CAPÍTULO 12 – AS RAÍZES SOCIALISTAS DO NAZISMO
Todas as forças antiliberais estão se unindo contra tudo que é liberal. – A. Moeller van den Bruck
É um engano comum considerar o nacional-socialismo uma simples revolta contra a razão, um movimento irracional sem antecedentes intelectuais. Se assim fosse, constituiria um perigo bem menor. Nada mais longe da verdade, porém, ou mais ilusório. As doutrinas do nacional-socialismo representam o ponto culminante de uma longa evolução de ideias, da qual participaram pensadores cuja influência se fez sentir muito além das fronteiras da Alemanha. Seja qual for nossa opinião sobre as premissas em que se basearam, não podemos negar que os criadores da nova doutrina eram escritores de peso, que deixaram a marca de suas ideias em todo o pensamento europeu. O sistema se desenvolveu com coerência implacável. Uma vez aceitas as suas premissas, não se pode fugir à sua lógica. Trata-se simplesmente do coletivismo libertado de todos os vestígios de uma tradição individualista que pudessem impedir-lhe a realização.
Embora os pensadores alemães tenham liderado o processo, de modo algum se pode dizer que foram os únicos a trazer-lhe contribuições. Thomas Carlyle e Houston Stewart Chamberlain, Augusto Comte e Georges Sorel distinguiram-se tanto quanto os alemães no desenvolvimento da doutrina nacional-socialista. Dessa constante evolução dentro da Alemanha, fez há pouco uma excelente exposição R. D. Butler em seu estudoThe Roots of National Socialism (As Raízes do Nacional-Socialismo). Mas, embora seja um tanto alarmante verificar, pela leitura da obra de Butler, a permanência dessa doutrina naquele país durante cento e cinquenta anos, manifestando-se reiteradamente e sob forma invariável, é fácil exagerar a importância que tais ideias tinham na Alemanha antes de 1914. Constituíam apenas uma corrente de pensamento entre muitas, numa sociedade que, na época, apresentava, talvez, maior variedade de opiniões que qualquer outra. E eram, em geral, ideias aceitas apenas por uma pequena minoria e tão desprezadas pela maioria na Alemanha como nos demais países.
Por que, então, essas ideias, sustentadas por uma minoria reacionária, vieram a conquistar o apoio da grande maioria do povo e de praticamente todos os jovens alemães? Não foram apenas a derrota, o sofrimento e a onda de nacionalismo que as conduziram ao sucesso. Tampouco, como muitos querem acreditar, foi o seu êxito ocasionado por uma reação do capitalismo contra o avanço do socialismo. Ao contrário, o apoio a essas ideias veio precisamente do lado socialista. Não foi, por certo, a burguesia, mas antes a ausência de uma burguesia forte, que favoreceu sua escalada ao poder.
As doutrinas pelas quais, na geração anterior, as lideranças alemãs tinham-se pautado não se opunham aos elementos socialistas do marxismo e sim aos elementos liberais que este continha – seu internacionalismo e sua democracia. Ao se evidenciar cada vez mais que esses elementos eram justamente os que constituíam um obstáculo à realização do socialismo, os socialistas da esquerda aproximaram-se cada vez mais dos da direita. Foi a união das forças anticapitalistas da esquerda e da direita, a fusão do socialismo radical e do socialismo conservador, que destruiu na Alemanha tudo quanto ali havia de liberal.
Foi estreita, desde o início, a relação entre o socialismo e o nacionalismo naquele país. É significativo que os mais ilustres precursores do nacional-socialismo – Fichte, Rodbertus e Lassalle – sejam reconhecidos, ao mesmo tempo, como fundadores do socialismo. Enquanto o socialismo teórico, em sua forma marxista, dirigia o movimento trabalhista alemão, o elemento autoritário e nacionalista recuou durante algum tempo para o segundo plano. Isso não durou muito, contudo.1 De 1914 em diante, das fileiras do socialismo marxista foram surgindo doutrinadores que arrebanharam para o nacional-socialismo, não os conservadores e os reacionários, mas os trabalhadores e a juventude idealista. Foi só a partir daí que a corrente nacional-socialista se projetou, transformando-se em pouco tempo na doutrina hitlerista. A histeria de guerra de 1914 que, por causa da derrota alemã, nunca se extinguiu por completo, é o ponto inicial dos desdobramentos mais recentes que produziram o nacional-socialismo, e foi em grande parte à colaboração dos socialistas da velha escola que se deveu a sua ascensão durante esse período.
