O que esperar da atuação do Sr. Rabier no estado argentino?

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Em 10 de dezembro, um domingo, o Sr. Javier Gerardo Milei — el Señor Rabier — tomou posse no cargo de “presidento” do estado argentino.

Quando ele, em novembro, foi anunciado o vencedor das eleições, produzi o pequeno artigo abaixo para um jornal que circula na cidade onde moro. (Esse jornal, Zero Hora, surpreendemente estava noticiando bastante sobre o Sr. Rabier e inclusive tocando no assunto do anarcocapitalismo.) Foi um teste que fiz para ver se ele seria publicado num veículo tradicional de grande circulação. O texto, naturalmente, não foi publicado.

Javier Milei e a anarquia de mercado

J. Milei, um autodenominado “libertário anarcocapitalista”, chegou à presidência do estado argentino. Apresento, aqui, uma breve explicação sobre o corpo de ideias que ele alega sustentar.

A filosofia libertária assevera que ninguém tem o direito de iniciar agressão física contra inocentes; que ninguém tem o direito de, por meio da força e/ou da fraude, tomar a propriedade alheia; que a violência só se justifica se for defensiva. Ela demonstra que somente o instituto da propriedade privada — entendido como controle exclusivo sobre bens físicos, incluindo-se nisso o próprio corpo dos indivíduos — pode propiciar a cooperação pacífica e voluntária entre as pessoas.

O estado é uma organização — composta por seres humanos — que pratica violações contínuas e institucionalizadas dos direitos de propriedade num determinado território. Trata-se de apenas um aparato de coerção e compulsão, de intimidação e ameaça, de violência e agressão que conseguiu se institucionalizar. O estado é uma instituição — comandada por políticos e burocratas — que arroga a si mesma a condição de soberano — de violador supremo dos direitos de propriedade.

O estado sempre possui a tendência a ampliar o tamanho e o alcance das expropriações que pratica. Ele encontra-se na permanente busca de alcançar um nível “ótimo” de expropriações. A tributação, a regulamentação (a burocratização) e a inflação monetária são as três principais maneiras.

Ao longo dos milênios, o estado — o sistema de agressão institucional; o poder político; o aparato institucionalizado de coerção — mostrou ser o maior inimigo da civilização humana. É o maior e mais prolífico perpetrador das piores atrocidades da história.

O libertarianismo anarcocapitalista propõe que o estado seja extinto (anarquia: ausência de estado; anomia: ausência de ordem) e que os serviços de segurança e de arbitramento de conflitos — os serviços policiais e judiciais — sejam ofertados por entidades privadas (seguradoras, principalmente) concorrendo entre si.

A minha intenção, neste texto, é discorrer sobre os prós e os contras em relação ao fato de um autoproclamado libertário anarcocapitalista estar num cargo de governante — um cargo que, por definição, envolve o exercício do poder político (da agressão institucionalizada) sobre outros seres humanos.

Na minha opinião, o Sr. Rabier conseguiu se eleger porque se apresentou como alguém diferente, destoando do resto dos candidatos — que, aliás, eram mais do mesmo, propondo as mesmas ideias ruins de sempre (mais tributação, mais regulamentação/burocratização, mais inflação monetária, mais gastos estatais; enfim, mais intervencionismo estatal, mais socialismo). Tais ideias são implementadas no país desde a ascensão do fascismo militar na década de 1930. A péssima situação econômica e civilizacional demonstrada atualmente pela Argentina decorre da aplicação sistemática dessas ideias. É até mesmo difícil acreditar no fato de que este país era um lugar desenvolvido, pujante, próspero durante a segunda metade do século XIX e o início do século XX. (Nessa época, marcada pela constituição de 1853, inspirada pelo jurista Juan Bautista Alberdi, havia ampla liberdade econômica e, inclusive, adoção — por um tempo — do padrão ouro.)

De qualquer forma, a vitória do Sr. Rabier, em si, configura uma façanha enorme, pois uma retórica pró-liberdade — baseada, inclusive, em algumas ideias austrolibertárias robustas — foi utilizada durante as eleições. Nos atuais regimes republicano-democráticos de massa, o mais comum é que sejam eleitos os candidatos que mais fazem promessas absurdas e vazias; quanto mais benesses e fantasias alguém promete, mais popularidade e votos alcança.

