Mitos e verdades sobre o libertarianismo

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Mitos

1. Libertários acreditam que cada indivíduo é um átomo isolado e hermeticamente fechado, que age em um vácuo sem influenciar uns aos outros.

2. Libertários são libertinos: eles são hedonistas que anseiam por “estilos de vida alternativos”.

3. Libertários não creem em princípios morais; eles se limitam a análises de custo-benefício na crença de que o homem é sempre racional.

4. O libertarianismo é ateísta e materialista, e negligencia o lado espiritual da vida.

5. Os libertários são utópicos que acreditam que todas as pessoas são boas, e que, portanto, o controle estatal não é necessário.

6. Os libertários acreditam que cada pessoa sabe melhor do que ninguém quais são seus próprios interesses

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O libertarianismo é o credo político que mais cresce hoje em dia.  Antes de julgar e avaliar o libertarianismo, é vitalmente importante descobrir acuradamente o que faz parte da sua doutrina e, mais particularmente, o que não faz.  É especialmente importante clarificar algumas concepções errôneas sobre o libertarianismo, mantidas principalmente por conservadores.  Nesse ensaio, irei enumerar e analisar criticamente os mitos mais comuns que são imputados ao libertarianismo.  Quando esses mitos forem esclarecidos, as pessoas irão então poder discutir o libertarianismo livre de mitos e concepções rudes, e lidar com ele corretamente, de acordo com seus méritos ou deméritos.

MITO #1: LIBERTÁRIOS ACREDITAM QUE CADA INDIVÍDUO É UM ÁTOMO ISOLADO E HERMETICAMENTE FECHADO, QUE AGE EM UM VÁCUO SEM INFLUENCIAR UNS AOS OUTROS.

Essa é uma caricatura comum, embora seja extremamente enigmática.  Após toda uma vida lendo literatura libertária e liberal clássica, nunca me deparei com um único teórico ou escritor que sequer chegue perto dessa postura.

A única possível exceção talvez seja o fanático Max Stirner, um individualista alemão de meados do século XIX que, no entanto, teve influência mínima no libertarianismo da época e desde então.  Ademais, Stirner, com sua explícita filosofia de “o poder faz o certo” e seu repúdio a todos os princípios morais, inclusive os direitos individuais, como sendo “fantasmas na cabeça”, dificilmente o qualificam como um libertário em qualquer sentido do termo.  Com exceção de Stirner, entretanto, não há nenhum corpo de opiniões que seja sequer remotamente semelhante a essa acusação comum.

Libertários certamente são individualistas metodológicos e políticos.  Eles acreditam que somente indivíduos – e não o coletivo – pensam, valoram, agem e escolhem.  Eles acreditam que cada indivíduo tem o direito de ser dono de seu próprio corpo, livre de quaisquer interferências coercivas.  Mas nenhum individualista nega que as pessoas influenciam constantemente umas às outras em seus objetivos, valorações, buscas e ocupações.

Como F.A. Hayek demonstrou em seu notável artigo The Non-Sequitur of the ‘Dependence Effect’, o ataque feito por John Kenneth Galbraith à economia de livre mercado em seu best seller A Sociedade Afluente baseava-se na seguinte proposição: a ciência econômica assume que cada indivíduo define por conta própria sua escala de valores, sem estar sujeito à influência de ninguém mais.  Porém, como Hayek retrucou, a realidade é oposta: a maioria das pessoas não cria suas próprias valorações, porém elas são influenciadas por outras pessoas a adotá-las.[1]

Nenhum individualista ou libertário nega que as pessoas estão influenciando umas às outras a todo o momento, e certamente não há nada de errado com esse processo inevitável.  Os libertários não se opõem à persuasão voluntária; eles se opõem sim à imposição coerciva de valores pelo uso da força e do poder policial.  Os libertários de modo algum se opõem à cooperação voluntária e à colaboração entre indivíduos: somente à pseudo-“cooperação” compulsória imposta pelo estado.

