4 – O Processo Bancário de Expansão de Crédito
Neste e nos próximos cinco capítulos propomo-nos a analisar, do ponto de vista da teoria econômica, as consequências do descumprimento dos princípios gerais do Direito no contrato de depósito irregular, que já estudamos do ponto de vista jurídico e histórico nos três capítulos anteriores. Concretamente, daremos conta do processo pelo qual os bancos criam créditos e depósitos do nada e as diferentes implicações disso sobre a cooperação social. A consequência mais importante do processo de criação de créditos por parte dos bancos consiste no fato de que, ao efetuarem tal operação sem a correspondente cobertura de poupança voluntária, inevitavelmente, acabam por distorcer a estrutura produtiva real e provocar o recorrente surgimento de crises e recessões econômicas. Após estudarmos a teoria monetária dos ciclos econômicos, analisaremos criticamente as teorias macroeconômicas monetarista e keynesiana e efetuaremos uma breve resenha histórica do conjunto recorrente de crises econômicas que afetaram o mundo ocidental. Por fim, terminaremos o livro com um capítulo dedicado ao estudo da teoria do banco central e do banco livre e com outro capítulo dedicado a analisar a proposta de estabelecer um coeficiente de caixa de 100% para o sistema bancário.
1
INTRODUÇÃO
A teoria econômica sobre a moeda, o sistema bancário e os ciclos econômicos é uma evolução relativamente recente da história do pensamento econômico. Os conhecimentos econômicos que vamos abordar surgiram, portanto, com um grande atraso em relação aos fatos econômicos que pretendem explicar (desenvolvimento das atividades bancárias com reserva fracionária e aparecimento de recorrentes ciclos de auge e recessão) e à respectiva formulação jurídica. E, na verdade, os estudos sobre os princípios jurídicos, a análise de lacunas e contradições dos mesmos, a busca e depuração dos vícios lógicos, etc. começaram muito mais cedo e podem mesmo remontar, como vimos nos capítulos anteriores, à doutrina jurídica clássica romana. Em todo o caso, e seguindo a teoria evolutiva das instituições (jurídicas, linguísticas e econômicas), segundo a qual elas surgem ao longo de um prolongado processo histórico e incorporam um enorme volume de informação, conhecimentos e experiências, não surpreende que as conclusões a que chegaremos com a análise econômica do contrato de depósito bancário de moeda, tal como se desenvolve atualmente, em grande medida, apoiem e coincidam com os conteúdos legais que, de forma mais intuitiva, já pudemos obter a partir da perspectiva estritamente jurídica nos capítulos anteriores.
A análise a respeito da atividade bancária vai se circunscrever ao estudo do contrato de depósito monetário, que na prática dos bancos se aplica tanto às chamadas contas correntes à ordem, como às contas de poupança e os depósitos a prazo, sempre que nos dois últimos seja permitido, de fato, o levantamento do saldo pelo cliente a qualquer momento. Assim, não constituem objeto do nosso estudo as múltiplas atividades que os bancos privados desenvolvem na vida moderna e que não tem qualquer relação com o contrato de depósito monetário irregular. Por exemplo, os bancos modernos oferecem um serviço de contabilidade e caixa aos clientes. Dedicam-se também ao câmbio de divisas, seguindo uma tradição que remonta às fases mais antigas quando surgiram as primeiras unidades monetárias. Aceitam depósitos de títulos de valores e se ocupam, em nome dos clientes, de receber os dividendos e os juros das entidades emissoras dos títulos, informando os clientes dos aumentos de capital, reuniões de acionistas, etc. dessas sociedades. Intervêm ainda em operações de compra e venda de títulos por conta dos clientes, por meio de sociedades mediadoras, e proporcionam um serviço de cofre forte nas sucursais. Além disso, os bancos atuam como verdadeiros intermediários financeiros em muitas operações em que atraem empréstimos dos clientes (isto é, quando estes têm consciência de que efetuam um empréstimo ao banco como obrigatários, titulares de certificados ou de verdadeiros “depósitos” a prazo), emprestando os fundos recebidos a terceiros e obtendo lucro pela diferença de juros entre o que recebem dos empréstimos que concedem e o que se comprometeram a pagar aos clientes que originalmente lhes concederam empréstimos. Nenhuma destas operações tem relação com o contrato de depósito bancário de moeda, que vamos estudar detidamente nas próximos parágrafos e que, como veremos, constitui, sem dúvida, a operação mais importante realizada pelo sistema bancário atualmente, quer do ponto de vista qualitativo quer quantitativo, e a que tem mais importância econômica e social.
Como já referimos anteriormente, a análise econômica do contrato bancário de depósito monetário é mais uma prova da grande intuição de Hayek, para quem sempre que, mediante o exercício sistemático de coação ou a concessão de vantagens ou privilégios a determinados grupos ou pessoas por parte do estado, se viola algum princípio universal do Direito, acabam por se produzir, de uma forma ou de outra, consequências graves e negativas no processo espontâneo de cooperação social. Esta ideia, que se foi depurando à medida que se desenvolveu a teoria da impossibilidade do socialismo, foi generalizada e passou da aplicação exclusiva em sistemas do chamado ‘socialismo real’ a todas as áreas ou setores das economias mistas ocidentais nas quais predomina a coação governamental sistemática ou a concessão “odiosa” de privilégios.
Embora, aparentemente, a análise econômica do intervencionismo tenha mais relação com as medidas de coação do estado, não deixa de ser pertinente e reveladora em áreas em que se infringem os princípios tradicionais do Direito por concessão de favores ou privilégios a determinados grupos de interesses. Nas economias modernas há duas áreas principais em que tal fenômeno ocorre. A primeira é constituída pela denominada legislação trabalhista, que regula minuciosamente os contratos de trabalho e as relações entre os agentes que intervêm no mercado de trabalho. Esta legislação concretiza-se não só em medidas coercivas (que impedem que as partes acordem os diferentes aspectos do contrato de trabalho como acharem mais conveniente), mas também na concessão de importantes privilégios a grupos de interesse, aos quais é, em muitos casos, permitido que atuem à margem dos princípios tradicionais do Direito (como acontece, por exemplo, com os sindicatos). A segunda área onde preponderam tanto a concessão de privilégios como a coação institucional, e que constitui o objeto básico de estudo do presente livro, é a monetária, bancária e, em geral, a financeira. Embora se trate de dois campos muito importantes e, portanto, de campos cujo estudo e análise teórica também são urgentes para fundamentar e incentivar as necessárias reformas de liberalização, parece claro que a análise teórica da coação institucional e da concessão de privilégios no âmbito trabalhista é comparativamente menos complexa. Daí que o conhecimento tenha se expandido com maior rapidez e profundidade pelos diferentes estratos sociais, alcançando um significativo nível de desenvolvimento teórico e, até mesmo, de consenso social sobre a necessidade das reformas. Pelo contrário, o âmbito da teoria da moeda, do crédito bancário e dos mercados financeiros continua a ser um desafio teórico muito importante e um mistério para a maioria dos cidadãos. De fato, as relações sociais direta ou indiretamente relacionadas com dinheiro são, de longe, as mais abstratas e difíceis de compreender, pelo que o conhecimento social por elas gerado é o mais vasto, complexo e inapreeensível. Destarte, a coação sistemática exercida pelos governos e bancos centrais neste campo é, claramente, a mais perniciosa e prejudicial.[1] Além disso, esse atraso intelectual da teoria monetária e bancária acaba por ter efeitos gravosos sobre a evolução da economia mundial, como prova o fato de as economias modernas não terem ainda conseguido se libertar das fases recorrentes de auge e recessão, apesar dos avanços teóricos e dos esforços realizados pelos governos. E mais uma vez, há poucos anos, e apesar de todos os sacrifícios feitos para sanear as economias ocidentais depois da crise dos anos 1970, voltou a se cair indefectivelmente nos mesmos erros de descontrole financeiro, bancário e monetário, que de maneira inevitável, levaram ao surgimento, no início dos anos 1990, de uma nova recessão econômica mundial de magnitude considerável e da qual só recentemente o mundo ocidental conseguiu recuperar.[2] E, de novo, mais recentemente (novembro de 1997) uma grave crise financeira assolou os principais mercados asiáticos, ameaçando se estender ao resto do mundo, o que aconteceu em 2001 com a entrada em recessão das principais economias mundiais.
A análise econômica do Direito e das regulações jurídicas tem como finalidade estudar de forma aprofundada o papel, a influência e os efeitos que estas têm sobre os processos espontâneos de interação social. A análise econômica do contrato de depósito bancário de moeda fará com que seja possível compreender os efeitos do contrato de depósito monetário irregular submetido aos princípios tradicionais do Direito (ou seja, que possua um coeficiente de caixa de 100%) e, por contraste, as consequências perniciosas, imprevistas e que haviam até agora passado despercebidas, de ter sido consentido aos banqueiros o uso, em benefício próprio, do dinheiro que recebem nos depósitos à vista, em violação de tais princípios.
Assim, vamos agora ver como o fato dos banqueiros usarem do dinheiro que recebem em depósitos à vista permite aos bancos criar depósitos do nada (ou seja, dinheiro em forma de depósitos bancários) e, como consequência, créditos (em forma da poder de compra entregue aos prestatários, sejam empresários ou consumidores), que, no entanto, não resultam de nenhum tipo de geração real de poupança voluntária por parte dos agentes sociais. Neste capítulo, nos limitaremos a demonstrar esta afirmação e algumas de suas implicações, deixando para os capítulos seguintes o estudo dos efeitos econômicos da expansão de crédito, ou seja, a análise das crises e recessões econômicas.
Para seguir o padrão dos primeiros capítulos deste trabalho, começaremos por estudar os efeitos que se produzem do ponto de vista econômico e contábil no caso do contrato de empréstimo ou mútuo. Assim, por comparação, seremos capazes de compreender melhor os efeitos econômicos do contrato, essencialmente distinto, de depósito bancário de moeda.
2
O PAPEL DO BANCO COMO UM VERDADEIRO INTERMEDIÁRIO
NO CONTRATO DE EMPRÉSTIMO
Comecemos por supor que um banqueiro recebe um empréstimo de um milhão de unidades monetárias (u.m.) de um dos clientes. Consideremos que se trata de um verdadeiro contrato jurídico de empréstimo, por intermédio do qual o cliente deixa de ter a disponibilidade de um milhão de unidades monetárias em forma de bens presentes que poderia ter gasto e a que renuncia por um período de tempo ou prazo (elemento essencial do contrato) de um ano. Em troca dessa entrega de bens presentes, o banqueiro compromete-se a devolver, decorrido um ano, uma quantidade superior àquela que recebeu inicialmente. Supondo que a taxa de juro acordada seja de 10%, o banqueiro deverá devolver, um ano depois, um milhão e cem mil unidades monetárias. O lançamento em livro que se faz quando se efetua o empréstimo é o seguinte:
Banco A
Ativo | x
a
x |
Passivo |
1.000.000 u.m. caixa
(entrada no caixa do banco) |
Empréstimo recebido 1.000.000 u.m
(cta. de credores) |
|
(1)
Do ponto de vista econômico, é evidente que neste contrato há uma simples troca de bens presentes, cuja disponibilidade se transpassa do prestamista ao banco, por bens futuros, que o banco A se compromete a entregar, no prazo de um ano, ao prestamista. Do ponto de vista monetário, não se produz, portanto, nenhum efeito. Acontece simplesmente que um determinado número de unidades monetárias, que estava à disposição do prestamista, passam a estar à disposição do banco (durante um período predeterminado de tempo). Assim, deu-se uma simples transferência de um milhão de u.m. de uma pessoa para outra, mas não se verifica, de forma alguma, qualquer variação no número total de unidades monetárias preexistentes como consequência desta transação.
O lançamento (1) pode ser interpretado como o lançamento efetuado no diário no dia em que se formaliza o contrato e se entrega o milhão de u.m. do prestamista ao banco. Pode também ser considerado como o estado do balanço do banco A formalizado imediatamente depois de realizada a operação e que regista no lado esquerdo (ativo do balanço) um milhão de u.m. Em caixa e do lado direito (passivo do balanço), a dívida de um milhão de u.m. contraída com o prestamista.
Suponhamos igualmente que o banco A realiza esta operação porque vai acordar, por sua vez, emprestar um milhão de u.m. a uma empresa Z, que precisa delas com urgência para financiar algumas de suas operações, e que está disposta a pagar 15 % de juros por ano para obter o empréstimo do banco A.[3]
Assim, quando o banco A empresta o dinheiro à empresa Z, será efetuado um lançamento no seu diário, para refletir a saída de caixa de um milhão de u.m. e a substituição desse ativo pelo reconhecimento da dívida da empresa Z a favor do banco. O lançamento é o seguinte:
Banco A
Ativo | x
a
x |
Passivo |
1.000.000 Empréstimo concedido
(conta de devedores) |
Caixa 1.000.000
(saída de caixa) |
|
(2)
Neste caso, o banco A atua claramente como um verdadeiro intermediário financeiro, ao perceber e ao tirar proveito da existência de uma oportunidade empresarial em que pode obter lucro.[4] De fato, o banco nota que existe uma oportunidade de lucro, uma vez que em determinado lugar do mercado há um prestamista disposto a emprestar-lhe dinheiro a uma taxa de juro de 10% e noutro uma empresa Z disposta a contrair um empréstimo pecuniário a uma taxa de juro de 15%, ou seja, com um diferencial de lucro de 5 %. O banco faz, portanto, de intermediário entre o prestamista inicial e a empresa Z e a sua função social consiste, precisamente, em notar o desajuste ou a descoordenação existente (o prestamista inicial desejava emprestar o dinheiro, mas não encontrava ninguém solvente que estivesse disposto a recebê-lo, ao passo que a empresa Z necessitava de obter urgentemente o empréstimo de um milhão de u.m., sem saber onde encontrar o prestamista adequado). Ao obter o empréstimo de um concedendo-o a outro, o banco satisfaz as necessidades subjetivas de ambos, obtendo, ainda, um lucro empresarial puro, em forma do diferencial de juros, de 5%.
De fato, decorrido um ano, a empresa Z devolverá o milhão de unidades monetárias ao banco A, com os 15 % de juros acordados. Os lançamentos serão os seguintes:
Banco A
Ativo | x
a
x a
x |
Passivo |
1.000.000 Caixa | Empréstimo concedido 1.000.000
(anulação) |
|
150.000 Caixa
|
Juros recebidos da
Empresa Z (receitas do exercício) 150.000 |
|
(3)
Por sua vez, o banco A, deverá, pouco depois, cumprir o contrato inicialmente acordado com o prestamista original, devolvendo-lhe o milhão de unidades monetárias que se tinha comprometido a pagar decorrido um ano, juntamente com 10% de juros. Os lançamentos serão os seguintes:
Banco A
Ativo | x
a
x a
x |
Passivo |
1.000.000 Empréstimo recebido
(anulação) |
Caixa 1.000.000 | |
100.000 Pagamento de juros
(gastos do exercício) |
Caixa 100.000 | |
(4)
Ou seja, o banco devolve o empréstimo, regista a saída do caixa de um milhão de unidades monetárias que tinha recebido previamente da empresa Z e adiciona a esse milhão de unidades monetárias, também registado em caixa, 100.000 u.m de juros que paga ao prestamista original e que se registam na Conta de Perdas e Ganhos do banco como um custo em forma de pagamento de juros no exercício.
Depois desses lançamentos, no final do exercício, a conta de perdas e ganhos do banco será a seguinte:
(5)
Banco A
Perdas e Ganhos
(durante o exercício)
Ativo (gastos) |
Passivo (receitas) |
Juros pagos 100.000
Lucro do exercício 50.000 (saldo credor) |
Juros recebidos 150.000 |
Total ativo 150.000 | Total passivo 150.000 |
Esta conta de perdas e ganhos reflete, na contabilidade, um lucro empresarial do exercício de 50.000 u.m., um saldo credor da conta que se obtém pela diferença entre as receitas do exercício (150.000 u.m. de juros recebidos) e os gastos do exercício (100 000 u.m de juros pagos).
No final do exercício, o balanço do banco A seria o seguinte:
(6)
Banco A
Balanço
(no fim do exercício)
Ativo |
Passivo |
Caixa 50.000 | Patrimônio líquido 50.000
(Lucro do exercício) |
Total de ativo 50.000 | Total de passivo 50.000 |
No balanço de fim de exercício, podemos observar que no Ativo do banco ficam disponíveis 50.000 u.m. em caixa, que correspondem ao lucro do exercício, que passou a estar incluído na conta de patrimônio líquido (capital ou reservas) do Passivo.
As conclusões que podemos tirar sobre a atividade do banco, que acabamos de descrever de forma contábil, e que se baseia em receber e conceder um empréstimo ou mútuo são as seguintes: primeira, o prestamista original renuncia durante um ano à disponibilidade de bens presentes no valor de um milhão de u.m.;segunda, a disponibilidade desse dinheiro foi entregue durante precisamente o mesmo período ao banco A;terceira, o banco A descobriu uma oportunidade de lucro, uma vez que sabia da existência de um prestatário, a empresa Z, que estava disposto a pagar uma taxa de juro superior à que o banco se havia comprometido pagar; quarta, o banco efetuou um empréstimo à empresa Z, assim renunciando, por sua vez, à disponibilidade de um milhão de u.m. durante um ano; quinta, a empresa Z conseguiu a disponibilidade de um milhão de u.m. durante um ano para expandir os negócios; sexta, desta forma, durante o período de um ano, o número de u.m. não varia, simplesmente passa do prestamista original para a empresa Z via intermediário — o banco A —; sétima; por sua vez, a empresa Z conseguiu, no processo empresarial, receitas que lhe permitiram pagar cento e cinquenta mil u.m. de juros (estas cento e cinquenta mil u.m. não representam qualquer criação de moeda, sendo simplesmente obtidas pela empresa Z como resultado das atividades de compra e venda); oitava, decorrido um ano, a empresa Z devolveu um milhão de u.m. ao banco A, e o banco A, por sua vez, devolveu-o ao prestamista original juntamente com cem mil u.m. de juros; nona, consequência de tudo isto, o banco A obteve um lucro empresarial de cento e cinquenta mil u.m. (diferença entre o valor de juros que pagou ao prestamista original e o que recebeu da empresa Z), um lucro empresarial puro que foi resultado da legítima atividade empresarial de intermediação.
Como é lógico, o banco A poderia ter se equivocado na ocasião da seleção da empresa Z, quer em relação ao risco que com ela assumia, quer em relação à estimativa quanto à capacidade para devolver o empréstimo recebido e pagar os juros. Assim, o sucesso da atividade bancária nesse caso depende não só de levar a operação com a empresa Z a um bom fim, mas também de que a obrigação (devolver o milhão de u.m. e 10 % de juros ao prestamista original) vença depois de a empresa Z devolver o empréstimo juntamente com o pagamento de 15 % de juros. Desta forma, o banco pode manter a solvência e evitar qualquer incidente. No entanto, os bancos, como qualquer outro empresário, estão sujeitos ao possível erro empresarial. Por exemplo, pode acontecer de a empresa Z não ser capaz de devolver a tempo o montante acordado ao banco, ou até suspender os pagamentos ou falir, o que acabaria por tornar o banco A insolvente também, uma vez que ficaria impossibilitado de devolver o empréstimo ao prestamista original. Porém, este risco não é diferente do risco assumido em qualquer outra atividade empresarial do mercado e pode ser facilmente minorado com o exercício de uma atividade prudente e ponderada por parte do banco. Além disso, enquanto durar a operação (ao longo do exercício), o banco mantém a plena solvência e não tem qualquer problema de liquidez, uma vez que não tem obrigação de fazer qualquer pagamento enquanto o contrato de empréstimo com o prestamista original não vença.[5]
3
O PAPEL DO BANCO NUM CONTRATO DE DEPÓSITO BANCÁRIO DE MOEDA
Os fatos econômicos e os respectivos processos contábeis envolvidos num contrato de depósito bancário de moeda são muito distintos dos que estudamos na seção anterior, relativa ao empréstimo ou mútuo (analisado em primeiro lugar precisamente com o objetivo de, por contraste, se ilustrarem melhor as diferenças essenciais existentes entre os dois contratos.)
