Por muito tempo os conservadores se caracterizaram, quer o soubessem ou não, pelo pessimismo quanto às suas perspectivas a longo prazo, pela convicção de que a tendência política a longo prazo e, portanto, o próprio tempo, está contra eles. A tendência inevitável apontaria, portanto, para o estatismo de esquerda nos Estados Unidos e para o comunismo no exterior. É essa desesperança quanto ao futuro distante que explica o otimismo sem dúvida bizarro do conservador em relação ao futuro próximo; pois, uma vez que abdica do futuro remoto como sem esperanças, o conservador sente que sua única possibilidade de êxito está no momento presente. No plano das relações externas, esse ponto de vista o impele a confrontos temerários com o comunismo, convencido que está de que, quanto mais tempo esperar, piores se tornarão, inelutavelmente, as coisas; no plano interno, leva-o a uma total concentração nas eleições mais próximas, em que está sempre à espera de uma vitória que jamais alcança. Quintessência do “homem prático”, e tomado pela desesperança em face do porvir, o conservador se recusa a pensar ou planejar para além do dia das eleições.
Mas é precisamente a um prognóstico pessimista, tanto no que se refere ao futuro próximo quanto em relação ao mais distante, que o conservadorismo faz jus; pois, sendo um remanescente moribundo do Ancien Regime da era pré-industrial, não tem mesmo futuro. Em sua modalidade norte-americana atual, o recente ressurgimento conservador do início da década de 1960 representou os últimos estertores de uma América anglo-saxônica, branca, de pequenas cidades, rural e fundamentalista, América irreversivelmente moribunda. Que dizer, no entanto, sobre as perspectivas para a liberdade? Um número excessivo de libertários vincula de modo errôneo o prognóstico da liberdade ao do movimento conservador, mais forte na aparência e supostamente um aliado; essa vinculação torna fácil de compreender o pessimismo característico do libertário moderno quanto ao futuro a longo prazo. Este texto sustenta, contudo, que, embora as perspectivas a curto prazo para a liberdade nos Estados Unidos e no exterior possam parecer sombrias, a atitude adequada ao libertário é a de inextinguível otimismo quanto aos resultados finais.
A justificativa dessa afirmação repousa numa determinada concepção da história segundo a qual existiu na Europa Ocidental antes do século XVIII (e continua a existir fora do Ocidente) uma Velha Ordem que, quer tenha assumido a forma do feudalismo ou do despotismo oriental, se caracterizou pela tirania, a exploração, a estagnação, as castas estanques, a desesperança e a fome para a maior parte do povo. Em suma, a vida era “sórdida, brutal e curta”; era a “sociedade do status’’ de Maine e a “sociedade militar” de Spencer. As classes ou castas dominantes governavam pela conquista, e persuadindo as massas do pretenso imprimatur divino conferido a seu poder.
A Velha Ordem foi, e ainda é, o grande e poderoso inimigo da liberdade; foi particularmente poderoso no passado, porque não existia então a ideia da inevitabilidade de sua derrocada. Quando consideramos que a Velha Ordem havia existido em seus fundamentos desde os primórdios da história – em todas as civilizações –, podemos dimensionar melhor ainda a glória e a magnitude do triunfo obtido pela revolução liberal do século XVIII e de épocas próximas a ele.
As dimensões dessa luta foram em parte obscurecidas por um grande mito da história da Europa Ocidental, implantado por historiadores alemães antiliberais do final do século XIX. Esse mito afirma que o desenvolvimento de monarquias absolutas e do mercantilismo, no início da era moderna, foi necessário para o avanço do capitalismo, visto que ambos serviram para livrar os comerciantes e o povo das restrições feudais de caráter local. Ha verdade, não foi esse absolutamente o caso; o rei e seu estado-nação funcionaram antes como um suserano superfeudal, reimpondo e reforçando o feudalismo, no momento em que ele vinha sendo dissolvido pelo desenvolvimento pacífico da economia de mercado. O rei superpôs suas próprias restrições e privilégios de monopólio aos do regime feudal. Os monarcas absolutos representaram a Velha Ordem em ponto maior, e ainda mais despótica do que antes. De fato, o capitalismo floresceu mais cedo e com maior eficácia precisamente onde o estado central era fraco ou inexistente: nas cidades italianas, na Liga Hanseática, na confederação da Holanda no século XVII. Por fim, a Velha Ordem foi derrubada, ou teve seu domínio severamente abalado, de duas maneiras. Uma delas foi a expansão da indústria e do comércio por entre os interstícios da ordem feudal (a indústria na Inglaterra, por exemplo, desenvolveu-se nas regiões rurais, fora do alcance das restrições feudais, do estado e da guilda). Uma série de revoluções cataclísmicas porém, constituiu elemento mais importante para a desarticulação da Velha Ordem e das classes dominantes tradicionais: as revoluções inglesas do século XVII, a Revolução Norte-Americana e a Revolução Francesa – todas elas necessárias para abrir caminho à Revolução Industrial e a vitórias, pelo menos parciais, da liberdade individual, do laissez-faire, da separação entre a Igreja e o estado e da paz internacional. A sociedade do status deu lugar, pelo menos em parte, à “sociedade do contrato”; a sociedade militar foi parcialmente substituída pela “sociedade industrial”. A grande maioria do povo obteve então uma mobilidade de trabalho e de residência e uma elevação crescente de seus padrões de vida com que dificilmente teria ousado sonhar. De fato, o liberalismo trouxe para o Ocidente não apenas a liberdade, a perspectiva da paz e os padrões de vida ascendentes de uma sociedade industrial, mas, talvez acima de tudo, trouxe esperança, a esperança num progresso cada vez maior, que tirou a maior parte da humanidade de sua imemorial fossa de estagnação e desesperança.
Logo tomaram corpo na Europa ocidental duas grandes ideologias políticas, centradas nesse novo fenômeno revolucionário. Uma delas foi o liberalismo, o partido da esperança, do radicalismo, da liberdade, da Revolução Industrial, do progresso, da humanidade; a outra foi o conservadorismo, o partido da reação, o partido que almejava restaurar a hierarquia, o estatismo, a teocracia, a servidão e a exploração de classe próprios da Velha Ordem. Uma vez que a razão estava manifestamente do lado do liberalismo, os conservadores turvaram a atmosfera ideológica apelando para o romantismo, a tradição, a teocracia e o irracionalismo. As ideologias políticas se polarizaram, com o liberalismo na extrema “esquerda” e o conservadorismo na extrema “direita” do espectro ideológico. O fato de o liberalismo genuíno ser em essência radical e revolucionário foi brilhantemente aprendido, no período de declínio de seu impacto, pelo grande Lorde Acton (uma das poucas figuras da história do pensamento que se foi tornando encantadoramente mais radical à medida que ficava mais idoso). Acton escreveu que “o liberalismo deseja aquilo que deve ser, sem levar em conta o que é”. Foi Acton, diga-se de passagem, e não Trotsky, quem primeiro chegou, partindo desse ponto de vista, ao conceito de “revolução permanente”. Como observou Gertrude Himmelfarb em seu excelente estudo sobre Acton:
… sua filosofia desenvolve(u)-se até o ponto em que o futuro era visto como inimigo declarado do passado, e que não se concedia ao passado qualquer autoridade, exceto na medida em que estivesse de acordo com a moralidade. Tomar a sério essa teoria liberal da história, dar precedência a “aquilo que deve ser” sobre “o que é”, significava virtualmente, ele o admitia, instaurar uma “revolução permanente”.
