4- LIBERDADE E A EFETIVIDADE DA LEI
Nossa constituição não copia as leis de estados vizinhos. Somos, antes, um modelo para os outros, e não imitadores. Sua aplicação favorece a maioria, em vez da minoria; por isso é chamada de democracia. Se olhamos para as leis, elas propiciam igual justiça a todos, em suas diferenças individuais; quanto à condição social, o progresso, na vida pública, é devido a uma reputação de capacidade, sendo que considerações de classe não podem interferir no mérito. E nem a pobreza barra o caminho. Se um homem tem capacidade para servir ao estado, não é impedido pela obscuridade de sua condição. A liberdade da qual desfrutamos em nosso governo se estende a nossa vida comum. Ah, longe de exercermos uma ciosa vigilância uns sobre os outros, não sentimos que devemos ter raiva de nosso vizinho por ele fazer aquilo de que gosta, ou mesmo indultá-lo com olhares de injúria que não podem deixar de ser ofensivos, apesar de não infligirem qualquer penalidade concreta. Mas toda essa leveza em nossas relações privadas não nos toma alheios à lei enquanto cidadãos. Contra isso, o medo é nossa principal defesa, ensinando-nos a obedecer aos magistrados e às leis, particularmente as que dizem respeito à proteção dos injuriados, quer as que estão nos estatutos ou as que pertencem àquele código que, apesar de não escrito, não pode ser violado sem reconhecida desgraça.[35]
Essa ideia grega de liberdade, como está refletida no discurso de Péricles, é muito semelhante a nossa ideia contemporânea de liberdade, como independência máxima das coerções exercidas pelos outros, inclusive autoridades, sobre nosso comportamento individual. A antiga noção sustentada por alguns acadêmicos, como Fustel de Coulanges, de que os gregos antigos não teriam dado à palavra “liberdade” um sentido semelhante ao que hoje lhe damos na maioria das situações, foi revisada com sucesso, recentemente. Existe, por exemplo, um livro intitulado The liberal temper in Greek politics (1957), escrito por um acadêmico canadense, o professor Eric A. Havelock, com o propósito de evidenciar a esplêndida contribuição que muitos pensadores gregos menos famosos do que Platão e Aristóteles deram ao ideal de liberdade política, em oposição à submissão, em todos os sentidos da palavra. Uma das conclusões que emergiram desse livro, é a de que a liberdade grega não era uma “liberdade de vontade”, mas liberdade contra os homens. Como destacou Demócrito, em um fragmento que foi preservado até os dias de hoje, “a pobreza, em uma democracia, é tão preferível àquilo que uma oligarquia chama de prosperidade, quanto a liberdade, ao cativeiro”. Liberdade e democracia vinham em primeiro lugar nessa escala de valores; a prosperidade, depois. Restam poucas dúvidas de que esta era também a escala de valores dos atenienses. Certamente era a de Péricles e Tucídides. Lemos, também no Discurso Fúnebre, que os atenienses que haviam morrido na guerra, tinham de ser tomados como modelo por seus concidadãos, que, “julgando a felicidade como fruto da liberdade, e a liberdade, um valor, nunca declinariam os perigos da guerra”.[36]
A formulação das leis era atribuição das assembleias legislativas populares, e as regras gerais estabelecidas por escrito, por essas assembleias, contrastavam com as ordens arbitrárias de tiranos. Mas os gregos e em especial os atenienses compreenderam plenamente, na segunda metade do século IV e durante o século V A.C., os sérios inconvenientes de um processo de formulação de leis pelo qual todas as leis eram efetivas — ou seja, enunciadas com precisão em uma fórmula escrita —, mas ninguém tinha a certeza de que qualquer lei válida hoje poderia durar até amanhã, sem ser anulada ou modificada por uma lei subsequente. A reforma da constituição ateniense por Tisâmenes, no fim do século quinto, dá-nos o exemplo de uma solução, para esse inconveniente, que poderia ser ponderada de forma útil por cientistas políticos e políticos contemporâneos. Um procedimento rígido e complexo foi introduzido, então, em Atenas, para disciplinar as inovações legislativas. Todo projeto de lei proposto por um cidadão — na democracia direta ateniense, todo homem pertencente a uma assembleia legislativa geral tinha o direito de apresentar um projeto de lei, ao passo que, em Roma, apenas os magistrados eleitos podiam fazê-lo — era inteiramente estudado por um comitê especial de magistrados — nomotetai — cuja tarefa era precisamente a de defender a legislação prévia contra a nova proposição. Naturalmente, os proponentes podiam argumentar livremente, ante a assembleia legislativa geral, contra os nomotetai, em apoio a seus próprios projetos de lei, de forma que a discussão toda tinha de se basear mais em uma comparação entre a velha e a nova lei do que em um simples discurso em favor desta última.
