Socialismo, cálculo econômico e função empresarial

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CAPÍTULO VII – CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste capítulo, começaremos por analisar as contribuições de três teóricos — Durbin, Dickinson e Lerner — que, continuando a linha iniciada pelo «modelo clássico» de Lange, tentaram também desenvolver uma solução de cariz «competitivo» para o problema do cálculo económico socialista. Vamos centrar a nossa atenção sobretudo nas inovações que estes autores procuraram introduzir tendo em conta o modelo de Lange e em verificar se foram ou não capazes de reconhecer e responder ao desafio originalmente colocado por Mises. A conclusão da nossa análise será a de que o «socialismo de mercado» é uma tentativa, essencialmente contraditória e inatingível, de alcançar uma «quadratura do círculo». Esta tese é também mantida por um grupo de teóricos socialistas, encabeçados por Maurice Dobb, que sempre apontaram a contradição entre o socialismo tradicional e o «modelo competitivo», tendo-se verificado o surgimento de um debate secundário, desenvolvido estritamente dentro do campo socialista, entre os partidários e os detratores do «socialismo de mercado». O capitulo terminará com algumas considerações finais sobre o verdadeiro sentido da impossibilidade do socialismo e as contribuições dos teóricos da Escola Austríaca.

 

1. OUTROS TEÓRICOS DO «SOCIALISMO DE MERCADO»

Dedicámos grande parte do capítulo anterior à análise cuidada das propostas de Oskar Lange. Em geral, estas propostas são as mais citadas e observadas pelas fontes secundárias que, até agora quase sempre de forma parcial e errónea, descreveram e comentaram o debate em torno do cálculo económico socialista. A maior parte das contribuições dos restantes teóricos do «socialismo de mercado» apenas repetem, com pequenas modificações de pormenor, os argumentos originalmente apresentados por Lange. De entre todos estes teóricos, estudaremos com algum pormenor Durbin, Dickinson e Lerner. Centrar-nos-emos concretamente em verificar se algum deles chegou a compreender em que consistiu o verdadeiro conteúdo do desafio de Mises e Hayek, e se foi capaz de oferecer alguma solução teórica para o mesmo. Chegaremos à conclusão de que as análises teóricas desenvolvidas por estes teóricos, além de consistirem apenas em pequenas variações de pormenor sobre o «modelo clássico» de Lange, falharam lamentavelmente na sua tentativa de resolver o problemas económico colocado pelo socialismo.

 

Evan Frank Mottram Durbin

Inicialmente, Durbin conseguiu criar algumas expectativas, uma vez que esteve em contacto com os trabalhos teóricos desenvolvidos pela Escola Austríaca da sua época e foi capaz de distinguir claramente entre o seu paradigma e o da escola neoclássica-walrasiana. Além disso, escreveu um tratado sobre a depressão económica muito influenciado pelas ideias apresentadas por F.A. Hayek sobre a matéria.[1] No entanto, como vamos ver, apesar desta sã influência «austríaca», não compreendeu qual era o cerne do problema do socialismo suscitado por Mises e Hayek e, na verdade, a sua «solução» continuou a ser desenvolvida em termos tão estritamente estáticos como os de Lange.

A contribuição de Durbin encontra-se basicamente num artigo intitulado «Economic Calculus in a Planned Economy» (O cálculo económico numa economia planificada) que foi publicado em dezembro de 1936.[2]Durbin afirma estar «quase seguro» de que o problema do cálculo económico numa economia socialista poderia ser resolvido se o órgão central de planificação ordenasse às diferentes unidades de produção que atuassem de acordo com as duas regras seguintes: primeira, calcular a produtividade marginal de todos os fatores de produção móveis; e, segunda, alocar os fatores de produção para usos para os quais a produtividade marginal seja maior, devendo as empresas produzir o máximo volume compatível com a obtenção de lucros «normais» («regra dos custos médios»). Para diminuir as possibilidades de erro decorrentes dos cálculos das produtividades marginais, será necessário, de acordo com Durbin, calcular as respetivas curvas de procura. Além disso, Durbin defende que a taxa de juro deverá ser estabelecida pelo «mercado livre» de capital novo, sem esclarecer em nenhum momento como funcionaria tal mercado num sistema em que não seja permitida a propriedade privada dos meios de produção. Por último, para Durbin, a economia deve organizar-se com base em grande setores, «trusts» ou monopólios, aos quais se «ordenará» que compitam entre si.

Não é necessário repetirmos aqui os argumentos que já apresentámos anteriormente a respeito da proposta de «trusts» competitivos (originalmente defendida por Heimann e Polanyi) e das possibilidades de organizar um verdadeiro mercado de capitais, utilizando os serviços de um banco estatal monopolista quando não exista propriedade privada dos meios de produção. Todas estas questões já foram analisadas ao pormenor nos dois capítulos anteriores. O que agora nos interessa realçar é que a proposta de Durbin cai exatamente no mesmo erro que a apresentada anteriormente por Lange e outros, ou seja, o de assumir um contexto de equilibro em que, por definição, não existem mudanças e toda a informação necessária para calcular a produtividade marginal dos fatores está dada e pode ser obtida sem qualquer problema.

De facto, as «regras» concebidas por Durbin poderiam servir de guia racional para o cálculo económico, se a informação necessária para calcular o valor da produtividade marginal de cada fator de produção pudesse ser obtida nos locais onde não exista propriedade privada dos meios de produção nem liberdade para exercer sem peias a função empresarial. É preciso ter em conta que para calcular o valor da produtividade marginal é preciso realizar uma estimativa puramente empresarial relativamente aos seguintes aspetos: primeiro, qual será o tipo ou a quantidade de bens ou serviços procurados pelos consumidores no futuro; segundo, que especificações, características, inovações tecnológicas, etc. terão; terceiro, que preços máximos se acredita que poderão ser cobrados  no mercado por estes bens e serviços de consumo depois de os mesmos terem sido produzidos; e, quarto, qual será o período de tempo médio de elaboração dos bens e que taxa de juro se utilizará para descontar no momento presente os correspondentes valores futuros da produtividade marginal. Como é lógico, toda esta informação só vai sendo gerada num mercado competitivo pelos diferentes agentes económicos que nele intervêm à medida que exercem sem qualquer tipo de restrição institucional a sua função empresarial. Para isso, é preciso que exista verdadeira concorrência, não entretrusts ou monopólios misteriosos (que não se sabe se deverão ser organizados horizontal ou verticalmente), mas a todos os níveos sociais, inter e intrassetoriais. Mais importante ainda é que qualquer ser humano possa utilizar livremente a sua criatividade empresarial para ir descobrindo e gerando a informação necessária (como sempre de cariz prático, subjetivo, disperso e não articulável) para levar a efeito as ações que melhor conduzam aos fins a que se propõe, procurando obter os respetivos lucros empresariais e, na medida do possível, evitar perdas.

Por outro lado, é preciso ter em conta que, no mundo real, o tipo e a quantidade dos fatores de produção não estão «dados», e que nem todos são divisíveis em unidades homogéneas. Pelo contrário, em função da própria imaginação, dos desejos e objetivos de cada empresário, assim como da informação concreta que gere de acordo com as suas circunstâncias particulares de tempo e lugar, aquilo que se constitui como fator de produção «móvel», e a unidade relevante do mesmo, variará conforme o caso, ou seja, dependendo da apreciação subjetiva feita pelo empresário em questão. Além disso, a assunção implícita de que se conhecem as correspondentes curvas de procura que venham a existir no futuro ou de que, de alguma maneira, se podem calcular mostra uma profunda incompreensão por parte de Durbin sobre a forma como funcionam verdadeiramente os processo de mercado na vida real.