Para começar, interessa dizer que quando se efetua um depósito regular (ou selado), por exemplo, de um número determinado de unidades monetárias perfeitamente identificadas individualmente, não há necessidade de que a pessoa que o recebe o contabilize no Ativo ou no Passivo, uma vez que não se dá nenhum tipo de transferência de propriedade. No entanto, tal como vimos ao analisarmos a essência jurídica do respectivo contrato, no depósito irregular (ou aberto), por se tratar de um depósito de bens fungíveis, em que não é possível distinguir individualmente as unidades depositadas, ocorre certa transmissão de “propriedade”, uma vez que o depositário fica obrigado a devolver, não as mesmas unidades que recebeu (o que é impossível, dada a dificuldade de identificar especificamente as unidades do bem fungível recebidas), mas uma quantidade e qualidade equivalente à recebida (o chamado tantundem). No entanto, ainda que se verifique certa transmissão da propriedade, não existe transmissão da disponibilidade do bem a favor do depositário, uma vez que este, por se obrigar à guarda e custódia contínua do tantundem, deverá manter sempre à disposição do depositante um número e qualidade de unidades iguais às originalmente recebidas (embora não tenha se trate das mesmas unidades individuais especificas). Assim, a única justificação para que o depositário faça o registo contábil do contrato de depósito está ancorada, precisamente, na transmissão de propriedade vinculada ao contrato de depósito irregular, embora deva ser assinalado que, dado o limitadíssimo conteúdo dessa transmissão de propriedade (que não equivale a transmissão alguma da disponibilidade), a contabilidade, deveria se efetuar, quando muito, por intermédio de simples “contas de ordem” e com objetivos meramente informativos. Suponhamos que nos encontramos no alvorecer do desenvolvimento dos bancos com reserva fracionária e que um depositante qualquer, o senhor X, decide depositar um milhão de u.m. no banco A (ou, se preferirmos, que qualquer pessoa decida hoje abrir uma conta corrente num banco depositando um milhão de u.m.). Trata-se, neste segundo caso, de um verdadeiro contrato de depósito, embora irregular, dado o caráter fungível do dinheiro. Ou seja, a causa ou motivo essencial do contrato é a vontade que o depositante X tem de que o banco A lhe guarde ou custodieo milhão de u.m. A pessoa X considera que, embora tenha aberto uma conta corrente tem a disponibilidade imediata de um milhão de u.m. em qualquer momento e para qualquer finalidade, dado que se trata de um depósito à vista. Economicamente, para a pessoa X, o milhão de u.m. está à plena disposição em qualquer momento, fazendo, assim, parte dos saldos de tesouraria. Ou seja, apesar de terem sido depositadas no banco A, trata-se de unidades monetárias que, do ponto de vista subjetivo, a pessoa X tem à sua disposição, como se estivessem na carteira. Assim, o lançamento efetuado como consequência do contrato de depósito irregular é o seguinte:
Banco A
Ativo | x
a
x |
Passivo |
1.000.000 Caixa
|
Depósito à vista 1.000.000
(realizado pelo Sr. X) |
|
(7)
Verificamos que, embora o banco A tenha legitimidade para fazer este lançamento, uma vez que existe transferência da propriedade das unidades monetárias e que estas são colocadas de forma indistinguível nos cofres da insituição financeira, os respectivos lançamentos deveriam afetar apenas as contas de ordem ou informação, uma vez que, na verdade, apesar de o banco ter recebido a propriedade das unidades monetárias, não a recebeu na plenitude, mas completamente restringida, no sentido em que a plena disponibilidade das unidades monetárias é mantida sem alteração pelo depositante X.
Tirando a observação anterior, ainda não aconteceu nada de excepcional do ponto de vista da economia e da contabilidade. Uma pessoa X, realizou um depósito monetário irregular no banco A. Até agora, deste contrato não resultou nenhuma modificação na quantidade de moeda existente, que continua a ser de um milhão de u.m. à disposição da pessoa X, colocado no banco A para própria conveniência. Talvez a conveniência tenha origem no desejo que X tem de guardar seu dinheiro da melhor forma, evitando os perigos que podem acontecer na própria casa (roubos, perdas), bem como na vontade de obter um serviço de caixa e de pagamentos por parte do banco. Assim, a pessoa X evita ter de trazer dinheiro no bolso e pode fazer pagamentos via simples assinatura num cheque e dar instruções ao banco para que, no fim de cada mês, lhe envie o resumo de todas as operações efetuadas. Todas estas atividades do banco são serviços de valor suficiente para justificar que a pessoa X tenha decidido depositar o dinheiro no banco A. Além disso, justifica-se plenamente que o banco A cobre tais serviços ao depositante X. Suponhamos que o preço acordado para os serviços é de 3 % da quantidade depositada por ano (poderia ser também um montante fixo, sem relação com a quantia depositada, mas, para efeitos de ilustração, vamos supor que o custo dos serviços depende do montante global depositado), com a qual o banco pode fazer frente aos custos operativos de prestar esses serviços, obtendo ainda uma pequena margem de lucro. Se supusermos que os custos operativos são equivalentes a 2 % da quantidade depositada, o lucro obtido pelo banco será de 1 % ao ano, ou seja, dez mil u.m. Assumindo que o cliente, o Sr. X, paga, efetivamente, o custo anual dos serviços, que ascende a trinta mil u.m., os lançamentos que resultariam da prestação dos serviços mencionados acima seriam os seguintes:
Banco A
Ativo | x
a
x a
x |
Passivo |
30.000.000 Caixa
|
Receitas procedentes do cliente
X por pagamento de prestação de serviços 30.000 |
|
20.000 Gastos operativos
do banco na prestação de serviços |
Caixa 20.000 | |
(8)
E a conta de perdas e ganhos e o balanço do banco A no fim do exercício seriam os seguintes:
(9)
Banco A
Perdas e Ganhos
(durante o exercício)
Ativo (gastos) |
Passivo (receitas) |
Gastos operativos 20.000
Lucro do exercício 10.000 (saldo credor) |
Receitas recebidas por
prestação de serviços 30.000 |
Total Ativo 30.000 | Total Passivo 30.000 |
Balanço
(no fim do exercício)
Ativo |
Passivo |
Caixa 1.010.000 | Patrimônio líquido
(Lucro do exercício) 10.000
Depósito à vista 1.000.000 |
Total de ativo 1.010.000 | Total de passivo 1.010.000 |
Como vemos, até agora não se há nada de estranho ou de surpreendente no que diz respeito aos fatos econômicos e à contabilidade decorrentes do contrato de depósito monetário irregular. O banco obteve um pequeno lucro legítimo, a partir da atividade como prestador de serviços, avaliada pelo cliente em trinta mil unidades monetárias. Da mesma forma, não houve qualquer tipo de alteração na quantidade de moeda, tendo apenas aumentado o dinheiro em caixa no banco, depois de todas as transações, em dez mil unidades monetárias de lucro empresarial puro, obtido pela prestação de serviços ao cliente. Este preço (trinta mil u.m.) foi superior ao custo operativo dos serviços prestados (vinte mil u.m.).
Por fim, dado que o depositante considera que o dinheiro que está depositado no banco A está sempre à disposição, como se estivesse no próprio bolso ou guardado em casa (ou melhor), ele não tem direito a qualquer compensação adicional, como ocorreria no caso do empréstimo, um contrato radicalmente diferente, em que seria obrigado a renunciar à disponibilidade de um milhão de u.m. de bens presentes (isto é, a emprestar) e a entregá-la ao prestatário em troca dos juros correspondentes juntamente com a devolução do capital principal um ano depois.[6]
4
OS EFEITOS DECORRENTES DO USO DOS DEPÓSITOS À VISTA:
O CASO DE UM BANCO PARTICULAR
No entanto, e como vimos no capítulo II, os banqueiros não tardaram a sentir a tentação de violar a norma tradicional de conduta que, no depósito monetário irregular, exige a manutenção contínua da disponibilidade do tantundem a favor do depositante, e acabaram por usar em benefício próprio pelo menos parte do dinheiro depositado. Já apresentamos, no capítulo III, os comentários de Saravia de la Calle sobre essa tentação humana. Agora interessa realçar que a tentação é muito grande, quase insuportável, dado o grande lucro que proporciona. Este uso do dinheiro dos depositantes começou por ser efetuado de forma envergonhada e secreta, como aconteceu nos diferentes casos históricos das instituições bancárias que analisamos no capítulo II, numa época em que os banqueiros ainda tinham a consciência de que o procedimento era evidentemente errado. Só mais tarde, e depois de muitos séculos e vicissitudes, os banqueiros conseguiram que a violação do princípio tradicional do Direito se efetuasse de forma aberta e legal, uma vez que tiveram a fortuna de obter do governo o privilégio para utilizar o dinheiro dos depositantes (geralmente na forma de créditos muitas vezes concedidos inicialmente ao próprio governo).[7]A seguir vamos ver como é que os banqueiros contabilizam a apropriação de depósitos à vista, começando com a análise de caso de um banco individual e deixando para mais tarde o estudo do sistema bancário no conjunto.
O sistema de contabilidade da Europa Continental
Existem, tradicionalmente, dois sistemas de contabilidade para o fenômeno que estamos a tratar: o da Europa Continental e o anglo-saxão. O sistema continental tem por base a falsa noção de que, para o depositante, o contrato de depósito irregular é um verdadeiro contrato de depósito, ao passo que, para o banqueiro, é um contrato de mútuo ou empréstimo. Neste caso, o Sr. X deposita um milhão de u.m. “à vista” no banco A e o banco A recebe o dinheiro não como um depósito, mas como um empréstimo, que pode usar livremente, considerando que o depositante não vai ter conhecimento deste fato nem vai ser afetado por ele. Além disso, o banco estima que, mantendo em caixa apenas uma parte dos depósitos comoreserva de segurança, será capaz de fazer frente aos levantamentos feitos pelos depositantes. Isto acontece porque, como a experiência parece demonstrar, em condições normais e dada a confiança conquistada com o passar dos anos com a guarda e proteção dos depósitos dos clientes, são muito raros os casos em que os clientes tentam levantar uma quantidade de moeda superior à referida margem de segurança ou coeficiente de reserva, dando-se ainda o caso de muitas saídas serem compensadas com as entradas de novos depósitos de clientes. Assim, se o banqueiro considerar que, por exemplo, 10 % de reserva de segurança (também denominada coeficiente de caixa ou encaixe) é suficiente para fazer frente aos putativos levantamentos de depósitos, ficará com os 90 % restantes disponíveis, ou seja, novecentas mil u.m., para usar em benefício próprio. No sistema de contabilidade continental, esse evento econômico seria representado do seguinte modo:[8]
Em primeiro lugar, quando ocorre o depósito à vista, o lançamento a efetuar será idêntico ao do exemplo (7), com a diferença de que, neste caso, não se considera como conta de ordem.
Banco A
Ativo | x
a
x |
Passivo |
1.000.000 Caixa
|
Depósito à vista 1.000.000
recebido de X |
|
(10)
Uma vez que o banco cai na tentação de apropriar-se da maior parte do tantundem, que deveria manter em caixa ao dispor do depositante, o lançamento efetuado é:
Banco A
Ativo | x
a
x |
Passivo |
900.000 Empréstimo a Z | Caixa 900.000 | |
(11)
No momento em que o banqueiro se apropria do dinheiro e o empresta a Z, dá-se um fato econômico de grande importância: são criadas ex nihilo, ou seja, do nada, novecentas mil u.m. De fato, o motivo essencial por que a pessoa X realizou o seu depósito à vista de um milhão de u.m. foi a guarda e custódia e, subjetivamente, tal pessoa acredita, com razão, que mantém a total disponibilidade do seu dinheiro, tal como manteria se estivesse no próprio bolso, ou, até, melhor. Ou seja, para todos os efeitos, a pessoa X continua a conservar um milhão de u.m. de tesouraria como se estivesse “em seu poder”, uma vez que, de acordo com o contrato realizado, goza de absoluta disponibilidade. Do ponto de vista econômico, não há dúvidas de que o milhão de u.m. que X depositou no banco A continua a ser parte dos saldos de tesouraria. No entanto, quando o banco se apropria de novecentas mil u.m. dos depósitos e os empresta a Z, gera imediatamente do nada uma nova capacidade de compra e transfere-a para Z, que obtém o empréstimo, recebendo novecentas mil u.m. É evidente que, quer do ponto de vista subjetivo quer do ponto de vista objetivo, a partir desse momento, Z goza da disponibilidade de novecentas mil u.m. e que essas unidades monetárias são transferidas para ele.[9] Assim, houve um aumento da quantidade de moeda em circulação no mercado, uma vez que dois agentes econômicos diferentes consideram simultaneamente, e com razão, duas coisas distintas: um, que tem à sua disposição um milhão de u.m. e o outro, que tem novecentas mil. Ou seja, ao contrário do que sucedia a respeito do contrato de empréstimo ou mútuo, que já analisamos, a apropriação por parte do banco de novecentas mil unidades recebidas anteriormente em depósito tem como consequência o crescimento, em novecentas mil u.m, dos saldos de tesouraria existentes no mercado.
Interessa também saber a localização do dinheiro existente no mercado a partir do momento da apropriação do depósito pelo banco. É evidente que o número de unidades monetárias cresceu no mercado até um milhão e novecentas mil unidades, dado que diferentes agentes econômicos consideram subjetivamente terem à disposição um milhão e novecentas mil u.m. para trocar no mercado e, como sabemos, o dinheiro é o meio de troca por excelência. No entanto, a materialização desse dinheiro varia muito, conforme consideremos o caso daquele que recebe o empréstimo (Z) ou daquele que realiza os depósitos (X). De fato, Z dispõe de novecentas mil unidades físicas de moeda (por exemplo, na forma de moeda mercadoria, papel moeda ou fiat money), ao passo que o depositante X tem uma conta corrente no valor de um milhão de u.m. Considerando que o banco guardou como reserva de segurança ou coeficiente de caixa, na própria caixa forte, cem mil u.m., a diferença entre um milhão e novecentas mil u.m. e um milhão de u.m. existentes fisicamente (1.900.000 u.m. de total de oferta monetária menos 900.000 u.m. em poder de Z e 100.000 que o banco tem em caixa é igual a 900.000 u.m. que não estão materializadas fisicamente em parte alguma) constitui um dinheiro criado pelo banco a partir do nada. Uma vez que este dinheiro carece do correspondente lastro e existe graças à confiança que o depositante tem no banco A, dizemos que se trata de meio fiduciário. É importante realçar que os depósitos à vista são, para todos os efeitos, como as unidades físicas, ou seja, são substitutos monetários perfeitos. O depositante pode utilizá-los para efetuar pagamentos em qualquer momento por meio da emissão de um cheque, no qual escreve o montante que pretende pagar e dá ordem ao banco para que se efetue o pagamento. Ora, à parte destes substitutos monetários perfeitos, que são os depósitos à vista, os que não estão completamente cobertos por unidades físicas na caixa do banco, ou seja, as 900 000 u.m. de depósitos do nosso exemplo sem lastro no banco, chamamos meios fiduciários.[10]
Os depósitos à vista que estão cobertos pela correspondente reserva de caixa no banco (no nosso exemplo, um montante de cem mil u.m.) são também chamados de depósitos primários, ao passo que a parte dos depósitos à vista que carece de lastro na reserva do banco e que são meios fiduciários, também se denominadepósitos secundários ou depósitos derivados.[11]
Uma vez violado o princípio do Direito segundo o qual ninguém pode se apropriar de um depósito que recebe em custódia, deixando de manter 100 % do tantundem, é natural que os bancos tenham tentado justificar a atividade e procurado se defender com o argumento de que, na realidade, receberam o dinheiro como setratasse de empréstimo. De fato, se o banco considerar que o dinheiro recebido é um empréstimo, não existe nenhuma ilegitimidade na conduta e, do ponto de vista econômico e contábil, está apenas se dedicando à lídima e necessária atividade bancária de intermediação entre prestamistas e prestatários. No entanto, surge aqui um diferença essencial: o dinheiro foi entregue ao banco por meio de um contrato de depósito e não, mediante um contrato de empréstimo. Isto é, quando efetuou a operação de depósito, a pessoa X não tinha a menor intenção de abdicar da disponibilidade de bens presentes em troca de obter um montante um pouco superior (na forma de juros) de bens futuros. A pretensão era, pelo contrário, a melhoria da guarda e custódia do próprio dinheiro e a obtenção de outros serviços periféricos (de caixa e contabilidade), mantendo, contudo, sempre inalterada a perfeita e plena disponibilidade ou liquidez dotantundem a seu favor. E é precisamente por não haver troca de bens presentes por bens futuros que nos encontramos perante um fato econômico radicalmente distinto, que faz com que, quando o banco empresta 90 % do dinheiro que tem em caixa, sejam geradas do nada novecentas mil u.m. de meios fiduciários ou depósitos derivados.
Por outro lado, a partir de agora deverá entender-se claramente que se o banco usar o dinheiro para emprestar a Z, como assumimos no nosso exemplo e como costuma ser na prática, esse empréstimo ou crédito envolve uma entrega de bens presentes em troca de bens futuros, que, porém, não está coberta em parte alguma do mercado por um anterior e necessário aumento da poupança voluntária de novecentas mil u.m. De fato, o banco cria dinheiro do nada, que empresta em forma de bens presentes a Z, sem que ninguém se tenha obrigado a poupar previamente esse montante. Por isso, o depositante original X continua a pensar subjetivamente que tem ao seu dispor a integridade do milhão de u.m que depositou no banco, ou seja, que dispõe de um ativo plenamente líquido (dinheiro) no valor de um milhão de u.m. Ao mesmo tempo, o prestatário Z recebe, para os investimentos, 900.000 u.m. de liquidez nova que não resultam de poupança prévia de ninguém. Ou seja, duas pessoas diferentes pensam dispor perfeita e simultaneamente da mesma liquidez de 900.000 u.m correspondente à parte do milhão de u.m depositado no banco e emprestadas por este a Z (depósito derivado). Torna-se, assim, óbvio que o banco cria uma liquidez que não existia, e que é investida sem que previamente seja efetuada qualquer poupança. Este fenômeno possui um importância econômica de monta, que será estudada detidamente nos próximos capítulos e que, como veremos, é a principal causa do surgimento recorrente de crises e recessões econômicas.
Depois de o banco efetuar o empréstimo a Z, o seu balanço é o seguinte:
(12)
Banco A
Balanço
(no fim do exercício)
Ativo |
Passivo |
Caixa 100.000
Empréstimos Concedidos 900.000 |
Depósito à vista 1.000.000 |
Total de ativo 1.000.000 | Total de passivo 1.000.000 |
O banqueiro terá tendência a enganar a si mesmo, ao pensar que recebeu o dinheiro do depositantes como se fosse um empréstimo. Além disso, nunca se lembrará de pensar que, ao conceder o empréstimo à empresa Z, criou novecentas mil u.m. do nada e, muito menos, que concedeu um empréstimo que não está coberto por um aumento prévio da poupança efetiva de ninguém. Acresce que o banqueiro pensará que a reserva de cem mil u.m. mantida em caixa, decorrente da decisão de manter um coeficiente de segurança de 10 %, é mais do que suficiente, de acordo com a “experiência”, para fazer frente aos levantamentosnormais[12] de depósitos dos clientes, uma vez que leva em linha de conta a compensação natural entre os levantamentos e as aberturas de novos depósitos. Toda esta teia se torna possível graças à confiança que os clientes têm de que o banco cumprirá os compromissos futuros, confiança essa que o banco vai ganhando por exercer, durante um longo período de tempo, a atividade de guarda e custódia de moeda, de forma impecável e sem incorrer em qualquer tipo de apropriação indébita.[13] Pode compreender-se que um banqueiro não conheça a teoria econômica e que, portanto, não reconheça os fatos econômicos fundamentais que acabamos de explicar. Mais difícil é desculpar que ao apropriar-se indevidamente dos depósitos descumpra os princípios tradicionais do Direito, que, na ausência de uma teoria explicativa dos processos sociais envolvidos, constituem o único guia seguro de atuação capaz de evitar grandes danos. No entanto, qualquer pessoa inteligente, seja ou não banqueira, deveria ser capaz de notar alguns indícios do que realmente acontece. Porque é que é necessário que o banqueiro mantenha algum coeficiente de caixa? Não perceberá que nas operações em que intervém legitimamente como verdadeiro intermediário entre prestamistas e prestatários não é necessário que mantenha qualquer tipo de coeficiente de caixa? Não compreenderá que, como assinalou Röpke, o seu banco é uma instituição que, regra geral, “necessita de cumprir menos do que promete e vive do prometer regularmente mais do que realmente pode cumprir”?[14]São apenas de indícios que, por outro lado, é compreensível que qualquer pessoa prática interprete das mais variadas formas. Mas é precisamente para isso que existem os princípios jurídicos, que constituem um “piloto automático” do comportamento que faz com que a cooperação entre os seres humanos seja possível, ainda que, pelo seu caráter abstrato, não sejamos capazes de identificar claramente o papel que cumprem no processos de interação social.
