Podemos chamar aquele sujeito que come carne, mesmo que uma vez por semana ou por mês, de vegetariano? Esse é um rótulo que tem uma definição bastante simples, e é fácil de saber se o agente em questão está violando esta definição.
No entanto, ainda resta espaço para dúvidas quanto à sua aplicação: a pessoa pode ser vegetariana apenas por um tempo — por exemplo, apenas durante o tempo em que passa sem comer carne? Ou ela pára de ser vegetariana quando come carne e volta a ser no final de cada almoço? Quanto tempo a pessoa tem de passar sem comer carne para poder utilizar este rótulo?
Outro exemplo semelhante: está certo o fumante dizer após cada cigarro que parou de fumar? Mesmo que seja só até o próximo cigarro, ele está tecnicamente certo, não está? Quanto tempo a pessoa precisa ficar sem fumar para ser considerado um ex-fumante?
Uma pessoa que durante 99% do seu tempo de vida só fez coisas boas, mas que assassinou um inocente por um motivo torpe, pode ou não ser chamada de assassina? Por que motivo tudo aquilo que a pessoa fez de bom durante toda a sua vida se torna “irrelevante” após ela ter cometido uma atrocidade?
Estes são alguns debates que podem gerar o uso de rótulos. E, até agora só, utilizei rótulos bem definidos, com os quais creio que a maioria das pessoas concorda. E, mesmo assim, dúvidas podem surgir. Agora, imagine tentar rotular alguém com uma palavra que aparentemente não possua uma definição que seja aceita por mais de uma pessoa; uma palavra que possua uma definição distinta para cada indivíduo.
É o que ocorre hoje com o termo “liberal”. Alguns definem ser “liberal” de uma maneira tão aberta que, acredito, até Hitler, Stalin, Fidel, Fernando Henrique e Obama poderiam estar neste grupo. Já outros restringem um pouco, ao passo que outros restringem ainda mais. A realidade, no entanto, é que infelizmente já perdemos este termo. É inútil tentar utilizá-lo, principalmente para rotular alguém.
Mas o que fazer quando insistem em debater o termo e rotular pessoas? O debate, ao utilizar este termo, é bastante complicado e trabalhoso, pois, a cada vez que o utilizam, temos de pedir à outra parte que nos defina o que ela entende por “liberal”. E, ainda assim, a coisa fica tão complicada quanto o uso do rótulo ‘assassino’.
Por exemplo, “Pinochet assassinou centenas, mas tomou medidas visando a menos estado e mais liberdade em outros (poucos) pontos”. Ele é um assassino ou um “liberal”? Pode ser os dois? Segundo muitos destes que se pretendem liberais, sim. Uma coisa mais interessante é analisar, com a definição dada pela outra parte, apenas ações e medidas, isoladamente. Se o sujeito diz que ser liberal é “defender a propriedade privada e a liberdade individual”, então facilmente vemos que uma medida como defender a taxação vai contra o que ele considera ser liberal — logo, a pessoa, ao defender esta medida, estará sendo “antiliberal”.
Agora, ao se rotular uma pessoa, uma dúvida irá surgir: qual porcentagem das medidas que a pessoa defende deve ser em prol da liberdade para que ela já possa ser considerada genuinamente liberal?
É mais fácil rotular alguém de ‘libertário’, pois a palavra ainda conta com certo “consenso” sobre sua definição. Lew Rockwell, Walter Block e muitos outros, bem como o Partido Libertários, define o ‘libertário’ como aquele que se opõe à iniciação de agressão. Portanto, é fácil saber quando alguém está defendendo algo antilibertário. Embora haja alguns raros casos em que isso fica mais difícil de ser definido, ainda assim é mais fácil do que definir o que é “liberal”.
No entanto, a pergunta se mantém: qual porcentagem de agressão a pessoa precisa defender para ser considerada de fora deste grupo? Obviamente, a resposta neste caso é simples: para estar neste grupo, a pessoa não pode defender nenhuma iniciação de agressão contra inocentes, pois ela não pode se opor a uma coisa e defendê-la ao mesmo tempo.