De facto, não pode considerar-se que num mercado competitivo existam «curvas» ou «funções» de oferta ou de procura ou de qualquer outro tipo, uma vez que a informação necessária para desenhá-las ou descrevê-las não existe e, logo, não está disponível em lugar nenhum (nem para o gerente ou responsável de uma empresa ou indústria, nem tão-pouco para um cientista ou um órgão central de planificação), não só porque a informação que constituiria a «curva de procura» se encontra dispersa, mas também porque essa informação não chega sequer a formar-se em cada momento determinado do tempo na mente dos indivíduos que participam no mercado. Ou seja, não é possível descobrir as curvas de oferta e de procura no mercado porque simplesmente não existem, ou, quando muito, têm apenas um valor heurístico e interpretativo dentro da ciência económica e levam a erros significativos em todas as pessoas especialistas ou não da nossa ciência que, quase sem se aperceberem, chegam a pensar que essas funções ou curvas gozam de uma existência real. Na verdade, a informação relativa às quantidades que se comprarão ou venderão a cada preço é uma informação que não é considerada de forma abstrata por parte de cada agente económico, nem se encontra armazenada na sua memória para todas as circunstâncias que venham a ocorrer no futuro. Pelo contrário, trata-se de uma informação estritamente subjetiva e dispersa que só surge no momento concreto em que o agente económico decide fazer uma compra ou uma venda, como resultado do próprio processo empresarial e de múltiplas influências e circunstâncias específicas que são subjetivamente apreciadas por esse agente económico. Trata-se pois de uma informação que se cria ex novo no referido momento; uma informação que não existia antes e que não se repetirá de forma idêntica. Assim, no máximo, pode considerar-se que o que os empresários fazem numa economia real de mercado é tentar estimar aquilo que seriam determinados pontos soltos das hipotéticas «curvas» de oferta e de procura no futuro, embora esta forma de expressão não seja a exata para elaborar a teoria dos preços nem nos pareça adequada, uma vez que, de alguma forma, pode implicar o reconhecimento de que tais curvas ou funções existem ou podem vir a existir. Se a sua ação for correta, o empresário obtém lucros empresarias puros; se for errada, incorre em perdas. E é precisamente o incentivo de tentar alcançar os primeiros e de evitar as segundas que funciona como propulsor para que a empresarialidade tenda a criar e descobrir em cada momento a informação adequada. Sem esses incentivos, o exercício livre da empresarialidade é impossível e, logo, também o é a criação da informação necessária para tomar decisões de cariz coordenador e para calcular de forma racional. A vida económica e social, em todas as suas manifestações, incluindo a dos preços, é o resultado da combinação de múltiplas ações humanas e não da interseção de misteriosas «funções» ou «curvas», que não existem na vida real e que foram introduzidas sub-repticiamente na nossa ciência por uma horda de pensadores «cientistas» procedente do mundo do politécnico e da matemática aplicada que nunca percebeu os efeitos muito prejudiciais que a aplicação dos seus métodos tem na economia.[3]

Assim, tal como Lange e outros teóricos socialistas, Durbin dá por adquirido que os agentes económicos têm objetivamente acesso a informação que é teoricamente impossível criar se não existir propriedade privada dos meios de produção e livre exercício da empresarialidade. Na ausência destas instituições, a informação não será gerada e as «regras» de Durbin não poderão ser objetivamente aplicadas pelos gerentes dos setores correspondentes nem tão-pouco será possível que o órgão central de planificação controle e comprove se os referidos setores estão ou não a atuar corretamente de acordo com essas regras. O maior erro de Durbin verifica-se quando afirma de forma explícita: «The ability to discover marginal products is not dependent upon the existence of any particular set of social institutions.»[4] Além disso, se, de acordo com Durbin, a informação necessária para calcular a produtividade marginal vai estar sempre disponível, independentemente das instituições sociais existentes (capitalistas, socialistas, ou qualquer combinação das mesmas), não se entende porque rejeita o procedimento walrasiano proposto por Lange, que se baseava na mesma assunção de Durbin, segundo a qual a informação necessária se encontra disponível de forma inequívoca e objetiva. Acresce que Durbin considera que as dificuldades «técnicas» para calcular o valor da produtividade marginal dos diferentes fatores são as mesmas num sistema capitalista e numa economia planificada, recusando-se a reconhecer que o problema não é «técnico» mas económico, bem como a discutir qualquer aspeto «prático» que se encontre além das considerações «teóricas» por ele efetuadas.[5]

Verificamos, pois, que, tal como Lange, Durbin considera que só é «teoria» o modelo matemático do equilíbrio (embora no seu caso, mais do que equilíbrio geral walrasiano, se trate do equilíbrio parcial marshalliano e da teoria da produtividade marginal), no qual se assume que a informação necessária para calcular as produtividades marginais está «dada». Não compreende que a referida teoria depende de pressupostos tão restritivos, que a tornam praticamente irrelevante. Durbin desconhece não só a teoria formal sobre os processos sociais de criatividade e coordenação movidos pela empresarialidade, como o papel desempenhado por determinadas instituições sociais no fomento ou na restrição da empresarialidade, a análise económica dos direitos de propriedade e o problema teórico colocado pelo caráter disperso e subjetivo do conhecimento quando não exista concorrência empresarial. Não surpreende que Durbin fracasse na sua tentativa de resolver o problema de cálculo económico socialista, dado que utiliza um instrumental teórico desadequado, tanto para compreender o problema originalmente colocado por Mises, como para encontrar um solução exequível para o mesmo. Podemos, assim, concluir, tal como Hoff na sua análise crítica da contribuição de Durbin,[6] que «in his anxiety not ‘to dogmatize on practical questions’ he has overlooked the crux of the whole problem, namely, how the data on which the socialist trusts are to base their calculations are to be obtained».[7]

 

O livro «The Economics of Socialism» de Henry Douglas Dickinson

O aparecimento do livro de Dickinson em 1939 era também um prometedor indício de que o seu autor tinha finalmente entendido, tratado por completo e respondido ao desafio original de Mises e Hayek.[8] Por um lado, o facto de, neste livro, Dickinson ter abandonado explicitamente a tese que tinha apresentado no seu artigo de 1933 sobre a formação dos preços num sistema socialista, e de o ter feito precisamente pela razão essencial que os seus oponentes austríacos tinham apontado (ou seja, por se aperceber de que a informação necessária para levar a efeito a sua proposta de solução matemática nunca estaria disponível), era um forte sinal de que Dickinson tinha sido capaz de entender todas as implicações da nova «intuição» que acabava de adotar.[9] Por outro lado, a personalidade de Dickinson era muito apelativa. Segundo Collard, Dickinson era «a much loved, unwordly, eccentric figure with a keen sense of fun and a most astute mind»;[10] e Hayek, no seu artigo de 1940 enaltece não só o caráter abrangente, mas também a extensão, a organização, a concisão e a lucidez da obra de Dickinson, acrescentando que lê-la e discutir o seu conteúdo era um verdadeiro prazer intelectual.[11] Por fim, a muito favorável crítica publicada em 1940 na versão original norueguesa do livro de Trygve J.B. Hoff[12] é uma boa prova da abertura e da honestidade científica de Dickinson. No entanto, é preciso salientar que, infelizmente, grande parte das propostas de Dickinson coincidem por completo com as que antes tinham sido apresentadas Oskar Lange, autor que, contudo, Dickinson não cita expressamente em nenhum lugar do livro, exceto na bibliografia. Por esse motivo, a maioria das críticas que efetuamos a Lange no capítulo anterior aplicam-se para o caso de Dickinson.