A “revolução permanente”, à qual Acton aludiu na conferência inaugural e conforme admitiu abertamente em suas notas, era a culminância da sua filosofia da história e da sua teoria da política… Essa concepção da consciência segundo a qual os homens trazem consigo o conhecimento do bem e do mal é a raiz mesma da revolução, porque destrói a santidade do passado… “O liberalismo é em essência revolucionário”, observou Acton. “Os fatos devem render-se às ideias. Pacífica e pacientemente, se possível for. Pela violência, se não”.[1]
O liberal, escreveu Acton, ultrapassou em muito o whig:
O whig governava por meio do compromisso. O liberal inaugura o primado das ideias… Um é utilitário, gradativo, pronto para o acordo. O outro empenha-se em pôr em prática, filosoficamente, um princípio. Um é um programa de ação visando a uma filosofia. O outro é uma filosofia à procura de um plano de ação.[2]
Que aconteceu ao liberalismo? Por que declinou ao longo do século XIX? Muitas vezes se refletiu sobre a questão, mas a razão básica desse declínio talvez tenha sido uma deterioração interna dos próprios órgãos vitais do liberalismo. Pois, sendo a revolução liberal parcialmente bem-sucedida no Ocidente, os liberais foram cada vez mais deixando de lado seu fervor radical e, em consequência, suas metas tradicionais, para se contentarem com uma mera defesa do insípido e falho status quo. É possível discernir duas causas de origem filosófica dessa decadência. A primeira é o abandono da teoria dos direitos naturais e da “lei maior” em favor do utilitarismo, já que apenas formas da teoria da lei maior ou da lei natural podem proporcionar uma base radical, fora do sistema existente, a partir da qual se pode contestar o status quo; e somente tal teoria fornece o sentido de imediação necessário à luta libertária, na medida em que se concentra na importância vital de levar os governantes criminosos de hoje ao tribunal de justiça. Os utilitaristas, por outro lado, ao trocarem a justiça pelo oportunismo, abandonam ao mesmo tempo a instantaneidade em prol de uma plácida estagnação, e terminam, inevitavelmente, como apologistas, na prática, da ordem vigente.
A segunda grande influência filosófica sobre o declínio do liberalismo foi o evolucionismo, ou darwinismo social, que desferiu o golpe final sobre essa doutrina como força radical na sociedade. O darwinista social contemplou a história e a sociedade de maneira distorcida, através das lentes pacíficas e róseas da evolução social infinitamente lenta, infinitamente gradual. Ignorando o fato básico de que jamais na história uma casta dominante abriu mão de seu poder de forma voluntária e que, por conseguinte, o liberalismo teria de abrir caminho por meio de uma série de revoluções, os darwinistas sociais puseram-se a esperar com placidez e alegria que se passassem os milhares de anos de uma evolução infinitamente gradual rumo à etapa seguinte, e supostamente inevitável, do individualismo.
Um exemplo interessante de pensador que é a própria personificação do declínio do liberalismo no século XIX é Herbert Spencer. Spencer começou como um liberal bastante radical; virtualmente, de fato, um autêntico libertário. Mas, à medida que o vírus da sociologia e do darwinismo social tomaram conta de seu espírito, deixou de lado o libertarianismo como movimento histórico dinâmico, embora sem abandoná-lo, de início no plano da teoria pura. Em resumo, enquanto aguardava um ideal eventual de liberdade absoluta, Spencer começou a considerar inevitável a vitória desse ideal, mas somente após milênios de evolução gradativa. Assim, na verdade, afastou-se do liberalismo na qualidade de credo combativo e radical e confinou seu liberalismo, na prática, aos limites de uma enfadonha ação de retaguarda contra o crescente coletivismo do final do século XIX. De maneira bastante interessante, o fatigado desvio “à direita” de Spencer no plano da estratégia logo se converteu num desvio à direita também no plano teórico, de tal modo que ele veio a abandonar a liberdade absoluta mesmo em teoria, chegando a repudiar, por exemplo, o famoso capítulo de sua obra Social Statics: “O direito de não levar em conta o estado” (The Right to Ignore the State).
Na Inglaterra, os liberais clássicos principiaram sua guinada do radicalismo para o quase conservadorismo no começo do século XIX; essa mudança pôde ser avaliada pela posição que os liberais ingleses em geral assumiram em relação à luta de libertação nacional travada pela Irlanda. Era uma luta dupla: contra o imperialismo político inglês e contra o sistema feudal de arrendamento da terra imposto por esse imperialismo. A cegueira tory dos liberais ingleses (entre os quais Spencer) ante a pressão irlandesa pela independência nacional, e sobretudo pela posse da terra pelo camponês, em contraposição à opressão feudal, simbolizou o abandono de fato do liberalismo genuíno, virtualmente nascido numa luta contra o sistema agrário feudal. Apenas nos Estados Unidos, a grande pátria do liberalismo radical (onde o feudalismo jamais pudera lançar raízes fora do Sul), a teoria dos direitos naturais e da lei maior, e os movimentos liberais radicais daí decorrentes, continuaram em proeminência até meados do século XIX. Os movimentos jacksoniano e abolicionista foram, cada um a seu modo, os últimos movimentos libertários radicais vigorosos na vida norte-americana.[3]
Assim, com o liberalismo relegado dentro de suas próprias fileiras, já não havia um partido da esperança no mundo ocidental, nenhum movimento de “esquerda” para levar à frente uma luta contra o estado e contra os remanescentes ainda intactos da Velha Ordem. Nessa brecha, nessa lacuna criada pelo esvaziamento do liberalismo radical, introduziu-se um novo movimento: o socialismo. Os libertários de hoje estão habituados a pensar no socialismo como diametralmente oposto ao credo libertário. Mas este é um grave equívoco, responsável por séria desorientação ideológica dos libertários no mundo atual. Como vimos, o conservadorismo era o oposto absoluto da liberdade, e o socialismo, embora à “esquerda” do conservadorismo, era essencialmente um movimento confuso, de cunho intermediário. Era de cunho intermediário, e ainda o é, por tentar alcançar fins liberais pelo uso de meios conservadores.
Em suma, Russell Kirk, para quem o socialismo foi o herdeiro do liberalismo clássico, e Ronald Hamowy, que o vê como herdeiro do conservadorismo, estão ambos certos, dependendo de que aspecto desse confuso movimento centrista estejamos focalizando. À semelhança do liberalismo, e em oposição ao conservadorismo, o socialismo aceitou o sistema industrial e as metas liberais de liberdade, razão, mobilidade, progresso, padrões de vida mais elevados para o povo, e um basta à tecnocracia e à guerra; mas tentou chegar a esses fins utilizando meios conservadores, incompatíveis com eles: estatismo, planejamento centralizado, comunitarismo etc. Ou, antes, para ser mais preciso, houve desde o início duas tendências dentro do socialismo. Uma era a corrente de direita, autoritária, desenvolvida a partir de Saint-Simón, que glorificava o estatismo, a hierarquia e o coletivismo, sendo portanto um prolongamento do conservadorismo, e empenhando-se em adaptar-se à nova civilização industrial e em dominá-la. A outra era a corrente de esquerda, relativamente liberal, representada em suas diferentes modalidades por Marx e Bakunin, revolucionária, muito mais interessada na consecução das metas libertárias do liberalismo e do socialismo, e, sobretudo, na destruição do aparelho de estado, de modo a chegar ao “definhamento do estado” e ao “fim da exploração do homem pelo homem”. Curiosamente, a frase do próprio Marx, a “substituição do governo de homens pela administração de coisas”, pode ter sua origem reconstituída, por uma via tortuosa, a partir dos grandes liberais radicais franceses do laissez-faire, do início do século XIX: Charles Comte (nenhuma relação com Auguste Comte) e Charles Dunoyer. E o mesmo pode ser feito com o conceito de “luta de classes”. Com a diferença de que, para Dunoyer e Comte, as classes inerentemente antitéticas eram, não empresários versus operários, mas aqueles que têm função produtiva na sociedade (abrangendo livres-empresários, operários, camponeses etc.) versus as classes exploradoras que constituíam o aparelho estatal e eram por ele privilegiadas.[4] Numa fase de sua confusa e caótica vida, Saint-Simon aproximou-se muito de Comte e Dunoyer, e deles tomou sua análise de classe, processo no qual, embaralhando caracteristicamente a coisa, converteu empresários em mercado, assim como senhores feudais e outros privilegiados do estado em “exploradores”. Marx e Bakunin adotaram essa linha dos saint-simonianos, do que resultou uma profunda desorientação de todo o movimento socialista de esquerda; pois passou então a ser supostamente necessário, além de destruir o estado repressor, abolir a propriedade dos meios de produção pelo capitalista privado. Ao rejeitar a propriedade privada, e especialmente o capital, os socialistas de esquerda tornavam-se presas de uma contradição interna crucial: se o estado deve desaparecer após a revolução (de imediato, para Bakunin; por um “definhamento” gradual, segundo Marx), como poderá então o “coletivo” gerir sua propriedade, sem que ele próprio se transforme num gigantesco estado de fato, ainda que não nominalmente? Esta é uma contradição que nem os marxistas nem os bakuninistas foram jamais capazes de resolver.
