I
É possível descrever e explicar o homem em termos naturalísticos, tal como descrevemos e explicamos pedras, plantas e animais: usando o linguajar da física, da química, da biologia, da genética, da neurologia, etc. Ou seja, podemos aplicar os métodos utilizados para o estudo de pedras, plantas e animais também para estudar o homem. Podemos considerar e tratar o homem como objeto físico, como fazemos com uma pedra, que pode ser medida em relação a peso, altura, volume, massa, densidade, temperatura, forma, etc., e que tem uma localização e se movimenta no tempo e no espaço. Semelhantemente, o homem, assim como as plantas, também é um organismo com atividade metabólica: cresce, vive, se reproduz e morre. E, assim como os animais, o homem também é um corpo automovente, dotado de órgãos sensoriais e em busca de alimento e sexo.
Não há nada de errado com esse naturalismo, porque, assim como as pedras, as plantas e os animais, o homem também é de fato uma parte da natureza e, como tal, possui algumas características em comum com todas as outras partes. Com efeito, como demonstra em particular o sucesso da fisiologia e da medicina, o estudo do homem como um objeto natural – dado pela natureza – não só é possível como tem uma importância prática eminente.
Mas uma descrição naturalista do homem, embora inteiramente legítima, e mesmo que verdadeira, deve falhar em apreender a essência do homem: apreender o que torna o homem único e o distingue de todas as outras coisas: de pedras, plantas e animais. Com efeito, qualquer descrição desse tipo falharia da mesma forma que uma descrição de uma pintura ou de uma peça musical, feita em termos físicos, químicos, etc., também falharia em captar a essência da pintura como pintura e da música como música.
E no entanto, especialmente entre cientistas naturais, orgulhosos de seu papel como cientistas isentos de nonsense, é bastante proeminente a opinião de que tal redução do homem a nada mais que natureza é tanto possível quanto desejável. Que tudo o que pode ser (ou eventualmente será) conhecido sobre o homem é o resultado dos mesmos métodos também aplicados a pedras, plantas e animais. Cada estado físico, condição, aparência, modificação e movimento do homem no tempo e no espaço podem, em última análise, ser explicados por um sistema complexo de causas materiais, incluindo vários processos neurológicos. Podemos não ser, até o presente momento, totalmente bem-sucedidos nesse projeto, mas esse é o único caminho a seguir.
Por mais popular que essa visão seja, não é difícil descobrir o erro fundamental nela e reconhecer por que esse programa pan-naturalista está fadado a fracassar (e por que o seu atual e admitido “subdesenvolvimento” não é um acidente, mas sim uma consequência necessária de falsas premissas).
O erro se torna aparente quando refletimos sobre o que estamos fazendo agora, eu como orador ou escritor e você como ouvinte ou leitor – e o que qualquer cientista natural deve também fazer sempre que apresenta os resultados de sua pesquisa. Resposta: falamos uns com os outros por meio de palavras e frases significativas. Nós nos comunicamos com outras pessoas com a intenção (com o propósito e o objetivo) de alcançar algum tipo de coordenação ou cooperação com outras pessoas, e podemos ter sucesso ou fracassar nesse empreendimento.
Para deixar claro, podemos dar uma explicação naturalista de alguns aspectos do fenômeno da comunicação, da mesma forma que podemos dar uma explicação naturalista de uma pintura ou de uma peça musical. Há nesses fenômenos cordas vocais, sons, rabiscos no papel, atividades cerebrais, movimentos corporais, etc. Mas não há nada em qualquer descrição naturalista que nos permita concluir que esses movimentos, sons, rabiscos, sons, nervos, etc. tenham qualquer significado ou propósito e sejam usados por um falante ou escritor como um meio, bem-sucedido ou não, de comunicação com outras pessoas.
Na natureza (e na evolução natural) não há nada proposital, significativo, verdadeiro, falso, bem-sucedido ou malsucedido. A natureza não tem propósito. A natureza e as leis da natureza são o que são e funcionam como funcionam, de maneira imutável e infalível. A morte e o morrer não são uma refutação de alguma lei natural, nem os furacões ou as inundações contradizem quaisquer leis da natureza. São eventos tão naturais quanto a vida e o viver, ou a calmaria e as secas. Da mesma maneira, as plantas e os animais não têm a intenção de sobreviver e contribuir para a reprodução de suas espécies; eles simplesmente o fazem ou não o fazem. A sobrevivência e a extinção de algumas espécies vegetais ou animais são eventos naturais, a serem explicados em termos naturalísticos. A sobrevivência não é o resultado de um planejamento bem-sucedido, nem a extinção indica um planejamento deficiente. Em toda a natureza, não existe planejamento, as coisas simplesmente acontecem.
Somente nós – o homem – temos propósitos ao lidar com a natureza (incluindo outros homens). Somente nós transformamos propositalmente materiais dados pela natureza em artefatos e usamos tais artefatos como meios para atingir outros objetivos. Somente nós usamos palavras (e símbolos não verbais) como meios – portanto, sons ou sinais significativos – para provocar uma resposta definida de ou em outras pessoas. Assim, somente dos artefatos materiais produzidos pelo homem pode-se dizer que estão corretos ou equivocados, ou que são um sucesso ou um fracasso – admitidos para isso os propósitos humanos. E somente de palavras e frases feitas pelo homem enquanto meios para fins de comunicação interpessoal pode-se dizer que são significativas e compreendidas ou não, bem-sucedidas ou não, e verdadeiras, falsas ou indeterminadas.
Desse modo, todo cientista natural – biólogo, fisiologista, químico, geneticista ou neurologista – que afirme poder ser o homem reduzido a nada senão natureza fica envolvido em uma contradição.
Por um lado, o “homem” sobre o qual esse cientista fala e escreve, o homem-como-natureza (que ele afirma ser o único “homem” que existe), não tem propósito nem significado e nada sobre o seu funcionamento interno é verdadeiro ou falso, bem-sucedido ou falho. Tudo funciona como funciona de acordo com leis causais imutáveis e infalíveis. No entanto, por outro lado, ele, o próprio cientista, que obviamente se considera um membro da classe “homem”, segue um propósito ao conduzir a sua pesquisa sobre o homem-como-natureza. Ele conduz operações intencionais e usa artefatos como meios para fins desejados, e deve empregar frases significativas para descrever os métodos e resultados de sua pesquisa sobre materiais, fenômenos e processos naturais “an-sich” sem sentido. Ele afirma que esses métodos são corretos ao invés de incorretos e que seus resultados são verdadeiros ao invés de falsos ou inconclusivos. E para ele, então, em contraste com o homem-como-natureza, a morte e as disfunções corporais têm significado e são de fato falhas e dis-funcionais, por exemplo. No entanto, eles têm significado e são falhas ou disfuncionais apenas na medida em que estão relacionados com um propósito humano: o propósito de querer preservar a vida e a saúde (como algo “bom”) e prevenir a doença e a morte (como algo “ruim”).
Desse modo, podemos concluir que o programa de pesquisa pan-naturalista, segundo o qual o homem pode e deve ser exclusiva e exaustivamente descrito e explicado nos termos das ciências naturais e das causas naturais, não poderia sequer ser formulado e expresso em palavras e frases, alegando ser significativo e verdadeiro, sem por isso mesmo cair em uma contradição inevitável.
II
Com isso, já obtivemos vários insights filosóficos importantes que tentarei agora explicar em maiores detalhes.
Por um lado, identificamos na linguagem o ponto de partida necessário para todo filosofar. Não podemos filosofar sem sermos capazes de falar (e escrever) e de ouvir (e ler). Na verdade, isto não pode ser negado, sob pena de contradição, porque a própria negação teria de vir na forma de palavras e frases. Assim, chegamos aqui a um primeiro insight sobre o homem que pode ser considerado verdadeiro a priori. (A propósito, Ação Humana de Mises também começa com palavras e frases significativas.)
Além disso, sendo a linguagem reconhecida como um meio de comunicação interpessoal, toda e qualquer acusação de “solipsismo” ou “atomismo” dirigida contra os austrolibertários (e em geral contra todos os proponentes de um individualismo metodológico) revela-se completamente descabida. A linguagem é uma instituição social. Com efeito, como convincentemente demonstrou o Wittgenstein tardio do Investigações Filosóficas, a ideia de uma linguagem “privada” – por oposição a uma linguagem pública ou comum – é inconcebível. A linguagem serve aos propósitos de coordenação e cooperação interpessoal e, para esse fim, deve ser pública e comum. E efetivamente é aprendida por infantes (crianças ou bebês, que inicialmente não conseguem agir nem falar) em cooperação e interação com pessoas adultas, naquilo que Wittgenstein apropriadamente descreveu como “jogos de linguagem”. Na verdade, o homem se torna um indivíduo autoconsciente – uma persona – apenas em cooperação com outras pessoas, através de um processo de socialização.