Além disso, tal como foi apontado por Don Lavoie,[13] apesar de tudo, o livro de Dickinson mantém basicamente o anterior ponto de vista estático deste autor, pelo que continua a ser incapaz de resolver o problema do cálculo económico tal como tinha sido colocado por Mises e Hayek, o que se torna particularmente evidente no papel que, de acordo com Dickinson, desempenhariam quer a «incerteza» quer a «função empresarial» num sistema socialista. De facto, no que diz respeito à incerteza, Dickinson considera que uma das vantagens do sistema seria a de diminuir a incerteza que tipicamente surge no capitalismo como resultado da interação conjunta de diversos órgãos de decisão diferentes. Esta pretensa «redução» da incerteza seria alcançada graças à intervenção do órgão central de planificação que, ao impor um conjunto de relações de produção conscientes e diretas por meio de mandatos, diminuiria os altos níveis de incerteza que normalmente existem no mercado. Mais uma vez, Dickinson faz referência à metáfora das «paredes de cristal» que se verificariam num sistema socialista, em contraste com a atuação típica das empresas num sistema capitalista, que ele considera ser caracterizado pelo «secretismo» e pela falta de «transparência informativa».

É evidente que, tendo em conta estas afirmações, Dickinson considera implicitamente que órgão central de planificação seria capaz de aceder a informação que lhe permitisse coordenar a partir de cima a sociedade, diminuindo o grau de incerteza dos empresários e os erros que normalmente        cometem. Porém, Dickinson nunca nos explica como tal seria possível, sobretudo sabendo que a informação de que o órgão de planificação necessita para diminuir a incerteza é gerada não a partir de cima, mas a «partir de baixo», ou seja, ao nível dos próprios agentes económicos. Além disso, também não explica que, como sabemos, a informação tem um caráter subjetivo, prático, disperso e inarticulável, o que impossibilita a sua transmissão a um órgão central de planificação e até a sua criação se não existir completa liberdade para o exercício da função empresarial. Por outro lado, quando Dickinson preconiza uma «transparência informativa» total e uma publicidade completa dos «segredos comerciais» que se guardam no sistema capitalista, está implicitamente a considerar que a informação tem um caráter objetivo e que, uma vez espalhados por todo o tecido social todos os dados e «segredos» dos diferentes agentes económicos, o nível de incerteza diminuiria de forma significativa. Não obstante, é preciso ter em conta que qualquer agente económico pode literalmente inundar os seus concorrentes ou colegas com toda a informação relativa aos seus planos, sem que isso signifique necessariamente uma redução do nível de incerteza, uma vez que só se pode inundar os outros com a informação que seja possível transmitir de forma articulada ou formalizada. No entanto, os dados têm de ser interpretados, todas as interpretações são subjetivas e, em imensas circunstâncias, pode dar-se o caso de os agentes económicos e os concorrentes não interpretarem subjetivamente de forma semelhante os mesmos dados, pelo que estes não teriam para eles o mesmo significado subjetivo que tiveram para o empresário que «emitiu» a informação originalmente. Conceptualmente poderia imaginar-se que o limite se dá nos casos em que o empresário não só transmitisse a informação, como indicasse qual, na sua opinião subjetiva, seria a evolução dos acontecimentos futuros e que tipo de comportamentos deveriam ser adotados. Se os agentes económicos decidirem seguir as «intuições» do emissor, estarão simplesmente a abdicar da oportunidade de interpretar os dados por si próprios e, logo, a renunciar ao exercício pessoal da sua função empresarial, limitando-se a seguir a liderança empresarial de outro. O sistema socialista só é capaz de eliminar a incerteza utilizando o «método da avestruz», ou seja, enterrando a cabeça e negando-se a vê-la e a reconhecer que a incerteza não é um «problema» (exceto nas absurdas construções mentais dos desorientados teóricos do equilíbrio), mas uma realidade social, inerente à natureza humana e que o homem enfrenta constantemente através do exercício da sua empresarialidade.

Outro indício de que Dickinson mantém um modelo com um caráter essencialmente estático encontra-se no tratamento que pretende dar ao nível de incerteza que não fosse possível eliminar através da planificação central. Para este tipo de incerteza, Dickinson propõe o estabelecimento de uma «sobretaxa de incerteza», que seria parte do custo total de produção juntamente com os restantes elementos que «normalmente» o constituem. Embora reconheça que o cálculo desta «sobretaxa de incerteza» seria difícil, Dickinson acredita que poderia ser feito por meio do cálculo das frequências de modificações nas vendas e nos preços de cada bem e serviço. Com esta proposta, Dickinson demonstra que não chegou a compreender a diferença essencial entre risco e incerteza a que já nos referimos no Capítulo II.[14] A incerteza diz respeito a eventos ou factos únicos, em relação aos quais não é concebível sequer que exista uma possível distribuição de frequências. A informação que os agentes económicos vão criando e testando tendo em conta aquilo que eles acreditam que pode acontecer no futuro é uma informação tipicamente empresarial, não articulável, criativa e aberta a possíveis alternativas, pelo que nunca poderá ser recolhida centralmente de forma a permitir a elaboração de uma distribuição de frequências.

O tratamento de Dickinson relativamente ao papel que a «função empresarial» desempenharia no sistema socialista é ainda menos satisfatório, se tal for possível. Efetivamente, no modelo de Dickinson, a empresarialidade é uma caricatura grosseira e essencialmente ambígua. Por um lado, como é lógico, não é permitida a propriedade privada dos meios de produção e o órgão central de planificação é dotado de grandes poderes, quer para o estabelecimento de diretrizes de coordenação dos planos individuais, quer para a distribuição dos respetivos fundos financeiros, a intervenção no mercado laboral, o monopólio da publicidade e propaganda, o controlo e a direção integral do comércio internacional, etc. Além disso, Dickinson considera que este órgão de coação, que designa de «Supreme Economic Council» (Conselho Económico Superior), é não só «omnipresente e omnisciente», como «omnipotente» no que respeita à sua capacidade de introduzir mudanças sempre que as considere necessárias.[15] Por outro lado, porém, o facto de os gerentes das diferentes empresas do sistema socialista se encontrarem submetidos ao órgão de panificação não quer dizer, de acordo com Dickinson, que não tenham a possibilidade de tomar livremente determinadas opções.[16] Efetivamente, segundo Dickinson, cada empresa do sistema socialista deverá dispor do capital próprio correspondente, manter a sua conta de ganhos e perdas e ser «gerida» de forma tão parecida quanto possível com o modo como são geridas as empresas no sistema capitalista.