Tendo substituído o liberalismo radical como o partido da “esquerda”, o socialismo, por volta da virada do século, viu-se prisioneiro dessa contradição interna. A maioria dos socialistas (fabianos, lassallianos e até marxistas) desviou-se bem depressa para a direita, abandonando por completo as antigas metas e ideais libertários de revolução e definhamento do estado. Tornaram-se confortavelmente conservadores, conciliados para sempre com o estado, o status quo e toda a aparelhagem do neomercantilismo, do capitalismo monopolista de estado, do imperialismo e da guerra, que rapidamente era introduzida e cravada na sociedade europeia com a chegada do século XX. Porque também o conservadorismo, por sua vez, reformara-se e reaglutinara-se para tentar enfrentar o sistema industrial moderno, e convertera-se num mercantilismo renovado, um regime de estatismo caracterizado pela cessão pelo estado de privilégios de monopólio (sob formas diretas e indiretas) a capitalistas protegidos e a proprietários de terra quase feudais. A semelhança entre o socialismo de direita e o novo conservadorismo tornou-se bastante estreita, o primeiro defendendo programas similares aos do último, mas com um demagógico verniz populista. Assim, o outro lado da moeda do imperialismo passou a ser o “imperialismo social”, mordazmente definido por Joseph Schumpeter como “um imperialismo em que os empresários e outros elementos seduzem os operários por meio da concessão de benefícios sociais que parecem depender do sucesso da política monopolista de exportação[5]…”
Há muito os historiadores reconheceram a afinidade e a grande proximidade entre o socialismo de direita e o conservadorismo na Itália e na Alemanha, onde a fusão dessas tendências concretizou-se pela primeira vez no bismarckismo e, em seguida, no fascismo e no nacional-socialismo – tendo o último implementado o programa conservador de nacionalismo, imperialismo, militarismo, teocracia e um coletivismo de direita que manteve, e até consolidou, o domínio das classes privilegiadas tradicionais. Mas só recentemente os historiadores começaram a se dar conta de que um arranjo semelhante teve lugar na Inglaterra e nos Estados Unidos. Assim, Bernard Semmel, em sua brilhante história do movimento social-imperialista na Inglaterra na virada do século, mostra como a sociedade fabiana viu com bons olhos a ascensão dos imperialistas na Inglaterra.[6] Quando, em meados da década de 1890, o Partido Liberal dividiu-se na Inglaterra entre radicais, à esquerda, e liberal-imperialistas, à direita, Beatrice Webb, uma das líderes dos fabianos, acusou os radicais de “adeptos do laissez-faire e anti-imperialistas”, ao mesmo tempo em que aclamava os segundos como “coletivistas e imperialistas”. Um manifesto fabiano oficial, O Fabianismo e o Império (Fabianism and the Empire), de 1900, redigido por George Bernard Shaw (que mais tarde, com absoluta coerência, exaltaria as políticas internas de Stalin e de Mussolini e de Sir Oswald Mosley), enalteceu o imperialismo e atacou os radicais, que “ainda se aferram aos ideais de fronteiras rígidas do republicanismo individualista (e da) não-interferência”. Em contraposição, “uma Grande Potência… deve governar (um império mundial) no interesse da civilização em seu conjunto”. Depois disso, os fabianos colaboraram estreitamente com os tories e os liberais-imperialistas. De fato, no final de 1902, Sidney e Beatrice Webb constituíram um pequeno grupo secreto de consultores especializados chamado “Os Coeficientes” (The Coefficients). Na qualidade de um dos dirigentes desse clube, o imperialista tory Leopold S. Amery escreveu, reveladoramente:
“Sidney e Beatrice Webb estavam muito mais empenhados em ter suas ideias sobre o estado previdenciário postas em prática por quem quer que estivesse em condições de ajudar, mesmo na mais modesta escala, que com o triunfo próximo de um Partido Socialista declarado… não havia, afinal, nada de tão extraordinário – como o demonstrou a própria carreira de (Joseph) Chamberlain – numa combinação de imperialismo nas questões externas com socialismo municipal ou semi-socialismo no âmbito interno”.[7]
Outros membros do grupo “Os Coeficientes”, o qual, nas palavras de Amery, deveria atuar como um “conselho de especialistas ou estado-maior” em relação ao movimento, foram o liberal-imperialista Richard B. Haldane; o geopolítico Hal-ford J. Mackinder; o imperialista e germanófobo Leopold Maxse, editor da National Review, o socialista e imperialista tory Viscount Milner; o adepto do imperialismo naval Carlyon Bellairs; o famoso jornalista J. L. Garvin; Bernard Shaw; Sir Clinton Dawkins, sócio do Morgan Bank; e Sir Edward Grey, o primeiro a esboçar, numa reunião do clube, a política de entente com a França e a Rússia, a qual viria a ter por resultado a Primeira Guerra Mundial.[8]
A célebre traição dos ideais tradicionais de pacifismo revolucionário pelos socialistas europeus, e mesmo pelos marxistas, durante a Primeira Guerra Mundial, não deveria ter causado surpresa alguma. O apoio dado por cada um dos partidos socialistas a seu “próprio” governo nacional durante a guerra (com a honrosa exceção do Partido Socialista de Eugene Victor Debs, nos Estados Unidos) foi a materialização final do colapso da esquerda socialista clássica. Daí por diante, socialistas e quase-socialistas aliaram-se a conservadores num amálgama básico, aceitando o estado e a economia mista (i.e., o neo-mercantilismo, o estado previdenciário, o intervencionismo ou o capitalismo monopolista de estado – todos, afinal, meros sinônimos a expressarem a mesma realidade essencial). Foi em reação a esse colapso que Lênin emergiu da Segunda Internacional para restaurar o marxismo revolucionário clássico, numa revitalização do socialismo de esquerda.
De fato, Lênin, quase sem o saber, fez mais que isso. É sabido que os movimentos “purificadores”, ávidos por retornar a uma filosofia clássica depurada de adulterações recentes, avançam em geral além das teses das fontes originais. Havia, na verdade, traços “conservadores” bem marcados nos escritos dos próprios Marx e Engels, que muitas vezes justificaram o estado, o imperialismo ocidental e o nacionalismo exacerbado; e foram esses aspectos, segundo as opiniões ambivalentes dos mestres na matéria, que forneceram a base racional para a posterior transferência da maioria dos marxistas para o campo “social imperialista”.[9] O campo de Lênin tornou-se mais de “esquerda” que o dos próprios Marx e Engels. Lênin assumiu uma postura inegavelmente mais revolucionária em relação ao estado e, de forma coerente, defendeu e apoiou movimentos de libertação nacional contra o imperialismo. O movimento leninista foi mais “esquerdista” também sob outros importantes aspectos. Pois, enquanto Marx centrara seu ataque sobre o capitalismo de mercado per se, Lênin concentrou sua atenção sobretudo no que concebia como as etapas mais avançadas do capitalismo: o imperialismo e o monopólio. Estando a atenção de Lênin muito mais voltada, na prática, para o monopólio de estado e o imperialismo que para o capitalismo de laissez-faire, seu enfoque tornava-se assim muito mais aceitável para os libertários que o de Karl Marx.
O fascismo e o nazismo representaram o ápice alcançado, em alguns países, pela guinada moderna rumo ao coletivismo de direita no âmbito dos negócios internos. Tornou-se costumeiro entre libertários – do mesmo modo, na verdade, que entre o Establishment do Ocidente – encarar o fascismo e o comunismo como fundamentalmente idênticos. Mas, embora ambos fossem sem dúvida coletivistas, apresentavam enorme diferença em seu conteúdo socioeconômico. O comunismo constituiu um movimento revolucionário genuíno, que desalojou e destronou de modo implacável as elites dominantes estabelecidas, ao passo que o fascismo, ao contrário, consolidou no poder as classes dominantes tradicionais. O fascismo foi, portanto, um movimento contrarrevolucionário, que cristalizou um conjunto de privilégios de monopólio sobre a sociedade; em suma, representou a apoteose do moderno capitalismo monopolista de estado.[10] E foi por essa razão que se provou tão atraente (o que nunca ocorreu com o comunismo, é claro) aos grandes interesses empresariais do Ocidente – e isto de maneira aberta e despudorada ao longo da década de 1920 e no início da de 1930.[11]
Temos agora condições de aplicar nossa análise à cena norte-americana. Aí encontramos um mito que se destaca, acerca da história recente dos Estados Unidos, propagado pelos conservadores de nossos dias e acatado pela maioria dos libertários norte-americanos. Esse mito diz, aproximadamente, o seguinte: os Estados Unidos foram, em maior ou menor grau, um refúgio do laissez-faire até o New Deal; então Roosevelt, influenciado por Felix Frankfurter, pela Sociedade Socialista Intercongregada e por outros “conspiradores” “fabianos” e comunistas, maquinou uma revolução que colocou o país na senda que leva ao socialismo, e, numa perspectiva mais distante, ao comunismo. O libertário de hoje que adote essa interpretação, ou outra similar, da experiência norte-americana, tende a se considerar como da “extrema direita”; um pouco à sua esquerda estaria o conservador; à esquerda deste, o moderado, e, em seguida, do lado esquerdo, o socialista e o comunista. Daí a grande tentação, para alguns libertários, de perseguir os comunistas. Pois, como aos seus olhos os Estados Unidos deslocam-se inexoravelmente à esquerda, rumo ao socialismo, e, por conseguinte, rumo ao comunismo, torna-se para eles extremamente tentador saltar as etapas intermediárias e tingir com a odiada brocha vermelha todo o alvo de sua oposição.