MITO #2: LIBERTÁRIOS SÃO LIBERTINOS: ELES SÃO HEDONISTAS QUE ANSEIAM POR “ESTILOS DE VIDA ALTERNATIVOS”.

Esse mito foi apresentado por Irving Kristol (o fundador do neoconservadorismo), que identificou a ética libertária com o “hedonismo” e afirmou que os libertários “veneram catálogos de grifes e modas, bem como todos os ‘estilos de vida alternativos’ que a riqueza capitalista lhes permite escolher”.[2]

O fato é que o libertarianismo não é e nem pretende ser uma teoria estética ou moral completa; ela é apenas uma teoria política – que é o importante subconjunto da teoria moral que lida com a função apropriada da violência na vida social.

Teoria política lida com aquilo que é adequado ou inadequado para o governo fazer, e o governo é um ente distinto de todos os outros grupos da sociedade por ser a instituição que detém o monopólio da violência organizada.  O libertarianismo afirma que a única função adequada da violência é defender o indivíduo e a propriedade contra a violência iniciada por terceiros, e que qualquer uso da violência que vá além dessa legítima defesa é por si só agressiva, injusta e criminosa.  O libertarianismo, portanto, é uma teoria que afirma que todos os indivíduos devem estar imunes a qualquer usurpação violenta, e devem ser livres para fazer o que acharem melhor, desde que não transgridam a pessoa ou a propriedade de terceiros.  O que uma pessoa faz com sua vida é algo vital e importante, mas é simplesmente irrelevante para o libertarianismo.

Não deve ser surpresa, portanto, que haja libertários que de fato são hedonistas e devotos de estilos de vida alternativos, e que também haja libertários que são firmes partidários da moralidade convencional “burguesa” ou religiosa.  Existem libertários libertinos e existem libertários que aderem firmemente às disciplinas das leis naturais e religiosas.  Existem também outros libertários que não têm teoria moral alguma além do imperativo da não violação dos direitos alheios.  Isso é porque o libertarianismo per se não possui uma teoria moral que seja geral ou pessoal.

O libertarianismo não oferece um estilo de vida; ele oferece liberdade, de modo que cada pessoa é livre para adotar – e agir de acordo com – seus próprios valores e princípios morais.  Os libertários concordam com Lord Acton quanto este diz que “a liberdade é o maior fim político” – embora não seja necessariamente o maior fim na escala pessoal de valores de cada um.

Entretanto, não há dúvidas quanto ao fato de que o subconjunto de libertários que são economistas livre-mercadistas tende a se deleitar quando o livre mercado leva a uma vasta e diversificada oferta de opções para os consumidores, consequentemente aumentando seu padrão de vida.  Inquestionavelmente, a ideia de que a prosperidade é melhor do que a pobreza opressiva é uma proposição moral, e ela adentra o âmbito da teoria geral da moralidade – mas essa ainda não é uma proposição da qual eu esteja disposto a fazer apologia.

MITO #3: LIBERTÁRIOS NÃO CREEM EM PRINCÍPIOS MORAIS; ELES SE LIMITAM A ANÁLISES DE CUSTO-BENEFÍCIO NA CRENÇA DE QUE O HOMEM É SEMPRE RACIONAL.

Esse mito obviamente está relacionado à precedente acusação de hedonismo, e parte dela pode ser respondida da mesma maneira.  De fato existem libertários, principalmente economistas da escola de Chicago, que se recusam a acreditar que a liberdade e os direitos individuais sejam princípios morais, e que, ao invés disso, tentam defender políticas públicas por meio de uma ponderação entre supostos custos e benefícios sociais.