Aparentemente, o problema com a palavra “liberal” é que estão querendo utilizá-la para definir um grupo político. Alguns defendem que, quanto mais abrangente for o termo, melhor, pois maior será o grupo que conterá os “liberais”. Já outros preferem que ‘liberal’ seja um termo utilizado apenas para descrever aqueles que são a favor da propriedade privada e da liberdade individual — que, no Brasil de hoje, são pouquíssimos.
Ambos os anseios são justos e a disputa pelo termo é até saudável. Ela só se torna insalubre quando o relativismo entra em cena: “ser liberal é defender a propriedade privada; fulano é liberal, mas ataca a propriedade privada”. Amarelo é verde, guerra é paz, liberdade é escravidão. Ou seja, mesmo que todos aceitassem a mesma definição da palavra “liberal”, ainda assim seria possível dizer que um antiliberal é um liberal.
Não faz o menor sentido alguém querer usar um rótulo que cabe em qualquer pessoa, mesmo que ela seja diametralmente oposta à definição. Parece que estão na verdade querendo relativizar o termo para poderem estar no time “liberal” também; para se sentirem menos mal pelos seus ataques à liberdade e se diferenciarem daqueles que tomaram como inimigos, não por princípios, mas apenas pela cor da camisa.
Até o mais nefasto comunista com quem já debati defendia a propriedade privada e a liberdade em algum ponto, em alguma porcentagem. No entanto, era apenas mais um relativista. Estaria eu errado em rotulá-lo de “liberal”?
Qualquer pessoa tem o direito de dizer que quer ser chamada de vegetariana, mesmo que ela coma carne todos os dias. Cabe às pessoas ao seu redor decidirem se entram no jogo e fazem o termo “vegetariano” perder todo o sentido, ou se tentam explicar que vegetariano tem outro significado. A primeira solução gera uma corrupção linguística e leva a sociedade a perder mais uma palavra, mais uma definição (por outro lado, tal concessão pode evitar conflitos). Já a segunda solução pode — mas muito provavelmente não irá — até convencer os “vegetarianos” de que carne não pode fazer parte de suas dietas se quiserem ser assim chamados, mas tende a gerar negações e conflitos. Em alguns casos, vale a pena; em outros, melhor não contrariar.
Ainda pior são os casos daqueles que querem ser chamados de vegetarianos enquanto se deleitam com um leitão à pururuca ou daqueles que querem ser chamados de “liberais” ao mesmo tempo em que defendem que sua propriedade possa ser confiscada e sua renda, tributada. E há também o caso dos vegetarianos que são contra a carne, mas que comem carne porque creem que ela é um mal necessário. Acreditam que, se não comerem carne, morrerão. Este último caso seria o do liberal que é a favor da propriedade privada e contra a agressão, mas que crê que, se não houver um estado — isto é, se não houver um pouco de agressão à propriedade — haveria muito mais agressão. Então, ele defende a agressão mesmo sendo a favor da propriedade.
Dois casos pra lá de bizarros.
Excelente artigo Roberto. É antigo, mas não havia lido ainda. Por isso que eu sigo Instituto do Twiter, para ler esses anteriores que podem ter me passado despercebidos.
O liberalismo político é, das técnicas de administração do gado humano a mais tóxica, perigosa e violenta de todas. Como você escreveu, até mesmo um comunista vai te dizer que ele tem direitos a isso ou aquilo. Um liberal não, ele é ausência total de direitos. Isso é uma questão de expectativas. O comunista teoricamente considera o estado uma opressão, logo, prevê seu fim para o bem da humanidade. No seu lugar, entraria um grupo que seria a autoridade transitória – eles não negam a necessidade, que acabaria de vez com o estado, a ditadura do proletariado. Ou seja, nem a ética ou a moral comunista se fundam no estado. A grosso modo, o proletariado, poderíamos dizer que proletariado é equivalente as agências privadas no anarcocapitalismo, como fonte de autoridade, sem legitimidade e com legitimidade, respectivamente.
