CAPÍTULO 9 – SEGURANÇA E LIBERDADE
A sociedade inteira se terá convertido numa só fábrica e num só escritório, com igualdade de trabalho e igualdade deremuneração. – Lênin (1917)
Num país em que o único empregador é o estado, oposição significa morte lenta por inanição. O velho princípio “quem não trabalha não come” foi substituído por outro: “quem não obedece não come”. – Leon Trotsky (1937)
A segurança econômica, assim como a espúria “liberdade econômica”, e com mais justiça, é muitas vezes apresentada como condição indispensável da autêntica liberdade. Em certo sentido isso é ao mesmo tempo verdadeiro e importante. É raro encontrar independência de espírito ou força de caráter entre aqueles que não confiam na sua capacidade de abrir caminho pelo próprio esforço. Todavia, a ideia de segurança econômica não é menos vaga e ambígua do que a maioria dos outros conceitos nesse campo; e por isso, a aprovação geral à reivindicação de segurança pode tornar-se um perigo para a liberdade. Com efeito, quando a segurança é entendida num sentido absoluto, o empenho geral em conquistá-la, ao invés de possibilitar maior liberdade, torna-se a mais grave ameaça a esta.
Convém contrapor, de início, as duas espécies de segurança: a segurança limitada, que pode ser conquistada para todos e por conseguinte não constitui privilégio mas objeto de legítimas aspirações; e a segurança absoluta, que numa sociedade livre não pode ser conquistada para todos e que não deveria ser concedida como um privilégio – a não ser em certos casos especiais, como o dos juízes, em que a independência completa é de suprema importância. Essas duas espécies de segurança são: em primeiro lugar, a salvaguarda contra graves privações físicas, a certeza de que um mínimo, em termos de meios de sustento, será garantido a todos; e, em segundo lugar, a garantia de um certo padrão de vida, ou da situação relativa de uma pessoa ou um grupo de pessoas em relação a outras – ou, em poucas palavras, a segurança de uma renda mínima e a segurança da renda específica que se julga que cada um merece.
Veremos em breve que essa distinção coincide em grande parte com a distinção entre a segurança que pode ser concedida a todos, fora do âmbito do sistema de mercado e como suplemento ao que ele proporciona, e a segurança que só pode ser concedida a alguns e unicamente pelo controle ou a abolição do livre mercado. Não há razão para que, numa sociedade que atingiu um nível geral de riqueza como o da nossa, a primeira forma de segurança não seja garantida a todos sem que isso ponha em risco a liberdade geral. Determinar que padrão se deveria assegurar a todos é problema de difícil solução; em particular, é difícil decidir se aqueles que dependem da comunidade deveriam gozar indefinidamente as mesmas liberdades que os demais.1 O tratamento irrefletido dessas questões poderia criar problemas políticos graves e mesmo perigosos. Mas não há dúvida de que, no tocante a alimentação, roupas e habitação, é possível garantir a todos um mínimo suficiente para conservar a saúde e a capacidade de trabalho. Na realidade, uma parte considerável da população inglesa há muito conquistou essa espécie de segurança.
Tampouco se justifica que o estado deixe de auxiliar os indivíduos provendo a eventualidades comuns contra as quais, dada a sua natureza imprevisível, poucos se podem precaver de forma adequada. Nos casos em que a provisão de assistência normalmente não enfraquece nem o desejo de evitar tais calamidades nem o esforço de anular suas consequências (nas doenças e acidentes, por exemplo) – quando se trata, em suma, de riscos que podem ter cobertura de seguro -, é bastante justificável que o estado auxilie na organização de um esquema abrangente de previdência social. Os que desejam conservar o sistema de concorrência e os que pretendem substituí-lo por algo diferente poderão discordar quanto aos detalhes de tal esquema; por outro lado, sob o nome de previdência social, é possível introduzir medidas que contribuirão para tornar a concorrência bastante ineficaz. Em princípio, porém, não há incompatibilidade entre o estado oferecer maior segurança auxiliando na organização do sistema de previdência social e a preservação da liberdade individual. À mesma categoria pertence também o aumento de segurança proporcionado pelo estado na forma de assistência às vítimas de catástrofes naturais, como terremotos, inundações etc. Sempre que a ação pública é capaz de mitigar desastres dos quais o indivíduo não se pode defender e contra cujas consequências não pode precaver-se, tal ação deve, indubitavelmente, ser empreendida.