Em distinto contraste, uma criança abandonada pelos pais, mas tendo milagrosamente sobrevivido sob os cuidados de animais, sejam eles lobos, sejam macacos, não voltará, caso retorne mais tarde à sociedade humana, com uma linguagem aprendida. Ela retornará sem falar língua alguma (nem será capaz de se comunicar com lobos ou macacos), o que desmente toda a conversa sobre “instinto” linguístico e “cérebro” criador da linguagem. Em vez disso, contanto que o seu desenvolvimento cognitivo não tenha sido suprimido pelo grande tempo sem convívio humano, ela terá de aprender lenta e cuidadosamente uma linguagem para passar do animal humano em que se tornou para uma pessoa humana. E a língua que ela terá de aprender não é (e, para todos que já aprenderam qualquer língua, nunca foi) uma “linguagem universal” gerada por uma “gramática universal” subjacente, como a teoria naturalista da linguagem baseada no “instinto” ou no “cérebro” levaria a crer, mas será e sempre foi uma língua particular falada por uma comunidade particular de falantes nativos, o que confirma o insight já alcançado antes: que a fala e a linguagem significativas, embora certamente tenham uma base fisiológica (cordas vocais, processos neurológicos, etc.), não são produtos da natureza e de causas naturais, mas produtos da cultura humana, i.e., da interferência intencional e proposital do homem na natureza e da sua alteração artificial em relação a seu curso natural.
Além disso, reconhecemos que, em vez de um pan-naturalismo (ou materialismo, monismo, etc.), um dualismo metodológico deve ser adotado desde o início. Embora todos os métodos aplicáveis a pedras, plantas e animais sejam também aplicáveis ao homem, nem todos os métodos aplicáveis ao homem são também aplicáveis a pedras, plantas e animais.
Podemos coordenar nossa conduta usando palavras em comum ao falar com outras pessoas. Nós sabemos por que fazemos ou dizemos o que fazemos ou dizemos; e sabemos (ou sabemos como descobrir) por que outras pessoas dizem e fazem o que dizem e fazem. Igualmente, nós sabemos (ou sabemos como descobrir) se nos entendemos ou chegamos a um acordo com o outro. E tudo o que fazemos ou dizemos é atribuído ou imputado a quem o fez ou disse e essa pessoa é considerada responsável pelo que fez ou disse. Nada disso se aplica a pedras, plantas ou animais, apesar dos protestos de certos amigos dos animais (o que eu, por acaso, também sou).
Nós podemos falar com pedras, plantas ou animais tanto quanto quisermos, é claro, mas não podemos nos comunicar com eles. Nossas palavras podem até ter algum efeito físico no mundo material. Mas não há qualquer base para supor que as nossas palavras sejam compreendidas por qualquer pedra, planta ou animal e que o efeito provocado, seja ele qual for, não se deva tão somente a um comportamento baseado em estímulo-resposta, o qual, embora treinado, é ainda natural. Assim, por exemplo, podemos treinar certos animais para executar truques “não naturais” (apesar de possíveis, é claro, dada a dotação física do animal) mediante a manifestação de certas pistas verbais ou gesticulares. No entanto, isso nada tem a ver com uma resposta significativa de um cavalo ou cão a um pedido significativo do treinador de cavalos ou cães, mas se trata de um processo inteiramente natural, a ser explicado causalmente. Atribuir propósitos e a seleção e uso de materiais dados pela natureza como meios para atingir tais fins a pedras, plantas e animais é uma forma de animismo, xamanismo ou antropomorfismo.
É verdade que é bastante comum atribuir aos animais todos os tipos de atributos que aprendemos a usar na nossa comunicação e cooperação com outras pessoas – diz-se por exemplo que cães estão tristes ou felizes, que são obedientes ou rebeldes, que pensam e ouvem, e aprendem, amam e se comunicam, e pássaros e castores são descritos como engenheiros de represas e ninhos – mas tais atribuições são, estritamente falando, apenas metafóricas. Nós não podemos nos comunicar com os animais e compreender por que fazem o que fazem da mesma maneira que podemos nos comunicar com outras pessoas e compreendê-las. Com respeito aos animais (para não falar de pedras e plantas) restam-nos somente explicações causais (ou explicações baseadas em instintos). Eles se comportam da maneira que se comportam porque, sendo parte da natureza, não podem agir de outro modo; e portanto também não consideramos os animais mais responsáveis por seu comportamento do que as plantas ou as pedras.
(Dois breves adendos: há pessoas que afirmam falar e se comunicar com alguns animais, como chimpanzés, mas ainda não ouvi falar de ninguém que teve seus filhos criados por esses animais ou com eles aprendido uma língua. – E sobre animais enquanto engenheiros: pássaros e castores sempre fazem a mesma coisa, repetidas vezes, de uma geração para outra, e, tirados de seu habitat natural, são normalmente incapazes de sobreviver. Isso não soa muito como um engenheiro. O homem, por outro lado, é capaz de criar novos instrumentos para novos objetivos, pode adequar-se e sobreviver em praticamente todos os ambientes, por mais diferentes que sejam, e pode fazer cada vez mais coisas que excedem as suas capacidades naturais, como voar (em um avião) e mover-se sob a água (em um submarino), por exemplo.)
III
Além disso, é necessária uma explicação mais detalhada sobre a relação entre falar (linguagem) e agir (ação), possivelmente o insight mais importante implícito acima, e sobre o filosofar ter seu início com o uso de palavras comuns.
Toda fala e comunicação é uma ação, mas nem toda ação é comunicação. Como toda ação, a comunicação é uma atividade motivada e propositada. Visa a um objetivo antecipado. Como qualquer outra atividade, ela é, nas palavras de Ludwig von Mises, motivada pelo “desconforto” e direcionada a uma “melhora”. Ela expressa, como todas as ações, o juízo de valor de um agente e revela sua preferência. O agente valoriza o objetivo almejado e prefere realizar esse objetivo em vez de outro. Assim como qualquer outra atividade, falar e comunicar também envolve custos de oportunidade. Uma pessoa também pode usar seu tempo corporal para outras coisas além de falar, escrever, ouvir ou ler. Como em toda ação, a comunicação ocorre no tempo e no espaço. Tem um começo, uma duração e um fim. Envolve, como toda ação, o emprego proposital de meios físicos escassos (no mínimo o corpo humano e o espaço que este ocupa). Tal como acontece com toda ação, também a comunicação envolve uma interferência no curso “natural” dos eventos (o curso que teria tomado lugar caso nenhuma ação tivesse sido realizada), a fim de provocar um estado de coisas preferido. O falante (escritor) deve utilizar meios físicos (cordas vocais, mãos, papel e lápis, etc.) conforme algum plano ou receita para produzir sons, sinais ou símbolos significativos, de modo a se fazer ouvir e compreender pelo ouvinte (leitor). E, como em todas as ações, os meios (palavras, linguagem) escolhidos e as receitas a eles aplicadas podem revelar-se certos ou errados, adequados ou inadequados, para o fim pretendido, e a comunicação ser considerada bem-sucedida ou malsucedida.
Contudo: nem toda ação é comunicação. Como acabamos de mencionar, a comunicação com outras pessoas tem custos de oportunidade. As coisas variam de pessoa para pessoa, claro, mas normalmente gastamos muito mais tempo fazendo as coisas em silêncio em nossas atividades diárias. Fazendo coisas usando coisas (não pessoas) em vez de se comunicar. De fato, mesmo o propósito das ações comunicativas – de nossas palavras dirigidas aos outros – muitas vezes não é ter algum tipo de conversa com a pessoa, mas sim dar ou receber instruções práticas sobre como fazer certas coisas com calma e em silêncio em nosso ambiente material.
Chamaremos tais atos silenciosos realizados para produzir um fim específico no mundo material de ações instrumentais (em contraste com as ações comunicativas, que serão analisadas posteriormente).
As ações instrumentais são o fundamento de toda a nossa civilização material. Cada casa, rua, carro e fábrica, cada martelo, prego e tijolo, etc., etc., é o resultado (bem-sucedido) de uma ação instrumental (de engenharia, se quiser). Da mesma forma, a maioria dos animais e plantas que nos rodeiam é o resultado da ação instrumental, i.e., de alguma criação, adestramento e cultivo intencional de animais e plantas de acordo com vários propósitos ou fins humanos. Hoje não resta, de fato, quase nenhuma natureza crua ou “selvagem”. Pelo contrário, praticamente tudo o que nos cerca é algum instrumento ou artigo fabricado propositadamente, i.e., cultura humana, seja na forma de agricultura, de criação de animais ou na de construção de objetos e materiais inanimados.