Poder-se-ia pensar que o “libertário de direita” logo teria condições de detectar algumas fissuras profundas nessa concepção. Em primeiro lugar, a emenda do imposto sobre a renda, que ele deplora como o início do socialismo nos Estados Unidos, foi aprovada no Congresso, em 1909, por uma maioria esmagadora de ambos os partidos. Considerar esse evento como um nítido desvio à esquerda, em direção ao socialismo, exigiria que se considerasse o Presidente William Howard Taft, que sancionou a 16ª Emenda, um esquerdista, coisa que, decerto, poucos ousariam fazer. Ha verdade, o New Deal não foi uma revolução em sentido algum; todo o seu programa coletivista tivera antecedentes – recentes, com Herbert Hoover, durante a depressão; mais remotos, no coletivismo de guerra e no planejamento central que governaram os Estados Unidos durante a Primeira Guerra Mundial. Os componentes do programa do New Deal – planejamento central, criação de uma rede de cartéis compulsórios para a indústria e a agricultura, inflação e expansão do crédito, elevação artificial dos níveis salariais e incentivo à formação de sindicatos dentro da estrutura de monopólio global, regulamentação e propriedade governamental – haviam sido, todos eles, prenunciados e delineados ao longo das duas décadas anteriores.[12] E esse programa, com sua concessão de privilégios a vários grandes grupos empresariais no auge da empreitada coletivista, não foi, em nenhum sentido, um socialismo ou um esquerdismo; nada havia nele que lembrasse de longe o igualitário ou o proletário, não, o parentesco desse coletivismo florescente não era de modo algum com o socialismo-comunismo; era, sim, com o fascismo, ou o socialismo de direita, parentesco que muitos grandes empresários da década de 1920 expressaram abertamente em seu anseio pela substituição de um sistema de quase laissez-faire por um coletivismo que teriam condições de controlar. E não resta dúvida de que William Howard Taft, Woodrow Wilson e Herbert Clark Hoover constituem personagens muito mais facilmente identificáveis como protofascistas que como criptocomunistas.
A essência do New Deal foi apreendida, com muito mais clareza que na mitologia conservadora, pelo movimento leninista no início da década de 1930 – ou melhor, até meados dessa década, quando as exigências das relações externas soviéticas provocaram um brusco desvio da linha comunista mundial, levando à “Frente Popular” de apoio ao New Deal. Assim, em 1934, o teórico leninista inglês R. Palme Dutt publicou uma breve mas fulminante análise do New Deal como “fascismo social” – um fascismo de fato, disfarçado por tênue verniz de demagogia populista, nenhum oponente conservador jamais proferiu denúncia mais vigorosa ou incisiva do New Deal. O programa de Roosevelt, escreveu Dutt, era “avançar para uma ditadura de tipo militarista”. Os objetivos principais, ainda segundo Dutt, eram: impor um capitalismo monopolista de estado por intermédio da Administração da Recuperação nacional; subsidiar as atividades empresariais, bancárias e a agricultura por meio da inflação e da expropriação da grande maioria do povo, mantendo níveis de salário real mais baixos; e regular e explorar o operariado mediante salários fixados pelo governo e arbitragem compulsória. Quando o New Deal, prossegue Dutt, é despido de sua “camuflagem ‘progressista’, social reformista, … o que fica é a realidade do novo modelo fascista de sistema de capitalismo de estado concentrado e servidão industrial”, envolvendo um implícito “avanço rumo à guerra”. Dutt conclui convincentemente, citando palavras de um editor do conceituado Current History Magazine:
“A nova América (escrevia esse editor em meados de 1938) não será capitalista no velho sentido, e tampouco será socialista. Se a tendência atual é para o fascismo, será um fascismo americano, que incorporará a experiência, as tradições e as aspirações de uma grande nação de classe média.”[13]
O New Deal não significou, portanto, uma ruptura qualitativa com o passado dos Estados Unidos. Ao contrário, foi uma simples extensão quantitativa da teia de privilégios concedidos pelo estado, já proposta e aplicada anteriormente: na administração de Hoover, no coletivismo de guerra da Primeira Guerra Mundial e no Período Progressista. A mais completa exposição das origens do capitalismo monopolista de estado, ou do que ele chama de “capitalismo político”, nos Estados Unidos, encontra-se na brilhante obra do Dr. Gabriel Kolko. Em The Triumph of Conservatism, Kolko situa as origens do capitalismo político nas “reformas” do Período Progressista. Os historiadores ortodoxos sempre consideraram esse período (1900-1916, aproximadamente) como uma época em que o capitalismo de livre mercado tornara-se progressivamente mais “monopólico”. Em reação a esse domínio do monopólio e da grande empresa – assim reza a história – intelectuais altruístas e políticos prescientes teriam assumido a defesa da intervenção por parte do governo para corrigir e controlar tais males. O importante trabalho de Kolko demonstra que o que de fato se passou foi quase o oposto do que pretende o mito. Apesar da avalanche de fusões e de trustes formada por volta da virada do século, revela Kolko, as forças competitivas em ação no mercado livre rapidamente invalidavam e dissolviam essas tentativas de estabilizar e perpetuar o poder econômico dos grandes grupos empresariais. Foi precisamente em reação à sua iminente derrota sob as tempestades competitivas do mercado que a grande empresa, a partir de 1900, passou a recorrer cada vez mais ao governo federal em busca de ajuda e proteção. Em suma, a intervenção do governo federal destinava-se, não a refrear o monopólio da grande empresa no interesse do bem público, mas a criar monopólios que a grande empresa (assim como as associações de empresas menores) não fora capaz de implantar em meio à árdua concorrência do mercado livre. Tanto a direita quanto a esquerda foram persistentemente induzidas em erro pela noção de que intervenção do governo significa ipso facto esquerdismo e oposição aos interesses da grande empresa. Daí a mitologia, endêmica entre a direita, do caráter vermelho do New (ou Fair) Deal. Tanto os grandes empresários (persuadidos pelos lucros do grupo Morgan) quanto o professor Kolko (praticamente o único, no mundo acadêmico) deram-se conta de que o privilégio de monopólio só pode ser criado pelo estado, não podendo resultar de operações do mercado livre.
