parte, já pode dormir em paz – há alguém maior zelando pelo seu sono, como prometido no acordo da venda de alma.
Por mim o socialista pode refestelar-se no seu delírio. Sempre considerei uma escolha individual a manutenção de vícios. Mas que ele fique em sua ilha particular, perdão, pública, gratuita e de qualidade, lambuzando-se desse prazer satânico, venerando uma entidade abstrata que promete o paraíso na Terra, mas que não impeça os que querem desfrutar do livre-arbítrio divino, que querem continuar cultuando seus espaços privados de atuação, mantendo aquilo que nos tornou civilizados: o contato com a família, com a comunidade, a capacidade de viver em sociedade, gerar riquezas, fazer trocas espontâneas, produzir arte e diversão, já que não só de subsistência vive o homem e cada um que escolha os conselhos que deve seguir, pois sabedoria absoluta, previsão de resultados no futuro, só alguém que não pertence a esse plano pode ter.
Esquerda é incoerente. Eles costumam falar em ter “consciência de classe” e isso sumiu no lockdown. Eles esqueceram que é impossível os pobres ficarem em casa.
Excelente artigo! Toca a fundo em vários pontos do funcionamento da mente esquerdista, algo ao mesmo tempo complexo, sofisticado e anti-natural. Em certa medida, de algum modo, entre a moderação e o radicalismo, eles construíram uma poderosa máquina de propaganda a favor da liberdade, mas apenas de um certo tipo: a que depende de critérios aleatórios da personalidade do líder de plantão. E não estou falando de um político, pois a esquerda é muito mais ampla do que isso. A esquerda funciona de maneira descentralizada e para-estatal. A política para eles vem apenas como uma consequência.
Eu nunca fui de esquerda, mas já fui liberal, o que praticamente dá no mesmo. Mas com algumas nuances, já que nunca fui chamado de esquerdista, mas capitalista radical. Mas hoje eu vejo a falha de achar que se pode defender o capitalismo sem a anarquia de propriedade privada. É impossível. Enquanto houver um estado, tudo irá tender para a esquerda, mesmo que isso não seja uma política oficial, mas uma mentalidade da época.
“era atraída pelas cores, pelo perfume: pelas falas carregadas do termo liberdade, pelo discurso do ‘ser feliz sendo livre para ser quem você é” Muita gente se deixa enganar por esta estética. Eu também, por um tempo, dei o benefício da dúvida a este povo, já que o pensamento único parecia estar ao lado da direita. Mas de fato, existe mais diversidade em uma padaria do que em toda a esquerda junta reunida. À esquerda se aplica a frase de Henry Ford: O cliente pode ter o carro da cor que quiser, contanto que seja preto. Não sou contra o pensamento único, não é esse o meu problema com a esquerda. Bastaria que o pensamento fosse correto…
” ou até mesmo corroboram com a prisão de trabalhadores inofensivos” Existe um crítica vinda da direita sobre os excessos que vem sendo cometidos pela polícia contra cidadãos pacíficos. E vindo daqueles estatistas para o qual os robocops do governo são sinônimo de ordem. Ou seja, o que a esquerda deveria estar fazendo, são os supostos fascistas que estão. Com efeito, a liberdade contra o estado opressor sempre foi um teatro. Nós poderíamos dizer que a esquerda é especialista em crimes sem vítima.
” Ele nem simula mais que se preocupa com o pobre” É curioso observar que aqueles que gritam “genocida” para qualquer coisa viva que morra – se a pandemia atacasse poodles a indignação seria a mesma, são os mesmos que estão preocupados unicamente com o próprio salário. Nós sabemos que a vasta maioria dos esquerdistas são funcionários públicos e correlatos, incluindo aqui os ricos esquerdistas de salão. A tragédia humanitária é culpa da medicina socializada, não de um vírus com baixa taxa de mortalidade. O excesso de mortes não são causadas pela fraudemia, mas pelas quarentenas, distanciamento social e uso de máscara vindos diretamente do inferno. É só observar como a esquerda se coloca no falso debate “saúde X economia” – o verdadeiro sempre será o indivíduo X estado. O fique em casa e mate um entregador é o clássico da mentalidade esquerdista.
“O socialista aglomera um dia antes da lei impedir que ele o faça, mesmo depois da narrativa governamental apontar para a suposta intensificação da ameaça – ele não pensa por conta própria, ele não vai tomar essa decisão sozinho.” Isso não é de agora. Quando o próprio governo brasileiro decretou estado de emergência em fevereiro de 2020, essa cambada deu de ombros, ignorando o vírus. Apenas quando os globalistas conseguiram fechar tudo quase que ao mesmo tempo é que esses aloprados passaram a aceitar as narrativas covidianas. Os estatistas e esquerdistas em geral tem uma obsessão pelas legislações do governo, algo que não tem nada a ver com a lei de verdade, mas com controle. Se para o libertário essa pandemia jamais existiu, para o esquerdista só quando o governo disser que o vírus está controlado a fraudemia de fato terá acabado.
Parabéns pelo texto. A crítica de ex-esquerdistas tem algo de mais substancial do que aquela feita pelos conservadores. Estes acertam no nível estratégico, mas tem pouco conhecimento do nível tático. Algo como aquele mundo de cores e perfumes diversos – e sexualidade fácil, que só quem circula neste meio sabe o quanto isso é uma forma de política. Ninguém leva a sério quem lê Burke e G. K. Chesterton em um certo nível. Mas basta citar algumas letras do Zeca baleiro e o problema está causado. É por isso que eu me idêntico existencialmente com anarquia de propriedade privada. Aqueles que escrevem inspirados pelos movimentos libertários não nenhum compromisso com nada além do que busca da verdade. São os únicos que entendem o mundo fora da Matrix. E isso tem um custo pesado, como a própria história dos austríacos mais eminentes tem demonstrado: rejeição, perseguição e sem possibilidades profissionais como intelectuais relevantes.