As repúblicas democráticas são estados (aparatos institucionalizados de coerção) de propriedade pública (em contraste com as monarquias ou os principados, que são estados de propriedade privada). Isso significa que tais aparatos de compulsão não têm um dono definido; isso significa que as receitas provenientes de expropriações não configuram, de forma institucional, a propriedade de alguém. Não é surpresa nenhuma, portanto, o fato de que a exploração praticada por repúblicas democráticas acontece de maneira errática, insustentável, inclusive suicida; o cálculo econômico em relação às expropriações acaba sendo inviabilizado, não existindo incentivos para a adoção de uma visão de longo prazo — e, assim, para prudência e comedimento nas atividades expropriatórias. (Até mesmo uma ditadura republicano-democrática — isto é, sem a tal da “alternância de poder”, com governantes entrincheirados nos cargos supremos — padece com essa questão.) Além disso, as repúblicas democráticas, exatamente por serem estados de propriedade pública, consideram precários os direitos de propriedade individuais; não aceitam que propriedades privadas individuais possam limitar o seu alcance, o seu poder; para as repúblicas democráticas, o instituto da propriedade privada simplesmente está em conflito com elas, podendo ser desconsiderado, desprezado, descartado a qualquer momento por qualquer motivo.

“A propriedade privada cria para o indivíduo uma esfera na qual ele fica livre do estado. Ela estabelece limites ao alcance do poder autoritário. Permite que outras forças surjam e operem lado a lado com o poder político e em oposição a ele. A propriedade privada então se transforma na base de todas aquelas atividades que se encontram livres da interferência violenta por parte do estado. A propriedade privada é o solo no qual as sementes da liberdade são alimentadas e a autonomia do indivíduo — e, em última instância, todos os progressos intelectuais e materiais — se enraíza.”

— Ludwig von Mises

Podemos usar o vocábulo “socialismo” de duas maneiras: (1) para caracterizar o sistema de “propriedade pública ou estatal dos meios de produção”, no qual a propriedade privada dos fatores de produção (inclusive da força de trabalho individual — i.e., do próprio corpo dos indivíduos) é proibida; (2) para caracterizar qualquer atividade expropriatória realizada pelo estado.

“Não pode haver socialismo sem um estado; e, na medida em que existe um estado, há socialismo. O estado, portanto, é a instituição que coloca o socialismo em prática; e, visto que o socialismo se baseia na violência agressiva direcionada contra vítimas inocentes, a violência agressiva é a natureza de qualquer estado.”

— Hans-Hermann Hoppe

“Socialismo es todo sistema de agresión institucional contra el libre ejercicio de la acción humana o función empresarial.”

— Jesús Huerta de Soto

As repúblicas democráticas, portanto, sempre se encontram orientadas para o socialismo total. Não é por acaso que os raciocínios e as decisões dos governantes (dos políticos e burocratas) que comandam os aparatos republicano-democráticos também se apresentam nessa direção.

As repúblicas democráticas (os estados de propriedade pública), ademais, tornam embaçadas, pouco nítidas, as distinções entre governantes e governados.

O Sr. Rabier se tornou o ocupante do cargo de “presidento” de uma república democrática, a qual possui as características anteriormente explicitadas. Embora ele tenha ideias melhores (mais arejadas, mais arrojadas, mais adequadas), embora saiba que o socialismo é essencialmente criminoso e disfuncional, embora realmente compreenda que o caminho para uma situação menos insatisfatória de coisas está no instituto da propriedade privada e na ordem espontânea estendida do mercado, o aparato do qual agora faz parte simplesmente não combina com isso tudo.

Mesmo que o Sr. Rabier consiga (1) materializar reformas profundas, impactantes, verdadeiras (na prática, uma resoluta diminuição dos gastos, do tamanho e do poder do estado; algo que, se realizado, invariavelmente provocará perdas enormes para os vários grupos de interesse já estabelecidos e estruturados); (2) evitar ser corrompido, absorvido ou neutralizado pelo sistema; e (3) demonstrar os enormes benefícios do livre mercado (uma ideia ótima e factível para isso seria criar “zonas econômicas especiais” no país, inclusive uma zona anarcocapitalista; replicar, por exemplo, a liberdade econômica de Cingapura numa dessas zonas), a tendência da república democrática persistirá a mesma, rumo ao socialismo total.

Se o Sr. Rabier conseguir trazer um pouco de liberdade para a Argentina, já terá feito muito; se, inclusive, conseguir sustar a atual propensão a uma situação de coisas ainda pior, também já terá feito muito. Não espero que ele consiga modificar tanta coisa. Talvez consiga, talvez não. Em comparação com os demais políticos, o Sr. Rabier, pelo menos, tem a vantagem de conhecer e entender ideias mais sensatas para a finalidade de propiciar uma situação mais satisfatória de coisas.