Kolko mostra assim que, começando com o novo nacionalismo (New Nationalism) de Theodore Roosevelt e culminando na nova Liberdade (New Freedom) de Wilson, baixaram-se normas, que os direitistas de hoje consideram de cunho socialista, sobre setor após setor (p. ex., seguros, bancos, carne, exportação e área empresarial em geral), não de maneira uniforme, mas segundo fórmulas concebidas e propostas pelos grandes empresários. Constituíram essas normas uma tentativa deliberada de introduzir na economia a consolidação dos subsídios, da estabilização e dos privilégios de monopólio. Um ponto de vista típico sobre o assunto foi o de Andrew Carnegie. Profundamente preocupado com a concorrência na indústria do aço – que nem a formação da U.S. Steel, nem os famosos “Jantares de Gary”, promovidos por essa companhia do grupo Morgan, estavam sendo capazes de refrear – Carnegie declarava, em 1908: “Ocorre-me sempre a ideia de que o controle governamental, e apenas ele, resolverá o problema de modo adequado.” nada há de alarmante na regulamentação governamental, declarava ele: “O capital está absolutamente seguro na companhia de gás, embora ela esteja sob o controle estatal. Assim também estará seguro todo o capital, mesmo que sob o controle do governo…”[14]
O Partido Progressista, como o demonstra Kolko, foi basicamente um partido criado pelo Morgan para reeleger Roosevelt e punir o Presidente Taft, que havia demonstrado excesso de zelo em processar as empresas Morgan. Os militantes de esquerda muitas vezes forneciam, por inadvertência, um verniz demagógico para um movimento conservador-estatista. A Nova Liberdade de Wilson, que culminou com a criação da Comissão Federal de Comércio, longe de ter sido considerada perigosamente socialista pela grande empresa, foi acolhida com entusiasmo como tendo vindo implementar o programa de apoio, privilégio e controle há tanto tempo acalentado para a concorrência. O coletivismo de guerra de Wilson foi saudado de forma ainda mais exuberante. Edward H. Hurley, presidente da Comissão Federal de Comércio e ex-presidente da Associação de Indústrias de Illinois, anunciou alvissareiramente, em fins de 1915, que a Comissão Federal do Comércio destinava-se a “fazer, pelo comércio em geral”, o mesmo que a Comissão Interestadual de Comércio estivera fazendo diligentemente pelas ferrovias e pelos transportadores, que a Reserva Federal estava fazendo pelos banqueiros da nação e que o Ministério da Agricultura estava realizando para os agricultores.[15] Como ocorreria de forma mais dramática no fascismo europeu, cada grupo de interesses econômicos estava sendo “cartelizado”, monopolizado e encaixado no seu nicho privilegiado, no âmbito de uma estrutura socioeconômica hierarquicamente orientada. Particularmente influentes foram as concepções de Arthur Jerome Eddy, eminente advogado empresarial, especializado na formação de associações comerciais e um dos artífices da Comissão Federal de Comércio. Em sua obra mais importante, ao denunciar com veemência a competição no setor empresarial e exigir a “cooperação” industrial protegida e controlada pelo governo, Eddy trombeteava: “a concorrência é a Guerra, e a Guerra é o Inferno”.[16]
E os intelectuais do período progressista, condenados pela direita de hoje como “socialistas”? Num certo sentido, foram de fato socialistas. Mas seu “socialismo” foi o conservador socialismo de estado da Alemanha de Bismarck, o protótipo de tantas das modernas formas políticas europeias – e norte-americanas –, sob o qual o grosso dos intelectuais norte-americanos do final do século XIX recebera sua educação superior. Nas palavras de Kolko:
O conservadorismo dos intelectuais contemporâneos… a idealização do estado por parte de Lester Ward, Richard T. Ely ou Simon N. Patten… foi também resultado da formação peculiar recebida por muitos dos professores universitários desse período, no final do século XIX, a principal influência sobre a teoria acadêmica social e econômica era a das universidades. A idealização bismarckiana do estado, com suas funções previdenciárias centralizadas… foi devidamente reestudada pelos milhares de ocupantes de postos-chave do meio acadêmico que estudaram em universidades alemãs nas décadas de 1880 e 1890…[17]
Ademais, o ideal dos principais mestres alemães ultraconservadores, também chamados “os socialistas de cátedra”, era o de se constituírem voluntariamente na “guarda pessoal da Casa dos Hohenzollern” – e sem dúvida foram isso mesmo.
Como um típico exemplo de intelectual progressista, Kolko cita, com propriedade, Herbert Croly, editor do New Republic, órgão financiado pelo grupo Morgan. Ao sistematizar o novo nacionalismo de Theodore Roosevelt, Croly saudou esse novo hamiltonianismo como um sistema para o controle federal coletivista e a integração da sociedade numa estrutura hierárquica. Considerando o que se seguiu ao Período Progressista, Gabriel Kolko conclui:
… criou-se durante a guerra, em vários órgãos administrativos e de emergência, uma síntese de negócios e política em nível federal que perdurou por toda a década seguinte. De fato, o período da guerra representa o triunfo da empresa da maneira mais enfática possível… a grande empresa grangeou o total apoio dos vários órgãos reguladores e do Executivo. Foi durante a guerra que acordos exequíveis, eficazes, de oligopólio, preço e mercado tornaram-se operacionais nos setores dominantes da economia norte-americana. A rápida difusão do poder na economia e a relativa facilidade de ingresso na mesma virtualmente se extinguiram. Apesar da suspensão de importantes dispositivos legais recentes, a união entre a empresa e o governo federal continuou ao longo da década de 1920 e daí por diante, valendo-se das bases lançadas no Período Progressista para estabilizar e consolidar a situação vigente no seio de várias indústrias… O princípio da utilização do governo federal para a estabilização da economia, firmado no contexto do industrialismo moderno durante o Período Progressista, tornou-se a base do capitalismo político em suas muitas ramificações ulteriores.
Nesse sentido, o progressismo não morreu na década de 1920, tendo, ao contrário, passado a constituir uma parte da estrutura básica da sociedade norte-americana.[18]
Como resultado, o New Deal. Após brevíssima oscilação esquerdizante no final da década de 1930, a administração Roosevelt consolidou sua aliança com a grande empresa por meio da economia de defesa nacional e de contrato para a fabricação de material bélico, iniciados em 1940. Essa economia e esse programa são os mesmos que vêm regendo os Estados Unidos desde então, corporificados na economia de guerra permanente, no capitalismo monopolista de estado amadurecido e no neomercantilismo – o complexo militar-industrial de nosso tempo. As características essenciais da sociedade norte-americana não sofreram alteração desde que foi de todo militarizada e subordinada à política por ocasião da Segunda Guerra Mundial – exceto pelo fato de que as tendências se intensificam, e, mesmo na vida cotidiana, os homens foram sendo, cada vez mais, moldados como funcionários conformistas, a serviço do estado e de seu complexo industrial-militar. William H. Whyte, Jr., em seu merecidamente famoso The Organization Man, tornou claro que essa moldagem processou-se em meio à adoção, pelo mundo empresarial, das concepções coletivistas formuladas por sociólogos e outros profissionais “iluminados” da engenharia social. É óbvio também que essa harmonia de concepções não é apenas resultado da ingenuidade dos grandes empresários, sobretudo quando tal “ingenuidade” ajusta-se às suas necessidades de comprimir o operário e o administrador no molde de um servidor voluntário da grande burocracia da máquina militar-industrial. E, a pretexto de “democracia”, a educação transformou-se em simples adestramento em larga escala nas técnicas de ajustar-se à tarefa de se converter numa engrenagem da imensa máquina burocrática.
Enquanto isso, republicanos e democratas continuam tão “bipartidários” em compor e defender esse Establishment como o haviam sido nas duas primeiras décadas do século XX. A doutrina do “para mim também” (Me-tooism) – esteio bipartidário do status quo subjacente às diferenças de superfície entre os partidos – não começou em 1940.
Como reagiu o pequeno grupo, constituído pelos libertários remanescentes a essas modificações do espectro ideológico nos Estados Unidos? Pode-se encontrar uma resposta instrutiva examinando a carreira de um dos grandes libertários dos Estados Unidos no século XX, Albert Jay Nock. Na década de 1920, após ter formulado sua filosofia libertária radical, Nock se considerava, e como tal era universalmente encarado, um membro da extrema esquerda. Há sempre a tendência, na vida ideológica e política, a se concentrar a atenção no inimigo principal do momento, e o principal inimigo naquele momento era o estatismo conservador do Governo Coolidge-Hoover. Era natural, portanto, que Nock, seu amigo e companheiro libertário Mencken, e outros radicais se unissem a quase socialistas na luta contra o adversário comum. Por outro lado, quando o New Deal sucedeu a Hoover, socialistas menos convictos e intervencionistas com vagas tendências de esquerda aderiram ao movimento vitorioso do New Deal; na esquerda, apenas libertários do porte de Nock e Mencken, além dos leninistas (antes da sua fase de Frente Popular), deram-se conta de que Roosevelt nada mais era que um prolongamento de Hoover, disfarçado por outra retórica. Parecia aos radicais perfeitamente natural formar uma frente unida contra Franklin Delano Roosevelt, ao lado dos antigos conservadores partidários de Hoover e de Al Smith, convencidos, uns e outros, de que Roosevelt fora longe demais, ou desgostosos com sua bombástica retórica populista. O problema foi que Nock e seus companheiros radicais, que de início reservavam aos recém-descobertos aliados o devido desprezo, logo passaram a aceitá-los, e até a ostentar de bom grado o rótulo, antes menosprezado, de “conservador”. Entre os radicais de segunda linha, essa alteração se processou, como outras tantas transformações de ideologia na história, de maneira inadvertida e na ausência de uma liderança ideológica apropriada. Para Nock, e até certo ponto para Mencken, em contrapartida, o problema alcançou níveis muito mais profundos.