Em todo o caso, como acertadamente aponta Mises, enquanto se mantiver a confiança no banco, este poderá continuar a fazer uso da maior parte dos depósitos dos clientes, sem que estes tenham consciência de que o banco não tem a liquidez necessária para cumprir todos os compromissos. É como se o banco tivesse conseguido uma fonte permanente de financiamento num valor igual ao novo dinheiro que cria e que manterá de forma indefinida no futuro enquanto durar a confiança do público na capacidade de cumprir os compromissos. De fato, enquanto essa situação se mantiver, o banco poderá, até, utilizar a liquidez nova que cria do nada em gastos de consumo ou em qualquer outra finalidade diferente da concessão de empréstimos. Na verdade, a capacidade de criar dinheiro do nada gera uma riqueza (em prejuízo de uma multiplicidade de terceiros que não é possível identificar e que dificilmente chega a notar os danos que sofre e da responsabilidade dos mesmos) da qual o banqueiro se pode apropriar sem grandes preocupações, enquanto se mantiver a confiança na correção da conduta.[15]
Embora os banqueiros particulares não tenham, muitas vezes, consciência da enorme fonte de lucro que constitui a capacidade de geração de moeda nova a partir do nada ao utilizarem os depósitos recebidos para conceder empréstimos e pensem ingenuamente que se limitam a emprestar parte do que receberam, a verdade é que, como veremos mais adiante (quando estudarmos os efeitos dos bancos com reserva fracionária no âmbito de todo o sistema bancário), de fato, a parte mais significativa dos lucros decorre de um processo geral em que se veem imersos e cujas implicações não compreendem completamente. O que entendem na perfeição é que, como consequência da utilização para empréstimos da maior parte dos depósitos, obtêm um lucro muito superior ao que teriam conseguido se agissem legitimamente como meros intermediários entre prestamistas e prestatários — lançamentos (1) a (6) — ou como simples prestadores de serviços de contabilidade e caixa a favor dos clientes — lançamentos (8) e (9). De fato, seguindo o nosso exemplo, a concessão do empréstimo a Z, vai permitir ao banco A obter juros de 15 % da quantidade emprestada. Ou seja, de cento e trinta e cinco mil u.m. O lançamento é o seguinte:
Banco A
Ativo | x
a
x |
Passivo |
135.000 Caixa
|
Receitas por juros
de empréstimos 135.000 |
|
(13)
Supondo que o banco efetua os serviços de caixa que descrevemos acima, cujo custo operacional era de vinte mil unidades monetárias, poderá, ao ser pago com base nos rendimentos recebidos em juros, proporcionar aos clientes os serviços de caixa e contabilidade próprios da conta corrente de forma “gratuita”. O lançamento para registar os custos operacionais seria o seguinte:
Banco A
Ativo | x
a
x |
Passivo |
20.000 Gastos operacionais por
prestação de serviços |
Caixa 20.000 | |
(14)
Embora tenha completa legitimidade para continuar a cobrar as trinta mil u.m. (3 % dos depósitos) pela gestão dos serviços, e embora não a cobre aos clientes pretendendo assim atrair mais depósitos e atingir o objetivo oculto de dispor dos mesmos para conceder empréstimos, o banco continua a obter um enorme lucro: cento e trinta e cinco mil u.m. que recebe de juros menos as vinte mil u.m. de custos operacionais. E, na verdade, as cento e quinze mil u.m. de lucros são mais do dobro dos lucros legítimos que o banco obteve como simples e verdadeiro intermediário financeiro entre prestamistas e prestatários e mais de dez vezes aquilo que conseguiu prestando serviços de caixa e contabilidade aos clientes.[16] A conta de perdas e ganhos do banco seria a seguinte:
(15)
Banco A
Perdas e Ganhos
(durante o exercício)
Ativo (gastos) |
Passivo (receitas) |
Gastos operacionais 20.000
Lucro do exercício 115.000 (saldo credor) |
Receitas recebidas 135.000 |
Total Ativo 135.000 | Total Passivo 135.000 |
E o balanço do banco depois de realizadas todas as operações, seria:
(16)
Banco A
Perdas e Ganhos
(durante o exercício)
Ativo |
Passivo |
Caixa 215.000
Empréstimos concedidos 900.000 |
Patrimônio líquido (Lucro do exercício) 115.000
Depósitos à vista 1.000.000 |
Total de ativo 1.115.000 | Total de passivo 1.115.000 |
A prática contabilística no mundo anglo-saxão
A prática inglesa teve menos dúvidas e escrúpulos no que diz respeito ao registo contábil da criação a partir do nada de meios fiduciários. De fato, como refere Hayek, “English banking practice credits the account of the customer with the amount borrowed before the latter is actually utilized”.[17] Segundo a prática contabilística anglo-saxônica, quando um cliente faz um depósito à visa de um milhão de u.m. num banco, em primeiro lugar se faz um lançamento idêntico ao que vimos na prática continental europeia:
Banco A
Ativo |
x a x |
Passivo |
1.000.000 Caixa | Depósitos à vista 1.000.000 | |
(17)
A diferença na prática anglo-saxônica radica no lançamento que se efetua quando o banco decide utilizar em benefício próprio as novecentas mil u.m. que mantém em caixa além do coeficiente de segurança para conceder um empréstimo a Z. De acordo com a prática anglo-saxônica, efetua-se um lançamento para registar o empréstimo concedido no Ativo e, ao mesmo tempo, abre-se um conta corrente no Passivo a favor do prestamista no valor do empréstimo (novecentas mil u.m.). Este lançamento é o seguinte:
Banco A
Ativo |
x a x |
Passivo |
900.000 Empréstimos concedidos | Depósitos à vista 900.000 | |
(18)
Verificamos, assim, que a prática inglesa é, neste respeito, muito mais transparente e concordante com a realidade dos fatos econômicos do que a continental, dado que reconhece contabilisticamente a realidade econômica da criaçãoex nihilo de novecentas mil u.m., que resulta da concessão de um empréstimo a Z com base nos depósitos à vista realizados pelos clientes do banco. De fato, uma vez concedido o empréstimo, o balanço do banco seria o seguinte:
(19)
Banco A
Balanço
Ativo |
Passivo |
Caixa 1.000.000
Empréstimos 900.000 |
Depósitos à vista 1.900.000 |
Total de ativo 1.900.000 | Total de passivo 1.900.000 |
De acordo com a prática inglesa, este balanço mostra que, no momento em que concede novecentas mil u.m. de empréstimo, o banco gera depósitos do nada no valor de novecentas mil u.m. Ou seja, o próprio banco põe à disposição do prestatário um valor até 900.000 u.m., que aumenta o saldo de depósitos à vista até um milhão e novecentas mil u.m., das quais um milhão corresponderia a unidades monetárias físicas, ou seja, a depósitos primários, e novecentas mil corresponderiam a meios fiduciários criados do nada, isto é, a depósitos derivados ou secundários.
Admitindo de novo, para efeitos dialéticos, que o banqueiro considera um empréstimo o dinheiro que recebeu como depósito à vista, então, por ter a origem num contrato de depósito monetário irregular, no qual, por definição não se estabelece prazo de devolução (uma vez que é “à vista”), o referido “empréstimo” não teria prazo. Em circunstâncias normais e se os depositantes confiarem no banco, o banqueiro pensa, com razão, que os depositantes só levantarão uma pequena fração dos depósitos. Assim, apesar de o pretenso “empréstimo” recebido dos depositantes ser “à vista”, uma vez que, em última análise, carece de prazo, o banqueiro poderá considerá-lo um “empréstimo” que nunca terá de devolver. Obviamente, se receber um empréstimo com a crença de que nunca terá de o devolver (e na maior parte dos casos nem sequer tem de pagar juros por ele, embora isso não seja essencial para a nossa discussão), mais do que um empréstimo, estamos de fato perante uma oferta que o banqueiro dá a si próprio com base nos fundos dos depositantes. Isto significa que, embora para efeitos contábeis a dívida seja reconhecida (em paralelo com crédito concedido) em forma de “depósitos à vista” (derivados ou secundários e no valor de 900.000 u.m.), na prática, e em circunstâncias normais, o que o banco consegue é criar do nada uma fonte permanente de financiamento, que estima nunca ter de devolver e de que, portanto, acaba, em última análise, e apesar de todas as aparências contabilísticas, por se apropriar, considerando-a sua. Resumindo, os bancos acumulam patrimônios tremendos pela criação de meios de pagamento em prejuízo de terceiros, embora o prejuízo se materialize de forma dispersa e diluída e tome a forma da perda relativa gradual de poder de compra da unidade monetária, resultante da criação a partir do nada de meios de pagamento por parte do sistema bancário. Esta transferência contínua de riqueza para os banqueiros se mantém de forma regular enquanto o negócio bancário se desenvolver com normalidade e os ativos forem se acumulando nos balanços na forma de créditos e investimentos cobertos pelos depósitos que os banqueiros criam a partir do nada. O reconhecimento pleno da existência desta fonte permanente de financiamento e dos importantíssimos volumes de riqueza que os bancos acumulam à custa dos restantes cidadãos e que mantêm nos balanços revestidos de investimentos ativos encobertos por “depósitos” será muito importante no último capítulo deste livro, onde proporemos um modelo de transição e reforma do atual sistema bancário. Embora esta riqueza beneficie de fato apenas os bancos e governos e embora econômica e contabilisticamente pertença aos pretensos depositantes, na verdade não pertence a ninguém, uma vez que os depositantes consideram os depósitos substitutos monetários perfeitos. Desta forma, os recursos disponíveis, como veremos quando estudarmos o processo de transição e reforma bancária, poderiam ser usados para ajudar importantes fins de interesse público e social (por exemplo, a eliminação do saldo existente de dívida pública ou até o financiamento de um processo de reforma da Segurança Social com o objetivo de passar de um sistema público baseado na distribuição para um sistema privado baseado na capitalização).
Voltando ao nosso exemplo, quando o prestatário Z começar gradualmente a usar o seu dinheiro passando cheques sobre a conta aberta para ele no banco, a contabilidade da prática bancária anglo-saxônica será cada vez mas parecida com a da prática bancária continental. Suponhamos que o prestatário dispõe do seu empréstimo em dois momentos distintos e sucessivos. No primeiro (t1) levanta quinhentas mil u.m. e no segundo (t2), quatrocentas mil. Os lançamentos correspondentes seriam os seguintes:
Banco A (t1)
Ativo |
X a
x |
Passivo |
500.000 Depósitos à vista
(parte do crédito usado por Z) |
Caixa 500.000 | |
(20)
Banco A (t2)
Ativo |
x a
x |
Passivo |
400.000 Depósitos à vista
(remanescente do crédito usado) |
Caixa 400.000 | |
(21)
Depois de o prestatário levantar a totalidade do empréstimo que lhe foi concedido, o balanço do banco passaria a ser o que se mostra abaixo:
(22)
Banco A
Balanço
Ativo |
Passivo |
Caixa 100.000
Empréstimos 900.000 |
Depósitos à vista 1.000.000 |
Total de ativo 1.000.000 | Total de passivo 1.000.000 |
Como se pode ver, este balanço coincide com o balaço (12), ao qual chegamos por meio da prática contabilística continental e no qual existe um milhão de u.m. depositado à vista pelos clientes, coberto por cem mil u.m. em caixa (coeficiente de caixa ou encaixe) e pelas novecentas mil de empréstimos concedidos a Z. Assim, uma vez que o prestatário levantou o empréstimo na íntegra, os registos contábeis dos dois sistemas é idêntico, existindo no mercado 1.900.000 u.m., das quais novecentas mil de meios fiduciários correspondentes, precisamente, à parte de depósitos à vista não coberta por saldos de caixa no banco (um milhão menos cem mil u.m.) e um milhão de u.m. físicas (cem mil em caixa no banco e novecentas mil entregues ao prestatário Z, que as utiliza para fins particulares).[18]
A principal vantagem do sistema de contabilidade anglo-saxão é a de que evidencia, como já demonstrou Herbert J. Davenport em 1913, que os bancos “do not lend their deposits, but rather, by their own extensions of credit, create the deposits“.[19] Ou seja, que os bancos não são intermediários financeirosquando desenvolvem a atividade de emprestar a partir dos depósitos à vista, uma vez que não atuam como intermediários entre prestamistas e prestatários. Antes, concedem empréstimos com base em depósitos que criam do nada (meios fiduciários) e que, portanto, não lhes foram entregues previamente por qualquer terceira parte como depósitos de unidades monetárias físicas. No sistema de contabilidade continental os bancos também não exercem uma atividade de intermediários financeiros, já que os verdadeiros depositantes originais entregam o dinheiro com a finalidade de guarda e custódia e não como um empréstimo concedido ao banco. Além disso, já demonstramos que, ao reduzirem a uma fração as unidades monetárias que guardam em caixa (coeficiente de caixa), os bancos criam meios fiduciários em relação ao valor total dos depósitos que carecem de cobertura financeira. Desta forma, por uma análise um pouco mais abstrata, chega-se à mesma conclusão do sistema contábil anglo-saxão: mais do que intermediários de crédito, os bancos são criadores de créditos e depósitos, ou meios fiduciários. Ainda assim, o processo é muito mais óbvio e fácil de entender de acordo com o critério anglo-saxônico, uma vez que este sistema reflete claramente desde o início que o banco cria depósitos do nada, usando-os como base para conceder empréstimos.
Do ponto de vista da teoria econômica, o principal inconveniente de ambos os sistemas de contabilidade é que registam um volume de criação de depósitos e de concessão de créditos muito inferior ao que realmente ocorre, ou seja, revelam apenas uma fração do volume total de depósitos e de créditos que os bancos podem criar conjuntamente. A demonstração deste fato só será feita quando estudarmos, do ponto de vista de todo o sistema bancário, os efeitos do exercício da atividade bancária com reserva fracionária. Porém, antes disso, é necessário identificar os limites de criação de depósitos e concessão de créditos por parte de um banco isolado e considerado individualmente.
A possibilidade de expansão de créditos e de criação de depósitos por parte de um banco isolado
Passaremos agora a analisar qual é o limite de capacidade de criação de créditos e de expansão de depósitos a partir do nada de um banco isolado. Para isso, teremos em conta as variáveis que apresentamos a seguir:
Seja
d: o dinheiro originalmente depositado na caixa do banco;
d1: o dinheiro ou as reservas que saem do banco como consequência dos empréstimos que este concede;
x: a expansão de crédito máxima que o banco pode efetuar a partir do dinheiro d, que originalmente recebeu em depósito;
c: o encaixe ou coeficiente de caixa que, de acordo com a experiência, o banco mantém e que a prudência lhe diz que deve guardar para poder cumprir os compromissos; e
k: a proporção dos empréstimos concedidos que, em cada momento e em média, não é usada pelos prestatários.
Ora, de acordo com essas definições, é evidente que as reservas que saírem do banco, d1, serão iguais aos créditos concedidos multiplicados pela percentagem usada pelos prestatários, ou seja:
[1] d1 = (1-k)x
Se considerarmos, por outro lado, que o dinheiro que sai do banco, d1, é igual ao que o banco originalmente recebeu em depósito, d, menos o montante mínimo que pretenderá manter em reserva, cd, em relação ao dinheiro que recebeu originalmente em depósito, mais ckx, em relação à proporção média não usada dos empréstimos, teríamos que:
[2] d1 = d ? (cd + ckx)
Ora, substituindo nesta fórmula [2], o valor de d1 em [1] teríamos:
(1 ? k) = d ? (cd + ckx)
Fazendo as operações, encontrando o fator comum e isolando x, teríamos:
(1 ? k)x = d ? cd – ckx
(1 ? k)x + ckx = d ? cd
x(1 ? k + ck) = d(1? c)
Acabaríamos por chegar, assim, à fórmula segundo a qual a expansão de crédito máxima, x, que o banco isolado pode efetuar a partir do nada seria:[20]
ou, se preferirmos:
[3]
Como se pode verificar na fórmula [3], o coeficiente de caixa, c, e a percentagem média de empréstimos não utilizados, k, têm efeitos opostos na capacidade do banco isolado para criar créditos e depósitos. Ou seja, quanto menor for c e maior for k, maior será x. A lógica econômica da fórmula [3] é, portanto, muito clara: quanto maior for o coeficiente de caixa que o banco estima que deve manter, menos empréstimos poderá conceder; por oposição, se o encaixe ou coeficiente de reserva se mantiver igual, quanto menor for a média de moeda dos empréstimos que o banco considere que os prestatários vão usar, mais dinheiro terá à disposição para expandir os empréstimos.
Até agora supusemos que k é a percentagem média dos empréstimos recebidos que os prestatários não usam. No entanto, de acordo com C. A. Phillips,[21] podem equiparar-se a k outros fenômenos que tenham o mesmo efeito. Desta forma, k pode incluir, por exemplo, o fato de a probabilidade de, num mercado onde existem poucos bancos, o prestatário efetuar pagamentos a clientes do mesmo banco ser grande. Assim, supõe-se que os clientes do próprio banco que recebem dinheiro do prestatário, irão depositar os cheques recebidos nas próprias contas do mesmo banco, fazendo, assim, com que não saia dinheiro desse banco. Este fenômeno acaba por ter um efeito idêntico ao produzido por um aumento na proporção média de empréstimos não utilizada por parte dos prestatários. Assim, quanto menos bancos existirem no mercado, maior será k, menores serão as saídas de moeda do banco e, logo, maior será a capacidade para gerar créditos. A vontade de impulsionar o crescimento de k é uma das razões mais importantes por detrás da tendência para a concentração dos bancos que desde sempre se verificou nas atividades bancárias com reserva fracionária.[22] De fato, quanto mais os bancos se concentrarem e maior for a quota individual no mercado, mais possibilidades haverá de que os cidadãos que recebem os meios fiduciários de pagamento sejam os próprios clientes, pelo que tanto k como a correspondente capacidade de criar créditos e depósitos a partir do nada serão maiores, e o lucro resultante, muito superior. O valor de k aumenta também quando se efetuam depósitos de moeda noutros bancos. Estes expandem os créditos e os respectivos prestatários acabam por depositar uma parte significativa do novo dinheiro que recebem no banco em questão. Este fenômeno provoca ainda um aumento das reservas de moeda e, portanto, da capacidade de expansão de crédito.
Se supusermos, por exemplo, que o encaixe ou coeficiente de caixa, c, é de 10 % e que o coeficiente de empréstimos não utilizados, k (que também inclui, como vimos, os efeitos decorrentes de um grande número de clientes do banco, além de outros fatores) é de 20 %; e ainda que os depósitos originalmente realizados no banco, d, são de um milhão de u.m., então, substituindo estes valores na fórmula [3], teremos:
[4]
Vemos, assim, que o banco em que se efetuaram depósitos à vista no valor de um milhão de u.m., mantendo um coeficiente de reserva de 10% e um k de 20%, poderá conceder empréstimos, não no valor de 900.000 mil u.m., como para efeitos de ilustração assumimos anteriormente nos lançamentos (18) e seguintes, mas num valor sensivelmente maior de 1.097.560 u.m. Desta forma, para um banco isolado, a capacidade de expansão de crédito e de geração de depósitos a partir do nada é 22% mais elevada do que a que consideramos nos lançamentos 18 e seguintes.[23] Assim, devemos modificar os lançamentos contábeis que apresentamos anteriormente, incluindo agora o fato econômico segundo o qual, de acordo com o sistema de contabilidade anglo-saxônico, quando c = 0,1 e k = 0,2, o banco poderá expandir o crédito em 1.097.560 u.m., e não nas 900.000 u.m. antes consideradas (ou seja, mais 22%). Os lançamentos no diário de contabilidade e o correspondente balanço, em vez de serem os registados em (18) e (19), seriam os seguintes:
Banco A
Ativo |
x a
x a x |
Passivo |
1.000.000 Caixa
|
Depósitos à vista 1.000.000
(ou contas correntes) |
|
1.097.560 Empréstimos concedidos | Depósitos à vista 1.097.000
(criados de novo) |
|
(26)
Estes lançamentos correspondem ao depósito original de um milhão de u.m. e à criação a partir do nada de empréstimos e depósitos por parte do banco isolado no valor de 1.097.560 u.m. Sendo k = 0,2, em média, os prestatários usam apenas 80 % dos empréstimos que lhes são concedidos, pelo que quando este dinheiro é levantado (ou mesmo que se acabe usando mais por uma parte dos receptores do dinheiro serem também clientes do banco e aí o depositarem), o lançamento a efetuar é o seguinte:[24]
Banco A
Ativo | x
a
x |
Passivo |
878.048 Depósitos à vista
(80% de 1.097.560) |
Caixa 878.048 | |
(27)
Assim, o balanço do banco seria:
(28) Banco A
Balanço
c = 0,1 e k = 0,2
Ativo |
Passivo |
Caixa 121.952
Empréstimos 1.097.560 |
Depósitos à vista 1.219.512 |
Total de ativo 1.219.512 | Total de passivo 1.219.512 |
O caso do banco muito pequeno
Consideremos agora um caso particular de banco isolado: o banco muito pequeno ou “liliputiano”, ou seja, um banco em que k = 0, o que significa que os prestatários levantam imediata e integralmente o valor dos empréstimos, sem que aqueles a quem pagam sejam clientes do mesmo banco. Se k = 0, substituindo este valor na fórmula [3], chegaríamos à fórmula [5]:
[5] x = d (1 ? c)
e, recordando que no nosso exemplo d = 1.000.000 u.m. e c = 0,1, então:
x = 1.000.000 (1 ? 0,1) = 1.000.000 × 0,9 = 900.000 u.m.