Mas a história não terminava aí. Mesmo quando o projeto de lei era finalmente aprovado pela assembleia, o proponente continuava responsável por sua proposta, se um outro cidadão, agindo como querelante contra o próprio proponente, conseguia provar, depois de a lei ter sido aprovada pela assembleia, que a nova legislação tinha alguns defeitos graves ou que estava em irremediável contradição com leis mais antigas, ainda em vigor em Atenas. Nesse caso, o proponente da lei podia ser legitimamente julgado, e as penalidades podiam ser muito sérias, incluindo a sentença de morte, apesar de que, em geral, os proponentes sem sucesso sofriam apenas multas. Isso não é lenda. Sabemos de tudo isso pelas acusações de Demóstenes contra um desses proponentes infelizes, chamado Timócrates. Esse sistema de multar os proponentes de legislações inadequadas não se opunha à democracia, se entendida esta como um regime no qual o povo é soberano, e se admitimos que essa soberania significa também irresponsabilidade, como significa em muitas de suas interpretações históricas.
Devemos inferir que a democracia ateniense, no final do século V e durante o século IV A.C, obviamente não estava satisfeita com a noção de que a efetividade da lei poderia equivaler simplesmente a uma fórmula precisamente enunciada em um texto escrito.
Através da reforma de Tisâmenes, os atenienses descobriram, finalmente, que não poderiam se livrar da interferência do poder político apenas obedecendo às leis de então; precisavam, igualmente, ser capazes de prever as consequências de suas ações, de acordo com as leis futuras.
Esta, de fato, é a principal limitação da ideia de que a efetividade da lei pode ser simplesmente identificada com a enunciação precisa da lei escrita, seja geral ou não.
Mas a ideia da efetividade da lei não tem apenas esse sentido já mencionado, na história dos sistemas jurídicos e políticos do Ocidente. Ela também tem sido compreendida em um sentido completamente diferente.
A efetividade da lei, no sentido de uma fórmula escrita, refere-se a um estado das coisas inevitavelmente condicionado pela possibilidade da lei presente ser substituída, a qualquer momento, por uma lei subsequente. Quanto mais intenso e acelerado é o processo de formulação das leis, mais incerto é que a presente legislação vá durar por qualquer extensão de tempo. Mais do que isso, não há nada que evite que uma lei “efetiva”, no sentido antes mencionado, seja imprevisivelmente trocada por uma outra lei não menos “efetiva” do que a anterior.
Desse modo, a efetividade da lei, nesse sentido, poderia ser chamada de breve efetividade da lei. Na realidade, parece haver um paralelo impressionante, hoje em dia, entre tipos de dispositivos de curta vigência em questões de política econômica e a breve efetividade das leis que são criadas para assegurar esses dispositivos. De forma mais geral, os sistemas legais e políticos de quase todos os países poderiam ser definidos, hoje, a esse respeito, como sistemas a curto prazo, em contraste com alguns dos sistemas clássicos de longo prazo do passado. A famosa frase de lorde Keynes, “a longo prazo, estaremos todos mortos”, poderia ser adotada como o lema da era atual, pelos futuros historiadores. Talvez estejamos nos acostumando cada vez mais a esperar resultados imediatos do progresso enorme e sem precedentes dos meios técnicos e dos aparelhos científicos desenvolvidos para cumprirem vários tipos de tarefas e atingirem vários resultados em campos importantes. Sem dúvida, esse fato criou, para muitas pessoas que ignoram ou tentam ignorar as diferenças, a expectativa de resultados imediatos também em outros campos e em relação a outras questões que em nada dependem do progresso científico e tecnológico.
Lembro-me de uma conversa que tive com um velho senhor que cultivava plantas em meu país. Pedi a ele que me vendesse uma árvore grande para meu jardim. Ele respondeu: “Todo mundo, agora, quer árvores grandes. As pessoas as querem imediatamente; não dão a mínima ao fato de que árvores crescem devagar e de que custa muito tempo e paciência para cultivá-las. Todo mundo hoje tem pressa”, e concluiu, com tristeza: “E eu não sei por quê.”
Lorde Keynes poderia ter-lhe dito a razão: as pessoas acham que, a longo prazo, estarão todas mortas. Essa mesma atitude também pode ser observada em relação ao declínio geral, na crença religiosa, do qual tantos padres e pastores se lamentam hoje em dia. As crenças religiosas cristãs costumavam enfatizar, não a vida presente do homem, mas uma vida futura. Quanto menos os homens acreditam, hoje, nessa vida futura, mais se agarram à vida presente e, acreditando que a vida do indivíduo é curta, têm pressa. Isso causou uma grande secularização das crenças religiosas no presente, em países tanto do Ocidente quanto do Oriente, de forma que mesmo uma religião tão indiferente para com o mundo presente como o Budismo tem recebido, de alguns de seus defensores, um sentido “social” mundano, se não, de fato, “socialista”. Um escritor americano contemporâneo, Dagobert Runes, diz, em seu livro sobre contemplação, que “as igrejas perderam o toque do Divino e voltaram-se para os livros e a política”[37].
Isso pode ajudar a explicar a razão pela qual se dá, agora, tão pouca atenção a uma concepção de longo prazo da efetividade da lei, ou até mesmo a qualquer outra concepção de longo prazo relacionada ao comportamento humano. É claro que isso não significa que sistemas de curto prazo seriam, de fato, mais eficientes do que os de longo prazo, na conquista dos muitos fins que as pessoas se esforçam por atingir, através da invenção, digamos, de uma nova política milagrosa de emprego para todos ou algum dispositivo legal sem precedente, ou simplesmente querendo que os jardineiros consigam árvores grandes para seus jardins.
