Milei e a prefiguração de uma sociedade anarcocapitalista

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O debate da prefiguração é um debate recorrente no mundo anarquista. Simplesmente, refere-se a como uma hipotética sociedade sem estado deve primeiro ser projetada e depois estabelecida. Ou seja, no primeiro caso, se se pode ou não saber de antemão como deve ser uma sociedade anarquista e, em seguida, se se pode estabelecer algum tipo de plano ou estratégia para chegar lá a partir da situação atual. O segundo caso diz respeito não apenas se é permitido ou não usar meios estatais para construir uma sociedade anarquista, mas também se é possível fazê-lo. Ou seja, se as pessoas que compõem os estados não só vão tolerar a eliminação dos privilégios de que desfrutaram até agora, mas vão colaborar ativamente no seu desaparecimento.

Os debates sobre a prefiguração, embora presentes no anarquismo desde seus primórdios, foram reabertos com a vitória eleitoral de Javier Milei na Argentina, alcançada em grande parte com o uso do rótulo anarcocapitalista em seu programa. Surge a questão em nossos círculos se Milei será capaz de aproximarmos um pouco mais do ideal de uma sociedade ANCAP usando meios políticos para alcançá-lo.

Prefiguração: anarquia através do estado?

O primeiro debate que deve ser levantado seria, então, se a coerção pode ou não ser usada para impor um novo modelo de sociedade, neste caso sem estado. Em princípio, não deve haver problema em um estado reduzir gradualmente suas funções até que seja extinto, de preferência por meios democráticos.

Tampouco seria incoerente com um programa libertário que reduzisse ou eliminasse privilégios para determinados grupos, mesmo que os obtivessem por meios legais. Apesar de tais meios distorcerem o funcionamento dos mercados ou imporem regras de conduta que violem a propriedade ou a liberdade dos cidadãos. Esse é um debate muito interessante, pois muitas vezes, em nome da chamada segurança jurídica, querem manter monopólios ou concessões que, embora no momento da criação tenham seguido os canais legais usuais em um estado intervencionista, não são menos prejudiciais.

Sob a atual conjuntura jurídica, devem dar direito a indenização. Mas na conjuntura de uma sociedade libertária não é algo tão claro. É discutível se os investimentos ou melhorias realizados nesta conjuntura podem ser compensados. Trata-se de um velho debate libertário sobre o qual não quero me posicionar neste breve texto, embora entenda que, se um governante libertário quisesse acabar com o estado usando meios políticos, ele teria que romper acordos e princípios realizados “legalmente” e, portanto, esse estado teria que suspender os princípios jurídicos sobre os quais se fundamenta sua própria legitimidade.

A administração pública da desestatização

Se não o fizer, terá de continuar com o antigo regime durante muito tempo e, se o fizer, porá em causa a base jurídica sobre a qual executa a sua política. E aqui reside um dos principais problemas de uma estratégia libertária baseada em procedimentos democráticos.

Continuando com a questão da prefiguração, um governante que elabora leis ou decretos para acabar com o estado precisa primeiro do apoio de grande parte da classe política para aprová-los ou sancioná-los. Mas também precisa de um aparato estatal (burocracias, polícia, exércitos etc.) para aplicá-las. Ou seja, pode privatizar empresas ou órgãos públicos, mas exige um aparato de finanças, contadores e administradores encarregados de avaliar esses imóveis e elaborar contratos para esse fim.

Os especialistas em orçamento terão que conseguir esse dinheiro para decidir como devolvê-lo aos cidadãos ou abater a dívida pública. A polícia terá que manter a ordem nesse intervalo de tempo para evitar que críticos das reformas se oponham violentamente a elas, enquanto juízes e magistrados garantem a integridade e legalidade desses contratos, diante de possíveis desafios. Ou seja, para decretar medidas de desmonte do estado, continuará sendo necessário um aparato político, como o Congresso Nacional, judicial e administrativo.