Sempre existira uma grave falha na brilhante e bem aplanada doutrina elaborada, segundo a maneira bem diversa de cada um, por Nock e Mencken: ambos haviam adotado por muito tempo o grande erro do pessimismo. Ambos não viam probabilidade alguma de que a raça humana chegasse um dia a abraçar o sistema da liberdade. Sem qualquer esperança de que a doutrina radical da liberdade jamais viesse a ser posta em prática, ambos se eximiram, cada um a seu modo, da responsabilidade da liderança ideológica: Mencken, jovial e prazerosamente; Nock, com altivez e reserva. Portanto, a despeito da sólida contribuição desses dois homens para a causa da liberdade, nenhum deles pôde jamais tornar-se o líder convicto de um movimento libertário, porque ambos jamais foram capazes de antever o partido da liberdade como o partido da esperança, o partido da revolução, ou, a fortiori, o partido do messianismo secular. O erro do pessimismo é o primeiro passo descendente na escorregadia ladeira que leva ao conservadorismo; a partir daí, tornou-se demasiado fácil para o pessimista radical Nock, mesmo sendo ainda basicamente um libertário, aceitar o rótulo de conservador, e, até, ir ao ponto de agourar o velho chavão de que há sempre uma atitude de desconfiança a priori contra qualquer mudança social.
É fascinante notar que Albert Jay Nock seguiu assim a trilha ideológica de seu prezado antepassado espiritual, Herbert Spencer. Ambos começaram como autênticos liberais radicais, ambos abriram mão rapidamente das táticas radicais ou revolucionárias tal como se expressavam na intenção de pôr em prática suas teorias mediante a ação popular, e ambos, ao final, passaram imperceptivelmente do uso de táticas tory para o que foi, no mínimo, um “torysmo” parcial no plano do conteúdo.
E assim os libertários, sobretudo na percepção que tinham da posição que ocupavam no espectro ideológico, fundiram-se com os conservadores mais antigos, que, por sua vez, foram obrigados a adotar uma fraseologia libertária (mas destituída de conteúdo libertário real) na oposição a um governo de Roosevelt que, a seu ver, tornara-se demasiado coletivista, tanto na essência quanto na retórica. A Segunda Guerra Mundial reforçou e consolidou essa aliança; pois, em contraste com as demais guerras norte-americanas do século XX, as forças pacifistas e “isolacionistas” foram todas identificadas – primeiro pelos seus opositores e subsequentemente por elas mesmas. — como constituídas por homens da “direita”. Ao término da Segunda Guerra Mundial, tornou-se um hábito arraigado entre os libertários situarem-se a si mesmos num polo de “extrema direita”, com os conservadores imediatamente à sua esquerda – donde o grande desacerto do espectro ideológico que persiste até hoje. Em particular, os libertários modernos esqueceram (ou jamais compreenderam) que a oposição à guerra e ao militarismo fora, desde sempre, uma tradição da esquerda que abrangera os libertários. Assim, quando a aberração histórica do período New Deal corrigiu-se a si mesma e a “direita” voltou a ser o grande adepto da guerra total, os libertários estavam despreparados para entender o que se passava e acompanharam as pegadas dos seus supostos “aliados” conservadores. Os liberais tinham perdido por completo sua identidade e suas diretrizes ideológicas tradicionais.
Feita uma reorientação adequada do espectro ideológico, quais seriam então as perspectivas para a liberdade? Nada há de espantoso em que o libertário contemporâneo, vendo o mundo a se tornar socialista e comunista, e acreditando-se virtualmente isolado e à margem de qualquer possibilidade de ação popular conjunta, tenda a impregnar-se de pessimismo quanto às suas perspectivas a longo prazo. Mas o panorama ilumina-se de imediato quando nos damos conta de que o requisito indispensável à civilização moderna – a derrocada da Velha Ordem – foi levado a cabo pela ação libertária das massas, irrompendo no Ocidente em revoluções tão grandiosas quanto a francesa e a norte-americana, provocando as glórias da Revolução Industrial e os avanços da liberdade, da mobilidade e os padrões de vida ascendentes que até hoje conservamos. Apesar das oscilações reacionárias no sentido de um retorno ao estatismo, o mundo mantém-se num plano muito superior ao do mundo do passado. Quando consideramos também que, de uma maneira ou de outra, a Velha Ordem do despotismo, do feudalismo, da teocracia e do militarismo dominou todas as civilizações humanas até a civilização ocidental do século XVIII, o otimismo quanto ao que o homem conquistou e pode conquistar deve tornar-se ainda maior.
É possível retrucar, entretanto, que esse árido registro histórico de despotismo e estagnação apenas reforça o pessimismo das pessoas, pois mostra a persistência e a durabilidade da Velha Ordem e a pretensa fragilidade e o esmorecimento da Nova, sobretudo em vista do retrocesso ocorrido no século passado. Mas uma análise de tal superficialidade deixa de considerar a grande mudança ocorrida com a revolução da nova Ordem, mudança claramente irreversível. Pois a Velha Ordem pôde persistir ao longo de séculos em seu sistema de escravidão apenas porque não despertava quaisquer expectativas ou esperanças nas mentes de populações imersas na penúria; o quinhão que lhes cabia era viver e subsistir em animalesca labuta na escravidão, enquanto obedeciam de forma incondicional às ordens de seus senhores, designados por Deus. Mas a revolução liberal implantou de modo indelével no espírito dos povos – não apenas do Ocidente, mas também no mundo subdesenvolvido ainda sob domínio feudal – um ardente desejo de liberdade, de terra para o campesinato, de paz entre as nações, e, talvez acima de tudo, de mobilidade e de padrões de vida ascendentes, que só lhes podem ser assegurados por uma civilização industrial. As classes subalternas jamais voltarão a aceitar a servidão insensata da Velha Ordem; e, dadas essas exigências que o liberalismo e a Revolução Industrial vieram despertar, a vitória final da liberdade é inevitável.
Apenas a liberdade, apenas um mercado livre, podem organizar e preservar um sistema industrial; e quanto maior é a população, mais necessário se faz o funcionamento desembaraçado dessa economia industrial. O laissez-faire e a exigência de um mercado livre tornam-se mais evidentes à medida que um sistema industrial amadurece; desvios radicais provocam colapsos e crises econômicas. A crise do estatismo torna-se em especial dramática e aguda em sociedades de todo socializadas; por isso, o colapso inevitável do estatismo tornou-se flagrantemente notório em primeiro lugar nos países do campo socialista (i.e., comunista). Pois o socialismo defronta-se de maneira mais direta com as contradições internas do estatismo. Tenta com desespero cumprir as metas que anuncia em relação ao crescimento industrial, a padrões de vida mais elevados para a população, e ao definhamento final do estado – e, cada vez mais, torna-se incapaz de alcançá-las mediante seus meios coletivistas. Donde o colapso inevitável do socialismo. No entanto, a progressiva falência do planejamento socialista foi em parte obscurecida de início, e isto porque os leninistas tomaram o poder não num país capitalista desenvolvido (como Marx erroneamente o previra), mas em um país submetido à opressão do feudalismo. Em segundo lugar, por muitos anos após a tomada do poder, os comunistas não tentaram impor o socialismo à economia – na Rússia soviética, não o fizeram até que a coletivização forçada implantada por Stalin no início da década de 1930 viesse anular a sabedoria da Nova Política Econômica de Lênin, que Bukharin – o teórico favorito do próprio Lênin – teria ampliado na direção de um mercado livre. Mesmo os supostamente fanáticos líderes comunistas da China não impuseram uma economia socialista àquele país até fins da década de 1950. Em todos esses casos, a crescente industrialização provocou uma série de colapsos econômicos de tal gravidade que os países comunistas, contrariando seus princípios ideológicos, tiveram de afastar-se passo a passo do planejamento central e retornar a diversos graus e formas de um mercado livre. O Plano Liberman para a União Soviética ganhou enorme notoriedade; mas o inevitável processo de dessocialização foi muito mais longe na Polônia, na Hungria e na Tchecoslováquia. A Iugoslávia, porém, foi o país que mais avançou: liberta da rigidez stalinista mais cedo que esses outros países, promoveu sua dessocialização em apenas doze anos, em ritmo tão acelerado e levando-a a tal ponto que hoje sua economia mal pode ser considerada mais socialista que a da França. O país continua sendo governado por pessoas que se intitulam “comunistas”, mas isso é irrelevante para o plano dos fatos sociais e econômicos básicos. O planejamento central virtualmente desapareceu na Iugoslávia. O setor privado não só predomina na agricultura, como é forte também na indústria; o próprio setor público foi tão radicalmente descentralizado e submetido às provas da livre arbitragem dos preços e do lucro e perda, bem como à propriedade de cada fábrica pela cooperativa de seus trabalhadores, que mal se poderia falar da sobrevivência de um verdadeiro socialismo. Só resta por ser dado, no caminho que leva ao capitalismo completo, o passo final de converter o controle sindical dos trabalhadores em cotas individuais de propriedade. A China comunista e os abalizados teóricos marxistas de Monthly Review perceberam claramente a situação e lançaram o alarme de que a Iugoslávia deixara de ser um país socialista.