O conceito de curto prazo não é a única noção de efetividade da lei que a história dos sistemas legais e políticos, nos países ocidentais, apresenta àqueles estudantes pacientes o suficiente para reconhecerem os princípios subjacentes às instituições.
Não era assim na antiguidade. Embora a Grécia possa ser descrita até certo ponto por historiadores como um país com uma lei escrita, resta dúvida se isso era verdade na Roma antiga. Estamos, provavelmente, tão habituados a pensar no sistema legal romano em termos do Corpus Júris Justiniano, ou seja, em termos de um livro de leis, que não conseguimos imaginar como a lei romana realmente funcionava. Grande parte do estado de direito romano não era devida a qualquer processo legislativo. A lei romana privada, que os romanos chamavam de Jus civile, foi mantida praticamente além do alcance dos legisladores, durante a maior parte da longa história da República e do Império Romano. Eminentes acadêmicos, como os recentes professores italianos Rotondi e Vincenzo Arangio Ruiz, e o jurista inglês W. W. Buckland, repetidamente salientaram que “as noções fundamentais, o esquema geral do direito romano, devem ser procurados na lei civil, um conjunto de princípios gradualmente desenvolvido e aperfeiçoado por uma jurisprudência que se estendeu por muitos séculos, com pouca interferência do corpo legislativo”.[38] Buckland também observa, provavelmente com base nos estudos de Rotondi, que “das muitas centenas de leges — leis — registradas, não mais do que quarenta tiveram importância, no direito privado”, de forma que, pelo menos na época clássica do direito romano, “o estatuto, no que concerne ao direito privado, ocupa apenas uma posição muito subordinada”.[39]
E óbvio que isso não foi resultado de falta de capacidade, dos romanos, de elaborarem leis. Eles dispunham de muitos tipos de instrumentos legais: as leges, as plebiscita e as Senatus Consulta, aprovadas respectivamente pelo povo ou pelo Senado, e tinham ainda, a sua disposição, vários tipos de leges, como asleges imperfectae, as minusquamperfectae e as plusquamperfectae. Mas, normalmente, reservavam a lei estatutária a um campo no qual os corpos legislativos eram diretamente qualificados para intervir, a saber, o direito público, quod ad rem Romanam spectat, relativo ao funcionamento das assembleias políticas, do Senado, dos magistrados, ou seja, de seus funcionários de governo. O direito estatutário para os romanos era, principalmente, o direito constitucional ou o direito administrativo — e também o direito criminal — relacionado apenas indiretamente à vida privada e aos negócios privados dos cidadãos.
Isso significava que, sempre que surgia uma divergência entre cidadãos romanos, sobre, por exemplo, seus direitos ou obrigações de acordo com um contrato, raramente podiam basear suas reivindicações em um estatuto, em uma regra escrita precisamente enunciada e, portanto, efetiva, no sentido grego ou de curto prazo da palavra. Assim, um dos mais eminentes entre os historiadores das ciências jurídicas e do direito romano, o professor Fritz Schulz, chamou a atenção para o fato de que a efetividade — no sentido do curto prazo — era estranha ao direito civil romano. Isso não significa, absolutamente, que os romanos não estivessem em posição de fazer planos sobre as futuras consequências legais de seus atos. Todo mundo sabe do enorme desenvolvimento da economia romana, e é quase desnecessário fazer referência, aqui, à obra fundamental de Rostovtzeff sobre o assunto.
Por outro lado, todos os estudiosos do direito romano privado sabem muito bem que, como diz o professor Schulz, “o individualismo do liberalismo helênico fez com que o direito privado se desenvolvesse baseado na liberdade e no individualismo”.[40] Na verdade, a maioria de nossos códigos continentais contemporâneos, como o francês, o alemão e o italiano, foi escrita de acordo com as leis do direito romano registradas noCorpus Júris Justiniano. Eles foram rotulados como “burgueses” por alguns reformistas socialistas. As chamadas “reformas” sociais, nos países europeus hoje podem ser efetuadas, se é que o podem apenas com a modificação ou cancelamento de leis que amiúde se reportam às do antigo direito privado romano.
Assim, os romanos tinham uma lei efetiva o suficiente para permitir que os cidadãos fizessem livremente planos para o futuro, e isso sem ser de todo uma lei escrita, ou seja, sem ser uma série de regras precisamente enunciadas, comparáveis às de um estatuto por escrito. O jurista romano era uma espécie de cientista: os objetos de sua pesquisa eram as soluções para casos que os cidadãos submetiam a ele para estudo, da mesma forma como os industriais, hoje, submetem a um físico ou a um engenheiro um problema técnico relativo a suas fábricas ou a sua produção. Consequentemente, o direito privado romano era algo a ser descrito ou descoberto, não algo a ser promulgado — um mundo de coisas que estava ali, como parte da herança comum a todos os cidadãos romanos. Ninguém promulgara aquela lei; ninguém podia mudá-la por um exercício qualquer de sua vontade pessoal. Isso não significava ausência de mudança, mas, certamente, que ninguém ia dormir com planos baseados em uma regra presente só para acordar, na manhã seguinte, e descobrir que a regra havia sido superada por uma inovação legislativa.