Dickinson percebe claramente que é necessário que os gerentes sejam financeiramente responsáveis pelo desempenho das suas empresas, devendo participar tanto nas perdas como nos lucros que vão sendo gerados. O que o autor não explica é como conseguir esta responsabilidade financeira num sistema em que se impede pela força a propriedade privada dos meios de produção. Como vimos no Capítulo II deste livro, se não houver propriedade privada dos meios de produção e o homem não puder obter livremente os lucros da sua ação, não se verifica o aparecimento da empresarialidade criativa e coordenadora dos processos sociais. Além disso, Dickinson considera que embora a obtenção de lucros não seja necessariamente um sinal de sucesso empresarial, a obtenção de perdas é sempre um sinal de falha ou erro de gestão.[17] Como é lógico, se se elevar à categoria de princípio esta «intuição» de Dickinson, os gerentes tenderão a ser funcionários conservadores, sempre receosos de empreender novas atividades, introduzir inovações tecnológicas e comerciais, modificar o processo produtivo, etc., uma vez que incorrer em perdas será sempre considerado um erro, algo desfavorável para a carreira profissional do interessado, ao passo que os possíveis lucros podem não ser reconhecidos como êxitos.

Dickinson procura resolver o problema relacionado com a motivação e a remuneração dos gerentes, estabelecendo um sistema de «bónus» ou pagamentos financeiros em função dos resultados obtidos pela empresa gerida por cada funcionário. Como é óbvio, estes bónus não seriam iguais aos lucros empresariais, não só porque na prática isso implicaria a reintrodução do infame sistema socialista, mas também porque, como acabámos de referir, na opinião de Dickinson, a existência de lucros não é sempre um sinal de eficiência. Com esta proposta, Dickinson cai de novo na armadilha do modelo estático. De facto, como já sabemos,[18] o sistema de bónus pressupõe implicitamente que o órgão encarregado de os atribuir disponha de uma informação à qual seria impossível aceder dado o seu caráter subjetivo, disperso e inarticulável. Conceder bónus em função dos resultados implica que se saiba se os resultados foram favoráveis ou desfavoráveis. Ora, se for possível que um órgão de planificação saiba se os resultados são positivos ou negativos, é evidente que o exercício de qualquer tipo de função empresarial não é necessário para criar a referida informação. Porém, se se permite o livre exercício da empresarialidade para que a informação surja, não faz qualquer sentido estabelecer um sistema de bónus, uma vez que enquanto a referida informação não tiver surgido não se sabe se o exercício da empresarialidade terá ou não sucesso. É este o argumento essencial descoberto e enunciado por Kirzner contra as diferentes tentativas (até ao momento, todas falhadas) de estabelecer sistemas de incentivos nos países socialistas.[19] O sucesso empresarial é algo que só pode ser julgado subjetivamente por parte do ser humano que está a exercer a respetiva função empresarial. É avaliado de forma global incluindo não só os correspondentes lucros financeiros, mas também todas as outras circunstâncias que são subjetivamente avaliadas como lucros pelo ator. Além disso, este lucro vai surgindo de forma continuada e variável (quanto à quantia e natureza), orientando constantemente a ação do empresário, uma vez que lhe proporciona a informação sobre a direção que deve seguir. Pelo contrário, o sistema de bónus é um sistema que, quando muito, pode ser útil a nível administrativo, mas não a nível empresarial. Os bónus são concedidos a posteriori, com base em informação objetiva e conforme o que tenha sido estabelecido ou acordado anteriormente de forma completamente articulada e inequívoca. Os bónus não orientam a ação, uma vez que são concedidos de forma rígida e objetiva depois de factos que já aconteceram. E, acima de tudo, a atribuição de bónus implica um juízo interpretativo sobre os factos, que só faz sentido se for realizado empresarialmente. Se for o resultado dos mandatos de um órgão central de planificação (que carece da informação necessária para os atribuir de forma não arbitrária), ou se tiver sido estabelecida previamente com caráter geral em função do cumprimento de determinados parâmetros mais ou menos mensuráveis, a atribuição de bónus deixa de fazer qualquer sentido.

Em resumo, o que Dickinson não entende é que existem dois sentidos muito diferentes do termo «incentivos». Em primeiro lugar, podemos conceber um sentido restrito, limitado e praticamente irrelevante do termo «incentivos», que designa a conceção de mecanismos para motivar os agentes a fazerem bom uso (de acordo com a «regra» pré-estabelecida) da informação objetiva de que já dispõem. Não é este o sentido que estamos a dar ao termo desde o início deste livro, mas um outro muito mais amplo, preciso e relevante para a economia; para nós, os incentivos são constituídos por todos os fins que seja possível conceber e criarex novo e em função dos quais os humanos não só transmitem a informação objetiva que já possuem, mas também, e isso é muito mais importante, fazem com que se crie e descubra em cada momento a informação subjetiva que não possuíam anteriormente e que é indispensável para alcançar os fins propostos. Num sistema socialista, embora se possa toscamente tentar implementar «incentivos» no primeiro sentido, ao impedir-se pela força e de forma sistemática que cada pessoa se aproprie livremente do total de fins ou resultados da sua atividade empresarial, torna-se impossível, por definição, o estabelecimento de incentivos entendidos no segundo sentido, mais amplo e verdadeiro.

Além disso, Dickinson propõe também que sejam concedidos bónus ou incentivos para a experimentação e a inovação tecnológica, como se o órgão central de planificação pudesse possuir a quantidade e a qualidade de informação que são necessárias para determinar quais os projetos que vale a pena financiar e quais os que não vale a pena, bem como que resultados da experimentação se considera terem tido sucesso ou não. Mas, como nos diz Lavoie, «the idea of specified incentives as a deliberate planning device is contradictory to the idea of experimentation as a genuinely decentralized discovery procedure. If the central planning board does not have the knowledge necessary to differentiate bold initiative from reckless gambling, it could not allocate incentives among managers to encourage the one and discourage the other».[20] Verifica-se este mesmo problema de forma semelhante nos governos ocidentais que pretendem «incentivar» a investigação científica e o desenvolvimento cultural e artístico por meio de subvenções e outras ajudas estatais. Em todos estes casos, os órgãos da Administração correspondentes acabam por conceder as ajudas, subvenções ou incentivos de forma puramente arbitrária e, em perfeita consonância com as previsões da Escola da Escolha Pública e à falta de melhor critério, concedem as ajudas por amiguismo, influências políticas, etc., falhando lamentavelmente no que respeita ao fomento da inovação tecnológica ou do desenvolvimento cultural e artístico de verdadeira categoria.

Na abordagem que faz relativamente à função empresarial, Dickinson deixa-se cair nos pressupostos da informação plena, da sociedade estática, e da ausência de mudanças que convertem todos os problemas económicos em questões meramente técnicas que podem ser resolvidas por simples gerentes. Trata-se de perspetivas que temos vindo a criticar com insistência ao longo deste livro e que demonstram a incapacidade do autor para fazer frente ao problema do cálculo nas economias socialistas. Como afirma Mises, «the capitalist system is not a managerial system; it is an entrepreneurial system»,[21] sendo que Dickinson se encontra entre os que confundem a função empresarial com a função gerencial e que, inevitavelmente, fecham os olhos ao verdadeiro problema económico.

