A imprensa gosta de Guido Mantega. De todas as figuras do governo Lula, ele é de longe o mais inatacável.
Talvez seja aquele rosto jovial, aquela voz mansa e inalterável, aquele jeitão de comissário de bordo ainda em período de treinamento ou aquele ar de pretendente inseguro que não quer desagradar aos pais da moça. Não sei. O fato é que ele é um sujeito que aparenta ser bastante afável. Mais ainda: ele desperta uma certa piedade. Dá a impressão de que, se você falar um pouco mais alto, ele vai se assustar e ainda pedir desculpas por qualquer coisa. Parodiando um famoso blogueiro, ele desperta tanta empatia, que “quando o vejo, tenho vontade de lhe comprar um Chicabom”.
Talvez seja justamente por essa sua personalidade dócil, que a imprensa goste tanto dele. Nunca o vi ser confrontado com nenhuma pergunta incômoda. Nem mesmo uma pergunta um pouco mais difícil. Nada. Sempre se limitam a lhe perguntar as habitualidades de sempre. Ele tem passe livre. Até Lula chega a ser mais pressionado que ele.
É exatamente por isso que ele tem liberdade para falar o que quer sem ser questionado, como na curta notícia abaixo. A reportagem vai de vermelho, eu vou de preto.
O ministro da Fazenda, Guido Mantega, afirmou nesta quinta-feira que, apesar das incertezas e suspeitas do mercado financeiro sobre o aumento dos preços, “a inflação está sob controle e não vai escapar da meta”.
Tradução: a inflação já está fora de controle e vai ficar acima da meta, que é de 4,5%. Essa conversa de que o Banco Central trabalha com uma meta de inflação com margem de tolerância de 2 pontos pra cima é coisa de país bananeiro. Nenhuma economia que se pretenda séria pode tolerar inflação de preços acima de 6%, que é para onde estamos indo. Uma inflação de 6% faria com que os preços das coisas ficassem 50% mais caros em apenas 7 anos.
Porém, de acordo com Mantega, uma inflação de 6% ao ano significa uma inflação perfeitamente sob controle e dentro da meta. Aliás, nem sei por que ele faz perorações sobre inflação, dado que esta é uma atribuição do Banco Central.
Ele admitiu que existe uma elevação de preços das commodities, principalmente de alimentos, em todo o mundo, não só no Brasil.
Contradição. Se a alta é internacional, principalmente dos alimentos, então é simplesmente contraditório dizer que a inflação está sob controle. A menos que ele consiga controlar a economia mundial.
No caso interno, ele citou que a questão foi mais agravada por problemas climáticos, como a seca que atingiu as culturas de feijão, milho e trigo. “Mas esses produtos já dão sinais de reversão de preços, que devem continuar caindo, e, em janeiro, já vai dar para sentir um maior refluxo dos preços. A carne deve continuar em alta porque há falta do produto no mercado internacional”, disse.
Além de desfilar suas capacidades premonitórias quanto ao preço do feijão, o próprio ministro também admite que a carne continuará em alta. Não há qualquer sinal de “inflação sob controle” aí.
O ministro argumentou que, tomando-se a inflação oficial medida pelo IPCA, ao se retirar os grupos alimentos e combustíveis, a inflação anualizada cai abaixo de 5%.
O ministro está corretíssimo. Não podemos deixar que banalidades como alimentos e combustíveis influam no cálculo da inflação. Afinal, alimentos e combustíveis são coisas desimportantes, itens de utilidade absolutamente trivial, coisa que ninguém usa. Só ricos se preocupam com esses bens supérfluos. Pobre — que não come e nem se locomove — está mais preocupado é com o preço do cigarro e do saco de cimento.
“Portanto, ainda estamos dentro da meta, embora um pouco acima do centro”, disse Mantega, lembrando que a meta inflacionária é de 4,5%, com margem de 2 pontos percentuais para cima ou para baixo.
Como dito, é só excluir alimentos e combustíveis — luxos desnecessários — do cálculo da inflação, e tudo fica resplandecente. É só mexer na estatística, que o país enriquece. Isso é feito em Cuba, e com resultados estimulantes.
“Podemos ficar tranquilos porque haverá redução dos preços dos alimentos a partir do início de 2011. Já vimos essa história antes”, disse o ministro, lembrando que, no começo de 2010, a inflação repicou e voltou a cair a partir de abril.