Em primeiro lugar, a maioria dos libertários é “subjetivista” em termos econômicos, isto é, eles creem que as utilidades e os custos que cada bem gera para diferentes indivíduos não podem ser adicionados ou mensurados – como faz a economia neoclássica.  Assim, o próprio conceito de custos e benefícios sociais é ilegítimo.  Mas, ainda mais importante, a maioria dos libertários baseia seus argumentos em princípios morais, na crença de que cada indivíduo possui direitos naturais sobre sua pessoa e sobre sua propriedade honestamente adquirida.  Eles, portanto, acreditam na absoluta imoralidade da violência agressiva e na absoluta imoralidade do ataque a esses direitos naturais ao próprio corpo ou à propriedade, independentemente de qual pessoa ou grupo cometa tal violência.

Longe de serem imorais, os libertários simplesmente aplicam uma ética humana universal ao governo da mesma forma que quase todos os indivíduos aplicariam tal ética para todas as outras pessoas ou instituições da sociedade.  Em particular, como já observei anteriormente, o libertarianismo, como uma filosofia política que lida com o papel adequado da violência, utiliza a mesma ética universal que a maioria de nós adota em relação à violência e a aplica destemida e indistintamente para o governo.

Assim, longe de serem indiferentes ou hostis aos princípios morais, os libertários são o único grupo disposto a estender esses princípios uniformemente para o próprio governo.[3]

É verdade que os libertários permitiriam que cada indivíduo escolhesse seus valores e agissem de acordo com eles, e consentiriam a cada pessoa o direito de ser moral ou imoral como ela quisesse.  O libertarianismo se opõe ferrenhamente à imposição de qualquer credo moral sobre qualquer pessoa ou grupo pelo uso da violência – exceto, é claro, a proibição moral contra a violência agressiva.  Mas deve ser entendido que nenhuma ação pode ser considerada virtuosa a menos que ela seja empreendida livremente, de acordo com o consentimento voluntário do indivíduo.

Como disse Frank Meyer:

Os homens não podem ser forçados a ser livres, e tampouco podem ser forçados a serem virtuosos.  Até um certo ponto, é verdade, eles podem ser forçados a agir como se fossem virtuosos.  Mas virtude é o fruto da liberdade bem usada.  E nenhum ato que seja em parte coagido pode partilhar de virtude – ou de vício.[4]

Se uma pessoa é forçada por meio de violência ou da ameaça de violência a realizar uma determinada ação, então não mais está havendo uma escolha moral de sua parte.  Uma ação é moral apenas quando ela é livremente efetuada; uma ação dificilmente pode ser classificada como moral se alguém é obrigado a realizá-la sob a mira de uma arma.

Obrigar ações morais ou proibir ações imorais, portanto, não é algo que irá fomentar a difusão de moralidade ou virtude.  Pelo contrário, a coerção atrofia a moralidade, pois ela retira do indivíduo a liberdade de ser moral ou imoral, e, portanto, priva forçosamente as pessoas da chance de serem morais.  Assim, paradoxalmente, uma moralidade compulsória rouba de nós a própria oportunidade de sermos morais.

Ademais, é particularmente grotesco colocarmos a guarda da moralidade nas mãos do aparato estatal – isto é, da organização de policiais, soldados e demais agentes estatais.  Colocar o estado no controle dos princípios morais é o equivalente a colocar a proverbial raposa no controle do galinheiro.

Não importa o que mais possamos dizer deles, os controladores da violência organizada na sociedade jamais se distinguiram pelo seu alto temperamento moral ou pela precisão com que defendem e preservam princípios morais.

MITO #4: O LIBERTARIANISMO É ATEÍSTA E MATERIALISTA, E NEGLIGENCIA O LADO ESPIRITUAL DA VIDA.

Não há nenhuma conexão decisiva entre a posição religiosa de uma pessoa e o fato de ela ser a favor ou contra o libertarianismo.  É verdade que muitos, senão a maioria, dos libertários são ateus, mas isso está correlacionado ao fato de que a maioria dos intelectuais, das mais variadas convicções políticas, são também ateus.