Por fim, é curioso constatar a ingenuidade de Dickinson ao acreditar que o seu sistema permitiria estabelecer, pela primeira vez na história da humanidade, um «individualismo» e uma «liberdade» verdadeiramente reais, ou seja, uma espécie de «socialismo libertário» intelectualmente muito apelativo.[22] No entanto, dado o grande poder que o órgão central de planificação teria no modelo de Dickinson, juntamente com a sua característica arbitrariedade, manipulação de propaganda e impossibilidade de realizar o cálculo económico, o seu sistema socialista seria, no mínimo, um sistema muito autoritário no qual a liberdade individual seria fortemente afetada e em que as possibilidades de funcionamento de um sistema verdadeiramente democrático seriam nulas. Acresce que o próprio Dickinson reconhece (e a afirmação é tão grave que é preciso apresentá-la literalmente) que «in a socialist society the distinction, always artificial, between economics and politics will break down; the economic and the political machinery of society will fuse into one».[23] Como Hayek demonstrou,[24] esta afirmação de Dickinson resume uma das doutrinas mais afincadamente preconizadas por nazis e fascistas. Se não é possível distinguir o político do económico, será imprescindível que predomine e se imponha uma única escala de valores sobre todos as matérias da vida humana a todos os agentes e membros da sociedade civil, o que, como é lógico, só poderá alcançar-se por meio do uso generalizado da força e da coação. Efetivamente, o «político» refere-se sempre à coação, à força e às ordens institucionais e sistemáticas (ou seja, ao socialismo, tal como o definimos desde o início deste livro), ao passo que o «económico» se refere ao contrato voluntário, ao livre exercício da função empresarial e à perseguição pacífica dos mais variados fins por parte de todos os indivíduos, num contexto jurídico de intercâmbio e cooperação. A grande maravilha da vida numa sociedade capitalista movida pela força da empresarialidade radica no facto de cada pessoa ou agente económico aprender a disciplinar ou a modificar voluntariamente o seu comportamento em função das necessidades e desejos dos demais, tudo num contexto em que cada um persegue os mais variados, ricos e imprevistos fins. E isto é algo que, evidentemente, Dickinson nunca teve vontade nem foi capaz de compreender.

 

A contribuição de Abba Ptachya Lerner para o debate

As contribuições de Lerner para o debate não foram feitas na forma de respostas explícitas aos livros e artigos de Mises ou Hayek, tendo, pelo contrário, sido apresentadas num conjunto de trabalhos que publicou nos anos 30, nos quais comentava e criticava as propostas dos outros teóricos socialistas que intervieram no debate, em especial, as de Lange, Durbin, Dickinson e Dobb.[25] Além disso, mais tarde, Lerner incluiu um conjunto de comentários relevantes para o tema que nos ocupa no seu livro The Economics of Control (A economia do controlo), que foi publicado em 1944.[26]

Nos seus artigos, Lerner pretende dar conta não só dos problemas de estática, mas também dos problemas «dinâmicos» colocados pela economia socialista. Acresce que no seu livro The Economics of Control refere expressamente[27] que a planificação total exigiria um conhecimento centralizado do que acontece em cada fábrica, das modificações diárias que se dão na oferta e na procura, bem como das alterações no que respeita ao conhecimento técnico em todos os ramos da produção, o que não é possível assumir que um órgão central de planificação possa conseguir, pelo que não resta senão recorrer ao «mecanismo» dos preços. No entanto, e apesar destas observações, a contribuição de Lerner continua a basear-se implícita e explicitamente, tal como as dos restantes teóricos do socialismo de mercado, na assunção de que toda a informação necessária para levar a efeito a sua proposta estaria disponível, pelo que também Lerner não foi capaz de responder ao desafio de Mises e Hayek nem, por conseguinte, de resolver o problema do cálculo económico socialista. Além disso, é possível ainda constatar que Lerner foi o expoente máximo da defesa do modelo do equilíbrio como fundamentação «teórica» para o socialismo e da ignorância e rejeição da necessidade de estudar os problemas verdadeiramente interessantes colocados pela empresarialidade. Vejamos três exemplos concretos que ilustram muito claramente esta posição típica de Lerner.

Em primeiro lugar, refira-se a análise crítica de Lerner relativamente às regras de custos anteriormente enunciadas pelos diferentes teóricos do socialismo de mercado, em geral, e por Taylor, Lange e Durbin em particular. De facto, Lerner critica a utilização por parte de Taylor do princípio de igualar o preços aos custos médios totais. Critica também o enfoque das regras de Lange, por se dedicarem mais a simular o «mecanismo» do mercado do que o estado final para o qual o mesmo tende; e é especialmente crítico em relação à aplicação das regras de Durbin, que, segundo ele, implicam o regresso ao princípio prático do estabelecimento de preços em função dos custos médios, uma vez que exigem que os gerentes produzam o volume mais elevado que seja compatível com a obtenção de um nível «normal» de lucros.[28]

De acordo com Lerner, mais importante do que encontrar uma regra prática é perseguir diretamente o objetivo final do sistema socialista, que só será alcançado se se garantir que nenhum fator ou recurso para produzir um bem ou serviço é utilizado negligenciando a produção de outros que tenham um valor mais alto. A única forma de o conseguir é ordenando aos gerentes que façam com que os preços sejam iguais aos custos marginais em todos os casos (CM=P), princípio que, embora coincida com o da segunda regra de Lange, deve ser perseguido de forma exclusiva e sem a obsessão que, segundo Lerner, Lange tinha por simular o funcionamento de um mercado concorrencial. De acordo com Lerner, é inútil insistir, como faz Durbin, para que os gerentes obtenham lucros «normais», uma vez que esse tipo de lucros não é mais do que uma manifestação ou um sintoma de uma situação de equilíbrio estático, e aquilo que o sistema socialista realmente precisa é de um guia para a alocação de recursos produtivos no mundo «dinâmico». Verificamos, pois, que a pretensa «análise dinâmica» de Lerner se limita a tentar encontrar um regra que, na sua opinião, se aplique a todas as circunstâncias que se deem no dia a dia da economia socialista. No entanto, e paradoxalmente, a solução de Lerner é tão estática como as propostas de Durbin, Lange ou Dickinson e, logo, podíamos apresentar aqui todas as críticas detalhadas que fizemos atrás à regra de estabelecimento dos preços em função dos custos marginais. Neste momento, é suficiente repetirmos que os custos marginais não têm um caráter «objetivo», no sentido em que estejam dados e possam ser observados inequivocamente por um terceiro. Pelo contrário, são uma informação tipicamente empresarial, ou seja, que se vai gerando de forma subjetiva, dispersa, tácita, prática e inarticulável na mente daqueles que exercem livremente a sua ação humana ou função empresarial, pelo que não é possível assumir que a informação relativa aos custos seja criada ou descoberta por gerentes que não podem exercer livremente a sua função empresarial depois de eliminada a propriedade privada dos meios de produção. Além disso, mais absurdo ainda é assumir que essa informação pode ser  transmitida ao órgão central de planificação e que este, de alguma forma, seja capaz de controlar o cumprimento da norma (CM=P) por parte dos responsáveis das diferentes indústrias.

Em segundo lugar, curiosamente, o próprio Lerner se apercebe de que os preços relevantes que devem ser tidos em consideração na sua regra (CM=P) não são preços «presentes» (que já se verificaram no mercado, mesmo que no passado recente), mas preços futuros tal como são esperados por parte dos agentes económicos («expected future prices»).[29] De acordo com esta observação, a regra essencial de Lerner deve ser estabelecida de forma que cada gerente iguale preços a custos marginais de acordo com as suas própriasexpectativas. Porém, não só é impossível que essas expectativas surjam se os gerentes não podem exercer livremente a sua função empresarial (por não existir a propriedade privada dos meios de produção), mas também se torna teoricamente impossível que algum inspetor burocrático membro do órgão central de planificação possa comprovar de forma objetiva se a regra está ou não a ser cumprida (ou seja, se cada gerente está ou não a atuar corretamente «de acordo com as suas próprias expectativas»). Lerner intui, pois, uma ideia que é basicamente correta, mas não se apercebe de que a mesma destrói toda a sua proposta, convertendo-a num completo disparate.