Os romanos aceitavam e aplicavam um conceito de efetividade da lei que se poderia descrever como significando que a lei jamais era submetida a mudanças repentinas e imprevisíveis.
Além disso, a lei jamais tinha de ser submetida à vontade arbitrária ou ao poder arbitrário de qualquer assembleia legislativa ou qualquer pessoa, inclusive senadores ou outros magistrados proeminentes do estado. Esse é o conceito de longo prazo ou, se preferirmos, o conceito romano da efetividade da lei.
Esse conceito era certamente essencial para a liberdade que os cidadãos romanos em geral tinham nos negócios e em toda a vida privada. Até certo ponto, ele colocava as relações jurídicas entre os cidadãos em um plano muito semelhante àquele em que o livre mercado coloca as relações econômicas. O direito, como um todo, não estava menos livre de coerção do que o próprio mercado. Não posso, de fato, conceber um mercado realmente livre que não esteja enraizado em um sistema legal livre da interferência arbitrária — isto é, repentina e imprevisível — das autoridades ou de qualquer outra pessoa no mundo.
Algumas pessoas podem objetar que o sistema legal romano tinha de estar baseado no sistema constitucional romano, e que, portanto, indireta, senão diretamente, a liberdade romana nos negócios e na vida privada era em verdade baseada no direito estatutário. Este, pode-se argumentar, era submetido em última análise à vontade arbitrária dos senadores ou das assembleias legislativas, como as comitia ou as concilia plebis, para não mencionar cidadãos proeminentes que, como Sulla, Marius ou César, de tempos em tempos tomavam o controle de tudo e, por isso, tinham o verdadeiro poder de derrubar a constituição.
Os estadistas e os políticos romanos, entretanto, eram sempre muito cautelosos no uso de seu poder legislativo de interferir na vida privada dos cidadãos. Mesmo os ditadores como Sulla se comportavam com certa prudência a esse respeito e provavelmente teriam considerado a ideia de derrubar o jus civile quase tão estranha quanto os ditadores modernos considerariam a ideia de subverter as leis da física.
É verdade que homens como Sulla fizeram um grande esforço para mudar a constituição romana em vários aspectos. O próprio Sulla tentou se vingar de povos italianos e sobre cidades como Arretium ou Volaterrae, antes úteis a seu principal inimigo, Marius, fazendo com que as assembleias legislativas aprovassem leis que privavam, repentinamente, os habitantes dessas cidades, do jus civitatis romano, ou seja, da cidadania romana e de todos os privilégios que esta envolvia. Sabemos de tudo isso através de um dos discursos de Cícero em defesa de Cecina, pronunciado pelo próprio Cícero diante de uma corte romana. Mas sabemos, também, que este ganhou o caso argumentando que a lei promulgada por Sulla não era legítima, uma vez que nenhuma assembleia legislativa podia, através de estatuto, destituir um cidadão romano de sua cidadania, não mais do que podia, com um estatuto, privar um cidadão romano de sua liberdade. A lei promulgada por Sulla era um estatuto formalmente aprovado pelo povo, do tipo que os romanos costumavam chamar de lex rogata, isto é, um estatuto cuja aprovação era encomendada e obtida de uma assembleia popular por um magistrado eleito pelo processo de lei adequado. Cícero nos diz, em relação a isso, que todos os projetos de lei a serem transformados em estatuto costumavam conter, há muito tempo, uma cláusula cujo significado, apesar de não completamente compreensível mais tarde, era obviamente ligado à possibilidade de que o conteúdo do projeto, ainda que se tornasse um estatuto, pudesse não ser legal: “Si quid jus non esset rogarier, eius ea lege nihilum rogatum” — “Se há, nessa lei para a qual estou pedindo aprovação”, disse o magistrado à assembleia legislativa do povo romano, “algo que não seja legal, devem considerar que não lhes foi pedida aprovação”.
Isso parece provar que havia estatutos possivelmente contrários à lei, e que estatutos como os que privavam os cidadãos de sua liberdade ou de sua cidadania não eram considerados legais, pelas cortes romanas.
Se Cícero estava certo, podemos concluir que o direito romano era limitado por um conceito de legitimidade surpreendentemente semelhante ao demonstrado por Dicey com relação ao “estado de direito inglês”.[41]
De acordo com o princípio inglês do estado de direito, que está intimamente ligado à história toda do estado de direito, as regras não eram propriamente resultado do exercício da vontade arbitrária de um homem em particular. Eram objeto de uma investigação imparcial por parte de tribunais judiciais, da mesma forma como as regras romanas eram objeto de uma investigação imparcial por parte dos juristas romanos a quem os litigantes submetiam seus casos. Hoje, é considerado fora de moda sustentar que os tribunais de justiçadescrevem ou descobrem a solução correta para um caso da forma que sir Carleton Kemp Allen salientou, em seu livro merecidamente famoso e estimulante intitulado Law in the making. A chamada escola realista contemporânea, ao supor revelar todos os tipos de deficiência nesse processo de descoberta, teve apenas o grande prazer de concluir que o trabalho dos juízes do direito consuetudinário não era e ainda não é mais objetivo mas apenas menos manifesto do que o dos legisladores. Na verdade, muito mais precisa ser dito sobre esse tópico do que é possível aqui. Mas não se pode negar que a atitude dos juízes do direito consuetudinário em relação às rationes decidendi de seus casos — isto é, as razões de suas decisões — foi sempre muito menos a de um legislador do que a de um acadêmico que tenta averiguar as coisas, em vez de mudá-las. Não nego que os juízes do direito consuetudinário não tivessem, algumas vezes, deliberadamente dissimulado seu desejo de ter algo ajustado de certa maneira sob a máscara de uma pretensa afirmação sobre uma regra já existente na lei da terra. O mais famoso desses juízes na Inglaterra, sir Edward Coke, não está isento dessa suspeita, e ouso dizer que o mais famoso dos juízes americanos, o magistrado Marshall, também pode ser comparado a seu célebre predecessor do século dezessete na Inglaterra.
