Pretendo publicar uma série de artigos apontando as falácias de Keynes, dos keynesianos e seus desdobramentos (neokeynesianos, pós-keynesianos, novos keynesianos etc.). Para não cansar nem o leitor e nem a minha paciência — já exausta de ouvir repetitivamente a mesma cantilena — vou expor duas falácias de cada vez, apontando suas inúmeras inconsistências.
Uma leitura excelente para mostrar alguns dos argumentos que vou apresentar é o excelente livro de Murray Rothbard, A Grande Depressão Americana, publicado, pela primeira vez, em 1963, mas que continua, a meu ver, sendo o melhor livro e a melhor análise sobre a enorme crise que abalou a economia americana no final dos anos 1920 e início dos anos 30 do século passado. Sem medo de errar, afirmo que o Instituto Mises Brasil, ao traduzir e publicar, em 2012, essa obra formidável em português, prestou um enorme serviço de esclarecimento não só para economistas como também para comentaristas que vivem repetindo que a culpa daquela depressão pode ser atribuída ao mercado, a “forças obscuras”, a “espíritos animais”, à “ausência de maior regulamentação do estado”, a “baixa oferta monetária”, e a “paradoxos da poupança”, bem como a outras explicações escatológicas.
É claro que há muitas outras explicações importantes por parte dos economistas austríacos sobre aqueles problemas, especialmente as de Mises, Hayek, Haberler e do próprio Rothbard, reunidas no livro The Austrian Theory of the Trade Cycle and Other Essays, uma compilação de Richard Ebeling com introdução de Roger Garrison, publicada em 1996 pelo Mises Institute de Auburn e que pode ser baixada no site daquele instituto.
Devo esclarecer aqui que nesta série de artigos não pretendo ser original. Apenas vou relatar o que os autores austríacos têm a dizer sobre a TACE (Teoria Austríaca dos Ciclos Econômicos) e, vez ou outra, rechear esses relatos com comentários adicionais.
Vamos então apontar as duas falácias deste mês: a primeira é a de que a teoria austríaca dos ciclos pressuporia a existência de pleno emprego dos fatores de produção e a segunda a de que ela enxergaria os boomseconômicos como períodos caracterizados por “sobreinvestimentos”. Vamos refutá-las?
1. A TACE só é válida sob a hipótese inicial de pleno emprego
Nada mais equivocado do que tal afirmativa! Segundo ela, os ciclos provocados por expansões artificiais do crédito não ocorreriam na existência de desemprego! Definitivamente, isto é uma enorme falácia porque a TACE não pressupõe pleno emprego dos fatores de produção (capital e trabalho). A explicação é simples: a inflação, definida como expansão da oferta monetária sem lastro, empregará mais trabalho somente na hipótese nada plausível de que os trabalhadores sejam tão néscios a ponto de aceitarem salários reais mais baixos quando estes são mascarados pelos aumentos nos preços dos bens e serviços. E quanto à ociosidade nos bens de capital, é evidente que isto pode ter ocorrido em decorrência de investimentos equivocados realizados no passado, por exemplo, em algum período de aquecimento da economia e dificilmente recuperados.
Como a TACE mostra claramente, expansões artificiais do crédito, isto é, não baseadas em poupança genuína, mas em moeda fantasiada de poupança, emitem sinais positivos ilusórios para o capital nos setores de ordens mais elevadas, o que atrairá investimentos de longo prazo para esses setores, mas isto só poderá acontecer durante algum tempo, porque o cabo de guerra subsequente entre consumo e investimento, dadas as preferências intertemporais, acabará por elevar a taxa de juros e mostrando a realidade dos fatos: aqueles investimentos foram malinvestments, e esse fato inescapável, ou seja, os erros cometidos anteriormente, serão amplificados ao final do período de boom.
Espero ter ficado bem claro que expansões artificiais de crédito geram ciclos econômicos e isso nem de longe depende da existência ou ausência de fatores de produção desempregados!
E mais — como escreveu Rothbard — “a expansão do crédito em meio ao desemprego criará mais distorções e maus investimentos, retardará a recuperação do boom anterior e fará com que uma recuperação mais rigorosa seja necessária no futuro”.(pág. 70 da edição do IMB).