Existem muitos libertários que são teístas, judeus ou cristãos.  Entre os liberais clássicos – os ancestrais do moderno libertarianismo em uma época mais religiosa – havia uma miríade de cristãos: de John Lilburne, Roger Williams, Anne Hutchinson e John Locke no século XVII, até Cobden e Bright, Frédéric Bastiat e os liberais laissez-faire franceses, e o grande Lord Acton.

Os libertários acreditam que a liberdade é um direito natural dentro de um conjunto de leis naturais que determinam o que é correto e justo para a humanidade, de acordo com a natureza do homem.  De onde vem esse conjunto de leis naturais – se puramente natural ou originado por um criador – é uma questão ontológica importante, porém irrelevante para a filosofia social ou política.

Como o padre Thomas Davitt declarou: “Se a palavra ‘natural’ tem algum significado, este se refere à natureza do homem; e quando utilizada conjuntamente com ‘lei’, ‘natural’ se refere a uma ordem que é manifestada nas propensões naturais de um homem, e nada mais.  Por conseguinte, entendida por si própria, não há nada de religioso ou teológico na ‘Lei Natural’ de São Tomás de Aquino”[5]

Ou, como escreveu D’Entrèves sobre o jurista protestante holandês Hugo Grócio:

Sua [de Grócio] definição de lei natural não tem nada de revolucionária.  Quando ele afirma que a lei natural é aquele corpo de regras que o homem é capaz de descobrir pelo uso da razão, ele nada mais faz do que reformular a noção escolástica de que a ética possui uma fundação racional.  Com efeito, seu objetivo é na verdade restaurar aquela noção que foi abalada pelo extremo augustinismo de certas correntes protestantes.  Quando ele declara que essas regras são válidas por si próprias, independentemente do fato de Deus tê-las determinado, ele está repetindo uma declaração que já havia sido feita por alguns dos escolásticos…[6]

O libertarianismo tem sido acusado de ignorar a natureza espiritual do homem.  Mas pode-se facilmente chegar ao libertarianismo partindo-se de uma posição religiosa ou cristã: enfatizando a importância do indivíduo, de sua liberdade de escolha, dos direitos naturais e da propriedade privada.  Entretanto, também é possível chegar a todas essas mesmas posições utilizando uma abordagem secular e baseada nas leis naturais, pela convicção de que o homem pode chegar a uma compreensão racional da lei natural.

Ademais, em termos históricos, não está nem um pouco claro que a religião fornece uma base mais firme para conclusões libertárias do que a lei natural secular.  Como Karl Wittfogel nos relembrou em seu livro Oriental Despotism, a união entre trono e altar tem sido utilizada por séculos para consolidar um reinado de despotismo sobre a sociedade.[7]

Historicamente, a união entre estado e igreja foi em várias ocasiões uma coalizão que se reforça mutuamente em prol da tirania.  O estado utilizou a igreja para santificar e pregar obediência à sua autoridade supostamente sancionada pelo Divino; a igreja utilizou o estado para obter renda e privilégio.

Os anabatistas coletivizaram e tiranizaram a cidade de Münster em nome da religião cristã.[8]

E, já perto do século XX, o socialismo cristão e o evangelho social [movimento intelectual protestante, mais eminente em fins do século XIX e início do XX, que aplicava a ética cristã a problemas sociais, especialmente justiça, desigualdade, alcoolismo, criminalidade, tensões raciais, favelas, falta de higiene, trabalho infantil, sindicatos, escolas] tiveram papel fundamental na caminhada rumo ao estatismo.  O papel apologético da Igreja Ortodoxa na Rússia soviética ficou demasiado claro.  Alguns bispos católicos na América Latina já até mesmo proclamaram que o único caminho para o Reino do Céu é através do marxismo.  E, se eu quisesse ser maldoso, poderia dizer que o reverendo Jim Jones, além de ser um leninista, também proclamava ser a reencarnação de Jesus.