Há por fim um problema de suma importância: combater as flutuações gerais da atividade econômica e os surtos de desemprego em grande escala que costumam acompanhá-las. Esta é, por certo, uma das questões mais graves e prementes da nossa época. Mas, embora a sua solução requeira um cuidadoso planejamento, no bom sentido da palavra, não exige – ou, pelo menos, não precisa exigir – o tipo de planejamento que, segundo seus defensores, deve substituir o sistema de mercado. Muitos economistas, com efeito, esperam encontrar o recurso definitivo no campo da política monetária, o que não implicaria incompatibilidade sequer com o liberalismo do século XIX. Outros, é claro, acreditam que um êxito real só será obtido mediante a execução rigorosa de um vasto programa de obras públicas. Isso poderia provocar restrições muito mais graves na esfera da concorrência e, ao fazer experiências desse gênero, teremos de usar de extrema cautela para evitar que toda a atividade econômica venha a depender cada vez mais da alocação e do volume dos gastos governamentais. Mas não é esse o único meio, nem, na minha opinião, o mais promissor, de enfrentar a mais grave ameaça à segurança econômica. De qualquer modo, os esforços necessários a garantir a proteção contra tais flutuações não conduzem àquele planejamento que constitui tão grande ameaça à nossa liberdade.
O planejamento que exerce efeito tão insidioso sobre a liberdade é aquele que visa a uma segurança de outra espécie. É o planejamento que se destina a proteger indivíduos ou grupos contra a redução de suas rendas (redução que, embora imerecida, ocorre diariamente numa sociedade competitiva), contra perdas que impõem duras privações, sem justificação moral, e que, contudo, são inseparáveis do sistema de concorrência. A reivindicação desse tipo de segurança é, pois, um outro aspecto da exigência de uma justa remuneração, proporcional aos méritos subjetivos e não aos resultados objetivos do esforço individual. Essa espécie de segurança ou justiça não parece conciliável com a livre escolha da ocupação.
Em qualquer sistema no qual a distribuição dos indivíduos entre as várias ocupações e os diferentes setores da economia resulte da escolha individual, é necessário que a remuneração em tais setores corresponda à utilidade dos indivíduos para os outros membros da sociedade, ainda que essa utilidade não seja proporcional ao mérito subjetivo. Embora os resultados obtidos correspondam com frequência a esforços e intenções, isso não se aplica a qualquer forma de sociedade em todas as circunstâncias. Tal não sucederá, em particular, nos muitos casos em que a utilidade de algum ofício ou habilidade especial é modificada por acontecimentos imprevisíveis. Todos nós conhecemos a trágica situação do homem altamente treinado cuja especialidade, adquirida com esforço, perde de súbito todo o valor por causa de alguma invenção muito benéfica para o restante da sociedade. O último século está repleto de exemplos dessa espécie, alguns deles atingindo ao mesmo tempo centenas de milhares de pessoas.
