História do Debate do Cálculo Econômico Socialista

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Prefácio

Este volume trata de um dos mais importantes e negligenciados resultados produzidos pelas ciências sociais, fruto do exame da viabilidade do socialismo sob o ponto de vista da teoria econômica moderna: a tese da impossibilidade do cálculo econômico no socialismo.Essa tese afirma que o ideal socialista jamais poderia encontrar uma contrapartida no mundo real. Esse ideal, a despeito do seu forte apelo emocional, oriundo de instintos calcados na própria natureza humana, apenas pôde encontrar suporte científico na ultrapassada teoria econômica clássica dos séculos XVIII e XIX. Nessa teoria, a produção não faz parte do problema econômico fundamental. Questões sobre o que e como produzir são derivadas de considerações técnicas, de engenharia. Aspectos como preços e propriedade privada afetariam apenas a distribuição da produção entre classes. A teoria moderna, por outro lado, incorporou a produção no problema econômico: a economia passou a tratar da relação entre meios e fins, de maneira que, na presença de escassez relativa de recursos diante da multiplicidade de fins imagináveis, tornou-se impossível dissociar a produção do problema mais amplo da escolha entre usos alternativos dos recursos.

Em termos mais concretos, a escolha sobre o que produzir, além de engenharia, deve envolver considerações mercadológicas: talvez a recomendação técnica do engenheiro sobre o uso de certo insumo para a produção de um bem deva ser ignorada, pois tal insumo poderia ser empregado na produção de outro bem, considerado mais importante pelos consumidores. Mas deveria existir marketing no socialismo? Sem dúvida, pois a teoria econômica moderna nos mostra que o problema econômico fundamental se faz presente em qualquer forma de organização social, inclusive o socialismo. Mesmo se as preferências dos habitantes forem ignoradas, ainda assim os recursos precisam ser alocados segundo as prioridades dos dirigentes. Não há como escapar do problema.

Há quase cem anos, o economista austríaco Ludwig von Mises lançou então o desafio: sem propriedade privada não existem mercados e sem estes não existem preços que tornam possível a comparação entre os diversos usos possíveis dos recursos. O socialismo seria um ideal irrealizável, pois sem um sistema de preços não há como superar a complexidade da divisão do trabalho que acompanha a alta produtividade das economias atuais, a menos que tenhamos um planejador central onisciente, que saiba todos os detalhes de como se alteram em tempo real as preferências, as alternativas técnicas e a disponibilidade de recursos produtivos. Se a produtividade das economias atuais não for pelo menos replicada, condenaríamos a maioria da população mundial à morte.

Desde o lançamento desse desafio, a distinção marxista entre socialismo utópico e científico se inverteu: os defensores do socialismo que não ignoram a teoria econômica foram forçados a investigar a natureza do socialismo, propondo modelos que buscam formas alternativas de alocar recursos, sem o auxílio do sistema de preços de mercado.

Até o presente momento, o desafio original de Mises continua sem resposta. Todas as tentativas de refutar seu argumento só tiveram sucesso na medida em que conseguiram distorcer o problema original. O socialismo permanece como algo que, embora intensamente desejado, não se têm a menor ideia do que seja.

O fracasso da tarefa de refutar Mises está relacionado ao silêncio que acompanha o tema. Assim como o estudante moderno, que nos seus diversos cursos de história nunca se depara com os massacres perpetrados pelos regimes totalitários inspirados pelo ideal socialista, também o estudante de ciências sociais raramente trava contato com a crítica teórica ao socialismo e em particular poucos ouviram falar sobre o debate do cálculo econômico, mesmo entre os economistas profissionais. Por outro lado, o ideal socialista ainda inspira a maioria dos partidos políticos e quase todos os departamentos de ciências sociais, com a exceção da própria economia, são ainda fortemente influenciados pelo socialismo.

Nada mais oportuno então do que a publicação como livro da minha tese de doutorado, que trata da história do debate do cálculo econômico socialista. Desde que foi defendida nove anos atrás, existe uma crescente demanda pela tese, que é a única história completa do debate publicada em língua portuguesa.

O interesse pela tese, porém, não é derivado apenas da discussão da economia do socialismo. O debate do cálculo foi também um ponto crucial na história do pensamento econômico, marcando a percepção de que a Escola Austríaca de economia não era apenas uma das vertentes da teoria moderna, mas um programa de pesquisa próprio, com semelhanças e diferenças em relação ao mainstream. No debate, a crítica ao socialismo foi feita por austríacos e a sua defesa por economistas neoclássicos. Pode-se dizer que muitas características distintivas da moderna teoria austríaca de processo de mercado foram forjadas durante o debate, a partir das contribuições de Mises e Hayek.

Com o expressivo aumento do interesse pelas ideias da escola austríaca que presenciamos nos últimos anos no país, temos um segundo motivo que justifica a publicação da tese como livro. Em relação à versão original, a mudança mais significativa do livro foi a tradução para o português de todas as citações, que apareciam originalmente nas línguas nas quais foram escritas. Além disso, foram feitas mudanças marginais no texto para tornar mais claro o significado de algumas passagens. Fora essas mudanças pequenas, o livro preserva seu formato original, pois não ocorreram na última década contribuições que acrescentassem argumentos verdadeiramente novos ao debate.

Assim, a minha interpretação da controvérsia continua a mesma: as tentativas de criar um sistema de preços artificiais para o socialismo que substituísse os preços de mercados fracassaram por um motivo de ordem metodológica. As simplificações utilizadas na teoria da competição perfeita, úteis para explicar certos aspectos dos fenômenos de mercado, se tornam enganadoras quando usadas para construir e controlar o fenômeno estudado. Sendo assim, a simplicidade da teoria é transferida para o objeto estudado, o que reduz sobremodo a complexidade do problema alocativo real.

Dessa forma, a evolução dos modelos de socialismo ao longo do debate é marcada pelo progressivo abandono de elementos centralizadores e consequente reincorporação de elementos dos mercados reais, até chegarmos as propostas de socialismo que contemplam a existência de bolsas de valores. Cada modelo era de fato criticado por ignorar algum aspecto do problema alocativo que aparece nos mercados reais. O exame desse gradual abandono do planejamento consciente da produção é um exercício útil para o estudante de economia refletir sobre as limitações do aparato teórico desenvolvido para teoria econômica. Nesse sentido, o contraste entre as opiniões austríacas e neoclássicas ao longo do debate faz com que saltem aos olhos as vantagens da primeira no que diz respeito à apreciação do fenômeno da competição nos mercados.

 

 

Fabio Barbieri

São Paulo, janeiro de 2013.

 

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