Este é precisamente o montante de criação ex nihilo de depósitos ou meios fiduciários que apontamos nos lançamentos (11) e (18) anteriores. Ainda assim, vimos na seção anterior que, na prática, e por pouco que kseja maior do que zero, a criação de meios fiduciários por parte de um banco isolado poderá ser consideravelmente superior quer no sistema contábil continental quer no anglo-saxônico (se k = 0,2, pode ser 22 % mais alta, 1.087.560 u.m. contra as 900.000 u.m. do nosso exemplo original) e até superar o valor dos depósitos originalmente efetuados no banco isolado.
Compreende-se assim a razão por que os bancos competem tão intensamente para conseguir o maior montante possível de depósitos e o máximo número de clientes. No que diz respeito aos depósitos, isso acontece porque, como vimos, o banco é capaz de expandir o crédito num valor que pode até ser superior ao volume dos mesmos, pelo que quanto maior for o montante de depósitos obtido, maior poderá ser a expansão do crédito correspondente. No que respeita aos clientes, porque, quanto mais clientes conseguir, maior será k e, logo, maior será a capacidade de expansão de crédito e de geração de depósitos. O importante a ter em conta aqui é que o banco é tecnicamente incapaz de distinguir se a própria politica de crescimento se efetua ampliando o âmbito de atuação à custa dos outros bancos, se essa política acaba por provocar um aumento generalizado da expansão de crédito em todo o sistema bancário, ou se acontecem as duas coisas simultaneamente. E, na verdade, o banco expande o crédito e os depósitos, participando ainda em processos em que a expansão de créditos e depósitos via sistema bancário é ainda maior. Por outro lado, procura que, nesse processo, a proporção do seu âmbito de atuação seja, em termos relativos, cada vez mais importante, o que leva constantemente a novos e ulteriores impulsos à expansão de crédito, quer do ponto de vista do banco individual, como do ponto de vista de todo o sistema bancário no conjunto. Em todo o caso, k é um fator essencial para determinar a capacidade do banco para obter lucros. A concorrência entre os bancos faz com que o k seja significativamente inferior a 1. Todos os bancos procuram que o seu fator kseja cada vez maior, explorando as diferentes oportunidades que lhe surgem (no que diz respeito à extensão geográfica, capacidade para excluir ou absorver concorrentes e desenvolvimento de vantagens comparativas).[25] Embora um fator k = 1 seja impossível para um banco individual (exceto, como veremos adiante, no caso de um banco monopolista), fatores k significativamente superiores a 0 são muito prováveis e, em quase todas as circunstâncias, os bancos farão o máximo esforço para estimular o aumento de k (o que explica, entre outros fenômenos, a contínua pressão que sofrem para se concentrarem ou fundirem com outros bancos).
Para fins ilustrativos, compilamos no quadro seguinte as diferentes combinações de coeficientes de caixa, c, e de taxas de empréstimos não usados ou de clientes no mesmo banco, k, que permitem a um banco isolado duplicar, por si só, a oferta monetária (ou seja, substituindo os valores na fórmula [3], obter x igual a d).
Coeficiente de caixa “c” | Percentagem de não utilização “k”
|
2 %
5 % 7 % 13 % 15 % 17 % 20 %
|
2,04 %
5,26 % 7,52 % 14,94 % 17,64 % 20,48 % 25,00 %
|
A expansão do crédito e a criação a partir do nada de depósitos no caso do banco único monopolista
Supondo agora que k = 1, ou seja, que estamos perante um banco único monopolista em que, por não existir outro banco, os prestatários se veem obrigados a manter como depósitos todos os empréstimos que lhes são concedidos; ou perante uma situação em que todos os que no final da cadeia recebem dinheiros dos prestatários do banco são também clientes desse banco. Assim, ao substituir o valor de k = 1 na fórmula [3], teríamos:
[6]
Ou seja, de acordo com o nosso exemplo em que d = 1.000.000 u.m. e c = 0,1, obteríamos:
[7]
Neste caso, o banco poderia criar, por si só e a partir do nada, créditos e depósitos ou meios fiduciários no valor de nove milhões de u.m, o que significa que poderia chegar a multiplicar por 10 a oferta monetária total (um milhão de u.m. depositadas originalmente mais nove milhões de u.m. em forma de meios fiduciários ou depósitos criados a partir do nada para servirem de lastro para os créditos concedidos pelo banco).
Seguindo Bresciani-Turroni,[26] e supondo que todas as operações de pagamento são realizadas entre clientes do mesmo banco (por este ser monopolista, ou por haver circunstâncias que dão origem a esta situação), vamos agora mostrar como se chega contabilisticamente ao mesmo resultado.
Para isso, usaremos o sistema de contabilidade tradicional do continente europeu (não o anglo-saxônico), no qual todos os pagamentos são feitos por caixa. Assim, o diário nos momentos t1, t2, t3, …, t9 etc. seria aquele que se apresenta a seguir, no qual se pode ver que o banco concede empréstimos de valor igual a 90% dos fundos que mantém em caixa aos próprios clientes. Estes levantam o montante integral do empréstimo, mas, como são clientes do próprio banco (ou porque não existe mais nenhum banco na sociedade), acabam por voltar a depositar aí o dinheiro recebido. Com esse dinheiro, o banco pode conceder novos empréstimos e gerar novos depósitos, num processo que se vai repetindo sucessivamente, como se indica a seguir:
(32)
Banco A
(diário de operações do exercício)
Ativo | x
a
x a x |
Passivo |
1.000.000 Caixa
|
Depósitos à vista
recebidos de X 1.000.000 |
|
1.097.560 Empréstimos a U | Caixa 900.000 | |
t1
t2
Suponhamos que U levanta o montante do empréstimo que lhe foi concedido e paga ao credor A. Como A é também cliente do banco, deposita as novecentas mil u.m. que recebe, dando origem ao seguinte lançamento:
Ativo | x
a
x a x |
Passivo |
900.000 Caixa
|
Depósitos à vista
recebidos de A 900.000 |
|
810.000 Empréstimos a V | Caixa 810.000 | |
t3
t4
Suponhamos de novo que o prestatário V levanta o seu dinheiro e paga ao credor B, que, por ser também cliente do banco, o volta a depositar aí. A repetição destes processos dá origem aos seguintes lançamentos:
810.000 Caixa | Depósitos à vista
recebidos de B 810.000 |
|
729.000 Empréstimos a Y |
Caixa 720.000 |
|
729.000 Caixa |
Depósitos à vista recebidos de C 729.000 |
|
656.000 Empréstimos a Z |
Caixa 656.000 |
|
656.000 Caixa |
Depósitos à vista recebidos de D 656.000 |
|
t5
t6
t7
t8
t9
E assim sucessivamente, até que no final do ano, os depósitos totais do banco seriam:
[8] 1.000.000 + 1.000.000 x 0,9 + 1.000.000 x 0,92 + 1.000.000 x 0,93 +
1.000.000 x 0,94 + … = 1.000.000 (1 + 0,9 + 0,92 + 0,93 + 0,94 + … )
A expressão anterior representa a soma dos termos de uma série que cresce numa progressão geométrica com uma razão de 0,9.[27]
No nosso exemplo, r = 0,9 e a = 1.000.000 de u.m., pelo que a soma dos termos seria igual a:
[13]
E, se tivermos em conta que d representa o milhão de u.m. originalmente depositado e que r = 1 ? c, ou seja, r = 1 ? 0,1 = 0,9, a soma de todos os depósitos do banco (originais e secundários) seria, evidentemente:
[14]
Desta forma, o volume total de depósitos de um banco monopolista (ou de um banco onde todos os que recebem dinheiro dos prestatários são também clientes) seria igual ao valor dos depósitos originalmente efetuados, d, dividido pelo coeficiente de caixa, c.
A fórmula [14] é a versão mais simplificada do chamado multiplicador bancário. É idêntica à fórmula [27], que dá o mesmo resultado para um sistema bancário composto por uma diversidade de bancos pequenos, e, aparentemente foi pensada pela primeira vez por Alfred Marshall em 1887.[28]
Para calcular a expansão de crédito líquida criada do nada pelo banco (ou, por outras palavras, os depósitos ou meios fiduciários gerados ex nihilo para a tornar possível), a fórmula adequada seria:
[15]
Extraindo o fator comum:
[16] , que coincide com [6].
De fato, para d = 1.000.000 de u.m. e c = 0,1, no caso do banco monopolista, a expansão de crédito líquida seria igual a:
[17]
Logo, o balanço do banco A, um banco monopolista, acabaria por ser o seguinte:
(33)
Banco A
(monopolista)
Balanço
Ativo |
Passivo |
Caixa 1.000.000
Empréstimos a U 900.000 Empréstimos a V 810.000 Empréstimos a Y 729.000 Empréstimos a Z 656.000 . . .
|
Depósitos à vista
de X 1.000.000 de A 900.000 de B 810.000 de C 729.000 de D 656.000 . . . |
Total de ativo 10.000.000 | Total de passivo 10.000.000 |
Verificamos que, com apenas um milhão de u.m. em depósitos originais guardados em caixa, o banco monopolista A expandiu o crédito concedendo nove milhões de u.m. em empréstimos e criando do nada nove milhões de u.m de novos depósitos ou meios fiduciários para os poder cobrir.[29]
5
A EXPANSÃO DE CRÉDITO E A CRIAÇÃO DE NOVOS DEPÓSITOS
POR PARTE DE TODO O SISTEMA BANCÁRIO
Como vimos, os bancos pequenos têm grande capacidade de criação de créditos e depósitos fiduciários (normalmente, podem, por si só, chegar a duplicar a oferta monetária). Vamos agora ver como os bancos, trabalhando em conjunto, ou seja, por intermédio do sistema bancário, e com reserva fracionária, geram a partir do nada um volume de depósitos muito maior e dão origem a uma expansão de crédito mais elevada e parecida com a do banco monopolista que acabamos de estudar. Para isso, vamos partir do caso mais geral, ou seja, de um sistema bancário constituído por um grupo de bancos normais, cada um dos quais mantendo um coeficiente de caixa, c, de 10% e tendo uma percentagem média de não uso dos empréstimos (ou de retorno ao próprio banco dos meios fiduciários, por uma parte significativa dos derradeiros receptores do dinheiro ser cliente), k, de 20%.
Suponhamos que a pessoa X deposita um milhão de u.m. no banco A. Ora, de acordo com o que já vimos, os lançamentos correspondentes a efetuar pelo banco no Diário seriam:
Banco A
Ativo | x
a
x |
Passivo |
1.000.000 Caixa | Depósitos à vista 1.000.000
(recebidos de X) |
|
(34)
Depois, o banco A poderá criar e conceder empréstimos a Z por um valor determinado pela fórmula que vimos em [3], dando origem ao seguinte lançamento:
Banco A
Ativo | x
a x |
Passivo |
1.097.560 Empréstimos a Z | Depósitos à vista 1.097.560 | |
(35)
E, como sabemos, sendo k = 0,2, seriam levantados da caixa 80% dos empréstimos concedidos, dando origem ao lançamento:
Banco A
Ativo | x
a x |
Passivo |
878.048 Depósitos à vista | Caixa 878.048 | |
(36)
Depois desses lançamentos, o balanço do banco A seria o seguinte:
(37)
Banco A
Balanço
c = 0,1e k = 0,2
Ativo |
Passivo |
Caixa 121.952
Empréstimos 1.097.560 |
Depósitos à vista 1.219.512 |
Total de ativo 1.219.512 | Total de passivo 1.219.512 |
Suponhamos agora que, quando levanta o depósito, Z paga à pessoa Y, que é cliente do banco B e aí deposita o dinheiro. Esta operação daria origem a três lançamentos paralelos aos que acabamos de mostrar e cujos montantes se obteriam, também, utilizando a fórmula [3]:
Banco B
Ativo | x
a
x a x a x |
Passivo |
878.048 Caixa | Depósitos à vista 878.048
(recebidos de Y) |
|
963.710 Empréstimos a V | Depósitos à vista 963.710 | |
770.969 Depósitos à vista | Caixa 770.969 | |
(38)
Depois dessas operações, o balanço do Banco B seria:
(39)
Banco B
Balanço
c = 0,1 e k = 0,2
Ativo |
Passivo |
Caixa 107.079
Empréstimos 963.710 |
Depósitos à vista 1.070.789 |
Total de ativo 1.070.789 | Total de passivo 1.070.789 |
Supondo que V paga as dívidas a U, e que este, por sua vez, deposita o dinheiro que recebe no seu banco, o banco C, teríamos os lançamentos seguintes:
Banco C
Ativo | x
a
x a x a x |
Passivo |
770.969 Caixa | Depósitos à vista 770.969
(recebidos de U) |
|
846.185 Empréstimos a R | Depósitos à vista 846.185 | |
676.948 Depósitos à vista | Caixa 676.948 |
(40)
Este último lançamento seria efetuado quando R levantasse 80% (k = 0,20) do seu empréstimo da caixa do banco C para pagar aos credores (por exemplo, a T).
Efetuadas estas operações, o balanço do banco C seria o seguinte:
(41)
Banco C
Balanço
c = 0,1e k = 0,2
Ativo | Passivo |
Caixa 94.021
Empréstimos 846.185 |
Depósitos à vista 940.206 |
Total de ativo 940.206 | Total de passivo 940.206 |
Desta forma, o credor T, após cobrar a dívida, depositaria o dinheiro no banco de que é cliente, o banco D, o que daria origem aos seguintes lançamentos:
Banco D
Ativo | x
a
x a x a x |
Passivo |
676.948 Caixa | Depósitos à vista 676.948
(recebidos de T) |
|
742.992 Empréstimos a S | Depósitos à vista 742.992 | |
594.393 Depósitos à vista | Caixa 594.393 | |
(42)
O banco D faria este último lançamento quando S pagasse aos credores.
Efetuados os lançamentos anteriores, o balanço do banco D seria agora:
(43)
Banco D
Balanço
c = 0,1 e k = 0,2
Ativo |
Passivo |
Caixa 82.555
Empréstimos 742.992 |
Depósitos à vista 825.547 |
Total de ativo 825.547 | Total de passivo 825.547 |
E assim sucessivamente. A cadeia de depósitos e empréstimos estender-se-ia a todos os bancos do sistema bancário, de maneira que o total de depósitos criados pelo sistema bancário, depois de terem esgotado todos os efeitos do depósito original de um milhão de u.m., seria a soma da sequência seguinte:
[21] 1.219.512 + 1.219.512 x 0,878 + 1.219.512 x 0,8782+…. = a + ar + ar2+ …. =
No nosso exemplo, r seria 80% (1 ? k) da proporção de depósitos criados de novo gerados por cada banco em cada interação e que, de acordo com o que sabemos da fórmula 3, é igual a:
Logo:
No nosso exemplo, ds1 representa os depósitos secundários do banco A e é igual a 1.219.512 u.m.
A expansão de crédito líquida, x, criada por todo o sistema bancário seria igual a:
[25] x = D ? d = 10.000.000 ? 1.000.000 = 9.000.000
No quadro IV-1 e no gráfico IV-1 correspondente apresentamos um resumo dos resultados anteriores com detalhes de cada banco membro do sistema bancário.
Quadro IV-1
SISTEMA DE BANCOS DE TAMANHO “NORMAL”
(k = 0,2 e c = 0,1)
Dinheiro que fica no caixa do banco |
Expansão de crédito (empréstimosex nihilo) |
Depósitos |
|
Banco A |
122.000 |
1.098.000 |
1.220.000 |
” B
” C ” D ” E ” F ” G ” H ” I ” J ” . ” . |
107.100 94.000 82.600 72.500 63.700 55.900 49.100 43.000 37.000 . . |
964.000 846.000 743.000 652.000 573.000 503.000 442.000 387.000 340.000 . . |
1.071.000 940.000 826.000 725.000 637.000 559.000 491.000 430.000 378.000 . . |
Totais do sistema
bancário d = 1.000.000 |
x = D ? d = 9.000.000 |
D = 10.000.000 |
|
Nota: Os últimos três montantes foram arredondados |
A geração de créditos num sistema bancário de bancos pequenos
Supondo agora que todos os bancos do sistema são muito pequenos, ou seja, que têm k = 0, e c = 0,1, os lançamentos equivalentes ao sistema bancário anterior seriam os seguintes:
Em primeiro lugar, no banco A, quando é efetuado um depósito à vista no valor de um milhão de u.m.:
Banco A
Ativo | x
a
x a x a x |
Passivo |
1.000.000 Caixa | Depósitos à vista 1.000.000
(recebidos de Y) |
|
900.000 Empréstimos a Z | Depósitos à vista 900.000 | |
900.000 Depósitos à vista | Caixa 900.000 | |
(44)
Depois de Z levantar novecentas mil u.m. da caixa para pagar a Y, o balanço do banco é o seguinte:
(45)
Banco A
Balanço
c = 0,1 e k = 0
Ativo |
Passivo |
Caixa 100.000
Empréstimos 900.000 |
Depósitos à vista 1.000.000 |
Total de ativo 1.000.000 | Total de passivo 1.000.000 |
Se, por sua vez, depositar as novecentas mil u.m. que recebeu de Z no seu banco, o banco B, que também é um banco pequeno com k = 0 e c = 0,1, os lançamentos a efetuar serão:
Banco B
deve | x
a x a x a x |
haver |
900.000 Caixa | Depósitos à vista 900.000 | |
810.000 Empréstimos a Z | Depósitos à vista 810.000 | |
810.000 Depósitos à vista | Caixa 810.000 | |
(46)
O banco B teria então o seguinte balanço:
(47)
Banco B
Balanço
c = 0,1 e k = 0
Ativo |
Passivo |
Caixa 90.000
Empréstimos 810.000 |
Depósitos à vista 900.000 |
Total de ativo 900.000 | Total de passivo 900.000 |
Agora, se V levanta do seu banco o valor do empréstimo para pagar a U, e U, por sua vez, o deposita no seu banco, que é o banco C, e que também é um banco pequeno com k = 0 e c = 0,1, os lançamentos a efetuar em C serão os seguintes:
Banco C
Ativo | x
a x a x a x |
Passivo |
810.000 Caixa | Depósitos à vista 810.000 | |
729.000 Empréstimos a Z | Depósitos à vista 729.000 | |
729.000 Depósitos à vista | Caixa 729.000 | |
(48)
Depois do que, o balanço de C seria:
(49)
Banco C
Balanço
c = 0,1 e k = 0
Ativo |
Passivo |
Caixa 81.000
Empréstimos a T 729.000 |
Depósitos à vista 810.000 |
Total de ativo 810.000 | Total de passivo 810.000 |
Depois de T pagar ao seu credor, S, e este depositar o dinheiro no seu banco, banco D, também pequeno, com k = 0 e c = 0,1, os lançamentos seriam:
Banco D
Ativo | x
a x a x a x |
Passivo |
729.000 Caixa | Depósitos à vista 729.000 | |
656.100 Empréstimos a Z | Depósitos à vista 656.100 | |
656.100 Depósitos à vista | Caixa 656.100 | |
(50)
Depois do que, o balanço de D seria o seguinte:
(51)
Banco D
Balanço
c = 0,1 e k = 0
Ativo | Passivo |
Caixa 72.900
Empréstimos 656.100 |
Depósitos à vista 729.000 |
Total de ativo 729.000 | Total de passivo 729.000 |
E assim sucessivamente. Podemos verificar que o total de depósitos de uma rede de bancos muito pequenos é a soma de uma sequência que coincide com a da fórmula [8], que dizia respeito a um banco monopolista:
[26] 1.000.000 + 1.000.000 x 0,9 + 1.000.000 x 0,92 + 1.000.000 x 0,93 + … = ;
onde a = 1.000.000 e r = 0,9
Por sua vez, como vimos na nota 27, esta soma é igual a:
Uma vez que a = d = 1.000.000 de unidades monetárias originalmente depositadas, o total de depósitos é dado pela fórmula:
[27]
Sendo esta fórmula idêntica à do multiplicador de depósitos no caso de um único banco monopolista [14].
Recordemos que:
[28]
E como este é um caso de um sistema bancário de bancos pequenos e k = 0, substituindo k por este valor na fórmula [28], obtemos r = 1 ? c = 0,9, como já sabíamos.
Assim, a atividade bancária de bancos pequenos dá origem, no conjunto, a um volume de depósitos (dez milhões de u.m.) e a uma geração líquida de expansão de crédito (nove milhões de u.m.) idênticos aos que já vimos no caso do banco monopolista, para o qual k = 1. Estes resultados da atividade bancária de bancos pequenos podem ser resumidos como se mostra no quadro IV-2.