Na verdade, os fatores desempregados (trabalho e capital, este concebido como uma estrutura e não como um agregado) podem não ser agora desviados de alternativas mais lucrativas em relação ao que seriam caso estivessem sendo empregados, porque sua ociosidade decorreu de investimentos errados, mas também é verdade que os fatores complementares serão utilizados pelo processo produtivo juntamente com os primeiros (e isso fica mais claro quando concebemos o capital como uma estrutura com diversos estágios, cada um deles com um mercado de trabalho específico). Esses fatores complementares serão, portanto, mal investidos, aprofundando o desperdício e a recessão ou depressão.
No período de boom a demanda de trabalho nos estágios produtores de bens de ordens elevadas subirá, elevando os salários, enquanto que nos estágios mais próximos ao consumo final a demanda de mão de obra poderá até mesmo cair, reduzindo, portanto, os salários. Tudo isso provoca efeitos alocativos ao longo de toda a estrutura de capital que os agregados do Sr. Keynes não permitem enxergar.
Para um desenvolvimento mais aprofundado desses argumentos austríacos, aconselhamos a leitura de Prices and Production, de Hayek, uma brilhante descrição da TACE em que aquele grande economista mostra com clareza contundente que a teoria austríaca sobre os efeitos perniciosos da expansão do crédito também é perfeitamente compatível com a existência de desemprego de fatores de produção.
Resumindo, a TACE — a constatação de que aumentos no crédito sem o correspondente aumento da poupança, ou sem alterações na relação intertemporal entre consumo e poupança — não depende da existência ou da ausência de desemprego de fatores de produção. Aliás, sabemos — e os austríacos principalmente — que o conceito de “pleno emprego” é, na linguagem de Mises, uma “construção imaginária”, um factóide inexistente no mundo real da economia.
2. A TACE pressupõe que o boom nada mais é do que um período de “sobreinvestimento”
Aqui — como quase sempre — parece que Keynes e seu séquito escutaram o galo cantar, mas sem saberem de onde veio o canto. Recorramos a Mises para rebater esse equívoco.
“O investimento adicional só é possível na medida em que há uma oferta adicional de bens de capital disponíveis… O boom em si não resulta numa restrição, e sim num aumento do consumo, ele não obtém mais bens de capital para novos investimentos”. Portanto, a essência do boom de expansão do crédito não é um sobreinvestimento, mas investimento equivocado, isto é, mau-investimento (malinvestment)… numa escala para a qual os bens de capital disponíveis não são suficientes.
Como a oferta de bens de capital demanda mais tempo para se concretizar, empresas não podem entrar em operação porque ainda não houve tempo para a instalação de outras empresas que produzam insumos complementares para a produção das primeiras e, como escreveu Mises, “fábricas cujos produtos não podem ser vendidos porque os consumidores antes preferem comprar outros bens que, no entanto, não são produzidos em quantidades suficientes” (porque o crédito artificial estimulou investimentos equivocados em outras etapas do processo produtivo). Em outras palavras, o término inescapável da expansão creditícia torna visíveis erros que antes pareciam acertos!
É claro que todos veem somente os malinvestments visíveis, sem notar que isso foi provocado porque não surgiram empresas para produzirem bens complementares, bem como empresas necessárias para produzir aqueles bens de consumo que agora são mais demandados.
Mises, em Ação Humana, é bastante claro: “A classe empresarial inteira fica como que na posição de um construtor que superestima a quantidade da oferta disponível de materiais… supervisiona a construção das fundações… e só depois descobre… que não tem o material necessário para completar a estrutura. É óbvio que o erro de nosso construtor não foi um sobreinvestimento, mas um investimento inapropriado”.
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Alguns críticos teimosos, levando a metáfora misesiana às últimas consequências, argumentaram (e ainda continuam, 70 anos depois, a argumentar) que se o boom continuar por mais tempo, tais processos a que Mises se refere poderão se completar.
Para a TACE, expansões creditícias sem lastro em poupança genuína deformam o investimento, canalizando-os para os estágios iniciais da produção, restando uma parte insuficiente para a produção de bens de ordens inferiores, isto é, bens de consumo. Somente os mercados livres das agressões do estado podem garantir que uma estrutura natural de produção complementar de capital se desenvolva automaticamente com o decorrer do tempo.
Como escreveu brilhantemente Rothbard em sua obra citada no início: “… a expansão do crédito bancário trava o mercado e destrói os processos que criam uma estrutura equilibrada. Quanto mais longo for o boom, maiores serão as distorções e os malinvestments”.
No próximo mês pretendo desmitificar mais duas falácias que os keynesianos costumam usar abusivamente e que vêm influenciando negativamente gerações de economistas, comentaristas de economia, políticos e o público em geral.