O primeiro, e sob certos aspectos o mais característico representante desse processo de mudança, é talvez o prof. Werner Sombart, cuja obra famosa Händler und Helden (Comerciantes e heróis) foi publicada em 1915. Sombart a princípio era marxista e ainda em 1909 podia afirmar com orgulho que dedicara a maior parte da sua existência a lutar pelas ideias de Karl Marx. Empenhara-se ao máximo em difundir na Alemanha ideias socialistas e formas variadas de aversão ao capitalismo. E, se ali o pensamento se impregnou de elementos marxistas como em nenhum outro país antes da revolução russa, isso se deveu em grande parte a Sombart. Em certa época, ele foi considerado o maior representante da perseguida intelectualidade socialista, ficando impossibilitado de ocupar uma cátedra universitária por causa das suas opiniões radicais. E mesmo depois da Primeira Guerra Mundial, a influência exercida dentro e fora da Alemanha por sua obra de historiador, que continuava a apresentar uma abordagem marxista apesar de ele ter abandonado o marxismo na política, foi das mais amplas e fez-se notar de modo especial nos escritos de muitos planejadores ingleses e americanos.
Em seu livro sobre a guerra, esse velho socialista saudou a “guerra alemã”, que considerava o inevitável conflito entre a civilização comercial da Inglaterra e a cultura heroica da Alemanha. Não tem limites o seu desprezo pelas ideias “mercantis” do povo inglês, que havia perdido todo o instinto guerreiro. Nada é mais desprezível aos seus olhos do que a busca generalizada da felicidade individual; e o que ele define como a máxima suprema da moral inglesa, “sê justo para que vivas bem e possas prolongar os teus dias sobre a terra”, é na sua opinião “a mais infame das máximas jamais formuladas por um espírito mercantil”. Ressalta a “concepção germânica do estado”, formulada por Fichte, Lassale e Rodbertus, segundo a qual o estado não é fundado ou formado por indivíduos; tampouco constitui um agregado de indivíduos ou tem por finalidade servir a qualquer interesse individual. É um Volksgemeinschaft (N. do R.: literalmente, “comunidade do povo”) em que os indivíduos não têm direitos mas apenas deveres.
Para Sombart, as reivindicações individuais são sempre decorrência do espírito mercantil. “As ideias de 1789” – Liberdade, Igualdade, Fraternidade – são concepções características de sociedade baseadas no comércio, sem outra finalidade que a de garantir certas vantagens ao indivíduo.
Segundo ele, todos os verdadeiros ideais alemães de uma vida heroica estavam, antes de 1914, ameaçados de desaparecer por causa do avanço contínuo do pensamento mercantil inglês, do conforto inglês, do esporte inglês. Não só o povo inglês se tornara inteiramente corrupto, e cada membro dos sindicatos acabara “mergulhado no conforto”, como também havia começado a contagiar os outros povos. Só a guerra viera lembrar aos alemães que eles eram na realidade um povo de guerreiros, um povo no seio do qual todas as atividades, e em particular as econômicas, estavam subordinadas a objetivos militares. Sombart sabia que os outros povos desprezavam os alemães porque para estes a guerra era sagrada – mas regozijava-se com isso.
Considerar a guerra algo desumano e insensato é um produto da mentalidade mercantil. Há uma vida superior à vida individual – a vida do povo e do estado – e a finalidade do indivíduo é sacrificar-se por essa vida superior. A guerra é, para Sombart, a consumação da perspectiva heroica da vida e a guerra contra a Inglaterra representa a luta contra o ideal oposto, o ideal mercantil da liberdade individual e do conforto inglês que, para ele. encontra sua expressão mais desprezível nos aparelhos de barbear encontrados nas trincheiras inglesas.