O fato de um homem vir a sofrer grande redução dos rendimentos e amarga frustração de todas as suas esperanças sem por isso ter sido responsável, e apesar de sua dedicação e de uma excepcional habilidade, indubitavelmente ofende o nosso senso de justiça. As reivindicações das pessoas assim prejudicadas de que o estado intervenha em seu favor a fim de salvaguardar-lhes as legítimas expectativas conquistarão por certo a simpatia e o apoio popular. A aprovação geral de tais reivindicações fez com que, na maioria dos países, os governos decidissem agir, não só no sentido de amparar as possíveis vítimas de tais dificuldades e privações, mas também no de assegurar-lhes o recebimento de seus rendimentos anteriores e protegê-las contra as vicissitudes do mercado.2
Contudo, para que a escolha das ocupações seja livre, a garantia de uma determinada renda não pode ser concedida a todos. E se for concedida a alguns privilegiados, haverá prejuízo para outros, cuja segurança será, ipso facto, diminuída. É fácil demonstrar que a garantia de uma renda invariável só poderá ser concedida a todos pela abolição total da liberdade de escolha da profissão. E contudo, embora essa garantia geral de expectativas legítimas seja muitas vezes considerada o ideal a ser visado, não é perseguida com afinco. O que ocorre constantemente é a concessão parcial dessa espécie de segurança a este ou àquele grupo, do que decorre um aumento constante da insegurança daqueles sobre os quais recai o ônus. Não admira que, em consequência, aumente também de modo contínuo o valor atribuído ao privilégio da segurança, tornando-se mais e mais premente a sua exigência, até que por fim nenhum preço, nem o da própria liberdade, pareça excessivo.
Se se protegessem de imerecidas perdas aqueles cuja utilidade é reduzida por circunstâncias que eles mesmos não poderiam controlar ou prever, e se, por outro lado, se impedisse de auferir vantagens imerecidas àqueles cuja utilidade aumentou em função de circunstâncias também incontroláveis e imprevisíveis, a remuneração deixaria em breve de ter qualquer relação com a verdadeira utilidade. Passaria a depender da opinião de uma autoridade sobre o que cada pessoa deveria ter feito ou previsto, e sobre a validade de suas intenções. Tais decisões não deixariam de ser, em grande medida, arbitrárias. Como consequência necessária, a aplicação do princípio faria com que pessoas que realizam o mesmo trabalho recebessem remunerações diferentes. As diferenças de remuneração deixariam, assim, de oferecer um estímulo adequado para que os indivíduos empreendessem as mudanças socialmente desejáveis, não sendo sequer possível aos interessados decidir se determinada mudança compensaria o esforço despendido para levá-la a efeito.
Se, porém, as alterações na distribuição dos indivíduos entre as várias ocupações – necessidade constante em qualquer sociedade – já não se podem produzir mediante “recompensas” e “penalidades” expressas em dinheiro (as quais não têm nenhuma relação necessária com o mérito subjetivo), deverão ser efetuadas por meio de ordens diretas. Quando a renda de uma pessoa é garantida, não se lhe pode permitir que permaneça no emprego unicamente porque este lhe agrada, nem que escolha qualquer outro pelo qual tenha preferência. Como o ganho ou a perda não dependem do fato de o indivíduo optar por permanecer ou não no mesmo emprego, a escolha terá de ser feita por aqueles que controlam a distribuição da renda disponível.
A questão dos estímulos adequados, que surge nesse contexto, é em geral analisada como se se tratasse basicamente de as pessoas estarem ou não dispostas a se esforçarem ao máximo. Mas, embora isso tenha a sua importância, não constitui todo o problema, nem mesmo o seu aspecto mais relevante. Não se trata apenas de fazer com que o esforço seja compensador para que cada um dê o melhor de si. O mais importante é que, se quisermos deixar a escolha ao indivíduo, se se espera que ele esteja em condições de julgar o que tem de ser feito, é preciso proporcionar-lhe um padrão simples de julgamento que lhe permita medir a importância social das diferentes ocupações. Mesmo com a maior boa vontade, seria impossível a qualquer pessoa fazer uma escolha inteligente entre várias alternativas, se as vantagens que estas oferecem não tivessem relação com sua utilidade social. Para saber se, em resultado de certa mudança, um indivíduo deveria abandonar uma profissão e um ambiente ao qual se afeiçoou e trocá-los por outros, é necessário que a alteração dos valores relativos dessas ocupações para a sociedade seja expressa nas remunerações que oferecem.