A ação instrumental é também a base de todas as ciências naturais. Todas as ciências, da lógica à geometria, aritmética, física, química, biologia, fisiologia e medicina, todas encontram a sua origem na vida cotidiana. Ao aprender como seguir pedidos simples ou complexos, as crianças aprendem o significado de “e” e “ou”, de “um”, “alguns” e “todos” – conectivos lógicos – e de quantificadores – as regras elementares, portanto, do raciocínio conclusivo. Artesãos, comerciantes, engenheiros, técnicos, funileiros, curandeiros, plantadores e criadores, para atingirem seus diversos objetivos instrumentais, aprenderam a medir de alguma maneira o espaço e o tempo, a pesar, contar, modelar, distinguir, misturar, combinar ou separar vários materiais (sejam inanimados, sejam animados), e a comparar tamanhos, intervalos de tempo, pesos, volumes, números e formatos. “Ciência” nada mais é do que o desenvolvimento e a construção sobre as conquistas realizadas na vida cotidiana por artesãos e artistas (no sentido mais amplo do termo). A única adição (embora de suma importância) que a “ciência” faz é que todos os instrumentos de medição, como réguas ou relógios para medir comprimento e tempo, são “padronizados”, isto é, são construídos e operados de acordo com a mesma norma ou receita, e fornecem, graças a esses “padrões”, que independem do agente específico, dados que são trans ou intersubjetivamente verdadeiros ou válidos. Cada agente, confrontado com a mesma tarefa ou problema, deverá, portanto, chegar aos mesmos resultados de medição (exceto, é claro, por um possível mau funcionamento do instrumento de medição). Mesmo simples observações sensoriais envolvem uma interferência ativa na natureza e a realização de distinções e medições. As observações também podem ser erradas, imprecisas ou enganosas. Para aspirar à categoria de observação “científica”, é necessário que as condições que um observador deve reunir (e ter cumprido) antes de fazer a sua observação sejam explicitamente declaradas, de modo que a mesma observação possa, em princípio, ser reproduzida por qualquer outro observador seguindo as mesmas regras de observação (onde e como ficar, o que e como procurar, etc.).
Ao contrário, então, da ideia que muitos cientistas têm de seu próprio ofício (e de sua importância), a engenharia, a tecnologia e a indústria não são ciências “aplicadas” e assim menos dignas que as “ciências puras”, pertencendo a uma categoria inferior. As coisas são exatamente o oposto. O que vem primeiro metodologicamente e o que torna possível a ciência tal como a conhecemos e fornece a sua base última é a construção e a engenharia humanas. Não haveria ciência nem dados científicos como os conhecemos sem réguas de medição, relógios, planos, retângulos, balanças, contadores, lentes, microscópios, telescópios, máquinas de raios X, ultrassom, e assim por diante. Como disse sem rodeios o grande filósofo e cientista alemão Peter Janich: a habilidade artesanal vem antes da habilidade linguística. E com base nessa visão sobre a primazia do artesanato, da técnica e da engenharia sobre toda “teoria”, podemos também descartar com segurança, como totalmente irrealista, a ameaça de um colapso de todo o nosso sistema de conhecimento, como a altamente popular filosofia “falsificacionista” de Karl Popper deve admitir como possível (para não ser descartada). Contrariamente ao que afirmam o falsificacionismo de K. Popper e os relativismos propagados por figuras proeminentes como Th. Kuhn, W. v. O. Quine e P. Feyerabend, nenhum falseamento de qualquer lei natural hipotética e nenhuma controvérsia científica aparentemente insolúvel relativa a paradigmas incompatíveis ou interpretações rivais de dados científicos jamais nos deixariam de mãos completamente vazias ou sobre bases instáveis. Podemos sempre recuar e confiar firmemente em nosso conhecimento “protocientífico” adquirido e praticado com sucesso dia após dia em nossa vida cotidiana (como homens-artesãos, trabalhando silenciosamente com nossos materiais).
As chamadas leis naturais, então, não dizem realmente respeito à natureza bruta e aos processos na natureza bruta. Em vez disso, as leis naturais são regras práticas ou técnicas gerais para organizar condições iniciais dentro do mundo material – algum arranjo experimental específico ou organização específica de instrumentos de medição padronizados ou dispositivos técnicos – os quais, deixados sozinhos e por si, sem qualquer intervenção adicional, sempre levarão ao mesmo resultado desejado. A generalidade e a universalidade de tais leis, portanto, não são hipotéticas nem necessitam de qualquer base indutiva, como é comumente sustentado. Estão, pelo contrário, implícitas no próprio fato de todos os procedimentos e todos os objetos ou configurações aplicáveis a tais procedimentos serem descritos em termos impessoais – trans ou intersubjetivos –, de modo a serem reproduzíveis à vontade por qualquer pessoa.
A verdade ou validade das leis naturais, portanto, não pode estar localizada em qualquer suposta “correspondência” das afirmações de um cientista com a realidade, isto é, de palavras com coisas. Porque a reivindicação de uma correspondência de suas proposições com a natureza é em si apenas uma afirmação (palavras), e a “teoria da correspondência da verdade” pode ser uma bela definição nominal de verdade, mas não fornece nenhum critério para decidir entre reivindicações diferentes e rivais de correspondência feitas por diversos cientistas (e é, portanto, inútil). As afirmações de verdade dos cientistas naturais não são validadas por outras afirmações (como a afirmação de uma correspondência, por exemplo), o que levaria em última análise a um regresso infinito de justificações proposicionais, mas por ação e reprodução bem-sucedidas no mundo material (de pedras, plantas e animais). A verdade e as proposições verdadeiras são os meios intelectuais para se alcançar o sucesso prático – levando-se em consideração objetivos humanos específicos. E qualquer falha na consecução de um objetivo específico não é um falseamento da natureza e do seu comportamento conforme uma lei, mas revela, em vez disso, algum erro humano que necessita de reparação: ou a receita de ação não foi seguida corretamente e na ordem certa – como quando um cozinheiro de schnitzel primeiro frita a carne e só depois adiciona a cobertura (panade) e, portanto, erra o objetivo – e assim a receita deve ser indicada com mais clareza; ou então os vários instrumentos de medição, aparelhos ou dispositivos técnicos utilizados nos esforços científicos eram defeituosos e não serviam ao propósito para o qual foram construídos. E eles não são defeituosos por natureza – uma régua de medição elástica ou uma calculadora ou relógio defeituoso, por exemplo, fazem parte da natureza tanto quanto uma régua de medição rígida ou uma calculadora ou relógio que funcione bem – e não há como determinar pelos métodos disponíveis ao cientista natural se um instrumento está defeituoso ou não. Ele pode comparar os instrumentos em termos naturalistas. Ele pode comparar uma régua de medição, calculadora ou relógio com outro, mas tal comparação não revela qual deles, se houver, está com defeito ou não. Isso só pode ser determinado pelo cientista natural na medida em que ele (ao contrário da natureza) possui objetivos humanos e pode descobrir e testar na prática se eles realmente servem ou não aos seus propósitos.
IV
Embora as ações instrumentais que fornecem a base de toda a nossa cultura material, bem como de todas as ciências naturais, sejam atos silenciosos, e o sucesso (ou fracasso) instrumental também possa ser determinado em silêncio por um agente (independentemente do que outras pessoas digam ou façam), tais ações, como já foi observado anteriormente, são tipicamente aprendidas durante a comunicação e cooperação com outras pessoas, e são, mesmo quando realizadas em silêncio, eventos inteligíveis que podem ser descritos em termos de alguma linguagem pública.
Voltando finalmente a nossa atenção à ação comunicativa, tema das chamadas ciências sociais, algumas observações gerais devem ser feitas logo de início. A ação comunicativa é o uso que uma pessoa faz de palavras, frases ou símbolos significativos – de uma linguagem pública comum – dirigidos a outra(s) pessoa(s) com o objetivo de afetar ou alterar a sua conduta e/ou a sua percepção da realidade em uma determinada direção. Enquanto o significado de “mudança de conduta” não exige maiores explicações, a noção intimamente relacionada de “mudança na percepção da realidade” merece uma atenção maior.
Ao aprender uma língua nativa em jogos de linguagem wittgensteinianos, em que o uso correto e comum de palavras e sentenças é treinado e exercitado pela execução bem-sucedida de certas ações, e o exercício de ações por sua vez é corrigido pelo uso de certas palavras, as pessoas adquirem uma percepção da realidade amplamente (se não inteiramente) comum. Todos nós, mesmo as criancinhas, discernimos confiante e seguramente pedras, plantas e animais como objetos naturais ou dados pela natureza. Da mesma forma, podemos confiante e seguramente discernir coisas naturais, de um lado, e instrumentos e objetos de uso, de outro. Todos os instrumentos – e mais geralmente ainda: todos os meios –, como um martelo, uma colher, um carro, um cigarro, um lápis, etc., podem ser reconhecidos e identificados como um martelo, uma colher, etc. somente na medida em que nós (o homem) podemos atribuir a eles um propósito humano. Sem propósitos humanos “subjetivos”, nenhum martelo, colher, etc. existiria, ou melhor, nenhuma coisa “objetiva” poderia jamais ser identificada como um martelo ou uma colher.