Por outro lado, e em terceiro lugar, Lerner considera que a questão relativa a se o órgão de planificação poderá fazer uma estimativa dos custos marginais esperados no futuro de forma mais ou menos exata do que os empresários que atuam numa sociedade concorrencial é uma questão «sociológica» ou «prática», que, por conseguinte, não pertence ao campo da «teoria económica».[30] Além disso, Lerner critica expressamente a tentativa de Durbin de analisar os efeitos práticos que o socialismo teria sobre os incentivos e a forma de atuar dos gerentes no sistema socialista, apontando jocosamente que Durbin, ao empenhar-se nesta tentativa, estava a tentar resolver um problema que não tinha nada que ver com o da possibilidade teórica do cálculo económico nas economias socialistas.[31] É evidente que quem está a responder a uma pergunta errada, além do mais com um instrumental analítico e conclusões «teóricas» desadequadas para fazer frente ao problema suscitado por Hayek e Mises sobre a impossibilidade do cálculo económico racional num sistema socialista, é o próprio Lerner. De facto, ao refugiar-se num hipotético sistema no qual se ordena aos agentes económicos que atuem de determinada maneira, sem querer saber se vão ser capazes de atuar ou não dessa forma com base na informação que possam criar e nos incentivos que tenham para tal, Lerner está a fugir deliberadamente dos problemas teóricos relevantes e a refugiar-se no assético nirvana do equilíbrio geral e da economia do bem-estar.

A obsessão de Lerner com o equilíbrio e a estática torna-se especialmente evidente na sua crítica a Oskar Lange, por este tentar desnecessariamente reproduzir ou simular os mecanismos da concorrência, quando, na sua opinião, a questão verdadeiramente importante radica na tentativa de articulação das condições necessárias para definir o «ideal socialista» do ponto de vista da «economia do bem-estar», independentemente do método utilizado para alcançar esse ideal. De facto, já não se trata sequer de estabelecer um modelo de concorrência «perfeita» (embora tal modelo de «concorrência» não tenha nada que ver com a concorrência que se verifica entre os empresários na vida real), mas de definir tão claramente quanto possível, a situação do nirvana ou «paraíso» descrita pela «economia do bem-estar», deixando para a sociologia, a psicologia e a política a descoberta dos sistemas práticos mais adequados para alcançar esse «paraíso» por meio da coação.[32] Assim, Lerner insiste em que mais do que simular um sistema de «concorrência perfeita em equilíbrio», através do método de tentativa e erro ou de qualquer outro, o importante é tentar alcançar diretamente o ótimo social, dando instruções aos gerentes para que equiparem os preços aos custos marginais.

De todos os teóricos que analisámos até ao momento, Lerner é talvez o mais afetado pela miragem do modelo neoclássico do equilíbrio geral e da economia do bem-estar, até ao ponto de considerar que qualquer análise que não se refira aos pressupostos, às implicações e à exposição formal da economia do bem-estar está fora do campo da «teoria». Assim se explica que preconize insistentemente que os gerentes das empresas sejam instruídos no sentido de seguirem os ditames dos princípios da economia do bem-estar, tendo sido precisamente com este objetivo que, em 1944, escreveu a sua obra Economics of Control, como manual prático de intervencionismo ou livro de receitas da economia neoclássica do equilíbrio e do bem-estar, para ser utilizado diretamente na prática da engenharia social pelos burocratas do órgão central de intervenção ou planificação, ajudando-os e facilitando a sua «árdua tarefa» de coagir sistematicamente os restantes cidadãos no campo económico.[33]

Lerner não se apercebe de que ao raciocinar desta forma cai na armadilha que ele próprio construiu. De facto, a maravilhosa torre de marfim da economia do bem-estar mantém-no isolado de forma perfeitamente estanque dos problemas económicos reais colocados pelo socialismo e permite que se mantenha totalmente «imune» (ou, pelo menos, ele acredita que sim) às críticas teóricas formuladas por Mises e Hayek. Porém, a verdade é que a torre de marfim não é transparente, mas opaca, pelo que Lerner não tem o instrumental analítico necessário não só para resolver os problemas económicos relevantes, mas também para os poder reconhecer. O seu isolamento no paradigma da economia do bem-estar é tão profundo, que Lerner chega a considerar que as diferenças que se verificam no mundo real no que respeita ao modelo de equilíbrio de «concorrência perfeita» são um claro «defeito» ou «falha» do sistema capitalista (que o socialismo seria capaz de corrigir pela força), e não um defeito do próprio instrumental analítico do modelo. Ou seja, se o mundo não se comporta de acordo com o que a teoria do nirvana prevê, destrua-se o mundo e construa-se o nirvana, mas não se tente emendar a teoria para tentar entender e explicar como funciona o mundo e o que é que acontece realmente no mesmo.[34] Assim, a crítica que Tadeusz Kowalik faz a Lange,[35] segundo a qual este não tinha os instrumentos analíticos necessários não só para resolver o problema do cálculo económico socialista, mas também para compreender e analisar ao pormenor os problemas económicos realmente importantes,[36] aplica-se na perfeição a Lerner.

 

2. «SOCIALISMO DE MERCADO»: A IMPOSSÍVEL QUADRATURA DO CÍRCULO

Tendo em conta a nossa análise das propostas de Oskar Lange e dos restantes «socialistas de mercado» da sua escola,[37] podemos concluir que, do ponto de vista teórico e prático, há apenas duas alternativas: ou existe completa liberdade para o exercício da função empresarial (num contexto de reconhecimento e defesa da propriedade privada dos meios de produção e de inexistência de qualquer limitação para lá das normas tradicionais do direito penal e privado necessárias para evitar a agressão assistemática à ação humana e o incumprimento dos contratos); ou existe coação sistemática e generalizada à função empresarial em áreas mais ou menos extensas do mercado e da sociedade, e, concretamente, se impede a propriedade privada dos meios de produção. Neste caso, não é possível exercer livremente a função empresarial nas áreas sociais afetadas, e em especial na dos meios de produção, o que leva inevitavelmente à impossibilidade do cálculo económico, que já explicámos detidamente na nossa análise, em todas essas áreas. Como demonstrámos, o segundo sistema torna impossível a coordenação social e o cálculo económico, que só se podem levar a efeito num regime de completa liberdade para o exercício da ação humana. O que os «socialistas de mercado» tentaram foi elaborar uma fantasmagórica «síntese teórica» na qual se estabelece um sistema socialista (caracterizado pela coação sistemática contra a ação humana e pela propriedade pública dos meios de produção) e, mesmo assim, se mantém a existência de um «mercado». Por razões ideológicas, românticas, éticas ou políticas, negam-se, teimosa e obstinadamente, a abandonar o socialismo e, depois do impacto que sentiram pelas críticas de Mises e Hayek, pretendem reintroduzir o mercado nos seus esquemas, com a vã esperança de conseguir «o melhor de dois mundos» e de tornar mais apelativo o seu ideal.

Porém, o que os socialistas não querem compreender é que basta que se restrinja violentamente a livre ação humana em qualquer área social, e especialmente na relacionada com os fatores ou meios de produção, para que o mercado, que é a instituição social por excelência, deixe de funcionar de forma coordenadora e de gerar a informação prática necessária para permitir o cálculo económico. Em suma, o que os «socialistas de mercado» não compreendem é que não se pode exercer impunemente a violência sistemática contra a mais profunda essência do ser humano: a sua capacidade de atuar livremente em qualquer circunstância concreta de tempo e de lugar.