QUADRO IV-2
SISTEMA DE BANCOS PEQUENOS
(k = 0 e c = 0’1)
Dinheiro que fica
na caixa do banco |
Expansão de crédito (empréstimos criados ex nihilo) | Depósitos | |
Banco A | 100.000 | 900.000 | 1.000.000 |
” B
” C ” D ” E ” F ” G ” H ” I ” J ” . |
90.000
81.000 72.900 65.600 59.000 53.100 47.800 43.800 38.700 . |
810.000
729.000 565.000 590.000 531.000 478.000 430.000 387.000 348.000 . |
900.000
810.000 729.000 656.000 590.000 531.000 478.000 430.000 387.000 . |
Totais do sistema bancário d = 1.000.000 |
|
||
Nota: Os últimos três montantes foram arredondados. |
A atividade bancária de bancos pequenos é um caso particular (quando k = 0) do sistema bancário geral (no qual k é menor do que 1 mas maior do que 0). Ainda assim, este sistema é, pela fácil compreensão, o utilizado geralmente nos manuais para explicar a criação de moeda bancária por parte do sistema financeiro.[30]
Por sua vez, o sistema de banco único monopolista também é um caso particular (quando k = 1) do caso mais geral da expansão de depósitos e de créditos gerados por um banco isolado.
Em suma, existem dois casos particulares que originam os mesmos resultados quanto ao volume de depósitos (dez milhões) e geração de novos créditos (nove milhões de u.m.). O primeiro é o de um sistema bancário constituído unicamente por bancos minúsculos, cada um com coeficiente k = 0. O segundo é o de um banco isolado, com um coeficiente k = 1. Dada a facilidade de compreensão de ambos, estes são os casos geralmente utilizados nos manuais para explicar a geração de créditos e o volume de depósitos criados pelo sistema bancário. Dependendo do texto, uns preferem referir à atividade bancária de bancos minúsculos, e, outros, o sistema de banco único monopolista (ou aquele em que os derradeiros receptores dos empréstimos são também clientes do próprio banco).[31]
6
ALGUMAS COMPLEXIDADES ADICIONAIS
A expansão iniciada simultaneamente por todos os bancos
Os processos de expansão de crédito relativos ao sistema bancário que aqui estudamos foram, necessariamente, analisados de forma simplificada. Por isso, é preciso fazer algumas considerações e esclarecimentos complementares. Em primeiro lugar, o processo de expansão de crédito teve origem única e exclusiva graças ao aumento do dinheiro depositado no banco original (no nosso exemplo, d representa um milhão de u.m. depositado no banco A). Ainda assim, tanto histórica, à medida que se desenvolveu o sistema bancário, como atualmente, todo o processo de expansão de crédito é caracterizado pelo fato de o novo dinheiro chegar ao sistema bancário não via um único banco, mas por um conjunto (quando não é o caso, de certa forma, de ser por intermédio de todos). Isto significa que, como assinala Richard G. Lipsey,[32]a expansão de crédito descrita, criada ex nihilo e coberta pela criação dos depósitos bancários necessários (e que no nosso exemplo, com um coeficiente de caixa de 10%, acabava por dar origem a uma criação de créditos no valor de nove milhões de u.m., ou seja, um valor nove vezes superior ao depósito originalmente criado, multiplicando, assim, por dez a oferta monetária total), se reproduzirá tantas vezes quantas se deposite um milhão de u.m. em bancos diferentes, pelo que o processo generalizado de expansão é, na prática, muitíssimo maior e qualitativamente mais complexo, uma vez que teve origem simultânea em muitos bancos e muitos depósitos. A principal conclusão a retirar daqui é que se todos os bancos recebem simultaneamente novos depósitos de moeda, poderão expandir o crédito sem serem obrigados diminuir as reservas de moeda em caixa, uma vez que, embora concedam empréstimos que possam levar à subida da moeda (tal como supusemos nos lançamentos de contabilidade realizados até agora), ao mesmo tempo, recebem em depósito parte dos empréstimos concedidos por outros bancos. Assim, na prática, não há razões para que ocorram diminuições significativas no valor das reservas de cada banco, que, mantendo-as praticamente intactas, poderá efetuar empréstimos e, assim, criar depósitos sem grandes riscos.
Este o argumento teórico levou diversos autores, entre eles Murray N. Rothbard,[33] a escrever sobre o processo de expansão de crédito do sistema bancário, considerando que o banco isolado não perde reservas quando concede empréstimo novos. Em vez disso, mantendo o volume de reservas intacto, faz o possível para conceder novos créditos num múltiplo determinado pelo inverso do coeficiente de caixa. O argumento para explicar dessa forma o multiplicador bancário, inclusive do ponto de vista de um banco isolado, é que o banco procurará não diminuir as reservas no processo de concessão de empréstimos (ficando com cem mil u.m. e emprestando novecentas mil). Será muito mais vantajoso para o banco manter o seu coeficiente, concedendo um volume muito maior de empréstimos e mantendo inalteradas as reservas iniciais de moeda em caixa (ou sejam mantendo em caixa um milhão de u.m. e criando do nada nove milhões de u.m. por meio da concessão de empréstimos). Na prática, a manutenção do nível de caixa poderá ser assegurada se o processo de expansão de crédito se realizar simultaneamente em todos os bancos, uma vez que o dinheiro em caixa perdido por um devido aos empréstimos concedidos, tenderá a ser compensado pelos novos depósitos que receba como resultado dos empréstimos que tenham sido concedidos por outros bancos.
Este tipo de apresentação do processo de expansão não costuma ser facilmente compreendido por leigos na matéria, nem tampouco pelos profissionais do setor bancário, que estão habituados a ver o seu “negócio” como uma atividade de mera intermediação entre depositantes e prestatários. No entanto, uma prova evidente de que a abordagem de Rothbard e outros é totalmente correta está no fato de ser irrelevante, no momento, estarmos perante do que temos analisado até agora (um depósito original de um milhão de u.m. no banco A que se estende a todo o sistema bancário), ou de um sistema bancário constituído por dez bancos, em cada um dos quais se depositem simultaneamente cem mil u.m. (ou seja, um total de um milhão de u.m. dividido entre dez bancos). Neste último, cada banco manterá um caixa de cem mil u.m., sem qualquer diminuição, o que fará com que seja possível que cada banco expanda os créditos e crie do nada novos meios fiduciários no valor de novecentas mil unidades. Cada banco poderá manter uma caixa inalterada de cem mil u.m., se as possíveis diminuições no seu encaixe, como consequência dos empréstimos que conceda, forem compensados pelos novos depósitos que tenham origem nos empréstimos concedidos por outros bancos. Assim, se a expansão for realizada simultaneamente por todos os bancos, cada banco pode manter inalteradas as reservas de caixa e criar do nada, com um coeficiente de caixa de 0,1, até nove vezes os depósitos iniciais em forma de créditos cobertos por novos meios fiduciários. Analisemos, então, os efeitos contábeis desse processo de expansão simultânea.
Suponhamos que existam dez bancos e que cada um receba um milhão de u.m. de novos depósitos originais de moeda. Consideremos que todos têm o mesmo tamanho, um coeficiente de caixa de 10% e, para simplificar, que k = 0. Suponhamos, ainda, que cada banco tenha uma quota de mercado de 10% (ou seja, que cada banco dispõe de 10% de todos os clientes do mercado em que opera, clientes estes que se encontram distribuídos aleatoriamente). Se cada um desses bancos começar a expandir simultaneamente o crédito de acordo com o processo descrito nos lançamentos (44) e seguintes, é evidente que qualquer um deles, por exemplo o banco A, acabará, mais tarde ou mais cedo, por receber depósitos provenientes do créditos que sejam concedidos pelos demais bancos, de acordo com o esquema do quadro IV-2. Assim, os lançamentos a efetuar ao longo do exercício, se todos os bancos expandissem o crédito simultaneamente, seriam os seguintes:
Banco A
Ativo | x
a x a x a x |
Passivo |
1.000.000 Caixa | Depósitos à vista 1.000.000 | |
900.000 Empréstimos | Depósitos à vista 900.000 | |
900.000 Depósitos à vista | Caixa 900.000 | |
(52)
Esta diminuição do dinheiro em caixa seria compensada por um depósito à vista recebido de algum cliente que tivesse recebido um empréstimo proveniente, por exemplo, do banco B, o que daria origem ao lançamento seguinte:
Banco A
Ativo | x
a
x a x a x |
Passivo |
900.000 Caixa | Depósitos à vista
procedentes de um cliente do banco B 900.000 |
|
810.000 Empréstimos | Depósitos à vista 810.000 | |
810.000 Depósitos à vista | Caixa 810.000 | |
(53)
O banco A acabaria por receber as 810.000 u.m., em forma de um depósito proveniente de créditos concedidos, por exemplo, pelo banco C, possibilitando os seguintes lançamentos:
Banco A
Ativo | x
a
x a x a x |
Passivo |
810.000 Caixa | Depósitos à vista
procedentes de um cliente do banco C 810.000 |
|
810.000 Empréstimos a Z | Depósitos à vista 729.000 | |
810.000 Depósitos à vista | Caixa 729.000 | |
(54)
E assim sucessivamente, seguido dos depósitos indiretamente recebidos de clientes que receberam empréstimos dos banco D, E, F, G, H, I e J, num processo bem simplificado, uma vez que, na realidade, o que o banco recebe é, em média, 10% de dez empréstimos de novecentas mil u.m. concedidos na primeira vez por cada banco do sistema, 10% dos dez empréstimos de oitocentos e dez mil u.m. que cada banco concede na segunda vez, 10% dos dez empréstimos de setecentas e vinte e nove mil u.m. que cada banco concede na terceira vez, e assim sucessivamente.
Assim, se existirem dez bancos e cada um receber um milhão de u.m. de depósitos originais, expandindo o crédito, o balanço de qualquer deles, por exemplo do A, será o seguinte:
(55)
Banco A
Balanço
c = 0,1 e k = 0
Ativo |
Passivo |
Caixa 1.000.000
Empréstimos 9.000.000 |
Depósitos à vista
(primários) 1.000.000 Depósitos à vista (secundários) 9.000.000 |
Total de ativo 10.000.000 | Total de passivo 10.000.000 |
Assim, o balanço de cada um dos bancos coincidiria com o que apresentamos anteriormente para o caso de k = 1 (banco monopolista ou em que todos os derradeiros receptores do dinheiro eram clientes do mesmo banco), uma vez que, embora neste caso não exista monopólio, o dinheiro de caixa que o banco perde inicialmente ao expandir o crédito é compensado pelos depósitos que recebe e que provêm dos créditos que os demais bancos expandam.
A partir do balanço (55), podemos concluir que o banco não precisa de reduzir o saldo de tesouraria para expandir o crédito. Em vez disso, se o restante dos bancos expandir o crédito simultaneamente, esse banco pode manter o nível de reservas em caixa inalterado e passar diretamente a conceder uma soma de empréstimos que equivalha a um múltiplo das reservas (no nosso caso, com cada um milhão de reservas mantido em caixa, são criados do nada nove milhões de empréstimos cobertos por nove milhões de depósitos secundários). Por isso, a apresentação que Rothbard faz do processo é correta, mesmo no caso de um banco isolado, caso ocorra dos demais bancos do sistema também receberem depósitos originais (ou seja, uma parte alíquota do novo dinheiro que se cria no sistema) e de todos expandirem o crédito simultaneamente. O dinheiro que cada banco teoricamente perderia ao conceder empréstimos é compensado pelos depósitos que recebe provenientes dos empréstimos expandidos pelos colegas, pelo que cada banco, por si só, pode expandir o crédito em nove milhões de u.m. Dessa forma, a expansão total do sistema seria de noventa milhões de u.m e os depósitos totais ou oferta monetária de cem milhões de u.m.
Podemos conseguir resultados numéricos idênticos aos apresentados no quadro IV-2 supondo simplesmente que um depósito original de um milhão de u.m., inicialmente efetuado no banco A, se divide por parte iguais, nos dez bancos dos sistema, em frações de 100.000 u.m. Essas cem mil u.m. ficariam inalteradas no caixa de cada banco, que poderia expandir o crédito em novecentas mil u.m. A totalidade do sistema bancário geraria assim nove milhões de u.m. de novos empréstimos e um total dez milhões de u.m. em depósitos primários e secundários.
É obvio que este último exemplo, com o qual concluímos a análise contabilística da expansão de créditos e depósitos por parte de bancos isolados e de sistemas bancários, é o mais realista. No sistema monetário atual, o aumento da oferta monetária se espalha por todo o sistema e chega praticamente a todos os bancos, o que lhes permite expandir o seu crédito de forma simultânea e de acordo com os processos que vimos. Da mesma forma, no processo histórico de formação dos bancos, existem indícios claros de que os bancos nunca surgiram sozinhos, mas em grupos. Até Saravia de la Calle refere que se estabeleciam em grupos, dando “fiadores e e agindo como fiadores uns dos outros”,[34] o que significa que, já na época das feiras castelhanas do século XVI, os banqueiros tinham consciência da estreita relação e forte comunidade de interesses existente entre eles no que dizia respeito ao destino dos negócios, bem como da necessidade de se apoiarem mutuamente.
No que concerne ao padrão-ouro, cuja oferta monetária se baseava na descoberta de novas minas de ouro e na evolução das técnicas de extração, poderíamos considerar que, em caso de novas e importantes descobertas, o novo dinheiro chegaria primeiro apenas a alguns bancos concretos, e, daí, estender-se-ia ao resto do sistema bancário, não se tratando assim de um processo de expansão simultânea, mas de um processo gradual de transmissão do dinheiro através de todo o sistema.
Podemos, pois, concluir que, se existirem muitos bancos e muitos depósitos novos, e se cada banco expandir simultaneamente o crédito de acordo com os processos que vimos, mesmo um banco isolado será capaz de manter o nível de reservas inalterado e expandir por si só um múltiplo deste nível, que é determinado pela inversa do coeficiente de caixa (sendo k = 0).[35] Torna-se assim evidente que os depósitos não são mais do que uma cobertura contabilística da riqueza de que o os bancos se apropriam quando expandem o seu crédito. E, apesar da titularidade formal, do ponto de vista contábil (que não jurídico), destes créditos ser dos titulares dos depósitos, uma vez que em circunstâncias normais estes consideram que os depósitos são moeda (substitutos monetários perfeitos) que podem usar para as transações, sem que nunca seja necessário levantar unidades monetárias físicas, é claro que, de fato, os ativos gerados pelo sistema bancário “não são de ninguém” (embora também se pudesse considerar que em grande medida são dos acionistas, administradores e gerentes dos bancos, que são os que, de fato, tiram proveito de muitas das vantagens econômicas de tal riqueza, com a vantagem adicional de não aparecerem como proprietários, uma vez que os livros de contabilidade mostram os depositantes como titulares).
Ou seja, em circunstâncias normais, os depósitos surgem a partir dos créditos e não são mais do que um resultado contábil colateral de uma riqueza acumulada pelos bancos que se mantém indefinidamente em seu poder. Mais adiante, quando falarmos das notas de banco, e, no último capítulo deste livro, quando estudarmos o processo de transição e reforma bancária que propomos, teremos a oportunidade de voltar a realizar uma série de considerações complementares sobre esse importantíssimo fato econômico.
O “enxugamento” da oferta monetária do sistema bancário
Outra complexidade deriva do fato de que, na realidade, cada vez em que empréstimos são concedidos, depósitos ou saques são efetuados, certo percentual da oferta monetária é “enxugado” do sistema bancário, e é guardado pelos particulares, que conservam moeda em seu poder, não pretendendo depositá-la num banco. Ora, quanto maior for a percentagem de moeda “enxugada” para os bolsos dos particulares em cada interação e que não volta ao sistema bancário, menor será a capacidade expansiva de geração de novos créditos por parte do mesmo.
Num sistema bancário de bancos pequenos (em que k = 0) e com um coeficiente de caixa c = 0,1, se f for o coeficiente ou proporção da oferta de moeda “enxugada” do sistema bancário, supondo um f = 0,15, então, se o banco A emprestar novecentas mil u.m., apenas voltarão ao sistema bancário (1 ? f)900.00 = (1 ? 0,15)900.000 = 0,85 x 900.000 = 765 000 u.m, e assim sucessivamente. Assim, para o sistema de bancos pequenos e considerando k = 0, c = 0,1 e f = 0,15, poderíamos utilizar as seguintes fórmulas:
Sendo DN os depósitos totais líquidos, constituídos pelos depósitos brutos, DB, menos o montante total do dinheiro “enxugado” do sistema bancário F, teríamos que:
[29] DN = DB ? F
Por sua vez, o montante total do dinheiro “enxugado” do sistema bancário será, logicamente, f vezes o montante total dos depósitos brutos, DB, em que f é o coeficiente ou percentagem de moeda “enxugada” do sistema bancário. Ou seja:
[30] F = fDB
Já o dinheiro inicialmente depositado será igual ao montante de depósitos líquidos multiplicado pelo correspondente coeficiente de caixa mais o total de moeda “enxugado” do sistema. Ou seja:
[31] d = DN × c + F
Substituindo, nessa fórmula, o valor dos depósitos líquidos, DN, pelo valor da fórmula [29] e F pelo valor de [30], teríamos:
[32] d = (DB ? F) × c + fDB
Se substituíssemos F por fDB, teríamos:
[33] d = (DB ? fDB) c + fDB; e encontrando o fator comum de DB, teríamos:
[34] d = DB(c ? cf + f)
Logo,
Assim, o total de depósitos do sistema bancário com um coeficiente de “enxugamento” de oferta monetária de 15 % seria de 3.617.021, em vez dos dez milhões quando f = 0.
No que respeita à geração de expansão de crédito líquido, esta seria x = 3.617.021 ? 1.000.000 = 2.617.021, em vez dos nove milhões que se produziam sem a saída da oferta de moeda. Portanto, existindo uma percentagem de “enxugamento” superior a zero, reduz-se significativamente a capacidade do sistema bancário para criar empréstimos e gerar depósitos a partir do nada.[36]
A manutenção de reservas superiores ao encaixe mínimo necessário
Outra complexidade com um efeito muito semelhante ao estudado na seção anterior é a que decorre do fato de os bancos manterem reservas superiores às necessárias. Isto tende a ocorrer em determinadas etapas do ciclo econômico nas quais os bancos desenvolvem um comportamento relativamente mais prudente, ou se veem forçados a aumentar as reservas perante a dificuldade de encontrar um número suficiente de prestatários solventes que estejam dispostos a pedir empréstimos, ou ambas as coisas ao mesmo tempo. Isto acontece, por exemplo, nas fases de recessão econômica que seguem a expansão de crédito. Em todo o caso, a manutenção de reservas superiores às necessárias reduz a capacidade de expansão de crédito do sistema, tal como a existência de um coeficiente f de “enxugamento” da oferta monetária do sistema bancário.[37]
Coeficientes de caixa diferentes de acordo com o tipo de depósitos
Por fim, outra complexidade a ser considerada é a decorrente do fato do coeficiente de caixa para os depósitos à vista, em muitos países, ser diferente do coeficiente para os depósitos a prazo, embora, na prática, estes, como já sabemos, sejam verdadeiros depósitos à vista. Embora todas as fórmulas que consideramos até agora possam ser reelaboradas, discriminando entre um e outro tipo de depósitos, o grau de complexidade envolvido não compensa o pequeno valor acrescentado que pudesse ser derivado dessa análise, pelo que optamos por não expô-la aqui.[38]
7
As Semelhanças ENTRE A CRIAÇÃO DE DEPÓSITOS
E A EMISSÃO DE NOTAS BANCÁRIAS SEM lastro
Este livro não tem como objetivo a análise econômica da emissão de notas bancárias sem lastro, uma operação que historicamente surgiu na prática bancária muito depois da descoberta da atividade bancária com reserva fracionária.[39] No entanto, interessa agora estudar, com algum detalhe, os aspectos contábeis e jurídicos da emissão de notas bancárias sem lastro, uma vez que, como vamos demonstrar, tem efeitos idênticos aos que se produzem com a criação de créditos e depósitos a partir do nada por parte dos bancos.
Imaginemos que a atividade bancária esteja começando a surgir e que os bancos atuem como como verdadeiros depositários de moeda, como o estipulado pelo contrato de depósito irregular. Enquanto forem cumpridos os princípios gerais do Direito, que estudamos nos capítulos I a II, o banco aceitará as unidades monetárias (geralmente ouro, ou qualquer outra moeda commodity), as manterá nos cofres e, em contrapartida, entregará certificados de depósito, recibos ou notas de banco ao portador no montante total das quantidades confiadas. Neste caso, o banco cumpridor de seus compromissos fará o seguinte lançamento no livro Diário:
Banco A
Ativo | x
a
x |
Passivo |
1.000.000 Caixa | Certificados de depósito 1.000.000 ou notas de banco | |
(56)
Se o banco depositário cumprir os compromissos durante um longo período de tempo e as pessoas confiarem plenamente nele, o público, gradualmente, começará a utilizar notas de banco (títulos ou certificados de depósito entregues pelo banco em troca das unidades monetárias depositadas) como se fossem as próprias unidades monetárias, convertendo assim as notas em unidades monetárias por si mesmas (substitutos monetários perfeitos na terminologia de Mises). Como a moeda é um bem presente que de que os seres humanos precisam e que utilizam apenas como meio de troca e não para consumo próprio, se os depositantes confiarem no banco, o uso das notas bancárias como moeda poderá se manter por tempo indefinido (sem haver necessidade de ir ao banco sacar as unidades monetárias que lá depositadas originalmente). Ora, quando isso acontecer, é possível que o banqueiro comece a se sentir tentado a emitir certificados de depósito em número superior ao das unidades monetárias que realmente tiver recebido em depósito.