Ademais, agora que o socialismo já fracassou de maneira fragorosa, tanto politicamente quanto economicamente, os socialistas recuaram e passaram a utilizar argumentos “morais” e “espirituais” como última linha de defesa para sua causa.  O economista socialista Robert Heilbroner, ao argumentar que o socialismo terá de ser coercivo e terá de impor uma “moralidade coletiva” sobre o público, opina que: “A cultura burguesa está focada na conquista material do indivíduo.  A cultura socialista, por sua vez, deve se concentrar na sua conquista moral ou espiritual.”

Deve ser notado aqui que o socialismo se torna especialmente despótico quando se propõe a substituir os incentivos “econômicos” ou “materiais” por incentivos supostamente “morais” ou “espirituais”; quando ele simula estar promovendo uma indefinida “qualidade de vida” ao invés da prosperidade econômica.

Quando o pagamento de um salário é feito de acordo com a produtividade, há uma liberdade consideravelmente maior, bem como um maior padrão de vida.  Porém, quando a dependência é colocada unicamente na devoção altruísta à pátria-mãe socialista, essa devoção tem de ser regularmente garantida e reforçada pelo chicote.  Uma ênfase crescente no incentivo material ao indivíduo significa uma ênfase maior na propriedade privada e no direito de se manter aquilo que se obteve por meio do trabalho, e traz consigo uma liberdade pessoal consideravelmente maior, como visto na Iugoslávia em contraste com a Rússia soviética.

O despotismo mais horripilante já visto sobre a face da terra nos últimos anos foi indubitavelmente aquele ocorrido no Camboja sob a ditadura comunista de Pol Pot, na qual o “materialismo” foi suprimido de tal modo que até o dinheiro foi abolido pelo regime.  Com o dinheiro e a propriedade privada abolidos, cada indivíduo tornou-se totalmente dependente das doações de alimentos racionados pelo estado; e a vida tornou-se um inferno absoluto.  Devemos ter cuidado antes de desdenharmos objetivos ou incentivos “meramente materiais”.

A acusação de “materialismo” dirigida contra o livre mercado ignora o fato de que toda e qualquer ação humana envolve a transformação de objetos materiais pelo uso da energia humana e em conformidade com as ideias e propósitos dos agentes.  É impermissível separar o “mental” ou o “espiritual” do “material”.

Todas as grandes obras de arte, todas as grandes emanações do espírito humano, tiveram de empregar objetos materiais: fossem eles telas, pinceis e tinta, papel e instrumentos musicais, ou tijolos, lajes e materiais de construção para igrejas.  Não há nenhuma divisão entre o “espiritual” e o “material”; portanto, qualquer despotismo e interferência sobre o material irá também debilitar o espiritual.

MITO #5: OS LIBERTÁRIOS SÃO UTÓPICOS QUE ACREDITAM QUE TODAS AS PESSOAS SÃO BOAS, E QUE, PORTANTO, O CONTROLE ESTATAL NÃO É NECESSÁRIO.

Os conservadores tendem a afirmar que, considerando-se que a natureza humana é parcialmente ou totalmente perversa, uma forte regulação estatal torna-se necessária para a sociedade.

Essa é uma crença muito comum a respeito dos libertários, embora seja difícil saber a origem desse mito.  Rousseau, o locus classicus da ideia de que o homem é naturalmente bom mas acaba sendo corrompido pelas instituições, dificilmente era um libertário.  Exceto os escritos românticos de alguns poucos anarco-comunistas, os quais eu não consideraria libertários de modo algum, não conheço nenhum libertário ou liberal clássico que tenha apresentado essa visão.

Ao contrário, a maioria dos escritores libertários argumenta que o homem é uma mistura de bem e mal, e que, portanto, é importante que instituições sociais estimulem o bem e desencorajem o mal.  O estado é a única instituição social que obtém sua renda e riqueza fazendo uso da coerção; todas as outras precisam vender um produto ou serviço para seus clientes ou, no máximo, receber doações voluntárias.  E o estado é a única instituição que pode utilizar as receitas obtidas desse roubo organizado para se arvorar o direito de controlar e regular a vida e a propriedade das pessoas.  Consequentemente, a instituição estado estabelece um canal socialmente sancionado e legitimado para que pessoas más façam coisas ruins, cometam roubos regularizados e exerçam poderes ditatoriais.