O problema reveste-se de importância ainda maior porque, no mundo que conhecemos, torna-se improvável que um indivíduo dê o melhor de si por muito tempo, a menos que seu interesse esteja diretamente envolvido. A maioria das pessoas necessita, em geral, de alguma pressão externa para se esforçar ao máximo. Assim, o problema dos incentivos é bastante real, tanto na esfera do trabalho comum como na das atividades gerenciais. A aplicação da engenharia social a toda uma nação – e é isto o que significa planejamento – “gera problemas de disciplina difíceis de resolver”, como o percebeu com clareza um técnico americano com grande experiência em planejamento governamental.
Para realizar um trabalho de organização [explica ele], é necessário que este se desenvolva paralelamente a uma área bastante vasta de atividades econômicas não planejadas. Deve haver uma reserva na qual se possam buscar trabalhadores, e quando um trabalhador é despedido deve desaparecer daquele posto e da folha de pagamentos. Na ausência dessa reserva livre de mão-de-obra, não se poderá manter a disciplina sem castigos corporais, como no trabalho escravo.3
No campo do trabalho gerencial, o problema das sanções contra a negligência surge sob forma diferente mas não menos grave. Como se observou com propriedade, enquanto na economia baseada na concorrência o último recurso é o juiz, numa economia dirigida a sanção última é o verdugo.4 O poder que será preciso conferir ao gerente de uma fábrica será sempre considerável. Mas, como no caso do trabalhador, a posição e a renda do administrador num sistema planificado também não poderão depender somente do êxito ou do fracasso das tarefas sob sua responsabilidade. Visto que não lhe cabem nem o risco nem os lucros, o fator decisivo não será o seu julgamento pessoal, mas a conformidade de suas ações a uma regra estabelecida. Um engano que ele “deveria” ter evitado não é assunto apenas seu: é um crime contra a comunidade e como tal deve ser encarado. Enquanto se mantiver no caminho seguro do dever objetivamente determinado, sua renda estará mais garantida que a do empresário capitalista, mas o perigo que o ameça em caso de fracasso é pior que o da bancarrota. Poderá gozar de garantia econômica enquanto satisfizer seus superiores, mas essa garantia lhe custará a insegurança com relação à liberdade e à vida.
O conflito com o qual temos que lidar é, sem dúvida, um conflito fundamental entre dois tipos irreconciliáveis de organização social que, de acordo com as formas mais características sob as quais se apresentam, foram denominados frequentemente de sociedade comercial e sociedade militar. Talvez os termos não sejam adequados, por ressaltarem aspectos não-essenciais, tornando difícil perceber que estamos diante de um dilema real, sem uma terceira alternativa. Ou tanto a escolha como o risco recaem sobre o indivíduo, ou ele é eximido de ambos. Na realidade, o exército, entre as instituições conhecidas, é o que mais se aproxima do segundo tipo de organização, onde tanto o trabalho como o trabalhador são designados pela autoridade e onde, se os meios disponíveis escassearem, todos serão submetidos ao mesmo regime de ração reduzida. Esse é o único sistema que pode conceder ao indivíduo plena segurança econômica; mediante sua extensão a toda a sociedade, essa segurança poderá ser proporcionada a todos. Tal segurança é, contudo, inseparável das restrições à liberdade e da ordem hierárquica da vida militar – é a segurança dos quartéis.
É possível, naturalmente, com base nesse princípio, organizar alguns setores de uma sociedade livre quanto aos demais aspectos, e não há por que essa forma de vida, com as restrições que sem dúvida traz à liberdade individual, não seja facultada aos que a preferem. Com efeito, em certa medida o trabalho militarizado voluntário poderia constituir para o estado a melhor maneira de proporcionar a certeza de um emprego e de uma renda mínima para todos. Se as propostas desse gênero se revelaram tão pouco aceitáveis até agora é porque, para renunciarem à liberdade integral em troca de segurança, as pessoas dispostas a abrir mão dessa liberdade exigiram sempre que esta fosse também subtraída àqueles não inclinados a abandoná-la. É difícil justificar tal exigência.