Ou, pelo menos, os «socialistas de mercado» não o compreenderam até há bem pouco tempo, uma vez que Brus e Laski (que se autointitularam «ex-reformadores ingénuos», durante muitos anos defensores do «socialismo de mercado»), tal como Temkin, acabaram por fazer suas as seguintes palavras de Mises: «What these neosocialists suggest is really paradoxical. They want to abolish private control of the means of production, market exchange, market prices and competition. But at the same time they want to organize the socialist utopia in such a way that people could act as if these things were still present. They want people to play market as children play war, railroad, or school. They do no comprehend how such childish play differs from the real thing it tries to imitate. … A socialist system with a market and market prices is as self contradictory as is the notion of a triangular square.» Mais graficamente, e seguindo Mises, Anthony de Jasay concluiu que falar de «socialismo de mercado» é tão contraditório como fazer referência a «neve quente, a uma puta virgem, a um esqueleto obeso ou a um quadrado redondo.»[38]

Só se pode entender que esta obsessão com a «quadratura do círculo», que todo o «socialismo de mercado» implica, tenha sido alvo de interesse e esforço a nível científico se se considerarem os seguintes três argumentos: em primeiro lugar, a forte motivação político-ideológica, que há pouco qualificamos até de teimosa e obstinada, de não abandonar o ideal socialista por razões pessoais, românticas, éticas ou políticas; em segundo lugar, a utilização do modelo neoclássico do equilíbrio, que só de forma muito limitada, pobre e confusa descreve o funcionamento real do mercado capitalista, e no qual se sugere que um sistema socialista poderia funcionar com as mesmas premissas teóricas do modelo estático, uma vez que se assume que a informação necessária está disponível; e, em terceiro lugar,  a rejeição expressa, e até condenação, da análise teórica do funcionamento real da ação humana em contextos nos quais não exista propriedade privada dos meios de produção, sob o pretexto de que as considerações sobre os incentivos e motivações são «alheias» ao campo da «teoria» económica.

Alguns autores socialistas propõem, no máximo, a introdução de «bónus» ou «incentivos» que simulem toscamente os lucros empresariais do mercado, sem compreenderem (e se isto acontece com os próprios economistas, o que fará com quem não é especialista na matéria) a razão por que, no socialismo, os gerentes não atuariam como os empresários numa economia de mercado, se lhes é dada a instrução genérica para que o façam, ou para que «atuem de forma coordenada», ou em «função do bem comum», etc. Estes teóricos (e a maioria dos líderes sociais e religiosos) não compreendem que as diretrizes gerais não servem de nada, por mais bem intencionadas que sejam, quando é preciso tomar decisões concretas relativamente a problemas específicos que se colocam em determinadas circunstâncias de tempo e lugar; que se os humanos se dedicassem a atuar sob a instrução coativa, tão aparentemente apelativa como vazia de conteúdo, de «fomentar o bem comum», ou de «coordenar os processos sociais», ou, inclusivamente, de «amar o próximo», acabariam forçosamente por atuar de forma descoordenada, contra o bem comum e prejudicando gravemente os mais próximos e os mais distantes, uma vez que se impossibilitaria a apreciação, em cada circunstância concreta e de forma criativa, das diferentes oportunidades de lucro existentes, bem como a sua avaliação e comparação com os potenciais custos subjetivos.

Pelo contrário, a Escola Austríaca tem vindo continuamente a elaborar e a aperfeiçoar um paradigma alternativo no campo da ciência económica que desenvolve, de modo formal e abstrato (embora não matemático), toda uma teoria geral sobre a ação humana (real e não mecânica) em sociedade e as suas diferentes implicações. Um elemento chave nesta teoria é o próprio exercício da ação humana ou função empresarial, que descobre constantemente novos fins e meios e gera informação que possibilita a tomada racional de decisões a nível descentralizado, permitindo a coordenação entre todos os seres humanos e criando assim uma teia social muita complexa. Este paradigma é cada vez mais estudado, comentado e popularizado especialmente por teóricos dos antigos países socialistas de Leste, para os quais as obras teóricas de Mises e Hayek são mais relevantes e citadas do que as dos grandes teóricos neoclássicos do Ocidente, como Samuelson, e até do que as da própria Escola de Chicago, como Friedman. Nesta medida, não surpreende que um número cada vez maior de antigos «socialistas de mercado» esteja a abandonar as suas antigas posições.[39] Na verdade, o «socialismo de mercado» falhou como proposta de solução para o problema do cálculo económico socialista, tanto na teoria como nas tentativas de reforma prática que foram efetuadas reiteradamente nos sistemas socialistas da Europa de Leste, pelo que foi abandonado como modelo a seguir pela maioria dos próprios teóricos que até então o defendiam.[40]

 

3. MAURICE H. DOBB E A SUPRESSÃO COMPLETA DA LIBERDADE INDIVIDUAL

Deixámos para o fim a análise de uma posição encabeçada desde os seus primórdios por Maurice Dobb e que tem algum interesse teórico, uma vez que parte do reconhecimento mais ou menos explícito da impossibilidade do cálculo económico socialista para concluir que tanto esta impossibilidade como a ineficiência que lhe está associada são irrelevantes. Ou, se se preferir, constituem um «custo» que não deve ser tido em conta, dado que, por razões éticas, ideológicas e políticas, o ideal socialista deve ser perseguidoper se, isto é, independentemente dos seus resultados. Assim, os partidários desta posição classificam de «hipócritas» e «ingénuos» os «socialistas de mercado» que pretendem introduzir no sistema socialista tantos mecanismos próprios do capitalismo quantos seja possível. Os defensores desta posição querem chamar as coisas pelo seu nome e evitar qualquer tipo de equívoco: ou o socialismo significa a supressão absoluta da autonomia e da liberdade individual ou não é socialismo.[41]

Na mais pura tradição socialista, o que estes teóricos desejam é impor pela força aos outros seres humanos a sua visão particular sobre como deve funcionar o mundo. Além disso, estes teóricos aperceberam-se que a tosca e parcial imitação de elementos próprios de uma economia de mercado no sistema socialista em vez de ajudar no problema do cálculo económico, revela-o, tornando-o mais evidente e difícil. De facto, se se permite um certo nível de decisões descentralizadas, o problema colocado pela impossibilidade de centralizar o conhecimento disperso manifesta-se de forma muito mais clara e intensa e, logo, cria-se a impressão de que se agravam os problemas de coordenação social (se é que de facto isso não acontece). Pelo contrário, se forem suprimidas todas as liberdades (incluindo a liberdade de escolha dos consumidores e a liberdade de escolha de trabalho por parte dos trabalhadores) e se se impedir pela força que os agentes económicos tomem qualquer tipo de decisão autónoma, através da imposição superior de um plano unificado para todas as esferas sociais, embora, como já vimos, não possa ser resolvido, o problema económico mantém-se em grande medida escondido, o que faz com que o grau de «coordenação» e «ajustamento» social seja aparentemente muito maior.[42]