O estatismo, por conseguinte, estimula o mal – ou ao menos os elementos criminosos da natureza humana.  Como Frank H. Knight vigorosamente colocou: “A probabilidade de as pessoas que estão no poder serem indivíduos que não gostariam de possuir e exercer esse poder é a mesma de uma pessoa extremamente sensível e bondosa aceitar a função de açoitar escravos em um campo de trabalhos forçados.”[9]

Uma sociedade livre, ao não estabelecer esse canal de roubo e tirania legitimados, desencoraja as tendências criminosas da natureza humana e estimula as pacíficas e voluntárias.  A liberdade e o livre mercado desestimulam a agressão e a coerção, e encorajam a harmonia e o benefício mútuo das trocas interpessoais voluntárias – econômica, social e culturalmente.

Dado que um sistema de liberdade iria estimular o voluntarismo e desencorajar a malfeitoria, além de remover o único canal que legitima o crime e a agressão, seria factível esperarmos que uma sociedade livre fosse de fato sofrer menos com crimes violentos e agressões, embora não haja justificativas para supormos que ambos iriam desaparecer por completo.  Isso não é utopia, mas sim uma implicação lógica de uma mudança naquele sistema que hoje é considerado socialmente legítimo, e de uma mudança também na estrutura de premiação e punição da sociedade.

Podemos abordar essa nossa tese por outro ângulo.  Se todos os homens fossem bons e nenhum possuísse tendências criminosas, então não haveria nenhuma necessidade de termos um estado, como os próprios conservadores admitem.  Porém, se, por outro lado, todos os homens fossem maus, então o argumento em defesa do estado seria igualmente fraco, já que não haveria motivo algum para imaginar que aqueles homens que formariam o governo, e que estariam em posse de todas as armas e de todo o poder para coagir a população, seriam magicamente imunes a toda a ruindade inerente às outras pessoas que ficaram de fora do governo.

Thomas Paine, um libertário clássico frequentemente tido como ingenuamente otimista em relação à natureza humana, retrucou esse argumento pró-estado dos conservadores da seguinte maneira: “Se toda a natureza humana é corrupta, seria insensato reforçar a corrupção estabelecendo-se uma sucessão de reis, os quais por mais vis que venham a ser, ainda terão de ser obedecidos…”  Paine acrescenta que “NENHUM homem, desde o pecado original, mostrou-se digno da confiança de ser dotado de poder sobre todos ou outros.”[10]

E como o libertário F. A. Harper certa vez escreveu:

Ainda utilizando o mesmo princípio de que o controle político deveria ser empregado na mesma proporção do grau de maldade do homem, teríamos então uma sociedade na qual se faria necessário o completo controle político sobre todas as questões íntimas de cada indivíduo… Um homem iria mandar em todos.  Mas quem seria o ditador?  Não importa como ele viesse a ser selecionado e colocado no trono político, ele certamente seria uma pessoa maléfica, uma vez que todos os homens são maus.  E essa sociedade seria então regida por um ditador totalmente perverso, dotado de um poder político total.  E como, em nome da lógica, poderia disso resultar algo que não fosse a mais completa perversidade?  Como é possível crer que tal arranjo seria melhor do que não ter absolutamente governo nenhum nessa sociedade?[11]

Finalmente, dado que, como já vimos, os homens são na realidade uma mistura de bem e mal, um regime de liberdade serve para estimular o bem e desencorajar o mal – pelo menos no sentido de que o voluntário e o mutuamente benéfico são bons e o criminoso é mau.  Portanto, em absolutamente nenhuma teoria sobre a natureza humana – seja ela uma teoria sobre a bondade, a ruindade, ou uma mistura de ambas -, pode o estatismo ser justificado.