É evidente que se o banco se deixar levar pela tentação, violará os princípios universais do Direito, incorrendo nos crimes não só de falsificação de documentos (por emitir um certificado falso não lastreado pelo depósito correspondente), mas também de estelionato, por entregar como meio de pagamento algo que na realidade carece totalmente de lastro.[40] Ainda assim, se gozar de confiança suficiente e souber por experiência que com um coeficiente de caixa c = 0,1 pode, em condições normais, cumprir os compromissos correntes, o banco poderá emitir até nove vezes mais de novos certificados falsos de depósito ou notas de banco, o que daria azo ao seguinte lançamento no diário:
Banco A
Ativo | x
a x |
Passivo |
9.000.000 Empréstimos | Notas de banco 9.000.000 | |
(57)
Supusemos que o banco utiliza as notas falsificadas para conceder empréstimos, mas também poderia tê-las usado para qualquer outro fim, como por exemplo, comprar qualquer outro ativo (por exemplo, imóveis luxuosos) ou, simplesmente, em gastos de consumo. Se o banco usar tais notas para conceder empréstimos, o balanço do banco será o seguinte:
Banco A
Balanço
Ativo |
Passivo |
Caixa 1.000.000
Empréstimos 9.000.000 |
Notas de banco 10.000.000 |
Total de ativo 10.000.000 | Total de passivo 10.000.000 |
(58)
Caso exista confiança no banco, os prestatários aceitarão receber os empréstimos em notas, e estas andarão de mão em mão como se fossem moeda. Nestas circunstâncias, o banco poderá até, e com bastante razão, chegar a considerar que nunca ninguém devolverá as notas ao banco para sacar o dinheiro originalmente depositado. No momento em que isso acontecer realmente, o fato econômico correspondente poderá se manifestar no reconhecimento contábil de que os nove milhões de notas falsas postos em circulação pelo banco são, em última análise, um lucro do exercício, do qual qualquer banqueiro pode apropriar-se livremente. Neste caso, proceder-se-ão aos seguintes lançamentos:
Banco A
Ativo | x
a x a x a x |
Passivo |
1.000.0000 Caixa | Notas de banco 1.000.000 | |
9.000.000 Empréstimos | Notas de banco 9.000.000 | |
9.000.000 Notas de banco | Lucro 9.000.000 | |
(59)
Reconhece-se, assim, de forma contábil o fato econômico de que o banqueiro está seguro de que nunca terá de devolver o montante de notas que circulam como moeda. O balanço do banco seria, então, o seguinte:
(60)
Banco A
Balanço
Ativo |
Passivo |
Caixa 1.000.000
Empréstimos 9.000.000 |
Notas de banco 10.000.000
Lucros (patrimônio próprio) 9.000.000 |
Total de ativo 10.000.000 | Total de passivo 10.000.000 |
Este balanço é o reconhecimento contábil de que, depois das notas de banco adquirirem natureza de unidades monetárias, nunca ninguém as devolverá ao banco para levantar dinheiro, uma vez que já circulam e são, elas mesmas, consideradas como moeda. É registado apenas no passivo 1.000.000 de notas emitidas, dado que se sabe que 10% são suficientes para fazer frentes aos pedidos normais de conversão. Assim, este último balanço supõe o reconhecimento contábil da fraude cometida pelo banco ao emitir notas num montante superior ao montante de moeda depositado. Embora no passado os banqueiros nunca tenham contabilizado dessa forma a emissão de notas sem lastro, uma vez que isso teria tornado completamente transparente a fraude cometida em grave prejuízo dos interesses de terceiros (que veriam diminuída a capacidade aquisitiva das unidades monetárias como consequência do aumento da oferta monetária; isto sem considerar os efeitos de crises e recessões econômicas que analisaremos mais adiante), esse balanço é, claramente, mais honesto, uma vez que, pelo menos, traz à evidência a manobra realizada e mostra que a emissão de notas sem lastro é uma fonte de financiamento permanente que permite aos banqueiros a apropriação de um volume considerável de riqueza.
O leitor terá com certeza reparado que os lançamento (55) a (58) são idênticos aos que já tínhamos visto para os depósitos. Na verdade, a natureza e os efeitos econômicos das notas de banco e dos depósitos secundários são idênticos. De fato, constituem a mesma operação e dão lugar aos mesmos efeitos econômicos e contábeis.
Ambos geram volumes de ativos consideráveis a favor dos bancos, que são subtraídos gradualmente e de forma diluída de todos os agentes econômicos que atuam no mercado por meio de um processo que estes não são capazes de entender nem de identificar, e pelo qual os bancos obtêm os ativos à custa de pequenas diminuições na capacidade aquisitiva das unidades monetárias de todos os agentes que as utilizam na sociedade. A expansão de crédito é coberta pela criação de novos depósitos ou notas que, ao se converterem em dinheiro, do ponto de vista subjetivo do público, em circunstâncias normais, nunca são levantados. Dessa forma, os bancos apropriam-se de um significativo volume de riqueza que, contabilmente, mantêm coberto com depósitos ou notas que lhes permitem camuflar o fato de que, economicamente, são os únicos beneficiários que, de fato, tiram completo proveito da propriedade dos referidos ativos. Conseguiram, assim, uma fonte permanente de financiamento que, em princípio, ninguém reclamará; um “empréstimo” cuja devolução nunca lhes será exigida (o que, em última análise, equivale a um verdadeiro “presente”). Economicamente, são os bancos e os demais agentes econômicos relacionados aos bancos os que tiram proveito de tão extraordinárias circunstâncias, uma vez que o enorme poder de criação de moeda lhes permite expandir continuamente os ativos, os escritórios, os empregados etc. Ademais, conseguiram manter a atividade relativamente oculta do público em geral, seja do especialista em Economia ou não, ao cobrir os créditos criados do nada com contas do passivo que não coincidem com as do patrimônio próprio (contas de depósito ou notas de banco). Em suma, os bancos descobriram a pedra filosofal, tão procurada na Idade Média, que lhes permite criar novas unidades monetárias do nada e gerar uma riqueza camuflada como prejuízo e fraude a terceiros. Em termos contábeis, a propriedade dessa riqueza é formalmente dos depositantes, mas, na prática e em última análise, não é de ninguém (embora economicamente seja dos próprios banqueiros). Como já referimos anteriormente, o reconhecimento desta realidade será muito importante quando, mais adiante, no último capítulo do presente livro, propusermos um sistema de transição e reforma do sistema bancário, pois a riqueza gradualmente acumulada pelos bancos pode e deve ser devolvida aos cidadãos, tornando-se disponível por meio de um processo de privatização para diferentes objetivos de grande importância social (como por exemplo, ajudar à eliminação da dívida pública ou à transição para um sistema privado de Segurança Social baseado na capitalização).
O paralelismo entre a emissão de notas sem lastro e a expansão de crédito coberta por depósitos secundários criados ex nihilo que analisamos ao pormenor pode agora ser compreendido na plenitude. De fato, todos os argumentos apresentados nas páginas anteriores acerca dos depósitos à vista, podem agora ser usados,mutatis mutandis, em relação às notas de banco. Assim, sem necessidade de repetição de tudo o que foi dito até agora, consideremos brevemente os seguintes lançamentos. Por exemplo, os lançamentos de concessão de empréstimos com base na emissão de notas seriam os seguintes:
Banco A
Ativo | x
a x a x |
Passivo |
1.000.000 Caixa | Notas de banco 1.000.000 | |
900.000 Empréstimos | Notas de banco 900.000 | |
(61)
Como se pode verificar, neste caso, os empréstimos são concedidos do nada, pela simples emissão notas “falsas” que são entregues aos prestatários. No pior dos casos, se os prestatários devolverem as notas recebidas ao banco para levantarem unidades monetárias do caixa, o balanço será o seguinte:
Banco A
Balanço
Ativo |
Passivo |
Caixa 100.000
Empréstimos 900.000 |
Notas de banco 1.000.000
|
Total de ativo 1.000.000 | Total de passivo 1.000.000 |
(62)
Suponhamos agora que os prestatários pagam este dinheiro a outras pessoas e que estas acabam por levá-lo para outro banco, por exemplo, o banco “B”, que também emite notas sem lastro. O banco “B” efetuaria o seguintes lançamentos:
Banco B
Ativo | x
a x a x |
Passivo |
900.000 Caixa | Notas de banco 900.000 | |
810.000 Empréstimos | Notas de banco 810.000 | |
(63)
Pelo que o balanço do banco B seria:
Banco B
Balanço
Ativo |
Passivo |
Caixa 90.000
Empréstimos 810.000 |
Notas de banco 900.000
|
Total de ativo 900.000 | Total de passivo 900.000 |
(64)
E assim sucessivamente em todo o sistema. Se supusermos um coeficiente de caixa, c, para as notas de banco de 0,1e que k = 0, como sabemos, o sistema será capaz de criar do nada:
Banco A
Ativo | x
a x a x |
Passivo |
1.000.000 Caixa | Notas de banco 1.000.000 | |
9.000.000 Empréstimos e outros usos | Notas de banco 9.000.000 | |
(65)
E, da mesma forma, poderíamos reproduzir todos os lançamentos contábeis para o caso mais geral em que k > 0 (no nosso exemplo, k = 0,20). Mantendo o coeficiente de caixa de 10%, por cada milhão de u.m. que recebesse, o banco poderia criar do nada novas notas num montante de:
[43]
ou seja, num montante de 1.097.560 em forma de notas de banco sem lastro. Poderíamos repetir todos os resultados a que chegamos em relação aos depósitos bancários, mas agora para as nota de banco, o que demonstra que não existe qualquer diferença econômica entre a emissão de notas sem lastro e a expansãoex nihilo de crédito bancário coberta por depósitos gerados do nada. A única diferença é jurídica, uma vez que, de acordo com os princípios universais de Direito, a emissão de notas sem lastro configura uma falsificação de documentos e um crime de estelionato, ao passo que, no caso do contrato de depósito bancário de moeda há apenas uma apropriação indébita.
Por outro lado, também existem diferenças quanto à materialização da operação. As notas têm a forma de títulos ao portador e cada uma delas tem um valor facial prefixado, o que permite a transmissão de uns para outros sem que o banco tenha de efetuar qualquer lançamento de contabilidade (diminuindo assim os custos das transmissões bancárias). Os depósitos, pelo contrário, têm a vantagem de permitir a escrita de um valor preciso num cheque, sem necessidade de entrega de um número fixo de notas com um valor predeterminado, embora tenham o inconveniente de o banco ter de seguir o rasto das transações efetuadas, anotando-as nos livros.
Porém, tirando essas diferenças jurídicas e de materialização, do ponto de vista econômico, ambas as operações têm conteúdo e efeitos idênticos. Como veremos adiante, no início do processo histórico de desenvolvimento da teoria monetária, só foi possível reconhecer a imoralidade e o grave dano gerado pela criação de notas sem lastro, sem que os teóricos tivessem imediatamente percebido ou reagido à criação expansiva de créditos cobertos por depósitos criados do nada, os quais tinham exatamente os mesmos efeitos. Assim fica explicado por que na Lei de Peel, de 19 de julho de 1844, base de todos os sistemas bancários modernos, fosse proibido a emissão de notas sem lastro, embora tal lei tenha falhado categoricamente nos objetivos de estabilização monetária, definição e defesa adequadas dos direitos de propriedade dos cidadãos no que tange a atividade bancária, uma vez que os legisladores não notaram que os depósitos bancários com reserva fracionária tinham exatamente a mesma natureza e os mesmos efeitos econômicos da emissão de notas sem lastro. Assim, a referida lei não proibiu a atividade bancária com reserva fracionária, permitindo a continuação da secular atividade de “emissão” de depósitos sem lastro (depósitos secundários). Embora, historicamente, os depósitos secundários tenham aparecido primeiro são muito mais difíceis de entender, e, por isso, só foram proibidas (e muito tardiamente) as operações de emissão de notas sem lastro, tendo a legalidade do contrato bancário de depósito monetário com reserva fracionária sido mantido até os dias de hoje, apesar de ter exatamente o mesmo conteúdo econômico e produzir os mesmos efeitos perniciosos da emissão de notas de banco sem lastro que foi proibida em 1844 pela Lei de Peel.[41]
8
O PROCESSO DE CONTRAÇÃO DE CRÉDITO
Um dos grandes problemas do processo de expansão do crédito e da criação ex nihilo de depósitos provocados pelo contrato de depósito bancário com reserva fracionária é que, da mesma forma como, inevitavelmente, são desencadeadas forças que revertem os efeitos da expansão de crédito sobre a economia real, e criadas forças que levam a um processo paralelo de contração de crédito. Tal contração ocorre sempre que se produz um dos seguintes fatos: a) diminuição de depósitos originais; b) aumento do desejo do público de manter unidades monetárias fora do sistema bancário (ou seja, um aumento do coeficiente f); c) crescimento da “prudência” dos bancos, que os leva a aumentar o seu coeficiente de reserva, c, para poderem fazer frente ao possível aumento de levantamentos de moeda dos clientes; d) um súbito aumento na devolução de empréstimos não compensado por um aumento na concessão dos mesmos; e e) um aumento dos empréstimos que não possam ser devolvidos aos bancos, tendo estes de suportar um volume muito maior de devedores em mora.
Primeiramente, é evidente que caso seja retirado de um banco um determinado montante de depósitos originais (por exemplo, o milhão de u.m. que usamos nos exemplos anteriores), se eliminará em cadeia toda a criação de créditos e depósitos que descrevemos nos diferentes casos e processos anteriores, o que provocará uma diminuição de créditos e depósitos. No nosso exemplo, supondo c = 0,1 e k = f = 0, a diminuição nos créditos e depósitos seria de nove milhões de u.m., o que daria origem a uma considerávelcontração da oferta monetária que, em termos relativos, passaria a ser uma décima parte da que era antes. O resultado é uma grave deflação, ou diminuição da quantidade de moeda em circulação, que fará baixar os preços dos bens e serviços e que, a curto e médio prazo, agravará ainda mais os efeitos depressivos que todo o processo de expansão de crédito acabou por gerar e que veremos nos próximos capítulos.
Em segundo lugar, o desejo das pessoas de manter uma maior quantidade de moeda fora do sistema provoca os mesmos efeitos. Esta mudança determinará um aumento de f e, como já vimos antes, fará com que haja uma diminuição da capacidade de expansão de crédito dos bancos, o que também tem efeitos de contração e deflação monetária.
Da mesma forma, e em terceiro lugar, se os bancos decidirem aumentar o coeficiente de caixa e ser mais “prudentes”, verificar-se-á o efeito da contração.
Em quarto lugar, a devolução de empréstimos provoca efeitos deflacionários (caso não sejam concedidos novos empréstimos que, pelo menos, compensem os que estão sendo devolvidos). Analisemos o caso mais detidamente, supondo um banco com c = 0,1 e f = 0, em que são devolvidos os empréstimos. Os lançamentos e o balanço do banco na ocasião da concessão dos empréstimos são:
Banco A
Ativo | x
a x a x a x |
Passivo |
1.000.0000 Caixa | Depósitos à vista 1.000.000 | |
900.000 Empréstimos | Depósitos à vista 900.000 | |
900.000 Depósitos à vista | Caixa 900.000 | |
(66)
(67)
Banco A
Balanço
c = 0,1, k = 0 e f = 0
Ativo | Passivo |
Caixa 100.000
Empréstimos 900.000 |
Depósitos à vista 1.000.000
|
Total de ativo 1.000.000 | Total de passivo 1.000.000 |
Já verificamos em exemplos anteriores que via sistema bancário eram criados empréstimos e depósitos novos no valor de nove milhões de u.m. Ora, quando o prestatário devolve o empréstimo, os dois últimos lançamentos são cancelados da seguinte forma:
Banco A
Ativo | x
a x a x |
Passivo |
900.000 Caixa | Depósitos à vista 900.000 | |
900.000 Depósitos à vista | Empréstimos 900.000 | |
(68)
De forma que o balanço de A seria:
(69)
Banco A
Balanço
c = 0’1, k = 0 e f = 0
Ativo |
Passivo |
Caixa 1.000.000 | Depósitos à vista 1.000.000 |
Total de ativo 1.000.000 | Total de passivo 1.000.000 |
Do ponto de vista econômico, isto significa que para o banco A houve uma diminuição da oferta monetária de novecentas mil u.m.: passou de um milhão e novecentas mil u.m. na altura de concessão do empréstimo (um milhão em forma de depósitos e novecentas mil em forma de moeda entregue aos prestatários) a um milhão de u.m., o dinheiro que sobra depois de devolvido o empréstimo. Assim, para o banco isolado, a contração da oferta monetária é evidente.
Se considerarmos que todos os bancos expandem o crédito e recebem depósitos originais em simultâneo, cada banco poderá, como já vimos, manter as reservas constantes e conceder um múltiplo das mesmas em empréstimos. Assim, o balanço de qualquer banco, por exemplo do banco A, seria o que se mostra a seguir:
(70)
Banco A
Balanço
c = 0,1, k = 0 e f = 0
Ativo | Passivo |
Caixa 1.000.000
Empréstimos 9.000.000 |
Depósitos à vista 10.000.000 |
Total de ativo 10.000.000 | Total de passivo 10.000.000 |
Se todos os prestamistas do banco devolverem os empréstimos, o balanço do banco passará a ser:
(71)
Banco A
Balanço
c = 0,1, k = 0 e f = 0
Ativo | Passivo |
Caixa 1.000.000 | Depósitos à vista 1.000.000 |
Total de ativo 1.000.000 | Total de passivo 1.000.000 |
Torna-se evidente que o valor da diminuição da oferta monetária ou de contração de crédito foi de nove milhões de u.m.; uma diminuição idêntica à que o sistema bancário experimentaria como resultado da devolução acumulada de empréstimos em bancos isolados, de acordo com o que vimos nos lançamentos (68) e (69), por meio de um processo idêntico, mas inverso, ao apresentado no quadro IV-2 acima.
Por último, e em quinto lugar, se os empréstimos perderem o valor, por causa do fracasso da atividade econômica em que foram empregados, o banco deverá registar este fato no balanço como uma perda, pelo seguinte lançamento:
Banco
Ativo |
x a
x |
Passivo |
9.000.000 Perdas devidas a devedores em mora (despesas) | Empréstimos 9.000.000 | |
(72)
Pelo que o balanço do banco seria:
(73)
Banco A
Balanço
c = 0,1, k = 0 e f = 0
Ativo |
Passivo |
Caixa 1.000.000
Perdas do exercício 9.000.000 |
Depósitos à vista 10.000.000 |
Total de ativo 10.000.000 | Total de passivo 10.000.000 |
Comparando este balanço com o balanço (71) podemos verificar que as reservas em caixa são as mesmas, mas com uma diferença muito significativa: no passivo existem dez milhões de u.m. em forma de depósitos contra o milhão que existia antes. Ou seja, o banco encontra-se numa situação de falência técnica. No entanto, enquanto os depositantes continuarem a confiar no banco, não haverá diminuição ou contração da oferta monetária. Na verdade, os banqueiros poderão até considerar que, uma vez que ninguém os vai reclamar, os 9.000.000 de depósitos secundários que criaram do nada são um lucro do exercício que compensa os 9.000.000 de u.m. de perdidos com os devedores em mora,[42] deixando o balanço igual ao que apresentamos em (71). É evidente, porém, que, em termos de deflação, esta situação é ainda mais perigosa do que a decorrente da devolução de um empréstimo: antes de chegar a esta situação, os bancos restringirão consideravelmente a concessão de novos créditos (sendo muito mais rigorosos nos critérios de concessão), o que agravará processo deflacionário. E, se não conseguirem, ainda assim, evitar os devedores em mora e o risco de falência, estarão a um passo de perder a confiança dos clientes, o que poderá levá-los a suspender os pagamentos ou a falir e nesse caso, até o milhão de u.m. depositado originalmente seria sacado, o que poderia levar ao desaparecimento em cascata de todo o sistema bancário.