Se as críticas violentas de Sombart pareceram, na época, excessivas mesmo a muitos alemães, outro professor alemão veio a formular ideias mais ou menos idênticas, sob uma forma mais moderada e erudita, e por isso mesmo mais eficaz. O prof. Johann Plenge era tão grande autoridade em Marx quanto Sombart. Seu livro Marx und Hegel assinala o início do moderno renascimento hegeliano entre os pensadores marxistas e não há dúvidas quanto ao caráter genuinamente socialista das convicções que lhe serviram de ponto de partida. Entre suas numerosas publicações durante a guerra, a mais importante é um livrinho muito discutido na época, e que tem o significativo título 1789 e 1914: os Anos Simbólicos na História do Espírito Político, É consagrado ao conflito entre as “Ideias de 1789”, o ideal da liberdade, e as “Ideias de 1914”, o ideal da organização.
A organização é para ele a essência do socialismo, como o é para todos os socialistas cuja doutrina deriva de uma aplicação ingênua dos ideais científicos aos problemas da sociedade. Constituiu, como ele acentua com razão, a raiz do movimento socialista quando este nasceu na França, no início do século XIX. Marx e o marxismo traíram essa ideia básica do socialismo com sua adesão fanática e utópica à ideia abstrata de liberdade. Somente agora a ideia de organização estava voltando a assumir o seu legítimo papel nos demais países, como o atesta a obra de H. G. Wells (cujo Future in America exerceu profunda influência sobre Plenge, que considera Wells uma das maiores figuras do socialismo moderno), mas em especial na Alemanha, onde ela é melhor compreendida e está mais plenamente realizada. A guerra entre a Inglaterra e a Alemanha é, portanto, na realidade, um conflito entre dois princípios opostos. A “guerra econômica mundial” é a terceira grande fase da luta espiritual na história moderna. Tem a mesma importância que a reforma e a revolução burguesa liberal. É a luta pela vitória das novas forças nascidas do progresso da vida econômica do século XIX: o socialismo e a organização.
Porque, na esfera das ideias, a Alemanha era o mais convicto expoente de todos os sonhos socialistas, e na esfera da realidade, o poderoso arquiteto do sistema econômico mais altamente organizado. Em nós vive o século XX. Seja qual for o fim da guerra, somos um povo exemplar. Nossas ideias determinarão os objetivos da vida humana. A História assiste atualmente a um colossal espetáculo: conosco, um novo e grande ideal de vida avança rumo à vitória, enquanto ao mesmo tempo, na Inglaterra, um dos princípios históricos mundiais entra em colapso final.
A economia de guerra criada na Alemanha de 1914
é o primeiro passo na construção de uma sociedade socialista e seu espírito é a primeira manifestação ativa, e não apenas reivindicatória, de um espírito socialista. As necessidades da guerra firmaram a concepção socialista na vida econômica alemã, e assim a defesa da nossa nação criou para a humanidade a ideia de 1914, a ideia da organização alemã, a comunidade do povo (Volksgemeinschaft) nacional-socialista. . . . Sem que nos apercebêssemos disso, toda a nossa vida política, no estado e na economia, alçou-se a um plano superior. O estado e a vida econômica constituem uma nova unidade. O senso de responsabilidade econômica que caracteriza o trabalho do servidor público impregna toda a atividade privada. A nova constituição corporativa da vida econômica alemã, que o prof. Plenge admite não estar ainda madura nem completa, é a mais alta forma de vida do estado que já se conheceu na terra.
No início, o prof. Plenge ainda esperava conciliar os ideais de liberdade e de organização, embora em grande parte mediante a submissão completa, porém voluntária, do indivíduo ao todo. Mas esses vestígios de ideias liberais logo desaparecem das suas obras. Por volta de 1918, consumara-se na sua mente a união entre o socialismo e a inexorável política de poder. Pouco antes do fim da guerra, dirigia ele esta exortação aos seus compatriotas no periódico socialista Die Glocke:
já é tempo de reconhecermos que o socialismo deve ser uma política de poder, porque resume-se em organização. O socialismo deve conquistar o poder, nunca destruí-lo às cegas. E a questão mais importante e crítica para o socialismo em tempo de guerra entre nações não pode deixar de ser esta: qual desses povos é preeminentemente chamado ao poder por ser o líder exemplar na organização dos povos?