Correto de novo. Se um determinado fenômeno econômico ligado à agricultura já aconteceu uma vez na história, então é óbvio que ele necessariamente irá se repetir de novo, e já no ano seguinte. Basta “ficarmos tranquilos”. Tudo dando certo, os preços caem em abril. Até lá, para os menos favorecidos, jejum.
Segundo Mantega, além dos alimentos, todo o conjunto da economia está contribuindo para um certo aquecimento da inflação.
Ué, mas não estava tudo sob controle? A pequena inflação que teimava em se manifestar não era culpa do feijão?
“Temos a economia crescendo a 7,5%. Quando a economia cresce mais, os preços também sobem um pouco. Mas a inflação está sob controle”, concluiu o ministro.
Aqui Mantega demonstra de maneira inequívoca que de fato é um economista. Apenas um economista teria a capacidade de falar algo tão asinino com esse ar apostólico.
Crescimento econômico, por definição, significa que há uma maior produção. Logo, há uma disponibilidade maior de bens e serviços. E se há maior oferta, então a tendência é que o preço caia, e não que ele suba. Se o “crescimento” vem acompanhado de aumento de preços, então é porque o que está havendo é aumento da demanda e aumento de gastos, ambos não sendo acompanhados pelo aumento de produção.
A produção pode estar aumentando, é fato. Porém, se os preços estão subindo (e estão subindo muito), então é porque está havendo uma grande injeção de dinheiro na economia, a uma taxa maior que a do aumento da produção, causando então essa distorção inflacionária. O crescimento se dá apesar dessa injeção de dinheiro, e não por causa dela.
Portanto, crescimento econômico causa queda de preços, e não um aumento.
O melhor exemplo disso é de quando os EUA estavam no padrão-ouro clássico, de 1814 a 1913. Os preços caíam ano após ano. Aliás, até antes de Primeira Guerra Mundial, em 1914, inflação de preços era um fenômeno extremamente raro. A norma era que os preços caíssem constantemente. E por que caíam? Porque havia crescimento econômico e a base monetária (lastreada em ouro) crescia a taxas ínfimas — para deixar claro, os bancos praticavam reservas fracionárias desde aquela época, mas não podiam se entusiasmar muito justamente porque a base monetária era bastante rígida. Caso se entusiasmassem muito, eles facilmente poderiam se tornar insolventes.
Por causa desse arranjo monetário, 100 dólares em 1913 tinham o mesmo poder de compra que 177 dólares tinham em 1814. O que significa que algo que custava 177 dólares em 1814 passou a custar apenas 100 dólares em 1913. Ou seja: o americano guardava dinheiro e ele se valorizava com o tempo. E tudo isso com um crescimento econômico de 4% ao ano. (Você pode conferir todas as estatísticas aqui e aqui).
Logo, se está havendo crescimento e aumento de preços é porque a oferta monetária está crescendo a um ritmo maior do que o crescimento econômico.
Caso a oferta monetária estivesse estável, um aumento na demanda não causaria elevação geral dos preços. Mesmo porque, para que uma pessoa possa demandar algo nesse cenário, ela precisa antes ter produzido algo — e isso elevaria a oferta de bens e serviços para toda a economia, reduzindo os preços.
Aumento da demanda, ao contrário do que afirma Mantega, só causa aumento de preços quando essa maior demanda surge em decorrência de um aumento da oferta monetária — nesse caso, a pessoa não precisa produzir nada para poder demandar algo; ela simplesmente utiliza o dinheiro recém-criado e já aumenta o seu consumo. É isso que está acontecendo no Brasil.
Um economista dizer que “quando a economia cresce mais, os preços também sobem um pouco” não é apenas desconhecer as causalidades; é uma fragorosa mentira. Mas é perdoável. Afinal, ele é economista. E é também ministro da fazenda. Ainda bem que (ainda) não está no Banco Central.
Ah, sim, e “a inflação está sob controle”.
Ao fazer mais um balanço de seu governo, Lula brincou com o ministro Mantega ao dar um exemplo de como a economia vai bem. “Mantega, você será o único ministro da Fazenda que não vai deixar esqueleto econômico para seu sucessor, porque você mesmo será seu sucessor”, disse o presidente referindo-se a dívidas para o próximo governo.
Ainda bem. Assim ele não poderá culpar nenhum antecessor pelas consequências da atual política do BNDES. Aí não vai adiantar querer ressuscitar Pedro Malan.