Poder-se-ia pensar que os economistas do mercado livre fossem festejar a confirmação e a crescente relevância da notável previsão feita pelo Professor Ludwig von Mises meio século atrás: a de que os estados socialistas, sendo necessariamente desprovidos de um sistema de preços genuíno, não teriam condições de calcular em termos econômicos, e, em consequência, seriam incapazes de planejar sua economia com qualquer grau de sucesso. Na verdade, um discípulo de von Mises anteviu esse processo de dessocialização num romance escrito há alguns anos. E, no entanto, nem esse autor nem qualquer outro economista do mercado livre deu o mais leve indício de sequer admitir – que dirá aclamar – a ocorrência desse processo nos países comunistas. Talvez porque sua posição quase histérica em face da pretensa ameaça do comunismo os impeça de admitir qualquer dissolução no suposto monopólio que os ameaça.[19]
Os países comunistas estão, portanto, progressiva e inexoravelmente fadados à dessocializar-se, e acabarão, assim, por chegar ao mercado livre. A situação dos países não desenvolvidos é também motivo de constante otimismo libertário; pois, em todo o mundo, os povos das nações não desenvolvidas encontram-se empenhados em derrubar sua Velha Ordem feudal. É verdade que os Estados Unidos fazem o que podem para sufocar processos revolucionários análogos àqueles mesmos que, outrora, permitiram à própria nação norte-americana e à Europa Ocidental escapar aos grilhões da Velha Ordem. Torna-se, no entanto, cada vez mais claro que mesmo uma esmagadora força bélica é incapaz de sufocar o desejo dos povos de forçar sua entrada no mundo moderno.
Restam-nos os Estados Unidos e os países da Europa Ocidental. Aqui, as razões para o otimismo são menos claras, pois o sistema quase coletivista não se mostra em crise tão severa de autocontradição como o socialismo. Contudo, também aqui a crise econômica assoma no futuro, e corrói a presunção dos gestores econômicos keynesianos: inflação progressiva, refletida no colapso cada vez mais grave da balança de pagamentos do outrora todo poderoso dólar; desemprego cíclico crescente, provocado por escalas de salário mínimo, e a acumulação mais profunda e prolongada das distorções antieconômicas geradas pela economia de guerra permanente. Além disso, as crises potenciais nos Estados Unidos não são só econômicas; há entre a juventude norte-americana uma efervescência animadora e contagiante contra os grilhões da burocracia centralizada, da educação uniforme do povo e da brutalidade e opressão exercidas pelos agentes subalternos do estado.
Mais ainda, a manutenção de um amplo grau de liberdade de expressão e de uma estrutura democrática facilita, pelo menos a curto prazo, o possível crescimento de um movimento libertário. Os Estados Unidos têm também a sorte de possuir, ainda que semi-esquecida sob o envoltório estatista e tirânico da primeira metade do século, uma grande tradição de pensamento e ação libertários. O próprio fato de que muito dessa herança reflete-se até agora na retórica popular, mesmo que destituída de sua significância na prática, fornece uma base ideológica substancial para um futuro partido da liberdade.
Aquilo que os marxistas chamariam de “condições objetivas” para o triunfo da liberdade existe, portanto, por toda parte no mundo, e mais do que em qualquer época passada; pois, em toda parte, o povo optou por padrões de vida mais elevados e pela promessa da liberdade, e em toda parte os vários regimes de estatismo e coletivismo não têm como alcançar essas metas. O que falta, portanto, são apenas as “condições subjetivas” para a vitória, isto é, um corpo cada vez maior de libertários esclarecidos, que difundam entre os povos do mundo a mensagem de que a liberdade e o mercado totalmente livre oferecem a saída para seus problemas e crises. A liberdade não pode ser alcançada na sua plenitude a menos que existam libertários em número suficiente para conduzir os povos ao caminho certo. Mas talvez o maior obstáculo à criação de tal movimento seja a desesperança e o pessimismo típicos do libertário no mundo de hoje. Muito desse pessimismo se deve à sua interpretação equivocada da história e ao fato de que ele se julga, a si mesmo e a seus poucos confrades, irremediavelmente isolado das massas, e, por conseguinte, das alterações de curso por que passa a história. Converte-se então num crítico isolado dos eventos históricos, ao invés de numa pessoa que se considera parte integrante de um movimento potencial que pode fazer história e a fará. O libertário moderno esqueceu que o liberal dos séculos XVII e XVIII enfrentou desvantagens muito mais esmagadoras que aquelas com que ele hoje se defronta; pois, naquela época, antes da Revolução Industrial a vitória do liberalismo estava longe de ser inevitável. E, contudo, o liberalismo daquele tempo não se contentava em permanecer um partido insignificante e obscuro; ao contrário, uniu teoria e ação. O liberalismo nasceu e desenvolveu-se como uma ideologia, e, orientando e guiando as massas, fez a revolução que mudou o destino do mundo. Pela monumental ruptura que operou, essa revolução do século XVIII transformou a história de uma crônica de estagnação e despotismo num movimento contínuo rumo a uma verdadeira utopia secular de liberdade, racionalidade e abundância. A Velha Ordem está morta ou moribunda, e as tentativas reacionárias de gerir uma sociedade e uma economia modernas mediante modalidades diversas de retrocesso à Velha Ordem estão fadadas ao fracasso total. Os liberais do passado deixaram para os libertários modernos uma gloriosa herança, não só de ideologia, mas de vitórias contra vantagens ainda mais devastadoras. Os liberais do passado também deixaram como herança a estratégia e as táticas adequadas para o uso dos libertários, não somente por terem assumido a frente das massas ao invés de permanecerem à margem, mas também por não se terem deixado enredar num otimismo imediatista. Pois esse otimismo, por não ser realista, leva diretamente à desilusão e, em consequência, ao pessimismo quanto aos resultados finais, do mesmo modo que, no reverso da moeda, o pessimismo quanto às perspectivas a longo prazo leva à concentração exclusiva e autodestrutiva em resultados imediatos e de curto alcance. O otimismo a curto prazo deriva, em primeiro lugar, de uma concepção ingênua e simplista de estratégia: a de que a liberdade só triunfará pela formação de maior número de intelectuais que, por sua vez, formarão modeladores de opinião, os quais se encarregarão de convencer as massas, após o que o estado, de alguma maneira, levantará acampamento e se retirará em silêncio e às escondidas. As coisas não são tão fáceis assim. Os libertários enfrentam não só um problema de formação, mas também um problema de poder, e é uma lei da história o fato de que jamais uma classe dominante abriu mão voluntariamente do seu poder.
Mas, sem dúvida alguma, nos Estados Unidos, a questão do poder pertence a um futuro remoto. Para o libertário, a principal tarefa do momento presente é desvencilhar-se de seu desnecessário e debilitante pessimismo, ter em mira a vitória final e tomar o caminho que leva à sua consecução. Para tanto deve, talvez, antes de mais nada, retificar drasticamente sua concepção equivocada do espectro ideológico; deve descobrir quem são seus amigos e aliados naturais e, talvez acima de tudo, quem são seus inimigos. Munido desse conhecimento, que prossiga nesse espírito de otimismo radical quanto aos resultados finais, corretamente definidos por Randolph Bourne – uma das grandes figuras da história do pensamento libertário – como o espírito da juventude. E deixe que as estimulantes palavras de Bourne sirvam também de guia para o espírito de liberdade:
… a juventude é a corporificação da razão em luta contra a rigidez da tradição; a juventude faz a tudo que é velho e estabelecido a pergunta impiedosa: Por quê? Para que serve isso? E, quando recebe dos defensores respostas inarticuladas e evasivas, aplica seu próprio espírito de racionalidade, lúcido e claro, a instituições, costumes é ideias, e, julgando-os estúpidos, frívolos ou perniciosos, põe-se instintivamente a trabalhar para derrubá-los e construir em seu lugar as coisas que fervilham em sua fantasia…
A juventude é a levedura que mantém todas essas atitudes de questionamento e análise em fermentação no mundo, não fosse por essa atividade perturbadora que ela exerce, com sua aversão a sofismas e falsas aparências, sua insistência nas coisas como elas são, a sociedade pereceria por simples deterioração. A esperteza da geração mais velha, na medida em que se adapta ao mundo, consiste em esconder-se das coisas desagradáveis onde for possível, ou manter uma conspiração de silêncio e um complicado simulacro de que tais coisas não existem. Mas, enquanto isso, as feridas não deixam de ir supurando. A juventude é o antisséptico drástico… Põe à mostra os males ocultos e insiste em que sejam explicados. Não é de espantar que a geração mais velha tenha temor e desconfiança dos mais jovens. A juventude é o Nêmesis vingador em seu rastro… Nossa gente idosa é sempre otimista em suas opiniões sobre o futuro; a juventude é pessimista em relação ao presente e gloriosamente esperançosa quanto ao futuro.