Prefiguração: a questão da rebelião do poder constituído

A questão é que esses atores, vendo como o governo quebra seus compromissos, provavelmente temerão que o mesmo aconteça com eles e seus próprios contratos sejam rescindidos. Resta saber, então, se eles se sentem obrigados a cumpri-los e simplesmente não os obedecem. Ou seja, o governante libertário que quisesse fazer uso do aparato estatal para a prefiguração de uma sociedade livre de repente se veria sem os colaboradores necessários para executar suas medidas. Se quisesse continuar a contar com a colaboração deles, teria de continuar a mantê-los nos seus postos, mas isso implicaria que a estrutura básica do estado continuaria operacional.

Na verdade, os exemplos que conhecemos de extinção do estado (alguns relatados no último livro de Peter Turchin, Ultimato) são geralmente o resultado de guerras civis, intervenções militares estrangeiras ou ambos. O estado se dissolve por medo de algum inimigo. Permanece um intervalo de tempo em que nenhum estado existe até que ele seja substituído por um novo poder. O caso de Cuba com Batista, que se rende sem luta e Fidel Castro ocupa uma capital já desprovida de sua classe dominante, ou o análogo do Vietnã podem ser bons exemplos.

Não tenho conhecimento de nenhum caso em que tenha sido devido à vontade explícita de seus governantes, pelo menos nas últimas décadas. Embora não seja logicamente impossível que um candidato antiestatista seja eleito, é muito mais difícil para ele conseguir que o resto do aparato estatal se preste sem resistência aos seus desígnios e decida se dissolver.

O problema da prefiguração

O que esse candidato pode fazer são reformas significativas em algumas áreas da vida econômica e social, melhorias que elevem substancialmente o padrão de vida ou a segurança da população, mas sem reduzir substancialmente o alcance do poder estatal. Na melhor das hipóteses, ele será capaz de realizar uma redistribuição interna das relações de poder dentro do estado, por exemplo, liberalizando a economia, mas fortalecendo o aparato policial ou militar.  Isso é viável e suspeito que será a estratégia do novo presidente argentino. O poder geral do estado não diminuirá, mas a intervenção em algumas áreas será reduzida, o que seria algo para se comemorar.

Mas outro fator pelo qual é muito difícil alcançar uma sociedade sem estado através do controle do estado é, como apontamos acima, o da prefiguração. Para se chegar a uma sociedade anárquica, é necessário, primeiro, definir com alguma precisão o que ela consistiria e, em segundo lugar, desenvolver algum tipo de plano para sair da situação atual para essa sociedade ideal. Ambos os pressupostos são impossíveis, pelo menos se partirmos do que nos ensinam tanto a teoria austrolibertária do estado quanto a teoria austríaca do planejamento econômico. Não é possível saber a priori como uma sociedade anárquica vai se materializar. Muito provavelmente, haverá muitas variedades dela, e certamente não será uma espécie de Espanha, ou França ou Argentina sem um estado.

Uma nova configuração de mercado

A escala da associação humana será muito menor e, embora continuem a pertencer a um espaço cultural ou linguístico nacional, a escala da prestação de serviços de todos os tipos será muito alterada. Ou seja, não haveria serviços como defesa, segurança, transporte ou saúde pensados em nível estatal, mas seguiriam lógicas locais ou seriam marcados pelo porte das empresas ou entidades sociais responsáveis por essas atividades. Algumas atividades podem ser oferecidas em maior escala do que as de um estado. É o caso das telecomunicações, e outras em menor escala, como muito provavelmente aconteceria com o atendimento aos mais desfavorecidos.

Exemplos podem ser tomados do passado ou de outras localizações geográficas como inspiração para a prefiguração de uma sociedade anarquista, mas não é possível, a partir de círculos eleitorais como os estatais, projetar o futuro de entidades sociais de escala e lógica de funcionamento diferentes de si mesmas. Haveria uma espécie de processo de descoberta de negócios, para usar um conceito austríaco, para implementar soluções para os problemas com os quais as entidades estatais lidam atualmente. Os estados têm lógica política, não econômica, então é previsível que muitas coisas mudariam em relação à situação atual e não podem ser feitas previsões sobre essas características do futuro hoje.

O exemplo socialista

Mas, mesmo que por acaso a sociedade de amanhã pudesse ser prenunciada, abriria o problema de quais medidas teriam que ser tomadas para alcançá-la. Isso implicaria algum tipo de plano de política sistemático por parte do governo, assumindo, é claro, que ele fosse capaz de determinar políticas e medir suas consequências.