E prenunciava todas as ideias que acabariam por justificar a nova ordem de Hitler:
Do ponto de vista do socialismo, que consiste em organização, acaso o direito absoluto de autodeterminação dos povos não equivale ao direito de anarquia econômica individualista? Estaremos dispostos a conceder inteira autodeterminação ao indivíduo na vida econômica? O socialismo coerente só pode conceder ao povo o direito de incorporação de acordo com a distribuição real de forças historicamente determinadas.
Os ideais expressos por Plenge com tanta clareza gozavam de especial aceitação em certos círculos de cientistas e engenheiros alemães, onde talvez se tenham originado. Como o exigem agora com tanta veemência os seus colegas ingleses e norte-americanos, clamavam pela organização central planejada de todos os aspectos da vida. Entre aqueles cientistas, destacava-se o famoso químico Wilhelm Ostwald, que conquistou certa celebridade por seus pronunciamentos sobre a questão. Ostwald teria declarado publicamente:
A Alemanha quer organizar a Europa, que até hoje carece de organização. Vou explicar-lhes agora o grande segredo da Alemanha: nós, ou talvez a raça alemã, descobrimos a importância da organização. Enquanto os outros povos ainda vivem sob o regime do individualismo, nós já atingimos o regime da organização.
Ideias muito semelhantes a estas eram correntes nos escritórios do ditador alemão das matérias-primas, Walter Rathenau, que teria ficado horrorizado se percebesse as consequências de suas concepções econômicas totalitárias, mas que, no entanto, merece lugar de destaque numa história mais completa da evolução do pensamento nazista.
Com suas obras, Rathenau provavelmente moldou, mais que qualquer outro, as ideias econômicas da geração que cresceu na Alemanha durante a Primeira Guerra Mundial e nos anos subsequentes. Alguns dos seus colaboradores mais íntimos formariam mais tarde a espinha dorsal da administração do plano quinquenal do Goering. Muito semelhantes eram também os ensinamentos de um outro ex-marxista, Friedrich Naumann, cuja obra Mitteleuropa foi talvez o livro da época da guerra que maior circulação alcançou na Alemanha.1Caberia, porém, a um ativo político socialista, pertencente à ala esquerda do partido social-democrata no Reichstag, desenvolver essas ideias da maneira mais completa e dar-lhes ampla divulgação. Paul Lensch, em livros anteriores, já descrevera a guerra como “a fuga da burguesia inglesa ante o avanço do socialismo”, ressaltando quão diferentes eram o ideal socialista de liberdade e a concepção inglesa. Mas somente em seu terceiro livro sobre a guerra, Três Anos de Revolução Mundial (de todos o de maior sucesso), suas ideias características, sob a influência de Plenge, alcançariam pleno desenvolvimento.3 Lensch baseia-se num relato histórico interessante, e sob muitos aspectos exato, de como o sistema protecionista adotado por Bismarck tornara possível na Alemanha uma evolução no sentido da concentração industrial e da cartelização que, segundo a sua ótica marxista, representava um estágio superior do desenvolvimento industrial.
Como consequência da decisão de Bismarck em 1879, a Alemanha assumiu um papel revolucionário, isto é, o papel de um estado que ocupava em relação ao resto do mundo a posição de representante de um sistema econômico superior e mais avançado. Tendo compreendido isso, deveríamos perceber que na presente revolução mundial a Alemanha representa o lado revolucionário e sua grande antagonista, a Inglaterra, o lado contrarrevolucionário. Isso prova quão pouco importa a constituição de um país, seja ela liberal e republicana ou monárquica e autocrática, para que esse país seja considerado liberal ou não, do ponto de vista do desenvolvimento histórico. Ou, em termos mais claros, nossa concepção de liberalismo, democracia etc, deriva da filosofia do individualismo inglês, segundo a qual um estado com um governo fraco é um estado liberal, e toda restrição a liberdade do indivíduo é encarada como um produto da autocracia e do militarismo.