No decurso de seu esforço em negar que era um conservador, o liberal clássico F.A. Hayek disse que: “O principal mérito do individualismo [o qual Adam Smith e seus contemporâneos propugnavam] é ser um sistema sob o qual os homens maus causam danos mínimos.  É um sistema social cujo funcionamento não depende da necessidade de encontrarmos bons homens para geri-lo, ou de todos os homens terem de ser melhores do que são hoje; é apenas um sistema que faz bom uso de todas as variedades e complexidades encontradas nos homens…”[12]

É importante observar o que diferencia os libertários dos utopistas, no sentido pejorativo.  O libertarianismo não tem a intenção de remodelar a natureza humana.  Já um dos principais objetivos do socialismo é criar – o que na prática implica métodos totalitários – um novo homem socialista, um indivíduo cuja maior meta será trabalhar diligentemente e altruisticamente para o coletivo.

O libertarianismo é uma filosofia política que diz que, dada qualquer natureza humana existente, a liberdade é o único sistema político moral possível, além de ser o mais eficaz.

Obviamente, o libertarianismo – bem como qualquer outro sistema social – irá funcionar melhor quanto mais pacíficos e menos criminosos e agressivos forem os indivíduos.  E os libertários, em conjunto com a maioria das outras pessoas, gostariam de alcançar um mundo em que há muito mais indivíduos bons do que criminosos.  Mas essa não é a doutrina do libertarianismo per se, a qual diz que, independente de qual seja a composição da natureza do homem a qualquer época, a liberdade é a melhor solução.

MITO #6: OS LIBERTÁRIOS ACREDITAM QUE CADA PESSOA SABE MELHOR DO QUE NINGUÉM QUAIS SÃO SEUS PRÓPRIOS INTERESSES

Assim como a crítica anterior afirma que os libertários acreditam que todos os homens são perfeitamente benevolentes, este mito acusa-os de acreditar que todos são perfeitamente sábios.  Entretanto, como isso obviamente não verdade, a suposição automática é a de que o estado deve intervir.

Porém, da mesma forma que o libertário não crê na perfeita benevolência, ele também não pressupõe a perfeita sabedoria.  Há um certo senso comum ao se afirmar que, em sua grande maioria, um indivíduo está melhor informado sobre suas próprias necessidades e objetivos do que terceiros em relação a ele próprio.  Mas não há qualquer motivo para se supor que todo mundo sempre sabe o que é melhor para si próprio.  Ao contrário, o libertarianismo afirma que cada indivíduo deveria ter o direito de buscar seus próprios interesses da maneira que julgar melhor.  O que está sendo defendido é o direito de cada um agir segundo sua própria pessoa e utilizando a sua propriedade; não se está necessariamente defendendo a sabedoria de tal atitude.

Também é verdade, entretanto, que o livre mercado – em contraste com o governo – possui mecanismos intrínsecos que permitem que as pessoas sejam livres para procurar especialistas que possam lhes dar sólidos conselhos sobre como melhor buscar seus próprios interesses.  Como já vimos antes, indivíduos livres não estão hermeticamente isolados uns dos outros; e, no livre mercado, qualquer indivíduo, quando em dúvida sobre quais podem ser seus reais interesses, é livre para contratar ou consultar especialistas que possam lhes dar conselhos baseados em seus conhecimentos possivelmente superiores.  O indivíduo pode contratar tais especialistas e, no livre mercado, pode continuamente testar a solidez e a eficácia de seus conselhos.