O que quero dizer é, somente, que os tribunais judiciais não podiam aprovar facilmente regras arbitrárias na Inglaterra, pois jamais estavam em posição de fazê-lo diretamente, isto é, à maneira usual, repentina, ampla e imperiosa dos legisladores. Além do mais, havia tantos tribunais de justiça na Inglaterra, e tinham tanta inveja um do outro, que mesmo o princípio famoso do precedente de compromisso não era abertamente reconhecido por eles, até relativamente pouco tempo. Além disso, jamais podiam decidir algo que não tivesse sido previamente trazido a eles por pessoas privadas. Finalmente, poucas pessoas costumavam ir aos tribunais para lhes pedir regras que decidissem seus casos. Consequentemente, os juízes estavam mais em posição de espectadores do que de atores, no processo de formulação de leis, e, ainda mais, de espectadores sem permissão para ver tudo o que acontece no palco. As pessoas comuns estavam nos palcos; o direito consuetudinário era, sobretudo, exatamente o que eles em geral concebiam como lei. Os cidadãos comuns eram os verdadeiros atores, nesse caso, como ainda o são na formação da linguagem e, pelo menos parcialmente, nas transações econômicas nos países ocidentais. Os gramáticos que compendiam as regras de uma linguagem ou os estatísticos que fazem registros dos preços ou das quantidades de bens trocados, no mercado de um país, poderiam ser descritos mais corretamente como simples espectadores do que acontece a sua volta do que como governantes de seus concidadãos, no tocante à linguagem ou à economia.
A crescente importância do processo legislativo na era atual, obscureceu de forma inevitável, tanto nos países europeus continentais quanto nos de língua inglesa, o fato de que a lei é simplesmente um complexo de normas relacionadas ao comportamento de pessoas comuns. Não há qualquer razão para se considerar essas regras de comportamento muito diferentes de outras regras de comportamento nas quais a interferência do poder político foi exercida apenas excepcionalmente, se não nunca. É verdade que, no presente, a linguagem parece ser a única coisa que as pessoas comuns foram capazes de manter para si próprias e proteger da interferência política, pelo menos no mundo ocidental. Na China Vermelha, hoje, por exemplo, o governo está fazendo um esforço violento para mudar a escrita tradicional, e interferência semelhante já teve sucesso em certos países do Leste, como a Turquia. Assim, em muitos lugares as pessoas esqueceram quase completamente os tempos em que as cédulas de dinheiro, por exemplo, eram emitidas não só por um banco oficial, mas também por bancos privados. Mais do que isso, muito poucas pessoas sabem, agora, que em outras épocas a produção de moedas era uma atividade privada, e que os governos se limitavam a proteger os cidadãos dos falsificadores simplesmente certificando a autenticidade e os pesos dos metais empregados. Uma tendência semelhante, na opinião pública, é observável em relação a empresas controladas pelo governo. Na Europa Continental, onde por longo tempo as estradas de ferro e os telégrafos foram monopolizados pelos governos, muito poucas pessoas, mesmo entre aquelas instruídas, imaginam que as estradas de ferro e a comunicação telegráfica sejam negócios privados, da mesma maneira que cinemas, hotéis ou restaurantes. Acostumamo-nos, cada vez mais, a considerar a formulação de leis como um assunto que concerne às assembleias legislativas e não ao homem comum e, além disso, como algo que pode ser feito de acordo com as ideias pessoais de certos indivíduos, contanto que estejam em posição oficial para fazê-lo. O fato de que o processo de formulação de leis é ou era essencialmente um assunto privado relativo a milhões de pessoas, ao longo de dúzias de gerações espalhadas por vários países, passa quase despercebidamente, hoje, mesmo entre a elite instruída.