Na Alemanha, “designada pela história” para representar essa forma superior de vida econômica,
a luta pelo socialismo foi sobremodo simplificada, pois nesse país todos os requisitos do socialismo já se achavam estabelecidos. Portanto, era necessariamente de vital interesse para qualquer partido socialista que a Alemanha triunfasse sobre os seus inimigos, para poder assim cumprir sua missão histórica de revolucionar o mundo. É por isso que a guerra da Entente contra a Alemanha se assemelhava a uma tentativa da pequena burguesia da época pré-capitalista de impedir sua própria decadência. A organização do capital [continua Lensch] iniciada inconscientemente antes da guerra, e prosseguindo de modo consciente no decorrer desta, continuará a desenvolver-se de forma sistemática depois da guerra – isso, não pelo desejo de desenvolver a técnica de organização, e tampouco porque o socialismo tenha sido reconhecido como um princípio superior de desenvolvimento econômico.
As classes que constituem hoje, na prática, as pioneiras do socialismo, são, na teoria, as suas inimigas confessas, ou, em todo caso, o eram até há bem pouco. O socialismo está próximo, e, de certo modo, já chegou, visto que não podemos mais viver sem ele.
Os únicos que ainda se opõem a essas tendências são os liberais.
Essa classe de indivíduos, que inconscientemente raciocina segundo padrões ingleses, abrange toda a burguesia alemã de formação acadêmica. Seus conceitos políticos de “liberdade” e “direitos civis”, de constitucionalismo e parlamentarismo, derivam da concepção individualista do mundo, de que o liberalismo inglês é uma encarnação clássica, e que foi adotada pelos representantes da burguesia alemã no período que vai de 1850 a 1880. Mas esses padrões são antiquados e decadentes, exatamente como o antiquado liberalismo inglês, destruído por esta guerra. O que cumpre fazer agora é eliminar essas ideias políticas que herdamos e contribuir para o desenvolvimento de uma nova concepção do estado e da sociedade. Também nessa esfera, o socialismo deve fazer uma oposição consciente e resoluta ao individualismo. A esse respeito, é surpreendente que, na chamada Alemanha “reacionária”, as classes trabalhadoras tenham conseguido conquistar uma posição muito mais sólida e poderosa na vida do estado do que na Inglaterra ou na França.
Lensch prossegue com uma consideração bastante correta e digna de ponderação:
Os social-democratas, com o auxílio desse sufrágio [universal], ocuparam todos os postos que podiam obter no Reichstag, no parlamento, nos conselhos municipais, na Justiça do Trabalho, nos institutos de previdência social, e assim por diante. Desse modo, penetraram fundo no organismo do estado. Mas o preço disso foi que o estado, por sua vez, passou a exercer grande influência sobre as classes trabalhadoras. Sem dúvida, como resultado do árduo esforço desenvolvido pelos socialistas durante cinquenta anos, o estado já não é o mesmo de 1867, quando foi implantado o sufrágio universal; mas, por sua vez, a social-democracia já não é a mesma daquela época. O estado passou por um processo de socialização e a social-democracia sofreu um processo de estatização.
Plenge e Lensch forneceram as ideias que nortearam os doutrinadores imediatos do nacional-socialismo, em especial Oswald Spengler e A. Moeller van den Bruck, para mencionarmos apenas os dois nomes mais conhecidos.4 Até que ponto o primeiro pode ser considerado um socialista? As opiniões podem divergir, mas torna-se agora evidente que no seu opúsculo sobre Prussianismo e Socialismo, publicado em 1920, ele apenas expressou ideias amplamente defendidas pelos socialistas alemães. Alguns argumentos por ele utilizados bastarão para comprová-lo. “O velho espírito prussiano e a convicção socialista, que hoje se odeiam com um ódio de irmãos, equivalem à mesma coisa.” Os representantes da civilização ocidental na Alemanha, os liberais alemães, são “o exército inglês invisível que, após a batalha de Iena, Napoleão deixou atrás de si em solo alemão”. Para Spengler, homens como Hardenberg, Humboldt e todos os demais reformadores liberais eram “ingleses”. Mas esse espírito “inglês” será eliminado pela revolução alemã iniciada em 1914.