Todavia, o tipo militar de organização que conhecemos só nos dá uma ideia muito inadequada do que viria a ser se fosse aplicado a toda a sociedade. Enquanto apenas uma parte da sociedade é organizada em moldes militares, a falta de liberdade dos membros da organização militar é mitigada pelo fato de ainda existir uma esfera livre para onde se poderão transferir caso as restrições se tornem demasiado penosas. Para termos uma ideia do que seria a sociedade se fosse organizada como uma única e imensa fábrica de acordo com o ideal que tem seduzido tantos socialistas, basta-nos pensar na antiga Esparta ou considerar a moderna Alemanha que, após caminhar nesse sentido durante duas ou três gerações, acha-se agora tão próxima dessa meta.
Numa sociedade afeita à liberdade, não é provável que muitos se disponham a comprar a segurança a tal preço. Mas a política governamental hoje adotada em toda parte, de conceder o privilégio da segurança ora a este grupo, ora àquele, vai rapidamente criando condições em que o anseio de segurança tende a sobrepujar o amor à liberdade. Isso porque, cada vez que se confere segurança completa a um grupo, aumenta a insegurança dos demais. Se garantirmos a alguns uma fatia fixa de um bolo de tamanho variável, a parte deixada aos outros sofrerá maior oscilação, proporcionalmente ao tamanho dotodo. E o aspecto essencial da segurança oferecida pelo sistema de concorrência – a grande variedade de oportunidades – torna-se cada vez mais restrito.
No sistema de mercado, a segurança só pode ser concedida a determinados grupos mediante o gênero de planejamento conhecido como “restricionismo” (no qual, entretanto, está incluído quase todo o planejamento posto em prática nos nossos dias). O “controle”, isto é, a limitação da produção de modo que os preços assegurem um ganho “adequado”, é o único meio pelo qual se pode garantir um certo rendimento aos produtores numa economia de mercado. Isso, porém, envolve necessariamente uma redução de oportunidades para os demais. Para que o produtor, seja ele dono de empresa ou operário, receba proteção contra a concorrência de preços mais baixos, outros, em pior situação, serão impedidos de participar da prosperidade relativamente maior das indústrias controladas. Qualquer restrição à liberdade de ingresso numa profissão reduz a segurança de todos os que se acham fora dela. E, à medida que aumenta o número daqueles cujo rendimento é assegurado dessa forma, restringe-se o campo das oportunidades alternativas abertas aos que sofrem uma perda de rendimento – enquanto, para os que são atingidos por qualquer mudança, diminui do mesmo modo a possibilidade de evitar uma redução fatal da sua renda. E se, como vem acontecendo com frequência, em cada categoria em que ocorre uma melhora de condições permite-se que seus membros excluam os demais para garantir a si mesmos o ganho integral sob a forma de salários ou lucros mais elevados, os que exercem profissões cuja demanda diminuiu não têm para onde se voltar, e a cada mudança produz-se grande número de desempregados. Não há dúvida de que foi em grande parte por causa da busca de segurança por esses meios nas últimas décadas que aumentou a tal ponto o desemprego e, por conseguinte, a insegurança para vastos setores da população.
Na Inglaterra, tais restrições – em especial as que influem sobre as camadas médias da sociedade – só assumiram grandes proporções em época relativamente recente, e mal podemos ainda compreender-lhes todas as consequências. Numa sociedade em que a mobilidade ficou tão reduzida como resultado dessas restrições, é de absoluta falta de perspectiva a situação daqueles que se encontram fora do âmbito das ocupações protegidas, e um abismo os separa dos privilegiados possuidores de empregos a quem a proteção contra a concorrência tornou desnecessário fazer concessões para dar lugar aos que estão de fora. Tal situação, na verdade, só pode ser avaliada por aqueles que a viveram. Não se trata de os privilegiados cederem o seu lugar, mas apenas de partilharem a desventura comum mediante certa redução da própria renda, ou, muitas vezes, simplesmente mediante algum sacrifício das suas perspectivas de melhora. A proteção do estado ao seu “padrão de vida”, ao “preço razoável” ou à “renda profissional”, que julgam um direito, impede que isso aconteça.