Mais importante ainda, porém, é que, ao adquirirmos uma linguagem e uma percepção comum de mundo, passamos a saber também sobre a existência de fatos e instituições “sociais”, ou seja, fatos e instituições relativos às relações entre o homem e o homem (e não entre o homem e a natureza). A instituição social mais fundamental, decerto, é a própria linguagem comum enquanto meio de comunicar e coordenar as ações de alguém com as de outras pessoas. No entanto, juntamente com a linguagem, que fornece a base para a criação de todos os outros fatos e instituições sociais, também aprendemos sobre fatos e instituições tais como propriedade, commodities, trocas, vendas, dinheiro, preços, contratos, promessas, saudações, elogios e críticas, casamento, divórcio, paternidade, família, parentes, empresas, clubes, associações, empregadores e empregados, superiores e subordinados, nomeações e demissões, e assim por diante. Todos esses fatos e instituições também têm alguma expressão ou traço no mundo material, assim como palavras significativas têm algum aspecto físico-material como suporte. Mas, tal como acontece com as palavras significativas, nenhum desses fatos e instituições faz parte da realidade da mesma maneira que o faz a natureza bruta ou os instrumentos materiais. Pelo contrário, todas elas concernem, definem, constituem ou regulam as relações interpessoais, e todas desapareceriam da realidade se não existisse uma comunidade de homens comunicantes e cooperantes (e o número, alcance e variedade de tais fatos e instituições diminuiriam sucessivamente, quanto menor fosse ou se tornasse tal comunidade).
Podemos agora, então, definir mais precisamente a linguagem como um meio de falar com outras pessoas a fim de coordenar as nossas ações dentro de uma realidade comum, i.e., uma realidade percebida em termos em grande parte, se não inteiramente, idênticos, composta de natureza bruta, coisas e instrumentos manufaturados e de fatos e instituições sociais, sobretudo a instituição da propriedade, i.e., da estipulação do meu e do teu.
Assim circunscrita, e mesmo antes de analisar com mais detalhes as reivindicações de verdade associadas às ações comunicativas e os métodos para validá-las, uma observação geral e aparentemente surpreendente logo vem à mente. As conquistas das ciências sociais são frequentemente menosprezadas ou mesmo ridicularizadas. E tendo em vista grande, se não a maior, parte da sociologia e da economia acadêmicas contemporâneas, esta avaliação é certamente merecida. No entanto, isso não nos deve impedir de notar um fato bastante óbvio: se a linguagem e a fala são e fazem por nós no mundo social (composto por outras pessoas e suas ações) o que a engenharia é e faz por nós no mundo das pedras, plantas, animais e instrumentos feitos pelo homem e seu funcionamento, então devemos chegar à conclusão de que somos realmente bem-sucedidos como engenheiros sociais (criadores de discursos), como pessoas que realizam coordenação e cooperação por meio da fala.
E ainda podemos identificar facilmente a razão desse sucesso. Sabemos mais sobre outras pessoas do que jamais saberemos sobre pedras, plantas e animais. Sabemos, por exemplo, que os movimentos de uma pessoa no espaço e no tempo não são eventos naturais (e assim ininteligíveis) resultantes de causas materiais (as quais ninguém poderá saber por que funcionam da maneira que funcionam), mas que esses movimentos têm uma razão: que têm um começo e um fim e envolvem a seleção proposital de certas coisas por uma pessoa como meios na busca de fins pessoais. Em contraste com a natureza, então, podemos “begreifen” (ou compreender) os movimentos humanos (incluindo o movimento de não se mover) como atividades (ex ante) racionais dirigidas a objetivos. (Em Ação Humana, Mises usou os termos “concepção” e “cognição conceitual” em vez do substantivo e do verbo alemão mais apropriado “Begreifen” e “begreifen” para se referir às características universais de todas as ações.) E toda a economia – ou antes: praxeologia – é algo que pode ser “begriffen”.
Da mesma forma, acima e além de “begreifen” o que todas as ações humanas têm em comum, também podemos compreender – “verstehen” – as razões e propósitos únicos, individuais ou pessoais de um agente específico, por exemplo Peter, e distingui-los dos de outro, por exemplo Paulo. (Em contraste: não podemos compreender pedras, plantas ou animais; e, portanto, o comportamento de uma pedra ou do membro de uma espécie ou subespécie específica de planta ou animal, submetido, é claro, às mesmas condições, tratamentos ou treinamentos, não pode ser distinguido do comportamento de outro membro da mesma espécie – ao passo que as condutas de Pedro e Paulo podem ser claramente distinguidas, mesmo que eles realizem ações fenomenologicamente idênticas sob idênticas condições.)
Agora: analisando mais de perto as ações comunicativas – e o nosso discurso reflexivo acerca da ação comunicativa (que em si é uma ação comunicativa, e de fato o tipo de ação no qual estive envolvido aqui o tempo todo) –, a fim de esclarecer o seu status epistemológico, notamos imediatamente que a comunicação interpessoal pode ter uma grande variedade de propósitos e, correspondentemente, uma grande variedade de sucesso e de fracasso.
O meu objetivo aqui, neste esforço, por exemplo, é apresentar uma sequência inteligível de argumentos que possam, em princípio, ser seguidos, repensados e recapitulados por todos de maneira independente, de modo a produzir uma percepção comum da realidade relativamente a determinado assunto. No entanto, o tempo é escasso e cada ação tem o seu custo de oportunidade, e assim a maior parte da comunicação humana serve a outros propósitos que não a defesa da verdade de algumas proposições. Usamos palavras ou sinais significativos para chamar alguém ou chamar atenção para algo. Usamos palavras para comandar, avisar, perguntar, explicar, cumprimentar, pedir desculpas, prometer, oferecer, conversar, contar uma história ou uma piada, e para inúmeros outros propósitos.
Assim, o sucesso (ou fracasso) de uma ação comunicativa que visa à coordenação pode assumir muitas formas, mas em qualquer caso depende de um feito duplo. A compreensão do conteúdo proposicional do discurso e a aceitação de sua finalidade e modo de propô-lo.
A coordenação é bem-sucedida quando eu lhe peço que me traga uma banana e você me traz uma banana, ou quando eu o cumprimento e você me cumprimenta de volta. Não é bem-sucedida quando você não sabe o significado de “banana” ou de “traga” ou desconhece a instituição social da “saudação” – e em vez disso você me mostra um ursinho de pelúcia ou responde ao meu pedido ou saudação dizendo, por exemplo, “Tenho 60 anos” (indicando que você não entendeu todo o propósito do meu ato de fala). Da mesma forma, a coordenação não terá sucesso se você entender o que eu digo mas rejeitar minha proposta e responder, por exemplo, “Não recebo ordens suas” ou “Não tenho tempo”, ou simplesmente se afastar de mim.
Além disso e de maneira ainda mais importante, a coordenação malsucedida (descoordenação) pode assumir duas formas ou resultados possíveis: um “simples” desapontamento ou um “grave” conflito. Depois que você (decepcionantemente) recusou meu pedido ou não respondeu à minha saudação (e meu ato de fala falhou), nós dois continuamos com nossas tarefas diárias como antes, eu com os meus recursos sob o meu controle e você com os seus sob o seu. Um caso de desapontamento.
Disso resulta um conflito se, em vez de você me trazer uma banana ou retribuir meus cumprimentos (comunicação bem-sucedida) ou se afastar de mim (comunicação decepcionante), você responder, por exemplo, tomando da minha mão um livro sob os meus protestos ou me puxando o cabelo. Da mesma forma, o conflito resultará se eu responder à sua decepcionante recusa agarrando seu casaco ou seguindo-o contra sua vontade até sua casa (anteriormente sob seu indisputado controle). Em ambos os casos entramos em conflito, porque queremos utilizar os mesmos meios escassos – a faca, o cabelo, o casaco, a casa – para fins incompatíveis. Devido à escassez de meios físicos, apenas um propósito pode ser realizado e cumprido. O conflito é inevitável.
Como já observado antes, muito mais comunicação é bem-sucedida, tanto em ser compreendida como em ser aceita pelo que é, do que não. E se a comunicação não for bem-sucedida e não conseguir atingir o seu fim de coordenação interpessoal, estes fracassos serão, na sua maioria, meras desilusões (que podem, no entanto, ser desastrosas, é claro, bastando pensar nalguma falência devido à falta de compradores dos bens colocados à venda). A falha na comunicação sob a forma de conflito é uma ocorrência comparativamente rara (a sua notoriedade derivando dessa raridade). Em geral, somos incrivelmente bem-sucedidos como falantes em promover a coordenação.
Além disso, mesmo quando a ação comunicativa falha em obter a coordenação, temos um método pelo qual aprendemos e a melhoramos. Por um lado (quanto ao conteúdo proposicional do nosso ato de fala), para reduzir o fracasso podemos aumentar o vocabulário e aprender a tornar o significado das nossas palavras e frases mais claro e preciso. Por outro lado (no que diz respeito ao modo e ao propósito do nosso discurso), podemos aprender a compreender melhor as instituições sociais estabelecidas e a transmitir a adequação ou legitimidade do nosso discurso em determinadas circunstâncias, aumentando assim a probabilidade de aceitação e coordenação bem-sucedida. Então, ao aprender a falar melhor, ao aprimorar nosso domínio da linguagem e os usos que lhe podem ser dados, aumentamos a probabilidade de as nossas ações resultarem em coordenação e, portanto, de serem bem-sucedidas.