As três últimas nações do Ocidente aspiraram a três formas de existência, representadas pelas famosas divisas: liberdade, igualdade, comunidade. Elas aparecem nas formas políticas do parlamentarismo liberal, da democracia social e do socialismo autoritário.5 …Segundo o instinto alemão, ou, mais corretamente, prussiano, o poder pertence ao todo. …A cada um é atribuída uma posição: ou se comanda, ou se obedece. Este é, desde o século XVIII, o socialismo autoritário, essencialmente antiliberal e antidemocrático, pelos padrões do liberalismo inglês e da democracia francesa. …Há na Alemanha muitos contrastes detestados e mal vistos, mas só o liberalismo é desprezível no território alemão.
A estrutura da nação inglesa baseia-se na distinção entre ricos e pobres; a da nação prussiana, na distinção entre comando e obediência. O significado da distinção de classes é, pois, fundamentalmente diverso nos dois países.
Após apontar a diferença essencial entre o sistema competitivo inglês e o sistema prussiano de “administração econômica”, e tendo mostrado (numa repetição propositada dos conceitos de Lensch) que depois de Bismarck a organização deliberada da atividade econômica assumira progressivamente formas cada vez mais socialistas, Spengler prossegue:
Na Prússia existia um verdadeiro estado, na mais ambiciosa acepção da palavra. Rigorosamente falando, lá não podia haver indivíduos. Todos os que viviam dentro do sistema, que funcionava com uma precisão de mecanismo de relógio, eram, de certo modo, uma peça desse sistema. A direção dos negócios públicos não podia, portanto, achar-se nas mãos de particulares, como pressupõe o parlamentarismo. Era um Amt (N. do T.: literalmente, “seção, departamento”), e o político responsável por ela era um servidor público, um servidor do todo.
A “ideia prussiana” exige que cada um se torne um funcionário do estado e que todos os salários e remunerações sejam fixados por este. Em especial, a administração de toda propriedade se converte numa função assalariada. O estado do futuro será um Beamtenstaat. Mas
a questão decisiva, não só para a Alemanha, como para o mundo inteiro e que a Alemanha deve resolver para o mundo, é a seguinte: deverá a economia no futuro dirigir o estado, ou o estado dirigir a economia? Em face dessa questão, prussianismo e socialismo se identificam. Prussianismo e socialismo combatem a Inglaterra entre nós.
Não tardaria muito, e o expoente máximo do nacional-socialismo, Moeller van den Bruck, proclamaria a Primeira Guerra Mundial – uma guerra entre o liberalismo e o socialismo: “Nós perdemos a guerra contra o Ocidente. O socialismo perdeu-a para o liberalismo”.6 Como para Spengler, o liberalismo é, pois, o arqui-inimigo. Moeller van den Bruck vangloria-se de que
não há hoje liberais na Alemanha: há jovens revolucionários e jovens conservadores. Mas quem desejaria ser liberal? …O liberalismo é uma filosofia de vida à qual a juventude alemã volta hoje as costas com nojo, cólera e um desprezo especial, pois não há nada mais exótico, mais repugnante e mais contrário à sua filosofia. A juventude alemã dos nossos dias reconhece no liberalismo o arqui-inimigo.
O terceiro reich de Moeller van den Bruck propunha-se dar aos alemães um socialismo adaptado à sua índole e não maculado pelas ideias liberais do Ocidente. E assim o fez. Esses escritores não constituíam em absoluto um fenômeno isolado. Já em 1922, um observador imparcial falava de um “fenômeno peculiar e, à primeira vista, surpreendente” que então se verificava na Alemanha.