Sabemos há anos da impossibilidade de planejamento em larga escala por causa do fracasso em construir uma sociedade socialista que pudesse não apenas superar, mas igualar o desempenho de uma sociedade capitalista desprovida de planos e decretos. Revelou-se o problema da impossibilidade de cálculo ou o problema dos incentivos em tal sociedade.

Insuperável por todos os planejadores socialistas, muitos deles muito competentes tecnicamente e às vezes equipados com computadores muito poderosos (o livro de Francis Spufford, Red Abundance ilustra isso muito bem). O mesmo aconteceria se se quisesse planejar uma sociedade capitalista a partir de um órgão centralizado de coerção.

Planejando a anarquia?

No passado, não havia um planejador que pudesse prever qual seria a forma atual de sociedades capitalistas. Ninguém previu as instituições ou os avanços técnicos que compõem o nosso presente aqui, ou nos países mais avançados dentro desse sistema, porque eles não são o resultado do projeto de um legislador, mas de milhões de decisões de uma miríade de pessoas que ao longo do tempo contribuíram para desenvolvê-las.

Da mesma forma, uma sociedade anarcocapitalista só pode resultar das decisões tomadas de baixo pelas sociedades para esse fim, desde que possam ter pelo menos um pequeno espaço para desenvolvê-las. A criação de algum espaço autônomo, termo caro aos anarquistas, no qual esses princípios possam ser experimentados e depois, se funcionarem, imitados em outros lugares, assim como aconteceu com o desenvolvimento do capitalismo, talvez seja a maneira mais conhecida de implantar tal sociedade no futuro. O estado será capaz de fazer boas políticas e fazer algumas coisas que melhorem a liberdade, mas é muito improvável que uma sociedade libertária seja uma delas.

 

 

 

Artigo original aqui

5 COMENTÁRIOS

  1. Já sabemos como termina essa história. O stablishment político e financeiro endossa qualquer um de esquerda ou direita ou que se diz libertário, desde que este tenha sua atuação limitada e aceite as diretrizes de quem detém o poder real. No caso de um país presidencialista e predominantemente esquerdista como a Argentina, a burocracia pública vai fazer de tudo para sabotar todas as ações deste governo e sufoca-lo por dentro com greves, ações na justiça e obstrução no congresso. Neste momento o chefe de governo será tentado a formar uma quadrilha para comprar pelo menos parte dos parlamentares e de certos partidos. Se ceder, já terá mergulhado no sistema até a medula e nada de bom virá a partir dai. Se recusar, será obliterado politicamente, inclusive, pela direita que diz apoiá-lo. Mesmo se esse presidente for bastante popular, ainda assim terá inimigos no poder judiciário e no legislativo, quiçá dentre os partidos que o apoiam. Não tem bolo de aniversário para todo mundo na festa estatal e, sendo assim, sempre haverá os descontentes que acham que estão recebendo muito pouco pelo apoio dado. Por fim, se tudo der errado o stablishment simplesmente descartará o pobre coitado e as experiências “revolucionária” ou “libertária” serão tidas como aventuras e serão motivo de chacota.

    O Estado atual nas democracias ocidentais é tão faraônico que sua burocracia já adquiriu vida própria independentemente do chefe de estado de ocasião. A estrutura tem poder por si mesma e os presidentes e demais chefes de estado não passam de peões nesse jogo.

  2. 88% dos argentinos rejeitam o “choque” de Milei.
    Para 77%, os preços dos produtos e serviços vão aumentar nos próximos seis meses – e 24,2% sentem que os preços vão subir “descontroladamente”.

      • Platão não aceitava que homens com mais votos pudessem contrair cargos da mais alta importância em uma polis, contudo nem sempre o candidato mais votado é o melhor preparado.

        • Ninguém é “preparado” para ter autoridade sobre outros homens, e mais ou menos votos não mudam isso. Ninguém discutiu isso aqui. O meu comentário foi em relação a estúpida alegação de que 88% dos argentinos rejeitam o plano de Milei, mas mesmo assim ele foi eleito pela maioria com este plano.

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