(Evidentemente, nem todas as pessoas são igualmente capazes neste aspecto, i.e., no domínio da linguagem como uma ferramenta para o fim da coordenação interpessoal. Existem “mestres” da linguagem, que podem usar palavras para levar as pessoas a fazer quase qualquer coisa, que sabem expressar ou inventar expressão para quase tudo, e sabem selecionar as palavras corretas – promotoras de coordenação – em quase todas as circunstâncias. E há outros, no extremo oposto, como pessoas autistas ou com síndrome de Asperger, cujo domínio da fala e dos atos de fala, e portanto sua capacidade de interagir com sucesso com outras pessoas, é extremamente limitado. As questões nesse aspecto, ou seja, na área da engenharia social, não são fundamentalmente diferentes das do campo da engenharia da natureza. Aqui, também, temos “mestres” engenheiros, que podem fabricar e consertar quase tudo – todas as ferramentas e máquinas. E temos pessoas que não conseguem desenhar uma linha reta ou enfiar um prego na parede. Mas, de qualquer maneira, todos os que podem agir, i.e., toda pessoa, conseguem fazer ambas as coisas: tanto alguma engenharia, i.e., uma transformação proposital da natureza, quanto alguma comunicação, i.e., transformar o mundo social e levar outras pessoas por meio de palavras ou sinais a fazer certas coisas.)
Da mesma maneira, mesmo no caso comparativamente raro de conflitos – confrontos físicos – também aprendemos na vida cotidiana um método de resolução: a saber, a argumentação. Conflitos (e não meros desapontamentos) é que são o resultado de reivindicações rivais ou incompatíveis por uma mesma coisa. Ou seja, trata-se de disputas de propriedade: isto é meu ou teu? Para resolver semelhantes contendas, foi estabelecida a instituição de uma “avaliação pública de argumentos”. O objetivo de uma avaliação pública de argumentos é, então, substituir o conflito por uma interação pacífica.
(Na tradição intelectual austrolibertária, seguindo em grande medida os passos de Murray Rothbard, foi elaborado um sistema de direitos de propriedade cuja implementação poderia, em princípio, ajudar a evitar todos os conflitos e ser consultado como guia em qualquer situação real de conflito. – Eu mesmo escrevi extensivamente sobre o assunto, mas a ênfase neste ensaio será sobre as questões “positivas” e não “normativas” e retornarei ao tópico da resolução de conflitos por meio da argumentação apenas brevemente ao final das minhas reflexões.)
V
No que diz respeito, então, às reivindicações de verdade ligadas aos atos comunicativos e às proposições relativas a tais atos, chegamos novamente ao sucesso (ou fracasso) da ação como critério último e decisivo da verdade (ou falsidade) (mesmo que a situação aqui se revele significativamente diferente do caso de ação instrumental e sucesso (ou fracasso) instrumental). Se um falante (escritor) atingiu seu objetivo e seu(s) destinatário(s) responde(m) conforme desejado, podemos dizer que sua receita de palavras era verdadeira, dados seu propósito e situação específicos. E uma proposição relativa aos atos comunicativos de uma pessoa pode, em princípio, ser validada como verdadeira pelo consentimento da pessoa em questão ou pela confirmação da descrição dada dos seus próprios atos pelo proponente (desde que essa testemunha pessoal não esteja a mentir ou com a intenção de enganar outras pessoas relativamente aos seus próprios atos ou propósitos – contingência esta que o proponente teria aprendido a descartar com base em alguma evidência pública).
No entanto, a questão crucial relativamente às ações comunicativas é (e parece sempre ter sido) se podem ou não existir leis sociais no mesmo sentido em que podemos falar de leis naturais. Ou seja, podemos formular regras ou receitas do falar (ou do escrever) que, se aplicadas sob condições idênticas, isto é, condições expressas em termos impessoais ou trans-subjetivos (de modo a serem reproduzíveis ou replicáveis por outras pessoas), produzirão sempre a mesma resposta no(s) destinatário(s)?
Com base no que já foi explicado, a minha resposta a esta pergunta não pode deixar dúvidas. Mesmo que muitos dos chamados cientistas sociais acreditem em tais leis e as procurem diligentemente, todo o esforço é equivocado e condenado ao fracasso desde o início. E a razão fundamental para a impossibilidade de quaisquer leis sociais já foi identificada. É o fato de os humanos poderem compreender-se – “verstehen” – mutuamente uns aos outros e, com base nessa compreensão, reconhecerem-se uns aos outros e às suas respectivas ações como únicas e diferentes umas das outras. Consequentemente, é impossível para o cientista social fazer o que o cientista natural sempre faz tão naturalmente: descrever a cláusula “se” de suas proposições em termos naturalísticos ou “objetivos” – em termos de um arranjo experimental de vários objetos materiais ou de sua medição por instrumentos de medição padronizados –, o mesmo acontecendo com a cláusula “então” das proposições – também a descrição de algum evento em termos naturalísticos.
Mesmo que o cientista social consiga organizar condições externas idênticas – de objetos naturais e artificiais, bem como de outras pessoas – em torno de um determinado agente, e mesmo que todas as características naturalísticas de diferentes atores (como peso, altura, idade, etc., etc.) sejam controladas (mantidas constantes), pessoas diferentes, Pedro e Paulo, ainda permanecem objetos de estudo reconhecidamente diferentes (e, portanto, não existe nenhuma cláusula “se” geral e generalizável). A razão para isso é que toda e qualquer ação de uma pessoa é fundamentalmente e em última instância motivada por seus juízos de valor pessoais: pelo valor subjetivo atribuído por um agente aos seus vários objetivos potenciais e, mais especificamente, por sua preferência subjetiva – ou ordenação de tais objetivos concorrentes ou rivais em qualquer ponto no tempo. E assim não possuímos, e nunca possuiremos, um instrumento que (satisfazendo o requisito de medição “científico” da “trans-subjetividade” mencionado anteriormente) nos permitiria medir e comparar “cientificamente” os valores e ordens de preferência de diferentes pessoas. Valores e preferências (tal como propósitos) não fazem parte do mundo exterior “objetivo”, e não existem unidades de valor ou de utilidade ou de graus de preferência. Assim, não havendo como assegurar a identidade ou a igualdade de algumas condições iniciais (a cláusula “se”) para diferentes atores, nenhuma lei social geral é possível.
Esse insight também é reafirmado por uma análise da suposta cláusula “então” das supostas leis sociais. Mesmo que diferentes atores, agindo sob as mesmas condições externas, realizem as mesmas ações comunicativas (de um ponto de vista naturalista ou fenomenológico), e mesmo que considerem as suas ações igualmente bem-sucedidas (porque o(s) destinatário(s) da sua fala responderam como esperado), isso não significa que os resultados para eles sejam os mesmos. Porque esses resultados, quaisquer que sejam, também são avaliados subjetivamente, e não apenas pelos interlocutores iniciais, mas também pelos respondentes responsivos (ou irresponsivos) subsequentes. O mesmo sucesso pode ser valorado, ponderado ou avaliado de forma bastante diferente por pessoas diferentes, pode ter efeitos diferentes nas suas escalas de valores pessoais e pode levá-las a conclusões diferentes relativamente às suas ações futuras e subsequentes. (Assim, novamente: não se garantindo tampouco a igualdade ou identidade do resultado, nenhuma cláusula geral pode ser formulada – como seria exigido para se propor uma lei.)
No que diz respeito a ações instrumentais, i.e., às nossas operações intencionais com a natureza e materiais naturais (incluindo plantas, animais e corpos humanos), o significado e as implicações do sucesso e do fracasso são sempre claros e inequívocos. Sucesso instrumental significa: dadas as mesmas circunstâncias externas e os mesmos propósitos de fabricação ou engenharia, aplica-se a mesma receita; e falha instrumental significa: não se aplica a mesma receita para o mesmo propósito no futuro. Na verdade, proceder de outra forma e tentar novamente uma receita fracassada, na esperança de que os resultados da próxima vez possam ser diferentes, qualificá-lo-ia como um “idiota”, de acordo com a definição deste termo amplamente atribuída a A. Einstein.
Mas nada disso se aplica à ação comunicativa, i.e., à conversa de um homem para outro. Aqui, tanto o sucesso como o fracasso da comunicação de uma pessoa com o(s) seu(s) destinatário(s) envolvem uma mudança no mundo social, e esta mudança, por sua vez, pode afetar uma mudança nas escalas de valores subjetivos e nas ordens de preferência de diferentes pessoas. Resumindo: a situação pessoal mudou ao longo do tempo e não há razão para supor que o que funcionou e levou ao sucesso hoje deva necessariamente fazê-lo também amanhã; e não há nada de totalmente idiota em tentar novamente hoje ou amanhã uma receita comunicativa que falhou no passado. Ou seja, nunca podemos descansar sobre os louros do passado como comunicadores, mas devemos atualizar e refrescar continuamente a nossa compreensão – “verstehen” – de outras pessoas, a fim de (talvez) ter sucesso novamente na nossa comunicação com elas também na próxima vez.