De acordo com essa opinião, a luta contra a ordem capitalista é uma continuação da guerra contra a Entente, com as armas do espírito e da organização econômica; é o caminho que conduz ao socialismo na prática, a volta do povo alemão às suas melhores e mais nobres tradições.7
A luta contra todas as formas desse liberalismo que derrotara a Alemanha foi a ideia comum que uniu numa frente única socialistas e conservadores. A princípio, foi sobretudo no Movimento da Juventude Alemã, quase inteiramente socialista em sua inspiração e perspectiva, que essas ideias foram mais prontamente aceitas e que se completou a fusão do socialismo com o nacionalismo. No fim da década de 20, e até a ascensão de Hitler ao poder, formou-se em torno da revista Die Tat, dirigida por Ferdinand Fried, um grupo de jovens que se tornou o expoente dessa tradição na esfera intelectual. A obra Ende des Kapiíalismus (O Fim do Capitalismo), de Fried, é talvez o produto mais característico desse grupo de Edlennazis (N. do T.: literalmente, “elite nazista”), como eram conhecidos na Alemanha, e tem um aspecto sobremodo inquietante devido a sua semelhança com grande parte da literatura que vemos na Inglaterra de hoje, onde se pode observar a mesma aproximação entre socialistas de esquerda e de direita, e quase o mesmo desprezo por tudo quanto é liberal na acepção clássica. “Socialismo conservador” (e, em outros círculos, “socialismo religioso”) foi o slogan sob o qual muitos escritores prepararam o clima que iria propiciar o sucesso do nacional-socialismo. E o “socialismo conservador” é hoje a orientação dominante entre nós. A guerra contra as potências do Ocidente – “com as armas do espírito e da organização econômica” – já não estaria quase vencida, antes de a verdadeira guerra começar?
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NOTAS AO CAPÍTULO 12
1 – E só se verificou em parte. Em 1892, um dos líderes do partido social-democrata, August Bebel, declarava a Bismarck: “o chanceler imperial pode ficar certo de que a social-democracia alemã é uma espécie de escola preparatória para o militarismo”.
2 – Um bom sumário das ideias de Naumann, tão características da fusão alemã de socialismo e imperialismo quanto as demais que citamos no texto, se encontra em R. D. Butler, The Roots of National Socialism, 1941, pp. 203-9.
3 – Lensch, P. Three Years of World Revolution, prefácio de J. E. M., Londres, 1918. A tradução inglesa dessa obra foi publicada, ainda durante a última guerra, por algum espirito previdente.
4 – O mesmo se aplica a muitos outros líderes intelectuais da geração que produziu o nazismo, tais como Othmar Spann, Hans Freyer, Carl Schmitt e Ernst Jünger. Com respeito a estes, consulte-se o interessante estudo de Aurel Kolnai, The War Against the West (A Guerra contra o Ocidente, 1938), o qual, todavia, limita-se ao período de pós-guerra, quando esses ideais já tinham sido adotados pelos nacionalistas, apresentando o defeito de não mencionar os socialistas que os haviam criado.
5 – Essa fórmula spengleriana encontra eco numa afirmação muito citada de Carl Schmitt, o maior especialista do nazismo em direito constitucional, de acordo com o qual a evolução do governo desenvolve-se em “três fases dialéticas: do estado absoluto dos séculos XVII e XVIII, passando pelo estado neutro do século XIX liberal, ao estado totalitário, em que estado e sociedade se identificam” (Schmitt, Carl, Der Hüter der Verfassung. [Tübingen, 1931]. p. 79).
6 – Bruck, A. Moeller van den. Sozialismus und Aussenpolitik, 1933, pp. 87, 90 e 100. Os artigos reproduzidos nesse livro, em particular o que trata de “Lenin e Keynes”, discutindo de modo mais exaustivo a questão de que tratamos, foram publicados pela primeira vez entre 1919 e 1923.
7 – Pribram, K. “Deutscher Nationalismus und Deutscher Sozialismus”, em Archiv für Sozialwissenschaft und Sozialpolitik, v. 49, 1922, pp. 298-9. O autor menciona, como outros exemplos, o filósofo Max Scheler, o qual pregava “a missão socialista da Alemanha no mundo”, e o marxista K. Korsch, que escreve dentro do espírito da nova Volksgemeinschaft; ambos, segundo ele, seguem a mesma linha de argumentação.