No mercado, portanto, os indivíduos tendem a favorecer aqueles especialistas cujos conselhos são comprovadamente os mais bem sucedidos.  Bons médicos, advogados ou arquitetos serão recompensados no livre mercado, ao passo que os medíocres serão mal sucedidos.  Porém, quando o governo intervém, os especialistas estatais (burocratas) adquirem suas receitas por meio de tributos compulsórios sobre os cidadãos indefesos.  Não há um genuíno teste de mercado para mensurar o sucesso dos conselhos dados por esses burocratas às pessoas.  Eles, os burocratas, precisam apenas ter a habilidade de adquirir o apoio político da máquina de coerção estatal.

Assim, o especialista contratado por meios privados irá prosperar proporcionalmente à sua qualidade, ao passo que um burocrata do governo irá prosperar proporcionalmente à sua capacidade de bajular políticos.  Ademais, esse burocrata estatal não será mais virtuoso que o especialista privado; sua única habilidade superior está em saber como ganhar favores daqueles que possuem poder político.  Porém, a diferença crucial entre ambos é que o especialista privado tem todos os incentivos pecuniários para se preocupar com seus clientes ou pacientes, e fazer o seu melhor por eles.  Já o burocrata estatal não possui esse incentivo; ele obtém sua receita de um jeito ou de outro, independente dos resultados.  Consequentemente, o indivíduo consumidor será melhor atendido no livre mercado.

CONCLUSÃO

Espero que esse ensaio tenha ajudado a esclarecer e remover o entulho de mitos e falsos juízos sobre o libertarianismo.  Os conservadores e todo o resto deveriam educadamente ser informados de que os libertários não creem que todas as pessoas são boas, nem que todas são extremamente iluminadas quanto aos seus próprios interesses, nem que cada indivíduo é um átomo isolado e hermeticamente fechado.  Os libertários não são necessariamente libertinos ou hedonistas, tampouco são necessariamente ateus; e, principalmente, os libertários acreditam enfaticamente em princípios morais.

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Notas

[1] John Kenneth Galbraith, The Affluent Society (Boston: Houghton Mifflin, 1958); F.A. Hayek, “The Non-Sequitur of the ‘Dependence Effect,'” Southern Economic Journal (April, 1961), pp. 346-48.

[2] Irving Kristol, “No Cheers for the Profit Motive,” Wall Street Journal (Feb. 21, 1979).

[3] Para um clamor pela aplicação de padrões éticos universais para o governo, ver Pitirim A. Sorokin and Walter A. Lunden, Power and Morality: Who Shall Guard the Guardians? (Boston: Porter Sargent, 1959), pp. 16-30.

[4] Frank S. Meyer, In Defense of Freedom: A Conservative Credo (Chicago: Henry Regnery, 1962), p. 66.

[5] Thomas E. Davitt, S.J., “St. Thomas Aquinas and the Natural Law,” in Arthur L. Harding, ed., Origins of the Natural Law Tradition (Dallas, Tex.: Southern Methodist University Press, 1954), p. 39.

[6] A.P. d’Entrèves, Natural Law (London: Hutchinson University Library, 1951). pp. 51-52.

[7] Karl Wittfogel, Oriental Despotism (New Haven: Yale University Press, 1957), esp. pp. 87-100.

[8] Sobre essa e outras seitas cristãs totalitárias, ver Norman Cohn, Pursuit of the Millennium (Fairlawn, N.J.: Essential Books, 1957).

[9] Journal of Politica1 Economy (Dezembro 1938), p. 869.  Citado em in Friedrich A. Hayek, O Caminho da Servidão: University of Chicago Press, 1944), p. 152.

[10] “The Forester’s Letters, III” (orig. in Pennsylvania Journal, Apr. 24, 1776), in The Writings of Thomas Paine (ed. M. D. Conway, New York: G. E Putnam’s Sons, 1906), I, 149-150.

[11] F.A. Harper, “Try This On Your Friends,” Faith and Freedom (January, 1955). p. 19.

[12] F.A. Hayek, Individualism and Economic Order (Chicago: University of Chicago Press, 1948), re-enfatizado no curso de seu “Por que não sou conservador,” (Chicago: University of Chicago Press, 1960), p. 529.

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