Além disso, e de forma ainda mais geral, independentemente de estarmos considerando ações instrumentais silenciosas ou ações comunicativas falantes, para todas as ações humanas (incluindo as minhas) afirma-se que elas nunca podem ser previstas da mesma forma que é possível prever o comportamento de pedras, plantas e animais ou do corpo humano. A simples razão para isso é o fato inegável de que podemos aprender e também comunicar o que aprendemos a outras pessoas. Nenhum cientista, seja da natureza, seja da sociedade, pode negar essa capacidade; isso não só é demonstrado pela forma ou método pelo qual todos nós adquirimos uma língua nativa comum (e o conhecimento sobre o mundo contido nesta língua), mas, mais especificamente, toda a raison d’être de cada pesquisador, independentemente do seu assunto particular, é experimentar e aprender algo sobre a realidade que ainda não tenha sido experimentado e aprendido por ele antes. No entanto, obviamente, nenhum investigador (e nenhum agente) pode prever antecipadamente quais novas experiências e conhecimentos a sua investigação trará à luz até que a tenha efetivamente realizado (caso contrário, por que se importar?). Ninguém pode já saber hoje, ou em qualquer ponto no tempo, o que só saberá em um ponto posterior no tempo e, consequentemente, o que fará ou dirá com base nesse conhecimento posterior. A previsão sempre chega tarde demais. Einstein, por exemplo, não poderia ter previsto e explicado a teoria da relatividade antes de tê-la efetivamente formulado. Steve Jobs não poderia ter previsto e explicado a receita para construir um computador Apple até que ele a tivesse feito e aplicado. E não havia nenhuma Mona Lisa antes de Da Vinci a ter pintado. A classe das ações humanas, portanto, é uma classe aberta, com um número indeterminado de elementos. Conhecemos algumas, mas não todas as ações potenciais (assim como conhecemos algumas palavras e expressões significativas, mas não conhecemos e nunca conheceremos todas as palavras ou expressões potenciais a serem usadas).
Assim, definitivamente a previsão das ações humanas não é uma “ciência” no sentido usual do termo. Mas, como as nossas experiências cotidianas confirmam repetidamente, também não se trata de uma adivinhação aleatória. Trata-se, se quiserem, de empreendedorismo, no sentido mais amplo do termo. Ao longo de toda a nossa vida tentamos ajustar-nos com sucesso ao nosso entorno e às mudanças no nosso entorno composto de natureza bruta, materiais produzidos pelo homem, plantas e animais criados, domesticados e treinados, e outras pessoas. No que diz respeito às ações instrumentais, não somos infalíveis, é claro, mas podemos alcançar um grau relativamente elevado de certeza; e as melhorias e inovações técnicas são previsivelmente imitadas e adotadas também por outras pessoas. Contudo, no que diz respeito às ações comunicativas, as nossas previsões dizem respeito à resposta de outras pessoas capazes de aprender e são, portanto, sempre mais especulativas e sujeitas a um maior grau de incerteza.
Entretanto, como mencionado anteriormente, temos e conhecemos um método para reduzir essa incerteza: todas as respostas são respostas a serem atribuídas a algum(s) ator(es) específico(s), e somos capazes, em princípio, de compreender – “verstehen” – cada pessoa e por que motivo e com que propósito ela faz o que faz (ou fez o que fez).
O principal método de “verstehen”, como indicado anteriormente, é a aquisição de uma linguagem comum. É obviamente mais difícil compreender e prever as ações dos nossos semelhantes se não partilharmos a mesma língua. Compartilhar uma língua é ver o mundo em termos parecidos, e isso ajuda significativamente a dar sentido à conduta de outras pessoas. Esse instrumento não é de forma alguma perfeito: algumas pessoas são mais bem-sucedidas na compreensão dos outros e mais capazes de fazer distinções, seja em palavras, seja em atitudes, do que outras; e a própria instituição social de uma língua comum não é rigidamente “dada”, mas pode sofrer mudanças consideráveis, mesmo que tipicamente lentas e em grande parte marginais, ao longo do tempo; mas ninguém pode prescindir inteiramente da linguagem e mesmo a pessoa mais estúpida é capaz de ter alguma compreensão básica dos outros. Da mesma forma, ao observar repetidamente e compreender – “verstehende” – as ações e a comunicação de uma pessoa, somos capazes de desenvolver o conceito do seu caráter ou tipo de personalidade: além da tipologia mais óbvia de homem e mulher, podemos formar a de introvertido ou extrovertido, desajeitado ou esperto, tímido ou ousado, estúpido e preguiçoso ou curioso e ambicioso, hedonista ou acumulador, oportunista ou honesto, etc., etc. Esses e outros tipos de personalidade nem sempre são claramente diferenciados uns dos outros, e o caráter de uma pessoa pode e provavelmente irá mudar com o tempo. Mas a curto e médio prazo (ou por tempo indeterminado) a compreensão do caráter de outra pessoa acrescenta algum grau de constância e confiança (temporárias) às nossas deliberações, porque delineia de certa forma os limites prováveis de sua conduta e assim nos ajuda a prever melhor sua futura ação.
Junto com a aquisição de uma linguagem comum vem a nossa compreensão da propriedade, como a segunda instituição social mais importante. Já quando crianças aprendemos a distinguir entre o meu e o teu, entre as coisas que pertencem a mim (ou aos meus pais) e as coisas que pertencem aos outros. Nenhuma sociedade pode existir sem essa instituição (a menos que retorne à luta animalesca por sobrevivência). A instituição social da propriedade privada ou individual também não é fixa, tal como a linguagem, mas mutável e sujeita a potenciais mudanças futuras. E, acima de tudo, são as disputas relativas a propriedade – isso é meu ou seu, e posso ou não fazer isso com tal coisa? – que estão na base de todos os conflitos. Mas, em qualquer caso, a instituição social da propriedade é, por assim dizer, uma instituição “conservadora” que normalmente sofre apenas mudanças lentas, graduais ou incrementais (exceto no raro advento de uma revolução violenta). Saber que quantidade e qualidade de coisas uma determinada pessoa pode chamar de suas, i.e., de sua propriedade, e o que os outros membros da comunidade falante circundante chamam de seu, é de grande ajuda na previsão de suas futuras ações. Isso porque a quantidade e a qualidade da propriedade de uma pessoa exercem bem limitadas restrições à sua gama de possíveis ações futuras.
Por último, mas não menos importante, as pessoas normalmente passam um tempo considerável desempenhando funções ou papéis aprendidos juntamente com uma infinidade de outras instituições sociais. Exercemos os papéis de pais, de maridos e esposas, de filhos, tios e tias, policiais, professores, estudantes, médicos, garçons, vendedores, empresários, corretores, banqueiros, membros de clubes de xadrez ou de futebol, padres, papas, presidentes, reis, etc., etc. Nenhum desses papéis ou funções é rigidamente definido, diferentes papéis podem ser assumidos por uma mesma pessoa em diferentes momentos (e alguns podem ser assumidos simultaneamente); algumas instituições, papéis e funções podem tornar-se obsoletos, novos papéis e funções podem ser estabelecidos e, claro, as pessoas podem por vezes se desviar do seu papel e falhar no desempenho da função assumida. No entanto, nada disso altera o fato básico de que a previsibilidade das ações futuras de outra pessoa aumenta bastante uma vez conhecidos os papéis e funções atuais desempenhados e exercidos por essa pessoa. Permanece, invariavelmente, um elemento de incerteza, e cada papel e função deixam algum espaço para interpretação pessoal. Mas cada papel e função também implicam regras, rotinas e padrões gerais, e a previsão da conduta de pessoas exercendo determinados papéis ou funções é, portanto, muitas vezes pouco mais do que uma questão de rotina.
Com base, então, no conhecimento adquirido por meio (ou pelo método) da “verstehen” e seus vários aspectos e técnicas indicados, os cientistas sociais podem apresentar listas aparentemente intermináveis de “estatísticas agregadas”: tais e tais pessoas que disseram ou fizeram isto e aquilo em tal ou qual situação com tal ou qual frequência agora ou ao longo do tempo; e assim associações estatísticas, séries temporais, correlações e correlações cruzadas vão sendo encontradas entre vários fenômenos sociais ou constructos estatísticos. Alguns dos resultados dessa “pesquisa” são pouco mais do que retratos momentâneos, hoje irrelevantes e amanhã obsoletos. Alguns são simplesmente triviais, de forma que qualquer pessoa comum já conhecia os resultados antes de serem apresentados pelo “pesquisador”. Alguns resultados (e cada vez mais) são meras invenções, falsificações e fraudes, com o objetivo não de esclarecer o público, mas sim de enganá-lo propositalmente (seja por ordem de outros, por dinheiro ou por convicção pessoal). Mas a investigação social baseada em “verstehen” também pode trazer à luz (e por vezes ainda o faz, mesmo num ambiente de pesquisa social cada vez mais censurada) alguns resultados importantes e surpreendentes (incluindo, por exemplo, a enorme quantidade de fraude cometida e encomendada na era atual em nome da “ciência”) e genuinamente esclarecer o público sobre algumas tendências e desenvolvimentos sociais de longa duração ou padrões sociais de mudança lenta e gradual, i.e., fatos sociais que não podem ser alterados instantaneamente ou por pura vontade, mas que são de grande importância prática para todos os homens enquanto “empreendedores” conhecerem e levarem em conta na sua preparação para o futuro e na sua própria conduta futura.