Em consequência, em vez de preços, salários e rendimentos individuais oscilarem, são agora o emprego e a produção que ficam sujeitos a violentas flutuações. Nunca houve pior e mais cruel exploração de uma classe por outra do que a exercida sobre os membros mais fracos ou menos afortunados de uma categoria produtora pelos que já desfrutam de posições estáveis, e isso foi possibilitado pela “regulamentação” da concorrência. Poucas coisas têm tido efeito tão pernicioso quanto o ideal da “estabilização” de certos preços (ou salários), pois, embora ela garanta a renda de alguns, torna cada vez mais precária a posição dos demais.
Assim, quanto mais nos esforçamos para proporcionar completa segurança interferindo no sistema de mercado, tanto maior se torna a insegurança; e, o que é pior, maior o contraste entre a segurança que recebem os privilegiados e a crescente insegurança dos menos favorecidos. E quanto mais a segurança se converte num privilégio, e quanto maior o perigo para os que dela são excluídos, mais será ela valorizada, À medida que o número dos privilegiados aumenta, e com ele o hiato entre a sua segurança e a insegurança dos demais, vai surgindo uma escala completamente nova de valores sociais. Já não é a independência, mas a segurança, que confere distinção e status; o que faz de um homem um “bom partido” é antes o direito a uma pensão garantida do que a confiança em sua capacidade – ao passo que a insegurança se converte numa terrível condição de pária, à qual estão condenados para sempre aqueles a quem na juventude foi negado ingresso no porto seguro de uma posição assalariada.
Esse empenho geral em conquistar a segurança por meio de medidas restritivas, tolerado ou apoiado pelo estado, produziu com o correr do tempo uma transformação progressiva da sociedade – transformação na qual, como em tantas outras coisas, a Alemanha se pôs à frente dos outros países, que lhe seguiram o exemplo. Essa evolução foi acelerada por outro efeito das doutrinas socialistas: o deliberado menosprezo de todas as atividades que envolvem risco econômico e a condenação moral dos lucros que compensam os riscos assumidos, mas que só poucos podem obter. Não podemos censurar os nossos jovens quando preferem o emprego seguro e assalariado ao risco do livre empreendimento, pois desde a mais tenra idade ouviram falar daquele como de uma ocupação superior, mais altruísta e mais desinteressada. A geração de hoje cresceu num mundo em que, na escola e na imprensa, o espírito da livre iniciativa é apresentado como indigno e o lucro como imoral, onde se considera uma exploração dar emprego a cem pessoas, ao passo que chefiar o mesmo número de funcionários públicos é uma ocupação honrosa. As pessoas mais velhas poderão considerar exagerada essa imagem da situação atual, mas a experiência diária do professor de universidade não deixa dúvidas de que, como resultado da propaganda anticapitalista, a alteração dos valores já está muito adiantada em relação às mudanças que até agora se têm verificado nas instituições deste país. Resta ver se, transformando as nossas instituições para atender às novas reivindicações, não destruiremos inadvertidamente valores que ainda reputamos superiores.
A mudança estrutural da sociedade, implícita na vitória do ideal de segurança sobre o de independência, é ilustrada com clareza por uma comparação do que, dez ou vinte anos atrás, ainda se podia definir como o tipo inglês e alemão de sociedade. Por maior que possa ter sido a influência do exército na Alemanha, é grave erro atribuir sobretudo a essa influência o que os ingleses chamavam o caráter “militar” da sociedade germânica. A diferença era muito mais profunda do que seria possível explicar com base nesse argumento; os atributos peculiares à sociedade alemã manifestavam-se tanto em ambientes nos quais a influência propriamente militar era insignificante, quanto naqueles em que era bastante acentuada. Oque conferia à sociedade germânica seu caráter peculiar não era tanto o fato de que ali havia de modo quase permanente uma parcela maior da população organizada para a guerra do que nos demais países; era o fato de o mesmo tipo de organização ser usado para muitos outros propósitos. Na Alemanha, mais do que em qualquer outra nação, grande parte da vida civil era deliberadamente organizada de cima para baixo e considerável número de cidadãos não se julgavam independentes, mas funcionários do governo.