Dizem que os romanos tinham pouco gosto por considerações históricas e sociológicas. Mas eles tinham, sim, uma visão perfeitamente clara do fato que acabei de mencionar. Por exemplo, de acordo com Cícero, Catão, o Censor, o campeão do tradicional estilo de vida romano contra a importação estrangeira — ou seja, grega —, costumava dizer que:
a razão pela qual nosso sistema político é superior aos dos outros países é esta: o sistema político dos outros países foi criado através da introdução de leis e instituições, de acordo com as recomendações pessoais de indivíduos isolados como Minos, em Creta, e Licurgo, em Esparta, enquanto que em Atenas, onde o sistema político foi várias vezes alterado, havia muitas dessas pessoas, como Teseu, Draco, Solon, Cleistenes e vários outros. (…) Nosso estado, pelo contrário, não se deve à criação pessoal de um homem, mas de muitos; não foi fundado durante a vida de nenhum indivíduo em particular, e sim através de vários séculos e gerações. Pois jamais houve, no mundo, um homem tão inteligente capaz de prever tudo, e, mesmo que pudéssemos concentrar todos os cérebros na cabeça de um só homem, seria impossível para ele cuidar de tudo ao mesmo tempo, sem ter a experiência que vem da prática através de um longo período de história.[42]
Incidentalmente essas palavras nos fazem lembrar daquelas muito mais famosas — porém não mais impressionantes — empregadas por Burke para justificar sua visão conservadora do estado. Mas as palavras de Burke tinham um tom levemente místico que não encontramos nas considerações imparciais do velho estadista romano. Catão está apenas apontando os fatos e não persuadindo as pessoas, e os fatos que menciona devem indubitavelmente ser de grande peso para qualquer um que conheça um pouco de História.
O processo de formulação de leis, como diz Catão, não pertence, na verdade, a qualquer indivíduo, cérebro, momento ou geração em particular. Se você acha que sim, terá resultados piores do que se tivesse em mente o que acabei de dizer. Olhe para a sorte das cidades gregas e compare-as com as nossas. Ficará convencido. Essa é a lição — ou melhor, a mensagem — de um estadista sobre o qual, em geral, sabemos apenas o que aprendemos na escola, que era um chato, rabugento, sempre insistindo em que os cartagineses tinham de ser mortos, e suas cidades, arrasadas.
É interessante observar que, quando economistas contemporâneos como Ludwig von Mises criticam o planejamento centralizado da economia, por ser impossível, para as autoridades, fazerem qualquer cálculo relativo às reais necessidades e às reais potencialidades dos cidadãos, sua posição nos faz lembrar a do antigo estadista romano. O fato de que falta às autoridades centrais, em uma economia totalitária, qualquer conhecimento dos preços de mercado na elaboração de seus planos econômicos é apenas um corolário do fato de que sempre falta, às autoridades centrais, o conhecimento suficiente do número infinito de elementos e fatores que contribuem para as relações dos indivíduos em qualquer momento e em qualquer nível. As autoridades nunca podem estar certas de que o que estão fazendo é realmente o que as pessoas gostariam que fizessem, assim como as pessoas nunca podem ter certeza de que o que querem fazer não terá interferência das autoridades, se cabe a estas dirigirem todo o processo de formulação de leis do país.
Mesmo aqueles economistas que têm defendido da forma mais brilhante o mercado livre contra a interferência das autoridades em geral, têm negligenciado a consideração paralela de que nenhum mercado livre é realmente compatível com um processo de formulação de leis centralizado pelas autoridades. Isso leva alguns desses economistas a aceitarem uma ideia de efetividade da lei, ou seja, a de regras precisamente enunciadas, como a da lei escrita, que não são compatíveis nem com as de um mercado livre nem, em última análise, com a de liberdade tida como ausência de coerção exercida por outras pessoas, incluindo as autoridades, sobre a vida privada e os negócios de cada indivíduo.
Pode parecer secundário, para alguns defensores do mercado livre, que as regras sejam estabelecidas por assembleias legislativas ou por juízes, e pode-se até mesmo defender o mercado livre e se sentir inclinado a pensar que as regras estipuladas pelos corpos legislativos são preferíveis às rationes decidendiimprecisamente elaboradas por uma longa série de juízes. Mas, no caso de se buscar confirmação histórica da estreita ligação entre o mercado livre e o livre processo de formulação de leis, é suficiente considerar que o mercado livre esteve em seu apogeu, nos países de língua inglesa, quando o direito consuetudinário era praticamente a única lei da terra relacionada com a vida privada e os negócios. Por outro lado, fenômenos como os atuais atos de interferência governamental no mercado estão sempre relacionados a um aumento de leis estatutárias e ao que tem sido chamado, na Inglaterra, de a “oficialização” dos poderes judiciários, como a história contemporânea prova acima de qualquer dúvida.
Se admitirmos que a liberdade individual nos negócios, ou seja, o livre mercado, é um dos aspectos essenciais da liberdade política concebida como a ausência de coerção exercida por outras pessoas, incluindo as autoridades, também devemos concluir que a legislação, em questões de direito privado, é fundamentalmente incompatível com a liberdade individual no sentido anteriormente mencionado.
A ideia da efetividade da lei não pode depender da ideia de legislação, se a “efetividade da lei” é compreendida como uma das características essenciais do estado de direito, no sentido clássico da expressão. Desse modo, creio que Dicey foi perfeitamente coerente ao supor que o estado de direito implica o fato de que as decisões judiciais estão na base da constituição inglesa, e ao contrastar este fato com o processo oposto, no continente, onde as atividades legais e judiciárias parecem basear-se nos princípios abstratos de uma constituição legislada.