E é essa esperança que é a alavanca do progresso – a única alavanca do progresso, pode-se dizer…
O segredo da vida é, portanto, jamais perder esse elevado espírito juvenil. Da turbulência da juventude deveria emergir esse sutil precipitado – um sadio, forte e agressivo espírito de arrojo e realização. Deve ser um espírito flexível, em crescimento, com receptividade para novas ideias e aguçado discernimento na experiência. Conservar vividas e verdadeiras as próprias reações é ter encontrado o segredo da eterna juventude, e a eterna juventude é a salvação.[20]
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Notas
[1] Himmelfarb, G. Lorde Acton. Chicago, University of Chicago Press, 1962. p. 204-205.
[2] Himmelfarb, G. cit. p. 209.
[3] Veja-se Becker, C. The Declaration of Independence, Nova York, Vintage Books, 1958. cap. 6.
[4] Devo a informação sobre Comte e Dunoyer, bem como, na verdade, toda a análise do espectro ideológico, a Leonard P. Liggio. Para uma enfatização do aspecto positivo e dinâmico da tendência utópica, muito denegrida em nossos dias, veja-se Milchman, A. “The Social and Political Philosophy of Jean–Jacques Rousseau: Utopia and Ideology”. The november Review, 1964. p. 3-10. Veja-se também Ruhle, J. “The Philosopher of Hope: Ernst Block”. em: Revisionism: Essays on the History of Marxist Ideas, Leopold Labedz, ed. Nova York, Praeger, 1962. p. 177-178
[5] Schumpeter, I. A. Imperalism and Social Classes. Nova York, Meridian Books, 1955. p. 175. Schumpeter, aliás, percebeu que, longe de constituir uma etapa inerente ao capitalismo, o imperialismo moderno foi um retrocesso ao imperialismo pré-capitalista de épocas anteriores, mas dessa vez com uma minoria de capitalistas privilegiados unidos às castas feudais e militares na promoção da investida imperialista.
[6] Semmel, B. Imperialism and Social Reform: English Social – Imperialist Thought, 1895-1914. Cambridge, Harvard university Press, 1960.
[7] Amery, L. S. My Political Life. 3 vols. Londres, Hutchinson, 1953-1955. In: Semmel, B. cit. p. 74-75.
[8] O que importa, é claro, não é o fato de que esses homens foram produto de alguma “conspiração fabiana”, mas, ao contrário, que o fabianismo, por volta da virada do século, era um socialismo a tal ponto “conservadorizado” que se alinhava compactamente às outras correntes neoconservadoras dominantes na vida política inglesa.
[9] Assim, veja-se David, H. B. “Nations, Colonies and Social Classes: The Position of Marx and Engels”. Science and Society, inverno 1965. p. 26-43
[10] Veja-se o penetrante artigo de Groth, A. J. “The ‘Isms’ in Totalitarianism”. American Political Science Review, dez. 1964. p. 888-901. Groth escreve:
“Os comunistas… adotaram em geral medidas que, direta ou indiretamente, extirparam as elites socioeconômicas existentes: a nobreza fundiária, o empresariado, grandes setores da classe média e do campesinato, bem como as elites burocráticas, militares, o serviço público, os corpos judiciário e diplomático… Em segundo lugar, em todos os casos de tomada do poder pelo comunismo, houve um significativo compromisso ideológico-propagandístico com relação a um estado proletário ou dos trabalhadores… (compromisso) acompanhado por oportunidades de mobilidade social ascendente para as classes economicamente inferiores, em termos de educação e de emprego, que sempre excederam em muito as oportunidades disponíveis sob os regimes anteriores. Por fim, em todos os casos, os comunistas empenharam-se em alterar essencialmente o caráter dos sistemas econômicos que caíram sob seu domínio, tipicamente de uma economia agrária para uma economia industrial…
“O fascismo (tanto na versão alemã quanto na italiana] … foi, em termos socioeconômicos, um movimento contrarrevolucionário… Seguramente não expropriou ou eliminou as elites socioeconômicas existentes… Bem ao contrário, o fascismo não sustou a propensão às concentrações privadas monopolísticas na vida empresarial, tendo, em vez disso, reforçado essa tendência…
“É indubitável que o sistema econômico fascista não foi o de uma economia de livre mercado e, portanto, não foi capitalista, se quisermos restringir a aplicação deste termo a um sistema de laissez-faire. Mas não concorreu, de fato, … para preservar as elites socioeconômicas e manter suas recompensas materiais?” (p. 890-891)
[11] Para exemplos da atração exercida por ideias e projetos coletivistas de cunho fascista e de direita sobre grandes empresários norte-americanos nessa época, veja-se Rothbard, M. N., America’s Great Depression.
Princeton, D. Van Mostrand Co.1963. Veja-se também Salvemini, G & LaPiana, G. What to do with Italy. Nova York, Duell, Sloan, and Pearce, 1943. p. 65ss. Sobre a economia fascista, Salvemini escreveu, com perspicácia: “Na realidade, foi o estado, i.e., o contribuinte, quem se tornou responsável pela empresa privada, na Itália fascista, o estado paga pelos desatinos da empresa privada… O lucro é privado e individual. O prejuízo é público e social.” Salvemini, G. Under the Axe of Fascism. Londres, Victor Gollancz, 1936. p. 416.
[12] nesse sentido, veja-se Rothbard, M. N. Américas Great Depression. passim
[13] Dutt, R. F. Fascism and Social Revolution. Nova York, International Publishers, 1934. p. 247-251.
[14] Kolko, G. The Triumph of Conservatism: A Reinterpretation of American History, 1900-1916. Glencoe, Illinois, The Free Press, 1963. p. 173 e passim. Para um exemplo do modo como Kolko já começou a influenciar a historiografia norte-americana, veja-se Economic Change in the Civil War Era. David T. Gilchrist e W. David Lewis, eds. Greenville, Delawar, Eleutherian Mills-Hagley Foundation, 1965. p. 115. Veja-se também a obra complementar e confirmatória de Kolko sobre ferrovias, Railroads and Regulation, 1877-1916. Princeton, Princeton University Press, 1965. Uma breve discussão do papel monopolizador da ICC com relação à indústria ferroviária pode ser encontrada em Stone, C. D. “ICC: Some Remiscences on the Future of American Transportation”. New Individualist Review, primavera 1963, p. 3-15
[15] Kolko, G.: op. cit. p. 274.
[16] Eddy, A. J. The New Competition: An Examination of the conditions Underlying the Radical Change that is Taking Place in the Commercial and Industrial World – The Change from a Competitive to a Cooperative Basis. 7 ed. Chicago, A. C. McClurg and Co., 1920.
[17] Kolko, G.: op. cit. p. 214.
[18] Id. Ibid. p. 286-287.
[19] Uma grata exceção é Grampp. W. D., no artigo “New Directions in the Communist Economies”. Business Horizons, outono 1965, p. 29-36. Escreve ele:
“Hayek afirmou que o planejamento centralizado conduziria à servidão. Disto se conclui que uma redução da autoridade econômica exercida pelo estado deveria levar a um afastamento da servidão. Os países comunistas podem demonstrar que isso é verdade.
Seria um definhamento do estado com que os marxistas não haviam contado, e que tampouco fora previsto pelos que concordam com Hayek” (p. 35).
O romance em questão é a obra de Hazlitt, H. Time Will Run Back. New Rochelle, Nova York, Arlington Mouse, 1966.
[20] The World of Randolph Bourne; Lilian Schlissel, ed. New York, E. P. Dutton and Co., 1965. p. 9-11, 15.