Em condições normais, os efeitos de contração ou deflação que estamos analisando não ocorrem, uma vez que, ao ser devolvido ao banco um empréstimo, o seu valor é compensado pela concessão de outro empréstimo por outro banco. Na verdade, até no mesmo banco se tenta sempre substituir o empréstimo devolvido por outro novo. No que se refere à inadimplência, esta pode ser considerada mais um custo operacional do banco. O problema crucial colocado pela contração do crédito é que, como vamos analisar pormenorizadamente nos capítulos seguintes, o próprio processo de expansão de crédito baseado na reserva fracionária leva inevitavelmente a que sejam concedidos empréstimos sem base de poupança voluntária, o que dá origem a um processo de descoordenação intertemporal, fruto da informação distorcida que o sistema bancário envia aos empresários que recebem créditos gerados do nada pelo próprio sistema. Desta forma, os empresários começam a realizar projetos de investimento como se a poupança real tivesse aumentado, quando, na verdade, isso não aconteceu. Inicia-se assim um boom ou expansão econômica artificial que, por intermédio de processos que vamos analisar mais adiante, dá inexoravelmente lugar a um reajuste em forma de crise e recessão econômica. Estes são, resumidamente, os efeitos negativos que tem sobre a economia real o fenômeno de expansão de crédito efetuada via emissão de meios fiduciários (depósitos).
A crise e a recessão econômica demonstram que um número significativo dos projetos de investimento financiados pelos créditos criados pelo sistema bancário não são rentáveis, uma vez que não correspondem aos verdadeiros desejos dos consumidores. Dá-se assim a falência e o desaparecimento de muitos processos de investimento, o que acaba por afetar profundamente o sistema bancário. Esta influência negativa sobre o sistema bancário é evidenciada pela devolução generalizada de empréstimos por muitos empresários que, desmoralizados perante as perdas, liquidam os projetos de investimento empreendidos erroneamente (com os efeitos de contração de crédito e deflação já analisados); bem como por um aumento atípico da inadimplência nos empréstimos (como os efeitos já referidos sobre a solvência dos bancos). Tudo isto leva a que, da mesma forma que a oferta monetária foi expandida pelo multiplicador bancário, a expansão econômica artificial decorrente da criação ex nihilo de créditos acabe por dar lugar a uma inevitável contração endógena que, na forma de devolução generalizada de empréstimos e aumento de devedores em mora, faz com que a oferta monetária tenda a diminuir consideravelmente. Assim, o sistema bancário com reserva fracionária gera uma oferta bancária extremamente elástica, que com a mesma facilidade com que é “esticada”, logo é forçada a “encolher”, provocando os correspondentes efeitos sobre a atividade econômica, que se vê recorrentemente sacudida por fases sucessivas de auge e recessão. Esta atividade econômica “maníaco-depressiva”, com os profundos e dolorosos custos sociais que acarreta, é indubitavelmente a mais grave e prejudicial consequência que o sistema bancário com base num coeficiente de reserva fracionária constituído, ao violar os princípios tradicionais do Direito, tem sobre a sociedade.
Em suma, as dificuldades econômicas dos clientes dos bancos que, como veremos, são, em última instância, uma das consequências inexoráveis de toda a expansão de crédito, fazem com que um volume considerável de créditos seja incobrável, o que agrava e aprofunda ainda mais o processo de contração de crédito (o inverso da expansão) que estamos a analisar. De fato, poderá até chegar, como vimos no nosso exemplo, à falência total do próprio banco, o que fará com que as notas que tiver emitido ou os depósitos que tiver gerado (que, como sabemos, têm natureza econômica idêntica) percam integralmente o valor, agravando ainda mais a contração monetária (em vez dos nove milhões de u.m. de diminuição da oferta monetária no caso do empréstimo devolvido, a oferta monetária diminuiria integralmente em dez milhões de u.m., ou seja, incluindo o milhão de depósitos que ficavam no banco). Além disso, basta que um banco tenha problemas de solvência para que o temor se estenda para os clientes dos demais bancos, o que levará a um processo em cadeia de suspensão de pagamentos com consequências econômicas e financeiras trágicas.
Ademais, mesmo que o público mantenha a confiança nos bancos (apesar da situação de insolvência) ou mesmo que um banco central criado ad hoc para fazer frente a situações desse tipo conceda toda a liquidez necessária para que todos os depositantes considerem o depósitos perfeitamente assegurados, a inadimplência ou a impossibilidade de cobrar os empréstimos dispara um processo de contração de crédito que é desencadeado espontaneamente quando estes são devolvidos e não podem ser substituídos ao mesmo ritmo por outros empréstimos. Este fenômeno, típico das fases de recessão, acontece porque a inadimplência faz com que os bancos se tornem mais cautelosos na concessão de empréstimos, pelo que a natural relutância do público desmoralizado para pedir empréstimos é reforçada pela maior prudência e rigor dos bancos para concedê-los. Além disso, à medida que virem a rentabilidade e o valor dos ativos diminuir, como consequência dos créditos incobráveis, os bancos procurarão ser mais prudentes e aumentar os saldos de tesouraria para aumentar o respectivo coeficiente de caixa, o que terá um efeito contrativo ainda maior. Por último, os fracassos empresariais e a frustração decorrente da impossibilidade de cumprir compromissos assumidos com os bancos aumentará ainda mais a desmoralização dos agentes econômicos e a determinação para evitar empreender novos projetos de investimento financiados com créditos bancários. Acrescente-se que muitas empresas acabam por notar que se deixaram levar por um otimismo injustificado nas fases de expansão, em grande parte devido às excessivas facilidades de crédito inicialmente concedidas pelos banqueiros, e, com razão, atribuem essas facilidades ao fato de, por erro, terem entrado em muitos projetos de investimento que não eram viáveis.[43] Resolvem, por isso, não cometer os mesmos erros no futuro (se a resolução é ou não duradoura e se os empresários se lembrarão, no futuro, das experiências negativas da fase de recessão é um problema diferente, que analisaremos noutro lugar).
De qualquer forma, vimos que, a mesma facilidade com que o crédito e a oferta monetária são expandidos, o sistema bancário baseado em reserva fracionária pode se contrair e reduzir muito significativamente a oferta monetária. Ou seja, há a criação de um sistema elástico e extremamente frágil, sujeito à possibilidade de grandes convulsões, muito difíceis, senão impossíveis, de suavizar ou eliminar. Tal sistema monetário e bancário contrasta com sistemas monetários rígidos (por exemplo, o do padrão-ouro clássico com um sistema bancário com um coeficiente de caixa de 100%), que não permitem expansões desproporcionadas da oferta monetária (a produção mundial de ouro tem vindo a crescer nos últimos séculos a um ritmo de 1 a 2% ao ano) e possuem ainda a vantagem de, por serem rígidos (o ouro é indestrutível e o estoque mundial historicamente acumulado muito inflexível), não permitirem qualquer tipo de diminuição brusca, nem, portanto, contrações de crédito ou monetárias que afetem negativamente a economia, em contraste com o que sucede atualmente devido ao sistema bancário vigente.[44]
[1] “O funcionamento da estrutura da moeda e do crédito, juntamente com a linguagem e a moral, é uma das ordens espontâneas que mais resistem à análise do pesquisador, e continua a ser objeto de grandes discordâncias entre especialistas […] Os processos seletivos sofreram mais interferências aqui do que em qualquer outro campo: a seleção evolutiva é impedida por monopólios governamentais que tornam impossível a experimentação competitiva […] A história do tratamento por parte do governo é um incessante exemplo de fraude e engano. Neste aspecto, os governos mostraram ser muito mais imorais do que qualquer instituição privada que tenha tido a possibilidade de conceder moeda em situação de concorrência.” Ver F.A. Hayek, The Fatal Conceit, pp.102-104.
[2] Além disso, é interessante notar que os excessos monetários e financeiros que causaram esta crise tenham tido origem, sobretudo, nas políticas aplicadas pelas administrações pretensamente neoliberais dos Estados Unidos e do Reino Unido na segunda parte dos anos 1980. Assim, por exemplo, Margaret Thatcher reconheceu que o principal problema econômico do seu mandato surgiu “no setor da procura à medida que o dinheiro e o crédito se expandiram com demasiada rapidez e elevaram vertiginosamente o preço dos bens”. Ver: Margaret Thatcher, The Downing Street Years, Harper Collins, Nova York, 1993, p. 668. Acresce que o Reino Unido seguiu o mesmo processo de descontrole monetário e de crédito que se tinha iniciado anteriormente nos Estados Unidos a partir da segunda administração Reagan. Estes fatos tornam ainda mais clara a importância de fazer avançar a teoria para evitar que, mesmo no campo liberal, outros líderes políticos caiam nos mesmos erros de Reagan e Thatcher, e permitir que sejam capazes de identificar claramente qual é o sistema bancário e monetário apropriado para uma sociedade livre (sistema sobre que, como é evidente, muitos liberais ainda não têm certeza).
[3] Poderia considerar, igualmente, que o banco A tinha utilizado esse dinheiro em forma de empréstimos para o consumo ou para efetuar empréstimos a curto prazo ao comércio, como é o caso do desconto de letras a três, seis, nove e doze meses de vencimento. Para efeitos da nossa análise, a consideração de qualquer destes usos é irrelevante.
[4] Sobre a essência da função empresarial que consiste na descoberta e no aproveitamento de oportunidades de ganhos e lucros e os lucros empresariais puros a que a mesma dá lugar, pode consultar-se o capítulo II de Jesús Huerta de Soto, Socialismo, cálculo econômico y función empresarial, ob. cit., pp. 41-86.
[5] Murray N. Rothbard, referindo-se à atividade dos bancos como verdadeiros intermediários entre prestamistas originais e prestatários finais, diz que: “the bank is expert on where its loans should be made and to whom, and reaps the reward of this service. Note that there has still been no inflationary action by the loan bank. No matter how large it grows, it is still only tapping savings from the existing money stock and lending that money to others. If the bank makes unsound loans and goes bankrupt, then, as in any kind of insolvency, its shareholders and creditors will suffer losses. This sort of bankruptcy is little different from any other: unwise management or poor entrepreneurship will have caused harm to owners and creditors. Factors, investment banks, finance companies, and money-lenders are just some of the institutions that have engaged in loan banking.” Murray N. Rothbard. The Mystery of Banking, Richardson & Snyder, Nova York. 1983, pp. 84-85.
[6] Vejamos a explicação de Ludwig von Mises nas suas próprias palavras: “Therefore the claim obtained in exchange for the sum of money is equally valuable to him whether he converts it sooner or later, or even not at all; and because of this it is possible for him, without damaging his economic interests, to acquire such claims in return for the surrender of money without demanding compensation for any difference in value arising from the difference in time between payment and repayment, such, of course, as does not in fact exist” (grifo nosso). Ludwig von Mises, The Theory of Money and Credit, ob. cit., p. 301.
[7] Stephen Horwitz afirma que, historicamente, o ato original de apropriação indébita do dinheiro dos depositantes por parte dos banqueiros foi “an act of true entrepreneurship as the imaginative powers of individual bankers recognized the gains to be made through financial intermediation”. Por razões dadas no texto principal, esta afirmação nos parece perigosamente errônea. Por um lado, como se verá no texto, não há intermediação financeira na apropriação de depósitos à vista, mas uma estranha criação do nada de novos depósitos. Por outro, quanto ao pretenso “meritório” ato de “criatividade empresarial”, não nos parece que possa, de forma alguma, ser diferenciado da “empresarialidade criativa” de qualquer outro ato criminoso, por meio do qual o criminoso “tenha empresarialmente a percepção”de que tira benefício da fraude a terceiros ou da apropriação de bens alheios à força. Ver: Stephen Horwitz, Monetary Evolution, Free Banking, and Economic Order, Westview Press, Oxford e San Francisco 1992, p. 117. E ainda, Gerald P. O’Driscoll, “An Evolutionary Approach to Banking and Money”, cap. 6 de Hayek, Co-ordination and Evolution: His Legacy in Philosophy, Politics, Economics and the History of Ideas, Jack Birner e Rudy van Zijp (eds.), Routledge, Londres 1994, pp. 126-137. Murray N. Rothbard foi, talvez, quem mais clara e rotundamente criticou a ideia de Horwitz, segundo a qual “all men are subject to the temptation to commit theft or fraud … Short of this thievery, the warehouseman is subject to a more subtle form of the same temptation: to steal or ‘borrow’ the valuables ‘temporarily’ and to profit by speculation or whatever, returning the valuables before they are redeemed so that no one will be the wiser. This form of theft is known as embezzlement, which the dictionary defines as ‘appropriating fraudulently to one’s own use, as money or property entrusted to one’s care’.” Murray N. Rothbard, The Mystery of Banking, ob. cit., p. 90. No que respeita à classificação jurídica do fato descrito como crime de apropriação indébita, consultar o capítulo I.
[8] Para a descrição dos diferentes sistema contábeis, inglês e continental, e de como, em última instância, dão origem a resultados econômicos idênticos, ver F.A. Hayek, Monetary Theory and the Trade Cycle, (1933), Augustus M. Kelley, Clifton, Nova Jersey, 1975, pp. 154 e ss.
[9] O dinheiro é o único ativo perfeitamente líquido.
[10] “If the money reserve kept by the debtor against the money-substitutes issued is less than the total amount of such substitutes, we call that amount of substitutes which exceeds the reserve fiduciary media.” Ludwig von Mises, Human Action, p. 430. Mises esclarece que geralmente não é possível dizer se um determinado substituto monetário é ou não um meio fiduciário. Quando escrevemos um cheque, não sabemos (porque o banco não nos informa diretamente) que parte do valor está coberta por unidades monetárias físicas, pelo que, do ponto de vista econômico, não sabemos qual parte do dinheiro que estamos pagando é meio fiduciário e qual parte corresponde a unidades monetárias físicas.
[11] Esta é a terminologia que mais se generalizou graças à clássica obra de Chester Arthur Phillips, Segundo o qual “a primary deposit is one growing out of the lodgement of cash or its equivalent and not out of credit extended by the bank in question … derivative deposits have their origins in loans extended to depositors … they arise directly from a loan, or are accumulated by a borrower in anticipation of the repayment of a loan.” Ver Bank Credit: A Study of the Principles and Fators Underlying Advances Made by Banks to Borrowers, The Macmillan Company, Nova Iorque 1920 e 1931, pp. 34 e 40. Temos, no entanto, de criticar Phillips por definir os “depósitos derivados” em função de a origem estar na concessão de um crédito, uma vez que, embora isso seja o mais comum, o depósito derivado existe desde o preciso momento em que o banco use, para a concessão de créditos ou para qualquer outra finalidade, uma parte dos depósitos recebidos, que assim se convertem ipso fato em meios fiduciários ou depósitos derivados. A este propósito, ver Richard H. Timberlake, “A Reassessment of C.A. Phillips’ Theory of Bank Credit”, History of Political Economy, 20:2, 1988, pp. 299-308, onde Phillips também é criticado por não notar que o depósito derivado existe desde o momento em que o banco utiliza uma parte do dinheiro recebido em depósito em benefício próprio (em forma de empréstimo ou de qualquer outro uso particular). Phillips, pelo contrário, considerava que todos os depósitos originais eram primários e que os depósitos derivados só começavam a existir quando o dinheiro emprestado se fosse espalhando por todo o sistema bancário mediante um processo expansivo que analisaremos mais adiante. Timberlake acha surpreendente que haja poucos textos de economia que reconhecem que no preciso momento em que o banco se apropria de uma parte dos depósitos à vista, se cria dinheiro bancário. No entanto, Samuelson, no seu conhecido tratado de economia (Economía, Paul A. Samuelson and William D. Nordhaus, 14.ª edição, McGraw-Hill, Madrid 1993, pp. 616-617), reconhece perfeitamente esta realidade e, num exemplo muito parecido com o nosso, conclui que “o banco criou dinheiro, Como? Adicionou às mil unidades monetárias iniciais de depósitos apresentados no lado direito do quadro, novecentas unidades monetárias de depósitos à vista noutra conta (ou seja, a conta corrente da pessoa que recebeu as novecentas u.m.). Desta forma, a quantidade total de oferta monetária passou a ser de mil e novecentas unidades monetárias. A atividade do banco criou novecentas unidades monetárias de moeda nova” (Itálicos acrescentados).
[12] Porém, vamos demonstrar mais adiante que o próprio sistema de atividade bancária com reserva fracionária gera regularmente levantamentos anormais (maciços) de depósitos aos quais não é possível fazer frente com um coeficiente de reserva fracionária.
[13] Referimo-nos, como é evidente, às diferentes fases históricas que estudamos no capítulo II, nas quais surge o sistema bancário com reserva fracionária (sem que exista ainda um banco central)
[14] Wilhelm Röpke, La teoría de la economía, 4.ª edição, Unión Editorial, Madrid 1989, pp. 92-94.
[15] Quando estudarmos, do ponto de vista de todo o sistema bancário, os efeitos do exercício da atividade bancária com reserva fracionária, analisaremos com todo o detalhe o processo de criação de créditos e, portanto, de transferência de riqueza para os bancos. No que concerne ao fato de não ser necessário que o montante dos meios fiduciários seja concedido em forma de créditos (embora, na prática, seja o que acontece sempre ou quase sempre), Ludwig von Mises diz claramente que: “it is known that some deposit banks sometimes open deposit accounts without a money cover not only for the purpose of granting loans, but also for the purpose of directly procuring resources for production on their own behalf. More than one of the modern credit and commercial banks has invested a part of its capital in this manner […] the issuer of fiduciary media may, however, regard the value of the fiduciary media put into circulation as an addition to his income or capital. If he does this he will not take the trouble to cover the increase in his obligations due to the issue by setting aside a special credit fund out of his capital. He will pocket the profits of the issue, which in the case of token coinage is called seigniorage, as composedly as any other sort of income.”Ludwig von Mises, The Theory of Money and Credit, ob. cit., p. 312 (grifo acrescentado). Tendo em conta tais considerações, não surpreende que, em geral, sejam as instituições bancárias aquelas que mostram ao público imóveis mais espectaculares e luxuosos, um montante mais desproporcionado de gastos em sucursais, empregados etc., e, muito menos, que os governos tenham sido os primeiros a tirar proveito do grande poder de gerar dinheiro dos bancos.
[16] Ver a nota 25.
[17] F.A. Hayek, Monetary Theory and the Trade Cycle, ob. cit., p. 154.
[18] A prática bancária anglo-saxônica acabou por ser adotada também em Espanha, como se deduz, entre outros, do livro de Pedro Pedraja Garcia, Contabilidad y análisis de balances de la rede bancária, vol. I, Principios generales y contabilización de operaciones, publicado pelo Centro de Formación del Banco de España, Madrid 1992, especialmente as pp. 116 e 209.
[19] Herbert J. Davenport, The Economics of Enterprise (1913), Augustus M. Kelley, Reprints of Economic Classics, Nova York 1968, p. 263. Esta passagem de Davenport poderia ser traduzida para português da seguinte forma: “Os bancos não emprestam os seus depósitos, antes, por meio das próprias extensões de crédito, criam os depósitos.” Catorze anos depois, W. F. Crick expressou a mesma ideia no seu artigo “The Genesis of Bank Deposits”, Economica, Junho de 1927, pp. 191-202. O fato de a maioria dos bancos, mais do que mediadores entre prestamistas e prestatários, ser criadora de créditos e depósitos não é compreendido pela maior parte do público nem por especialistas tão importantes como Joaquín Garrigues, que na obraContratos bancarios (ob. cit., pp. 31-32 e 355) insiste em dizer que o banco é, antes de mais, um mediador de crédito que “dá a crédito o dinheiro que recebe a crédito” (p. 335) e que os bancos “dão a crédito aquilo que receberam a crédito. São mediadores de crédito, ou seja, negociantes que medeiam entre quem necessita de moeda para os negócios e quem deseja investir o dinheiro de forma lucrativa. No entanto, os bancos podem agir de forma dupla: ou como mediadores, aproximando os contratantes (mediação no crédito direto) ou realizando uma operação dupla que consiste em receber dinheiro a crédito para dá-lo posteriormente a crédito (mediação no crédito indireto)” (p. 32). Como se pode verificar, Garrigues não nota que, no que respeita à atividade bancária quantitativa e qualitativamente mais significativa, a que se refere à recepção de depósitos com reserva fracionária, o que os bancos fazem é conceder créditos do nada cobertos por depósitos que também criam do nada e, portanto, mais do que mediadores de crédito, são criadores do nada de crédito. Garrigues segue ainda a crença popular segundo a qual, “do ponto de vista econômico”, o lucro do banco consiste na “diferença entre os juros que paga na operação passiva e os juros que cobra na operação ativa” (p. 31). Como sabemos, embora aparentemente se derive da diferença de juros, na prática, o lucro principal do banco decorre da criação de meios de pagamento a partir do nada, o que lhe proporciona uma fonte de financiamento permanente, de que se apropria em benefício próprio e de que, adicionalmente, recebe juros. Em suma, os banqueiros criam dinheiro do nada, emprestam-no e exigem que lhes sejam devolvidos os juros.