Havia muito o país se tornara – e disso se orgulhavam os alemães – um Beamtenstaat, onde não só na administração civil propriamente dita, mas também em quase todas as esferas, o rendimento e a posição social eram determinados e garantidos por alguma autoridade.
Não seria fácil extirpar pela força o espírito da liberdade em qualquer país. No entanto, seria difícil um povo poder fazer face ao processo pelo qual esse espírito foi aos poucos sufocado na Alemanha. Numa sociedade em que o indivíduo conquista posição e honras quase exclusivamente em função de ser um servidor assalariado do governo; em que o cumprimento do dever prescrito é considerado mais louvável do que a escolha do próprio campo de atividade; em que todas as ocupações que não conferem um lugar na hierarquia oficial ou o direito a um rendimento fixo são julgadas inferiores e até certo ponto aviltantes – seria demais esperar que a maioria prefira por muito tempo a liberdade à segurança. E quando só se pode optar entre a segurança numa posição de dependência e a extrema precariedade numa situação em que tanto o fracasso com o êxito são desprezados, poucos resistirão à tentação da segurança ao preço da liberdade. Tendo-se chegado a esse ponto, a liberdade torna-se quase um objeto de escárnio, pois só pode ser alcançada com o sacrifício de grande parte das boas coisas da vida. Nessas condições, não surpreende que um número cada vez maior de pessoas se convença de que sem segurança econômica a liberdade “não vale a pena” e se disponha a sacrificar esta em troca daquela. É inquietante, porém, constatar que o prof. Harold Laski emprega, nesse país, exatamente o mesmo argumento que contribuiu, talvez mais do que qualquer outro, para levar o povo alemão a sacrificar a sua liberdade.5
Não há dúvida de que a segurança adequada contra as privações, bem como a redução das causas evitáveis do fracasso e do descontentamento que ele acarreta, deverão constituir objetivos importantes da política de governo. Mas, para que essas tentativas sejam bem-sucedidas e não destruam a liberdade individual, a segurança deve ser proporcionada paralelamente ao mercado, deixando que a concorrência funcione sem obstáculos. Certa medida de segurança é indispensável à preservação da liberdade, porque a maioria dos homens só aceita de bom grado o risco inevitavelmente implícito na liberdade se este não for excessivo. Mas, embora nunca devamos perder de vista essa verdade, nada é mais funesto do que o hábito, hoje comum entre os líderes intelectuais, de exaltar a segurança em detrimento da liberdade. Urge reaprendermos a encarar o fato de que a liberdade tem o seu preço e de que, como indivíduos, devemos estar prontos a fazer grandes sacrifícios materiais a fim de conservá-la. Para tanto, faz-se mister readquirir a convicção em que se tem baseado o regime de liberdade nos países anglo-saxônios, e que Benjamin Franklin expressou numa frase aplicável a todos nós como indivíduos não menos que como nações: “aqueles que se dispõem a renunciar à liberdade essencial em troca de uma pequena segurança temporária não merecem liberdade nem segurança”.
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NOTAS AO CAPÍTULO 9
1 – Graves problemas de relações internacionais, cuja importância não deve ser descartada, podem surgir se a mera cidadania num país confere o direito a um padrão de vida mais alto que em outros.
2- O prof. W. H. Hutt, num livro que merece estudo cuidadoso (Plan for Reconstruction, 1943), apresenta sugestões muito interessantes sobre as maneiras por que se poderiam mitigar tais dificuldades numa sociedade liberal.
3 – Coyle, D. C. The Twilight of National Planning. Harpers’ Magazine, out. 1935, p. 558.
4 – Roepke, W. Die Gesellchaftskrisis der Gegenwart, Zurique, 1942, p. 172.
5 – Laski, H. J. Liberty in the Modern State. Pclican, 1937, p. 51: “Aqueles que conhecem a vida cotidiana dos pobres, sempre obcecada pelo pressentimento de um desastre iminente, seu anseio desesperado de uma beleza que sempre lhes foge, compreenderão que, sem segurança econômica, não vale a pena ter liberdade”.