Capítulo IX. Mises nos Estados Unidos
Perseguido em sua Áustria natal, Ludwlg von Mises foi um dos muitos notáveis europeus exilados. Indo primeiro para Genebra, ali lecionou no Instituto de Estudos Internacionais de 1934 a 1940. Foi nesta cidade que se casou com a encantadora Margit Sereny-Herzfeld, em 1938. Em 1940 partiu para os Estados Unidos. No entanto, enquanto incontáveis exilados europeus socialistas e comnistas eram recebidos de braços abertos no meio universitário do país, e enquanto seus ex-seguidores obtinham elevados postos acadêmicos, o próprio Mises foi menosprezado e esquecido. Uma inextinguível e intransigente adesão ao individualismo, tanto no método econômico quanto na filosofia política, vedou-lhe a entrada no mesmo meio acadêmico que se vangloriava de uma “livre busca da verdade”. No entanto, na cidade de Nova Iorque, mesmo vivendo de pequenas subvenções concedidas por fundações, Mises conseguiu publicar, em 1944, dois notáveis livros escritos em inglês: Omnipotent Government e Bureaucracy.[16] O primeiro mostrava que o regime nazista não era, como o pretendia a análise marxista da moda, a “etapa mais elevada do capitalismo”, sendo, antes, uma forma de socialismo totalitário. Bureaucracy apresentou uma análise, de vital importância, da diferença decisiva entre a administração para o lucro e a administração burocrática, demonstrando que as graves ineficiências da burocracia eram, além de inerentes a qualquer atividade governamental, inevitáveis.
Para o mundo acadêmico norte-americano é uma mancha inesquecível e vergonhosa o fato de Ludwig von Mises nunca ter obtido um cargo universitário remunerado, de tempo integral. A partir de 1945 ele se tornou um simples Professor Visitante na Graduate School of Business Administration, na New York University. Nessas condições, tratado muitas vezes como cidadão de segunda classe pelas autoridades universitárias, distante dos centros acadêmicos de prestígio e cercado sobretudo por alunos de cursos de especialização em contabilidade ou finanças empresariais, pouco motivados e de curta penetração intelectual, Ludwig von Mises retomou seus outrora famosos seminários semanais. Infelizmente não podia, nesse tipo de cargo, alimentar a esperança de formar um número considerável de jovens economistas universitários; não podia ter esperanças de reproduzir o fulgurante sucesso de seus seminários em Viena.
Apesar dessas tristes e inauspiciosas condições, Mises conduziu seu seminário de cabeça erguida e sem queixas. Nós, que o conhecemos em seu período na N.Y.U., jamais ouvimos de sua boca uma palavra de amargura ou de ressentimento. Com sua maneira infalivelmente gentil e afável, procurava encorajar e estimular qualquer possível lampejo de criatividade em seus alunos. A cada semana, uma torrente de projetos de pesquisa jorrava dele. Cada palestra sua era uma jóia caprichosamente trabalhada, rica em novas percepções, trazendo uma síntese de toda a sua visão econômica. Aos alunos que adotavam uma postura silenciosa e atemorizada dizia, com sua característica e bem humorada piscadela de olho: “Não tenha medo de falar. Lembre-se: seja o que for que você disser sobre o assunto, e por absurdo que seja, algum eminente economista já o terá dito antes”.
Apesar do beco sem saída em que Mises fora colocado, surgiu do seminário um diminuto grupo de alunos pósgraduados dispostos a levar à frente a tradição austríaca. Além disso, o seminário funcionou como um chamariz para estudantes não regularmente matriculados, que, para frequentá-lo, afluíam, a cada semana, de toda a Nova Iorque. O prolongamento deste seminário num restaurante das redondezas era apenas um de seus encantos: no entanto, representava não mais que um pálido reflexo dos dias em que o famoso Mises-kreis costumava fazer preleções num café de Viena. Mises desfiava uma interminável série de histórias e ideias, e bem sabíamos que nessas histórias, bem como na própria aura e pessoa do mestre, estávamos, todos nós, em presença de uma encarnação da Velha Viena, de um tempo bem mais digno e cheio de encanto. Nós que tivemos o privilégio de assistir a seu seminário na N.Y.U. podíamos compreender perfeitamente que Mises era tão grande mestre quanto economista.Portanto, apesar de sua situação, Mises conseguiu atuar como um farol isolado, indicando a liberdade, olaissez-faire e a abordagem econômica “austríaca” num meio inóspito. Como vimos, sua notável produtividade permaneceu infatigável no Novo Mundo. E, felizmente, houve bastante gente de boa vontade para traduzir suas obras clássicas e para publicar sua contínua produção. Ludwig von Mises foi o centro focal do movimento libertário no período pós-guerra nos Estados Unidos: um guia e uma permanente inspiração para todos nós. A despeito do menosprezo do mundo universitário, todas as suas obras estão virtualmente no prelo hoje, aí mantidas por um número crescente de discípulos e seguidores. E, mesmo nas resistentes fileiras dos economistas no meio universitário, cresceu nos últimos anos o número de alunos de pós-graduação e de jovens professores que abraçaram a tradição austríaca e misesiana.
E isto não só nos Estados Unidos: não é fato suficientemente sabido que, através de seus discípulos e colegas, Ludwig von Mises desempenhou um papel de vanguarda no movimento de repúdio ao coletivismo e em direção a uma economia de mercado pelo menos parcialmente livre, movimento este que teve lugar na Europa ocidental, no período subsequente à Segunda Guerra Mundial. Na Alemanha Ocidental, Wilhelm Röpke, seu discípulo dos tempos de Viena, foi o principal propulsor intelectual da virada do coletivismo para uma economia de mercado relativamente livre. Na Itália, o presidente Luigi Einaudi, seu antigo colega no estudo da economia de mercado livre, desempenhou um papel de destaque, afastando o país do socialismo então em franco desenvolvimento, após a guerra. E seu seguidor, Jacques Rueff, principal conselheiro econômico do general de Gaulle, lutou corajosamente, virtualmente sozinho, pelo retorno ao padrão-ouro.
É um tributo final ao inextinguível espírito de Ludwig von Mises registrar que continuou realizando semanalmente seu seminário na N.Y.U., sem interrupção, até a primavera de 1969, quando se aposentou na qualidade incontestável de mais velho professor em atividade nos Estados Unidos, ágil e vigoroso aos 87 anos.
[16] Mises, Omnipotent Government (New Haven: Yale University Press, 1949).