Ainda assim, mesmo os resultados mais esclarecedores que as ciências sociais (empíricas) trouxeram à luz ou o farão no futuro jamais devem ser considerados leis (sejam do tipo determinístico, sejam do tipo probabilístico). São – e nunca poderão ser outra coisa senão – insights sobre eventos, correlações, desenvolvimentos, tendências ou padrões únicos na história.
VI
No entanto: para além da pesquisa social empírica baseada em “verstehen” relativa à história e aos acontecimentos ou desenvolvimentos históricos, nós – o homem cotidiano, bem como o cientista social profissional – temos um método adicional disponível para compreender o mundo social. Um método, na verdade, que pode produzir conhecimento com um grau de certeza ainda maior do que aquele associado ou atribuído a qualquer lei natural (sem alegar infalibilidade). Mencionei brevemente o tópico da “begreifen” (análise conceitual) antes. Não sabemos nem nunca saberemos por que a natureza funciona da maneira que funciona. Ela simplesmente é assim. Entretanto, sabemos mais sobre o homem do que sobre qualquer coisa natural. Sabemos que o homem faz o que faz por uma razão e com um propósito, i.e., com um estado de coisas futuro em mente; sabemos que tudo que o homem enquanto empresário faz, ele o faz com meios considerados adequados para atingir fins; e sabemos tudo isso com certeza apodítica (ou a priori), uma vez que não podemos contestar tal conhecimento sem, com isso, afirmar a sua mesma verdade (na medida em que a sua negação é em si uma ação intencional e dirigida a um objetivo). E, ao mesmo tempo, nunca poderemos prever “cientificamente” o conteúdo específico das nossas próprias ações futuras ou das ações futuras dos nossos semelhantes, i.e., as nossas escolhas específicas de fins e meios num ambiente em constante mudança; de modo que (como acabamos de demonstrar), com base no nosso conhecimento apriorístico relativo à estrutura formal de toda a ação humana, podemos deduzir um número impressionante de conclusões igualmente a priori (universalmente válidas). Essas conclusões ou são implicações diretas do conceito de ação ou se trata de conclusões obtidas indiretamente, em conjunto com certas condições ou premissas empíricas iniciais explicitamente declaradas (e empiricamente verificáveis), e nos permitem fazer previsões também apodíticas (não falseáveis) de importância central relativamente ao mundo social, contanto apenas que essas condições iniciais sejam de fato atendidas e cumpridas.
Estou aqui falando e escrevendo para um público que está familiarizado ou prestes a se familiarizar com o trabalho intelectual em particular de Ludwig von Mises e Murray Rothbard. E é na magnum opus AÇÃO HUMANA de Mises e em HOMEM, ECONOMIA E ESTADO de Rothbard que podemos encontrar um sistema bastante elaborado de tais proposições apodíticas e podemos vir a reconhecer e apreciar a sua grande importância, não apenas para a nossa compreensão e interpretação de acontecimentos passados, mas em particular também no que diz respeito à previsão de acontecimentos futuros.
Apresentarei aqui apenas alguns exemplos de tais proposições para dar uma ideia do seu status epistemológico e de sua importância prática.
Não conhecemos todos os potenciais objetivos humanos, mas sabemos com certeza que, sejam eles quais forem, supõe-se que tragam uma melhoria no bem-estar do agente; e sabemos com certeza que onde e quando uma pessoa faz o que faz, ela sempre o faz porque o considera, nessa situação, o seu objetivo ou fim mais altamente valorizado ou mais urgentemente necessário.
Não conhecemos todos os potenciais meios empregados pelo homem em suas atividades, mas sabemos com certeza que tudo o que é usado como meio por um agente deriva seu valor e torna-se um “bem” para ele a partir do valor atribuído pelo agente ao fim ou objetivo que com ele pretende atingir. Assim também, embora não possamos prever as mudanças no valor subjetivo associado a vários fins, podemos prever com certeza que um valor superior (ou inferior) atribuído a um determinado objetivo, seja ele qual for, também aumentará (ou diminuirá) o valor dos meios ou bens utilizados para produzir esse objetivo, e que a descoberta da adequação de certos meios para outros e maiores objetivos aumentará o valor de tais meios.
E, embora não possamos saber (prever cientificamente) que coisa ou entidade poderá ser usada como meio ou bem pelo homem, podemos com certeza saber que, para tudo o que já foi considerado um bem por um agente, ele prefere ter mais desse bem a ter menos. E sabemos com certeza que, à medida que mais e mais unidades de um determinado bem são adicionadas ao nosso suprimento, menor é o valor atribuído a cada unidade desse bem, já que esta só pode ser utilizada para a satisfação de fins ou necessidades cada vez menos importantes na escala de preferências (lei da utilidade marginal decrescente).
Além disso, embora não possamos prever com segurança as localizações futuras de um agente (onde e quando ele estará), podemos com segurança prever que ele nunca poderá estar em dois lugares ao mesmo tempo, nem nunca executar simultaneamente duas ações contrárias ou contraditórias (como subir e descer as mesmas escadas ao mesmo tempo). (A propósito, repare que os popperianos teriam de qualificar estas proposições como não científicas, por serem aparentemente não falseáveis, e contudo o princípio do álibi, por exemplo, implicado na primeira proposição, constitui uma ferramenta indispensável em praticamente todas as investigações criminais, como qualquer leitor ou espectador de histórias policiais sabe, e ninguém jamais pensou em questioná-lo ou abandoná-lo.)
Nós não podemos prever “cientificamente” que tipos de bens ou produtos o homem irá produzir nem que tipos de bens ou produtos ele irá consumir, mas sabemos com toda a certeza que não pode haver consumo sem prévia produção, e também estamos certos de que o que é consumido hoje não pode ser consumido novamente amanhã. Da mesma forma, estamos certos de que o homem não pode, por um período longo de tempo, consumir mais bens do que produz (a menos que roube dos outros), e que é apenas através da poupança, consumindo menos do que produz, que ele pode possivelmente aumentar sua própria prosperidade.
Não podemos fazer previsões seguras e certas sobre onde, quando e que tipos de trocas (sejam de bens materiais, sejam de bens imateriais, como palavras ou gestos, por exemplo) ocorrerão entre as pessoas, mas sabemos com certeza que, para que qualquer troca voluntária ocorra, é necessário que ambas as partes esperem obter melhores resultados com a troca, que atribuam valores desiguais aos bens a serem trocados e que tenham uma ordem de preferência oposta em relação eles. E estamos certos e seguros de que qualquer troca não voluntária, seja qual for o seu objeto, melhora a situação de uma parte à custa de piorar a situação da outra.
Assim também, desde o início da história humana, não podemos saber que tipo de coisa se tornará dinheiro, i.e., um meio comum de troca, quanto tempo levará para manter o seu estatuto de dinheiro, ou que outra coisa poderá tomar seu lugar no futuro. Mas, para qualquer sociedade que exceda o tamanho de um único agregado familiar e com um mínimo de divisão de trabalho, podemos, com base no nosso conhecimento apriorístico relativo à estrutura universal da ação, deduzir e prever com segurança a emergência de algum meio comum de troca. Porque qualquer troca direta de bens ou serviços exige uma dupla coincidência de desejos. Eu devo querer o que você tem e você deve querer o que eu tenho. No entanto, esse obstáculo e limitação ao intercâmbio direto pode ser ultrapassado e as condições para o agente melhoradas através do intercâmbio indireto. Uma pessoa que não consegue obter o que deseja em uma troca direta pode aumentar suas chances de obtê-lo se conseguir primeiro adquirir um bem mais comercializável, e por ele adquirir o produto final. Esta prática aumenta ainda mais a comercialização do bem em questão e estimula outros a seguirem o exemplo. Assim, passo a passo, através da imitação racionalmente motivada, um meio comum de troca emerge: um dinheiro (originalmente um dinheiro-mercadoria), como o bem mais facilmente vendável e mais amplamente aceito, e como tal claramente distinguido em sua função tanto de bens de produção quanto de bens de consumo.
Com o dinheiro vêm os preços monetários, as comparações de preços e o cálculo econômico, e não há nada que se possa saber com certeza sobre os preços monetários futuros pagos por isto ou aquilo, sobre comparações de preços futuras ou sobre cálculos de negócios futuros. Mas, novamente, algumas coisas podemos saber com certeza.
Por exemplo: se a quantidade de dinheiro aumentar, o poder de compra por unidade monetária será reduzido abaixo do que de outro modo sucederia. Um aumento na quantidade de dinheiro não pode aumentar a riqueza social global (como faria um aumento nos bens de produção e de consumo), mas apenas conduzir a uma redistribuição da riqueza em benefício do(s) produtor(es) de dinheiro.
O cálculo econômico exige que se possam comparar o input e o output da produção para determinar se meios menos valiosos foram ou não transformados em meios mais valiosos (conforme pretendido). Para tal comparação ser possível, deve haver preços monetários para todos os fatores de produção, bem como para todos os bens finais. Sob o socialismo clássico, com todos os meios de produção apropriados e controlados por um comitê central, não existem preços de fatores de produção, e portanto o cálculo econômico sob o socialismo é impossível.