Certeza, no sentido da efetividade de longo prazo da lei, era exatamente o que Dicey tinha mais ou menos claro em mente, quando disse, por exemplo, que, enquanto qualquer das garantias que as constituições continentais proporcionavam para os cidadãos, em relação a seus direitos, poderiam ser suspensas ou anuladas por algum poder que estivesse acima da lei comum do país, na Inglaterra, “sendo a constituição baseada no estado de direito, a suspensão daquela, até aonde se pode conceber, significaria (…) nada menos do que uma revolução”.[43]
O fato de que essa revolução está acontecendo agora não destrói e sim confirma a teoria de Dicey. Está ocorrendo uma revolução, na Inglaterra, em virtude da gradual anulação da lei da terra, por meio da lei estatutária e através da conversão do estado de direito em algo que cada vez mais está se parecendo com oétat de droit continental, ou seja, uma série de regras que são efetivas apenas porque estão escritas, egerais, não por uma crença comum por parte dos cidadãos a seu respeito, e sim por terem sido decretadas por um punhado de legisladores.
Em outras palavras, a lei impessoal do país está cada vez mais sob o comando do soberano, na Inglaterra, exatamente como Hobbes e depois Bentham e Austin advogaram, contra a opinião dos juristas de sua época.
Sir Matthew, um brilhante discípulo de sir Edward Coke e ele próprio um magistrado, depois de Coke, escreveu, ao final do século XVII, em defesa de seu mestre, contra a crítica que Hobbes elaborou em seu pouco conhecido Dialogue on the common law. Hobbes sustentara, a sua maneira tipicamente científica, que a lei não é produto, como dissera Coke, de forma singular, da “razão artificial”, e que todos podiam estabelecer estados de direito gerais com o simples uso da razão humana comum a todos os homens. “Ainda que seja verdade que ninguém nasce com o uso da razão, todo homem”, disse Hobbes, “pode desenvolvê-la tanto quanto os advogados; e, quando tiverem dedicado sua razão às leis (…) poderão ser tão adequados e capazes para a judicatura quanto o próprio sir Edward Coke”.[44] Surpreendentemente, Hobbes considerou esse argumento consistente com sua afirmação de que “ninguém, além daquele que detém o poder legislativo, pode formular uma lei”. A disputa entre Hobbes, por um lado, e Coke e Hale, por outro, torna-se ainda mais interessante em relação às relevantes questões metodológicas que surgem da comparação do trabalho dos juristas com o de outras pessoas, como físicos ou matemáticos. Discordando de Hobbes, sir Mathew Hale destacou que é inútil comparar a ciência da lei com outras ciências, como as “ciências matemáticas”, porque, para a “ordenação das sociedades civis e para a mensuração do certo e errado”, não é só necessário ter noções gerais corretas, mas também aplicá-las corretamente a casos específicos — que é, incidentalmente, exatamente o que os juízes tentam fazer. Hale argumentou que:
aqueles que se satisfazem com a persuasão de que podem, com bastante evidência e congruência, elaborar um sistema infalível de leis e políticas — ou seja, constituições e legislação escritas — igualmente aplicável a todas as situações — ou seja, condições —, como demonstrou Euclides em suas conclusões, estão se iludindo com noções que provam ser ineficazes quando aplicadas a casos específicos.[45]
Uma das observações mais impressionantes feitas por Hale revela a consciência que ele, assim como Coke, tinham da necessidade de uma certeza como a efetividade de longo prazo da lei:
É tolo e “irracional alguém criticar uma instituição porque pensa que poderia fazer melhor, ou esperar que uma demonstração matemática evidencie a racionalidade de uma instituição ou os próprios defeitos da mesma. (…) Uma das coisas do momento mais importantes na profissão do direito consuetudinário é manter-se o mais próximo possível da efetividade da lei e a consonância desta consigo mesma, de forma que uma mesma era e um mesmo tribunal possam falar das mesmas coisas e obedecer à mesma tendência da lei dentro de uma regra o mais uniforme possível; pois, caso contrário, o que todas as épocas e lugares defenderam no direito, a saber, a efetividade (grifo meu) e a ausência de arbitrariedade e extravagância que sucederiam se as razões dos juízes e advogados não fossem mantidas dentro de seus traçados, em menos de meia era estaria perdido. E essa manutenção das leis dentro de seus limites jamais poderá acontecer, a menos que os homens estejam bem informados, através de estudos e leituras sobre os julgamentos, resoluções, decisões e interpretações de eras passadas.[46]
Seria difícil relacionar de forma mais clara e mais decidida o conceito de efetividade ao da uniformidade das regras através dos tempos e da continuidade do trabalho modesto e limitado dos tribunais judiciais, em lugar daquele dos corpos legislativos.
Foi exatamente isso que quis dizer quando falei de efetividade de longo prazo da lei, e é incompatível, em última análise, com a efetividade de curto prazo implícita na identificação da lei com a legislação.