O liberalóide por outro lado, não tem moral ou éticas próprias, pois eles não conseguiram avançar rumo à uma sociedade livre a que se propõe. Ou seja, a expectativa dos liberais é fundir-se ao estado não afastar-se dele, pois somente o governo poderia garantir os direitos dos indivíduos. Neste caso, são obrigados a assumir a ética e a moral do estado, legitimando desta maneira um sistema de agressão. Ora, se o estado é a própria negação dos direitos, por consequência, liberalecos são incapazes de aceitar a existência de direitos. São relativistas, como os comunistas citados pelo Chiocca.
Os liberalecos do estado mínimo são contra a liberdade e os direitos naturais, porém, como são psicopatas iguais a qualquer estatista, conseguem emular estes valores e enganar um monte de gente que tem algum apreço sincero por uma sociedade livre. Se acompanharmos os discursos da máfia liberal randiana – os liberais mais perigosos da atualidade, pois aproveitam-se da admiração das pessoas pela obra de ficção da Ayn Rand -, é possível acreditar em liberalismo ou barbárie. Conta outra né vagabundo?
Fundamentalmente, da forma que você se perguntou, até que ponto uma pessoa não defende a agressão defendendo? Os randianos conseguem até mesmo com a maior cara de pau usar as frases imposto é roubo e sonegar é legítima defesa. Neste caso, como eles defendem a agressão? liberais não são anarquistas, ou seja, acreditam no estado. E como consequência, precisam de um agressor para evitar a agressão, como você disse. Eles sabem que imposto é uma agressão, logo imaginam que a justiça e as forças armadas poderiam se sustentar com taxas (Ayn Rand queria o governo financiado pela loteria). Só que esses canalhas ignoram que também são agressões: (1) o monópolio do governo nestas áreas; (2) o conceito de uma instituição centralizada. E tem um outro aspecto relevante: os liberais acreditam em direitos autorais, logo, são a favor descaradamente da agressão contra um simples camelô que vende uma cópia pirata de uma camisa de clube.
Eu acreditei por anos que o liberalismo político era sinônimo de liberdade contra a opressão estatal. Lendo meus escritos desta época, havia de maneira sincera um ataque a tudo que fosse estatal, de maneira generalizada e com uma retórica violenta. Isso porque meu pensamento é ligado desde sempre ao liberalismo clássico. Mas evidentemente como qualquer estatista, faltava dar uma passo adiante. Isso não acontecia por completa ignorância. Inclusive, eu já li em algum lugar que o primeiro livro do Rothbard que você leu foi o “Direita e esquerda”, um pequeno livro editado pelo IL. Foi o mesmo que eu li. Eu não lembro direito, faz muitos anos, mas não me chamou atenção, na minha cabeça era outro liberal. Tudo mudou apenas com a leitura do “Manisfesto libertário”.
De toda a forma, o liberalismo já é atacado incansavelmente pela esquerda, reduzindo os liberais à um grupo sem qualquer expressão política relevante. Até os aloprados do PSOL em pouco tempo de vida já se tornaram uma força maior que os supostos defensores da liberdade. Losurdo no seu clássico “contra-história do liberalismo” fez um excelente serviço. É curioso que liberalóides randianos falam tanto nas maravilhas que fazem os empreendedores são capazes de fazer, mas na política são uns fracassados. No final, são defensores de empresas, não de um mercado de maneira mais ampla, como fazem os movimentos libertários.
O estado é uma gangue de ladrões em larga escala, não existem formas honestas de relativizar isso. O estado sempre será uma assimetria de poder. E como diz o Jesus H. D. S. : o liberalismo político é uma impossibilidade prática e teórica.