[20] Recorde-se que Ludwig von Mises, nos seus importantes tratados de teoria monetária, de crédito e sobre o ciclo econômico, todos centrados na análise dos perturbadores efeitos da criação de créditos sem a cobertura de um aumento da poupança efetiva, pela geração de depósitos ou meios fiduciários por parte do sistema bancário com reserva fracionária, sempre resistiu a fundamentar a análise no estudo do multiplicador de expansão de crédito que acabamos de inferir no texto. Esta resistência é perfeitamente compreensível, tendo em conta a grande aversão em relação ao uso de matemática na economia e, em particular, à aplicação de conceitos que, tal como o denominador bancário, podem ser considerados “mecanicistas” e, não raras vezes, inexatos e até enganosos, especialmente por não terem em conta a constante criatividade humana e a evolução do tempo subjetivo. Além disso, do ponto de vista estrito da teoria econômica, não é necessário o desenvolvimento matemático do multiplicador para entender a ideia essencial do processo de expansão de créditos e de depósitos e a forma com gera inevitavelmente crises e recessões econômicas (que era o objetivo teórico de Mises). Porém, tendo em conta o que nos propomos fazer, a utilização do multiplicador bancário tem a vantagem de tornar mais fácil e ilustrativa a explicação do processo de expansão contínua de depósitos e empréstimos, o que, do ponto de vista didáctico, reforça a argumentação teórica. O primeiro autor a utilizar o multiplicador bancário numa análise teórica dedicada ao estudo das crises econômicas foi Herbert J. Davenport na obra The Economics of Enterpise já citada, especialmente no capítulo XVII, pp. 254-331. Contudo, é de F.A. Hayek o mérito de ter incluído a teoria do multiplicador bancário da expansão de crédito na análise da teoria austríaca do ciclo econômico. (Monetary Theory and the Trade Cycle, pp. 152). Ver também a nota 28, em que Marshall, já em 1887, descreve com grande exatidão como chegar à versão mais simplificada da fórmula do multiplicador bancário.
[21] C.A. Phillips, Bank Credit, ob. cit., pp. 57-59.
[22] Existem ainda outras forças que explicam o processo de concentração bancária. Todas têm origem na tentativa dos bancos de enfrentarem as consequências negativas que sofrem por terem violado os princípios essenciais do contrato de depósito monetário irregular por intermédio do correspondente privilégio estatal. Assim, uma das vantagens da concentração bancária é a possibilidade de acumulação centralizada do coeficiente de caixa disponível para fazer frente ao levantamento de depósitos em qualquer lugar em que estes aconteçam numa média muito acima da normal. Esta vantagem se perde quando existem muitos bancos, uma vez que cada um se vê forçado a manter um encaixe independente e relativamente mais elevado. As autoridades públicas também fazem pressão para acelerar a concentração, uma vez que têm a esperança de que dessa forma seja mais fácil a gestão da politica monetária e o controle da atividade bancária. Mais adiante, analisaremos o desejo contínuo que os bancos têm de aumentar o volume de depósitos, uma vez que, como vimos na fórmula, o montante de depósitos é a base sobre a qual se apoia a expansão de créditos e depósitos que geram do nada e que tantos lucros lhes trazem. Sobre o fenômeno de concentração bancária, ver: C. Bresciani-Turroni, Curso de economía política, vol. II, Problemas de economía política, Fondo de Cultura Econômica, México 1961, pp. 144-145. Em todo o caso, é importante constatar que o processo de concentração resulta do intervencionismo do estado nos campos financeiro e bancário, bem como do privilégio concedido aos bancos para que possam operar, contra os princípios tradicionais do Direito, com uma reserva fracionária dos depósitos feitos à vista pelos clientes. Numa economia de mercado livre, sem intervenção governamental e submetida ao Direito, essa tendência para a concentração desapareceria, o tamanho dos bancos perderia praticamente toda a importância e haveria uma tendência para que o número fosse elevado.
[23] Embora, do ponto de vista do banco individual, parecesse que o banco estava emprestando uma parte dos depósitos, a verdade é que mesmo os bancos isolados criam créditos do nada num montante superior aos depósitos originais. Isto mostra que, como vamos ver em relação a todo o sistema, a principal fonte de depósitos não são os depositantes, mas resultados secundários dos empréstimos que os bancos criam do nada. C. C. Phillips demonstra esta realidade ao dizer que: “it follows that for the banking system, deposits are chiefly the offspring of loans“. Ver: C. A. Phillips, Bank Credit, ob. cit., p. 64 e a passagem de Taussig na nota 62 do capítulo V.
[24] O método de contabilidade do antigo sistema continental é mais complexo, mas pode chegar-se ao mesmo balanço [28] supondo que k = 0,2 significa, não a percentagem de fundos não usados (que neste sistema, como sabemos, não são contabilizados), mas a proporção do público que é cliente do banco, e, portanto, voltará a colocar no mesmo banco os seus depósitos. Neste caso, os lançamentos seriam:
Banco A
(29)
Ativo | x
a x |
Passivo |
1.000.000 Caixa | Depósitos à vista 1.000.000 | |
Se o banco emprestasse 900.000 u.m., o lançamento seria:
Banco A
Ativo |
x a x |
Passivo |
900.000 Empréstimos | Caixa 900.000 |
Supondo, agora, que 20% da novecentas mil u.m. que saíram de caixa voltam ao banco e assim sucessivamente, os lançamentos seriam:
Banco A
(30)
Ativo |
x a x |
Passivo |
180.000 Caixa | Depósitos à vista 180.000 | |
Ao emprestar-se de novo 90% deste valor:
(31)
Banco A
Ativo |
x a x a x a x a x a x |
Passivo |
162.000 Empréstimos | Caixa 162.000 | |
32.400 Caixa | Depósitos à vista 32.400 | |
29.160 Empréstimos | Caixa 29.160 | |
5.832 Caixa | Depósitos à vista 5.832 | |
5.248 Empréstimos | Caixa 5.248 | |
Supusemos que 20% de cada empréstimo concedido voltava à caixa, uma vez que essa proporção dos receptores derradeiros do dinheiro correspondente é cliente do banco.
Assim, segundo o sistema continental o balanço seria:
(31) Banco A
(contabilizando segundo o sistema continental)
c = 0,1k =0,2
Ativo |
Passivo |
Caixa 121.824
Empréstimos 1.096.408 |
Depósitos à vista 1.218.232 |
Total de ativo 1.218.232 | Total de passivo 1.218.232 |
Montantes praticamente coincidentes com os do balanço (28) e que, só não são idênticos porque, no nosso exemplo, paramos a série de empréstimos-depósitos na terceira repetição. Se tivéssemos considerado mais empréstimos e depósitos desta sucessão, nos teríamos aproximado até tornar os valores do balanço (31) e os do balanço (28) exatamente iguais.
[25] Os bancos chegam até a pagar juros aos titulares de contas correntes, para manter e atrair novos depósitos, pelo que, acabam por ver reduzidas as margens de lucro que descrevemos na conta (15). Isto não afeta o argumento essencial de nossa análise nem a capacidade dos bancos para criar depósitos, que é a fonte principal de lucros. Como diz Mises, neste processo competitivo, “some banks have gone too far and endangered their solvency“. Ludwig von Mises, Human Action, ob. cit., p. 464.
[26] Bresciani-Turroni, Curso de economía, vol. II, Problemas de economía política, ob. cit., pp.133-138.
[27] Recordemos que a soma da sequência:
O sofista grego Zenão de Eléia foi o primeiro a colocar o problema da soma de séries com razão comum inferior a um, no século V a.C. em relação ao conhecido problema de se Aquiles poderia ou não alcançar a tartaruga. Não conseguiu resolver satisfatoriamente o problema, uma vez que não se deu conta de que as sequências com razão comum inferior tinham uma soma convergente (e não divergente, como pensava). Ver:The Concise Encyclopedia of Mathematics, W. Gellert, H. Kustner, M. Hellwich y H. Kastner (eds.), Van Nostrand, Nova York, 1975, p. 388.
[28] Marshall descreve da seguinte forma o procedimento para chegar a tal fórmula: “I should consider what part of its deposits a bank could lend, and then I should consider what part of its loans would be redeposited with it and with other banks and, vice versa, what part of the loans made by other banks would be received by it as deposits. Thus I should get a geometrical progression; the effect being that if each bank could lend two-thirds of its deposits, the total amount of loaning power got by the banks would amount to three times what it otherwise would be. If it could lend four-fifths, it will then be five times; and so on. The question how large a part of its deposits a bank can lend depends in a great measure on the extent on which the different banks directly or indirectly pool their reserves. But this reasoning, I think, has never been worked out in public, and it is very complex.” Alfred Marshall, “Memoranda and Evidence Before the Gold and Silver Commission”, 19 de Dezembro de 1887, em Official Papers by Alfred Marshall, Royal Economic Society, Macmillan & Co., Londres 1926, p. 37.
[29] Outra fórmula interessante é a de expansão máxima que um banco isolado pode efetuar em função não do dinheiro que originalmente se depositou no banco, mas do excesso de reservas, r, que o banco detém, além do seu encaixe, cd. Neste caso, a diminuição de reservas decorrente da nova expansão x(1 ? k) deverá ser igual ao excesso de reservas, r, menos o coeficiente de caixa correspondente à parte dos créditos não dispostos k,c,x. Ou seja:
Supondo que, como no nosso exemplo, é depositado originalmente um milhão de u.m., e c = 0,1 e k = 0,2, o excesso de reservas é, precisamente, r = 900.000 e portanto:
Que, como se pode observar, é um resultado idêntico ao que obtivemos na fórmula [4].
[30] Assim, ver, entre outros, Juan Torres López, Introducción a la economía política, Editorial Cívitas, Madrid 1992, pp. 236-239; e José Casas Pardo, Curso de economía, 5.ª edição, Madrid 1985, pp. 864-866.
[31] Este é o sistema que Bresciani-Turroni prefere seguir no seu Curso de economía, vol. II, obra citada, pp. 133-138.
[32] Richard G. Lipsey, An Introduction to Positive Economics, 2nd ed., Weidenfeld and Nicolson, Lodres, 1966, pp. 682?83.
[33] Murray N. Rothbard, The Mystery of Banking, ob. cit., cap. VIII, pp. 111-124.
[34] Doctor Saravia de la Calle, Instrucción de mercaderes, ob. cit., p. 180.
[35] Nestas circunstâncias, que são as mais reais no mercado, a afirmação de C. C. Phillips perderia credibilidade. Para esse autor (Credit Banking, ob. cit., p. 64) “it follows for the banking system that deposits are chiefly the offspring of loans. For an individual bank, loans are the offspring of deposits.” Esta segunda afirmação é a que não está correta nas circunstâncias mais reais, uma vez que, se houver muitos bancos com muitos depósitos originais e se todos expandirem o crédito simultaneamente, também os depósitos de cada banco isolado são um resultado da expansão creditícia que cada um realiza em uníssono. Deixamos para o capítulo VIII o estudo da possibilidade (negada por Selgin) de bancos, mesmo num regime de atividade bancária livre, iniciarem uma expansão de crédito simultânea, mesmo não havendo aumento do volume de depósitos primários em todos eles (ou seja, através de uma diminuição generalizada do seu encaixe ou coeficiente de caixa). Nesse capítulo, explicaremos também, seguindo Mises, que, num regime de atividade bancária livre, um banco não pode expandir o seu crédito de forma isolada diminuindo o encaixe para valores inferiores ao do nível de prudência sem colocar em risco a solvência. Ambos os fenômenos explicam a tendência irresistível dos banqueiros para concordar e preparar em conjunto (habitualmente por meio de um banco central) o ritmo geral de expansão de crédito.
[36] Estas fórmulas foram desenvolvidas a partir do livro de Armen A. Alchian e William R. Allen, University Economics, Wadsworth Publishing, Belmont, California, 1964, pp. 675-676. Se, como é dito com cada vez mais insistência, o coeficiente de caixa legal se reduzisse a zero, o total de depósitos líquidos, DN,seria:
E a expansão de crédito líquida, x:
x = DN ? d = 4.666.667 u.m.
Logo, conclui-se que, se não existisse o “enxugamento”da oferta monetária do sistema (f = 0) e as autoridades bancárias eliminassem o coeficiente de caixa (c = 0), estas últimas poderiam impulsionar o volume de expansão de crédito tanto quanto quisessem, uma vez que:
(Esta expansão geraria, de forma agravada, todos os efeitos de distorção sobre a estrutura produtiva real que estudaremos no capítulo V.)
[37] Para ilustrar a importância que os efeitos mencionados no texto podem ter na diminuição do multiplicador de expansão bancária, realce-se que, na Espanha, por exemplo, de 50 milhões de oferta monetária (incluindo o dinheiro vivo em poder do público, os depósitos à vista, os depósitos de poupança e os depósitos a prazo, que, apesar do seu nome, no sistema bancário espanhol, são, maioritariamente, verdadeiros depósitos à vista, dado que podem ser levantados, sem qualquer penalização ou com penalizações muito reduzidas, em qualquer momento pelos titulares) apenas cerca de 6,6 bilhões são dinheiro vivo em poder do público. Isto significa que um pouco mais de 13,2% do total é constituído por este dinheiro em poder do público, pelo que o multiplicador de expansão bancária seria superior a 7,5 vezes (o que equivaleria a um coeficiente de caixa de 13%). Uma vez que o coeficiente de caixa atualmente em vigor na Espanha é de 2% (circular monetária do Banco de Espanha 1/1996, de 11 de outubro), a diferença até 13,2 % é devida, precisamente, ao efeito do coeficiente f de “enxugamento” de oferta da moeda que está em poder do público, possivelmente maior devido à conjuntura de recessão econômica do passado, o que aumentou o volume de depósitos e de fundos em poder dos bancos, diminuindo momentaneamente a possibilidade de aumentar o processo expansivo de criação de créditos. Este comentário baseia-se nos dados provisórios de junho publicados em agosto de 1994 no Boletín Estadístico del Banco de España, e que nos foi facilitado muito gentilmente por Luís Alfonso López García, inspetor do Banco de Espanha.
[38] Podemos ver, no entanto, o desenvolvimento das fórmulas sobre esta complexidade no livro de Laurence S. Ritter e William L. Silber, Principles of Money, Banking and Financial Markets, 3.ª edicão revista e ampliada, Basic Books, Nova York 1980, pp. 44-46. Outros trabalhos que desenvolvem pormenorizadamente a teoria do multiplicador bancário são os de John D. Boorman e Thomas M. Havrilesky, Money Supply, Money Demand and Macroeconomic Models, Allyn & Bacon, Boston 1972, especialmente as pp. 10-41; Dorothy M. Nichols, Modern Money Mechanics: A Workbook on Deposits, Currency and Bank Reserves, publicado por Federal Reserve Bank of Chicago, pp. 29-31; e é também interessante o livro de Phillip Cagan, Determinance and Effects of Changes in the Stock of Money, 1875-1960, Columbia University Press, Nova York, 1965. Na Espanha, trabalhou extensivamente sobre este tema José Miguel Andreu García. Ver, por exemplo, os artigos “En torno a la neutralidad del coeficiente de caja: el caso español”, em Revista de Economía, n.º 9, e “El coeficiente de caja óptimo y su posible vinculación con el déficit público”, Boletín Econômico de InformaciónComercial Española, 29 de junho a 5 de julho de 1987, pp. 2425 e ss.
[39] A.P. Usher, The Early History of Deposit Banking in Mediterranean Europe, ob. cit., pp. 9 e 192
[40] “He who has made a special promise to give definite parcels of goods in return for particular individual papers, cannot issue any such promissory papers without holding corresponding goods. If he does so, he will be continually liable to be convicted of fraud or default by the presentation of a particular document”. William Stanley Jevons, Money and the Mechanism of Exchange, D. Appleton & Co., Nova Iorque 1875, e Kegan Paul, Londres 1905, p. 209.
[41] Como veremos mais detidamente no capítulo VIII, o primeiro teórico a notar que os depósitos bancários eram moeda e que o exercício da atividade bancária com reserva fracionária aumenta a oferta monetária, foi o escolástico espanhol Luis de Molina, Tratado sobre cambios, edição e introdução de Francisco Gómez Camacho, Instituto de Estudios Fiscales, Madrid 1991 (a primeira edição foi publicada em Cuenca em 1597). Ver, em especial, a Disputa 409, pp. 145-156, sobretudo a p. 147. No entanto, Luís de Molina não percebeu a identidade existente entre a emissão de depósitos e notas sem cobertura, uma vez que na época os bancos ainda não tinham começado a explorar a possibilidade de emitir notas. Só em 1797, Henry Thornton se refere, pela primeira vez, ao paralelismo entre notas e depósitos (Ver: Resposta de 30 de março de 1797 emEvidence Given Before the Lords’ Committee of Secrecy Appointed to Inquire into the Courses in Which Produced the Order of Council of the 27th February 1797, reproduzida em An Inquiry into the Nature and Effects of the Paper Credit of Great Britain, F.A. Hayek (ed.), Augustus M. Kelley, Fairfield 1978, p. 303). Poucos anos depois, a mesma conclusão é atingida por Walter Boyd, James Pennington e o senador do Estado de Pennsylvania Condy Raguet, para os quais os depósitos e as notas eram, de igual forma, parte da oferta monetária e que devia ser retirada a licença de todos os bancos que não pagassem de imediato e em dinheiro os pedidos de levantamento de notas ou de depósitos que tivessem emitido (ver o Report on Bank Chartersde Condy Raguet, incluído no Journal of the Senate, 1820-1921, Pennsylvania Legislature, pp. 252-268, e o comentário a respeito de Murray N. Rothbard incluído em The Panic of 1819: Reactions and Policies, Columbia University Press, Nova York e Londres, 1962, p. 148). Não deixa de ser significativo o fato de terem sido os próprios teóricos da Banking School os primeiros a insistirem, corretamente, que era completamente paradoxal pretender limitar a emissão de notas sem cobertura e não defender a mesma medida em relação aos depósitos, quando, na verdade, ambos tinham exatamente a mesma natureza econômica. Ver, por exemplo, o livro de James Wilson, Capital, Currency and Banking, publicado por The Economist, Londres 1847, p. 282; bem como os comentários de Vera C. Smith em The Rationale of Central Banking and the Free Banking Alternative, Liberty Press, Indianápolis 1990, p. 89. Nesta página, encontramos a passagem mais importante na obra de Vera Smith, referindo-se a Wilson e ao grave erro da Currency School, que foi incapaz de reconhecer a identidade econômica entre notas e depósitos: “The reason the currency school usually gave for this distinction was that bank notes increased the circulation and deposits did not. Such an argument was not, of course, acceptable to Wilson as a member of the banking school of thought which both denied that the issue of notes could be increased to any undesirable extent so long as convertibility was strictly maintained, and pointed out that the difference claimed between notes and deposit liabilities was invalid. But it was still denied in many quarters that demand deposits formed part of the circulation, and it was probably by no means generally admitted right up to the time of MacLeod.”
Note-se que a contradição apontada por Wilson é plenamente justificada, uma vez que, dada a identidade econômica entre notas e depósitos, os argumentos a favor do controle de emissão de uns sem cobertura são aplicáveis, mutatis mutandis, a outros. Além disso, esta contradição é idêntica à que, quase um século depois, expuseram os defensores do contrato de depósito irregular de títulos de valores, de que os bancos podem fazer uso, no caso da prática bancária de Barcelona no início do século XX, altura em que esta prática foi posta em causa e duramente condenada, uma vez que, como bem argumentaram os defensores, as razões esgrimidas contra tal prática deveriam se aplicar também aos depósitos bancários de moeda com reserva fracionária (lembrem-se as considerações que efetuamos no capítulo III).
[42] É curioso observar que nas diferentes crises bancárias, os banqueiros afetados protestam sempre, alegando que podem continuar a funcionar sem problema algum e restabelecer rapidamente a “solvência” e a confiança dos clientes, com um pouco de assistência de alguém (o estado ou o banco central).
[43] Este grave prejuízo provocado pelo banqueiros aos clientes que incentivam a “desfrutar” de novos empréstimos e a se envolverem em negócios que exijam financiamento bancário deveria, teoricamente, poder ser alegado em processos judiciais em que fosse exigida dos bancos a correspondente indenização pelos danos e prejuízos provocados, dessa forma, aos seus prestatários. Até agora estes processos não foram interpostos uma vez que a teoria econômica não permitia identificar claramente a origem e natureza dos danos causados. No entanto, atualmente, o avanço teórico já permite a utilização prática nos tribunais, de forma muito parecida à utilização dos avanços da biologia para facilitar declarações judiciais de paternidade que há poucos anos não eram possíveis
[44] No último capítulo deste livro analisaremos pormenorizadamente as vantagens comparativas do padrão-ouro clássico baseado num sistema bancário submetido ao Direito, ou seja, com um coeficiente de caixa de 100%.