Ademais, existe a questão da corrupção (entendida como enriquecimento próprio por meio de esquemas). Trata-se de uma tentação extremamente poderosa. São realmente poucas as pessoas que conseguem resistir a isso. (Trago o exemplo de uma “obra pública”. Ela normalmente custaria, digamos, 100 milhões de reais. Um político faz conluio com uma empreiteira. A obra acaba sendo orçada em 200 ou 300 milhões de reais. O político recebe, digamos, 1% desse valor — 2 ou 3 milhões de reais. Nada mau, não? Quem é que sentirá falta desse 1%, afinal?) No caso das monarquias (estados de propriedade privada), essa questão da corrupção não faz o menor sentido, pois as receitas provenientes de expropriações são de propriedade do monarca (ou da Coroa), que decide então o que fazer com tais receitas, inclusive gastar em benefício próprio com luxo e ostentação. (E é aqui que, em relação às monarquias, a distinção entre governantes e governados fica nítida.)

Existe também a própria questão do poder. É muito fácil que alguém — principalmente o ego desse alguém — sucumba aos encantos propiciados por um cargo de poder; trata-se da tal “glória de mandar”, da tal “vã cobiça”.

Na minha opinião, o mais importante que o Sr. Rabier pode fazer é utilizar o cargo de “presidento” para disseminar as ideias austrolibertárias. Tendo esse cargo como plataforma, ele possui a possibilidade de ser visto e ouvido por milhões de pessoas. A abordagem da Escola Austríaca sobre os ciclos econômicos, por exemplo, deveria ser muito mais disseminada; essa abordagem, que demonstra ser o estado — por meio do seu banco central e do sistema bancário de reservas fracionárias orquestrado pelo seu BC — o maior causador dos ciclos de bonança ilusória e de depressão posterior, é uma das maiores contribuições intelectuais para a civilização humana.

(Enfatizo, agora, a diferença entre a Escola Austríaca de Economia e a Filosofia Libertária. A Escola Austríaca discorre sobre a ciência econômica; analisa as relações de causa e efeito dos fenômenos econômicos; configura uma análise técnica dos assuntos da economia. A Filosofia Libertária, por sua vez, discorre sobre as normas éticas — os direitos de propriedade — que propiciam a paz e a cooperação entre os seres humanos vivendo aqui na Terra, no mundo caracterizado pela realidade da escassez. Embora existam muitos pontos de intersecção entre as duas, convém não confundi-las. Levanto essa questão porque vi pessoas criticando o mestre Jesús Huerta de Soto por estar sendo conselheiro econômico do Sr. Rabier — um ocupante de um cargo político. O ponto é que não há nada de errado em dar conselhos econômicos de natureza técnica para alguém que esteja ocupando um cargo político — aliás, muito pelo contrário: com ideias econômicas corretas, tal ocupante poderá tomar decisões melhores, que impactem positivamente a vida dos milhões de indivíduos que habitam o território governado por esse estado. Ademais, tendo em vista o conhecimento de economia e Escola Austríaca do Sr. Rabier, percebe-se que se trata, na verdade, de apenas uma extensão da relação professor/aluno formada entre os dois.)

Se as ideias austrolibertárias de fato acabarem sendo difundidas e assimiladas por muitas pessoas, formando-se assim uma “massa crítica” de conhecedores e adeptos, a adoração e a veneração ao estado — à autoridade institucionalizada — poderão diminuir bastante, assim como a frequência do comum — quase onipresente — “raciocínio” de que “mais estado é necessário para resolver os problemas; mais regulamentação, mais tributação, mais gastos estatais são necessários para solucionar os problemas”. (Eu diria que esse “raciocínio” é o grande mal a ser combatido. A vasta maioria das pessoas diz isso diante de quaisquer problemas que apareçam; a frase de sempre: “o estado deve fazer alguma coisa”. Como se mais coerção e mais burocracia realmente pudessem resolvê-los. Como se todas as outras milhares de experiências de “mais coerção e mais burocracia” tivessem sequer sido bem-sucedidas nos seus propósitos manifestos.)

A vereda para um maior e melhor padrão de vida material passa pela propriedade privada e pelos arranjos socioeconômicos e jurídicos baseados na propriedade privada; passa pela evolução da ordem espontânea estendida do mercado. A sociedade humana (agrupamento de seres humanos individuais unidos de forma pacífica e voluntária pela divisão do trabalho) — a civilização — deve prevalecer diante do estado (aparato institucionalizado de violência), do socialismo, do poder político.

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