Também podemos saber com certeza (através da lei da utilidade marginal) que se o preço de um bem for aumentado (ou diminuído), e todo o resto for assumido como permanecendo constante (suposição ceteris paribus), então a mesma quantidade ou menos (ou a mesma quantidade ou mais) será comprada. E com a mesma certeza sabemos que preços fixados acima dos preços de mercado, como o salário mínimo, por exemplo, conduzirão a excedentes invendáveis, i.e., ao desemprego forçado, enquanto os preços fixados abaixo dos preços de equilíbrio do mercado, tais como tetos de aluguel, conduzirão à escassez, i.e., a uma escassez persistente de imóveis para alugar. E sabemos também com certeza que, se alguma dessas previsões falhar em um caso específico, isso não será devido a um erro na nossa conclusão deduzida logicamente, mas porque a cláusula ceteris paribus não se cumpriu nesse caso em questão, e teríamos de procurar por mudanças significativas nas circunstâncias empíricas dos agentes a fim de explicar a anomalia observada.
De fato, como já demonstrado de forma marcante com o exemplo do princípio do álibi, nenhuma “experiência” ou “evidência empírica” pode jamais falsear, superar ou derrotar a praxeologia e a lógica, mas a praxeologia e o raciocínio praxeológico podem revelar que há algo de errado em alguma suposta experiência ou evidência. Eu poderia continuar com mais e mais exemplos de proposições apodíticas, i.e., proposições que podem ser “begriffen” (apreendidas conceitualmente). Mas estou bem confiante de que a pequena lista de exemplos que forneci deverá ser suficiente para demonstrar que eles têm um estatuto epistemológico distintamente diferente do que é comumente entendido como “hipóteses empiricamente falseáveis”, e que a popular visão popperiana – apresentada por K. Popper pela primeira vez na sua Logik der Forschung – do progresso científico como um processo gradual por meio do falseamento sucessivo de hipóteses empíricas e empiricamente testáveis, gradualmente em direção à luz, é totalmente equivocada. Assim como muitas pessoas, também Popper, como Mises observa brevemente no seu Fundamento Último da Ciência Econômica, aparentemente não está familiarizado com a praxeologia e as suas conquistas intelectuais. E no entanto, como os poucos exemplos de proposições apodíticas e não falseáveis que acabamos de apresentar deveriam ter deixado bem claro: o conhecimento transmitido pela praxeologia é indispensável para qualquer interpretação correta do passado (sem ele, qualquer historiador está fadado a errar em algum momento da narrativa); e, de maneira ainda mais importante, sem esse conhecimento estamos destinados a cometer muitos erros relativos à previsão de eventos futuros, que definitivamente poderiam ter sido previstos e, portanto, evitados.
Olhando, então, de um ponto de vista metodológico para a situação atual nas ciências sociais (incluindo a economia), duas grandes confusões inter-relacionadas podem ser facilmente diagnosticadas, ambas enraizadas, em última análise, na aceitação tipicamente inquestionável de alguma variante da “filosofia empirista” entre a maioria dos cientistas sociais (e quase todos os naturais). A primeira confusão diz respeito à crença generalizada de que é possível realizar nas ciências sociais coisas que simplesmente não podem ser realizadas. Contrariamente à crença de muitos pesquisadores sociais, não existem “leis empíricas” – verificadas, confirmadas ou ainda não falseadas por dados empíricos – que possam ser encontradas e descobertas no âmbito da ação e interação humanas. Aqui, mais humildade é necessária. A pesquisa de alguém ainda pode ser interessante e relevante, mas não é o que afirma ser. E a segunda confusão, generalizada em particular entre os economistas, acaba de ser abordada: é a incapacidade (ou falta de vontade) de reconhecer a diferença epistemológica categórica entre proposições apodíticas, ou, no jargão kantiano, “sintéticas a priori”, por um lado, e proposições empíricas, ou “a posteriori”, por outro. Como “bons” empiristas que só conhecem e reconhecem leis empíricas (afora a matemática), eles estão cada vez mais ocupados submetendo a testes empíricos proposições que são derivadas dedutivamente de pontos de partida verdadeiros a priori. Ou seja, eles testam o intestável e tentam falsear o não falseável, e qualquer insight que possa surgir de tais esforços equivocados é ofuscado pelo dano intelectual causado (e pela confusão espalhada) pelo flagrante erro de categoria subjacente e cometido com qualquer pesquisa desse tipo.
VII
Finalmente, como prometido, e como mais uma prova do poder intelectual do raciocínio dedutivo baseado em princípios primeiros, inegáveis e irrevogáveis, farei uma breve observação concernente a conflitos e sua prevenção e resolução por meio da atividade argumentativa.
Diferenças de opinião não são conflitos (embora naturalmente possam conduzir a eles). Em vez disso, conflitos são confrontos físicos resultantes de reivindicações incompatíveis de propriedade sobre um e mesmo bem escasso ou rival por parte de duas ou mais pessoas diferentes. Em princípio, então, para que todos os conflitos sejam evitados, basta que todos os bens sejam sempre propriedade privada de algum(s) indivíduo(s) específico(s), e que seja sempre reconhecível qual bem é propriedade de quem. Os planos e objetivos dos diferentes agentes podem então ser tão diferentes quanto possível: não surgirá nenhum conflito interpessoal enquanto as suas respectivas ações envolverem única e exclusivamente o uso da sua própria propriedade privada.
Mas quem possui qual recurso escasso como sua propriedade privada e quem não? Primeiro, cada pessoa possui seu próprio corpo físico, que só ele e mais ninguém controla diretamente. E em segundo lugar, no que diz respeito aos recursos escassos que só podem ser controlados indiretamente (que devem ser apropriados pelo uso do corpo dado pela natureza), o controle exclusivo (propriedade) é adquirido pela pessoa que se apropriou do bem em questão primeiro ou por quem o adquiriu do seu proprietário anterior através de uma troca voluntária (sem conflito). Pois apenas o primeiro apropriador de um recurso (e todos os proprietários posteriores ligados a ele por uma cadeia de trocas voluntárias) pode adquirir e obter controle sobre esse bem sem incorrer em conflito. De outro modo, se o controle exclusivo for atribuído aos retardatários, o conflito não será evitado, mas, contrariamente ao próprio propósito da criação de normas, será tornado inevitável e permanente.
Mesmo que seja apenas o esqueleto de uma teoria que foi muito mais detalhadamente elaborada em outros lugares, deveria ficar evidente como, com uma “visão a priori” derivada dedutivamente da natureza do conflito humano, também adquirimos uma ferramenta eminentemente poderosa e prática e um método que nos permite cumprir a função de “juiz de paz” e decidir sobre o certo e o errado, sobre o permitido e proibido, sobre o adequado e o impróprio em relação a todos os tipos de casos de reivindicações de propriedade conflitantes (incompatíveis).
Mais um salve, então, à “teoria”, algo que a atual cultura de pesquisa, em grande parte “empirista”, teimosamente (ou tolamente) nem consegue reconhecer que exista.
Artigo original aqui
Tradução de João Theodoro
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Leituras adicionais recomendadas
A fim de reequilibrar, mesmo que só um pouquinho, o domínio crescente dos meios audiovisuais na cultura contemporânea em relação à palavra escrita e à leitura, as seguintes recomendações referem-se exclusivamente a livros.
Apel, Karl-Otto, Transformation der Philosophie: Bd. II. Das Apriori der Kommunikationsgemeinschaft (1973, ss.)
Austin, JL, Como fazer coisas com palavras (1962 e seguintes)
Hayek, Friedrich A., A Contra-Revolução da Ciência (1952 e seguintes)
Hoppe, Hans-Hermann, Kritik der kausalwissenschaftlichen Sozialforschung. Untersuchungen zur Grundlegung der Soziologie und Ökonomie (1985 e seguintes)
idem, A Ciência Econômica e o Método Austríaco (1997 e seguintes)
idem, A Grande Ficção. Propriedade, economia, sociedade e a política do declínio (2021)
Janich, Peter, Kultur und Methode: Philosophie in einer wissenschaftlich gepraegten Welt (2005)
idem, Der Mensch und andere Tiere. O Zweideutige Erbe Darwins (2010)
idem: Sprache und Methode (2014)
idem: Handwerk e Mundwerk. Sobre as Herstellen von Wissen (2015)
Mises, Ludwig von, Ação Humana – Um Tratado de Economia (1949 ss.)
idem, Teoria e História (1957 ss.)
idem, O fundamento último da ciência econômica (1962 ss.)
Rothbard, Murray N., Homem, Economia e Estado – com Poder & Mercado (1962 e seguintes)
idem, A Lógica da Ação , Vol. Eu (1997 ss.)
Searle, John R .: Atos de Fala: Um Ensaio de Filosofia da Linguagem (1969 e seguintes)
idem, Mentes, Cérebros e Ciência (1984 ss.)
idem, A Construção da Realidade Social (1997 ss.)
Wittgenstein, Ludwig, Investigações Filosóficas (1953 ss.)
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