A primeira era também a concepção romana da efetividade da lei. Acadêmicos famosos observaram a falta de individualidade dos juristas romanos. Savigny os chamava de “personalidades fungíveis”. Essa falta de individualidade era uma contrapartida natural de sua visão individualista das leis privadas que estavam estudando. O direito privado era concebido, por eles, como herança comum de cada um e de todos os cidadãos romanos. Por isso, ninguém se sentia no direito de modificá-lo a sua própria vontade. Quando ocorriam mudanças, elas eram reconhecidas, pelos juristas, como algo que já havia acontecido no próprio meio e não como algo que estivesse sendo introduzido pelos próprios juristas. Pela mesma razão que seus sucessores modernos, os juízes ingleses, os juristas romanos nunca se importavam com princípios abstratos, mas sempre com “casos específicos”, para utilizar a expressão de sir Mathew Hale anteriormente mencionada. E mais, a falta de individualidade dos juristas romanos era da mesma natureza que a aceita por sir Mathew Hale quando afirma:
Prefiro uma lei com a qual um reino tenha sido afortunadamente governado durante quatrocentos ou quinhentos anos, do que arriscar a felicidade e a paz de um reino com alguma teoria da qual seja eu o autor.[47]
Dentro do mesmo espírito, os juristas romanos detestavam teorias abstratas e toda a parafernália da filosofia do direito cultivada pelos pensadores gregos. Como um jurista romano — que era também um estadista —, Neratius, escreveu certa vez, no século II D.C: “Rationes eorum quae constituntur inquiri non oportet, alioquin multa quae certa sunt subvertuntuf — Devemos evitar inquirir sobre os fundamentos lógicos de nossas instituições, a fim de que sua efetividade não se perca, e elas não sejam derrubadas.[48]
Em suma: muitos países ocidentais, antigamente assim como nos tempos modernos, consideravam o ideal de liberdade individual — a ausência de coerção exercida por outras pessoas, inclusive as autoridades — essencial para seus sistemas legais e políticos. Uma característica conspícua desse ideal foi sempre a efetividade da lei. Mas a efetividade da lei foi concebida de duas formas diferentes e, em última análise, incompatíveis, até: primeiro, como a precisão de um texto escrito emitido pelos legisladores, e segundo, com a possibilidade aberta aos indivíduos de fazerem planos de longo prazo com base em uma série de regras espontaneamente adotadas pelo povo em comum e eventualmente averiguáveis pelos juízes, através dos séculos e gerações. Essas duas concepções de “efetividade” raramente foram, se é que alguma vez o foram, consideradas pelos acadêmicos, e muitas ambiguidades no sentido do termo foram mantidas pelas pessoas comuns, tanto na Europa Continental quanto nos países de língua inglesa. Essa é, provavelmente, a principal razão pela qual a comparação entre as constituições europeias e a constituição inglesa poderia ser julgada mais fácil do que era, e por que os cientistas políticos europeus poderiam imaginar que estavam produzindo boas imitações da constituição inglesa, sem levarem em consideração a significância que o tipo peculiar de processo de formulação de leis chamado de direito consuetudinário sempre teve para a constituição inglesa.
Sem esse processo de formulação de leis, provavelmente seria impossível conceber o estado de direito, no sentido inglês clássico da expressão exposto por Dicey. Por outro lado, sem o processo legislativo de formulação de leis, nenhum sistema continental seria o que é hoje.
Na era atual, a confusão sobre os significados de “efetividade” e de “estado de direito” aumentou, particularmente por causa da emergente tendência, nos países de língua inglesa, de enfatizar a formulação da lei através da legislação e não por tribunais judiciais.
Os efeitos óbvios dessa confusão já começaram a se revelar, no que diz respeito à ideia de liberdade política e liberdade empresarial. Mais uma vez a confusão semântica parece estar na raiz de muitos problemas. Não digo que nossas dificuldades sejam todas devidas à confusão semântica. Mas é uma tarefa muito importante, para os cientistas políticos, bem como para os economistas, analisar os diferentes e contraditórios significados que empregamos, nos países de língua inglesa e nos países da Europa Continental, respectivamente, quando falamos de “liberdade” em relação à “efetividade da lei” e ao “estado de direito”.
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[35] Tucídides, The history of the Peloponnesian War, II, 37-39, tr. de R. Crawley (Londres: J. M. Dent & Sons, 1957, p.93).
[36] Loc. cit.
[37] Dagobert D. Runes, A book of contemplation (Nova Iorque: Philosophical Library, 1957), p.20.
[38] W. W. Buckland, Roman law and common law (2a edição revisada por F. H. Lawson; Cambridge Univesity Press, 1952), p.4. Esse livro oferece uma comparação fascinante dos dois sistemas.
[39] Ibid., p. 18.
[40] Fritz Schulz, History of Roman legal science (Oxford: Clarendon Press, 1946),
p.84.
[41] Devo esta e outras interessantes observações sobre o sistema legal romano ao
professor V. Arangio Ruiz, cujo ensaio “La règle de droit dans l’antiquité classique”, reeditado pelo autor emRariora (Roma: Ed. di storia e letteratura, 1946,
p.233), é muito informativo e estimulante.
[42] Cícero, De republica ii. 1,2.
[43] Dicey, loc cit.
[44] Thomas Hobbes, Dialogue between a philosopher and a student of The common laws of England (1681) em sir William Molesworth, ed., The English works of Thomas Hobbes of Malinesbury (Londres: John Bohn, 1829-1845), VI, 3-161.
[45] Matthew Hale, “Reflections by the Lord Chief Justice Hale on mister Hobbes, his dialogue of the law”, publicado pela primeira vez por Holdsworth, History of English law (Londres: Methuen & Co., 1924), vol.V, Apêndice, p.500.
[46] Ibid., p.505.
[47] Ibid., p.504.
[48] Dig. I, 3, 21.