Imaginemos uma «sociedade» que se mantenha a um nível de mera subsistência com base em relações económicas simples impostas totalmente desde cima por meio da força e da eliminação física de quem se oponha ao «regime». Podemos até supor que o brutal ditador será ajudado a controlar o cumprimento das suas instruções pelo mais potente computador existente. Ora, nestas circunstâncias, o cálculo económico parece simplificar-se substancialmente: far-se-ia aquilo que o ditador mandasse, o ditador escolheria as combinações de produção e os outros humanos limitar-se-iam a obedecer como escravos, cumprindo instruções recebidas de cima. É evidente que, como Mises demonstrou claramente,[43] nem nestas circunstâncias extremas — que são as mais favoráveis que se poderia imaginar para a exequibilidade do cálculo económico socialista — o problema que este sistema coloca poderia ser resolvido, uma vez que o ditador continuaria a não ter um guia racional para tomar decisões. Ou seja, nunca saberia se os fins por ele pré-estabelecidos poderiam ser alcançados de forma mais oportuna e adequada utilizando outras combinações de fatores e produtos ou tomando decisões diferentes. No entanto, se isso não é importante para o ditador, ou seja, se o socialismo concebido desta forma não só elimina a liberdade de os consumidores escolherem bens e serviços de consumo e de os trabalhadores escolherem o posto de trabalho, bem como a propriedade privada dos meios de produção, mas também (explícita ou implicitamente) considera que não é necessário qualquer princípio económico ou que a eficiência é irrelevante para a manutenção do próprio sistema, então o problema do cálculo económico poderia considerar-se «resolvido», não por ter-se tornado possível, mas pelo artificioso caminho de se considerar que o «cálculo» consiste precisamente em não haver cálculo algum e em impor aos demais os caprichos do ditador em cada momento.

Por outro lado, não surpreende que os teóricos desta corrente, que consideravam a concorrência e a planificação central socialista radicalmente incompatíveis, tenham sido especialmente críticos na avaliação do chamado «socialismo de mercado». Assim se explica a curiosa polémica que surgiu entre Maurice Dobb, por um lado, e os restantes teóricos do «socialismo de mercado», sobretudo Abba P. Lerner, por outro.[44]Curiosamente, neste ponto, Dobb concorda com a Escola Austríaca e chega mesmo a criticar ironicamente o facto de os teóricos do «socialismo de mercado» utilizarem o modelo do equilíbrio geral, e, no âmbito do paradigma neoclássico, assumirem que as «semelhanças» entre o sistema capitalista e o socialismo são «tantas», que formalmente não existem diferenças entre ambos. De acordo com Dobb, o problema não tem que ver com a análise neoclássica do equilíbrio, sendo antes um resultado das radical e fundamentalmente diferentes «instituições» do sistema socialista e do sistema capitalista e, em concreto, do facto de o socialismo implicar a abolição pela força de todas as instituições que são próprias do sistema capitalista.[45]Dobb salienta até a ambiguidade essencial das «soluções» propostas pelos «socialistas de mercado» que, pretendendo reconciliar o irreconciliável e, de acordo com as suas conveniências, o contexto em que se encontrem e o tipo de argumento que estejam a considerar, nuns casos, destacam nos seus modelos as características típicas do mercado e, noutros, as vantagens da planificação socialista. Assim se explica que, no debate que manteve com Lerner, Dobb tenha qualificado este autor de «oponente invisível», pois sempre que podia iludia com grande habilidade as questões colocados através do simples e curioso artifício dialético que acabámos de descrever.[46]

Em suma, Dobb defende que a autoridade central deve fixar todos os preços, que os preços devem ser impostos pela força a todos os níveis e que se deve impedir a soberania dos consumidores e a livre escolha de postos de trabalho. Tendo em conta que essa autoridade central não persegue qualquer objetivo económico, pretendendo apenas satisfazer os seus caprichos arbitrários e manter-se no poder, a questão da possibilidade ou não do «cálculo económico» pode considerar-se irrelevante. Neste sentido, a proposta de Dobb é ao mesmo tempo menos contraditória e mais realista e «honesta» do que a defendida por muitos dos teóricos do «socialismo de mercado». Menos contraditória e mais realista na medida em que se sustenta não na análise formal do equilíbrio, mas nas verdadeiras instituições do socialismo, que, como sabemos, se baseiam na coação sistemática e abrangente, tal como o modelo foi concebido politicamente desde as suas origens revolucionárias. Mais «honesta» do que a dos «socialistas de mercado», na medida em que não pretende ocultar qual é a verdadeira cara do socialismo, fundamentando-o simples e claramente na brutal repressão e total restrição da livre ação humana.[47]

Aquando da sua análise crítica da posição de Dobb,[48] Hoff dá-nos o seguinte exemplo explicativo da mesma. O autor refere que a utilização do molibdénio para o fabrico de espadas de brincar, ou de lentes de alta qualidade em microscópios para serem utilizados nas escolas primárias seriam indubitavelmente consideradas más alocações de recursos numa sociedade em que a satisfação dos desejos dos consumidores (ou do próprio ditador) tivesse alguma importância e, logo, em que esse metal e essas lentes pudessem produzir uma satisfação muito maior (para os consumidores e o próprio ditador) se fossem usados para outros fins. No entanto, a mesma alocação de recursos não seria considerada «ineficiente» ou «não económica» se o fim fosse, por exemplo, dar às crianças o melhor equipamento técnico possível, ou que os trabalhadores que fabricam as lentes fossem favorecidos a todo o custo. Vemos pois que o lógico e ineficiente não aparece como tal se os fins são fixados arbitrariamente em cada caso, ou se, na verdade, não existir qualquer tipo de fim. Além disso, e não podia ser de outra forma, pois, como sabemos, as diferenças entre o socialismo real e o «democrático» são diferenças de grau e não de tipo, esta forma arbitrária de atuar não é exclusiva das sociedades socialistas mais extremas, verificando-se constantemente em todas as medidas de intervencionismo que tomadas nos países ocidentais.[49]

Por sua vez, Hayek dedicou uma secção inteira[50] do seu artigo de 1935 sobre o estado do debate a analisar ao pormenor a posição de Maurice Dobb, na qual começa por elogiar a sua coragem e honestidade na apresentação das verdadeiras implicações do socialismo.[51] No entanto, Hayek pretende salientar que o cálculo económico socialista só seria possível no modelo de Dobb não só impedindo a livre escolha dos consumidores e trabalhadores, mas também assumindo que o ditador socialista não tinha qualquer escala de fins ou objetivos. Isto porque a partir do momento em que se assuma que o ditador tem alguma finalidade predefinida, poderá afirmar-se que, mesmo no modelo de Dobb, o cálculo económico racional seria impossível para o referido ditador, uma vez que lhe faltaria um guia objetivo que lhe indicasse se, ao perseguir determinado objetivo com as suas decisões, estava ou não a ignorar outros objetivos ou fins que para ele tivessem um valor superior. Neste sentido, mais uma vez, Hayek encontra-se em concordância total com Mises, que considera expressamente que o problema do cálculo económico exige que o ditador tenha pelo menos decidido quais são os seus fins e que importância relativa têm na sua escala de valores.[52]Assumindo que é esse o caso, o cálculo económico torna-se impossível, uma vez que o ditador carece de um guia racional para saber se, com as decisões que toma, está a renunciar à consecução de fins a que o próprio dá mais valor.[53]

Quer o cálculo económico seja impossível por o ditador ter decidido previamente quais são os seus fins e que importância hierárquica têm para ele, quer consideremos artificialmente que não existe qualquer problema de cálculo económico, uma vez que não é perseguido nenhum bem de importância relativa tendo em conta outros fins, é evidente que, no modelo de Dobb, a alocação de recursos será inteiramente arbitrária e as ineficiências serão de tal monta, que tal modelo é apenas, na expressão de Mises, um modelo dedestrucionismo, isto é, de completa destruição ou aniquilação da civilização e de redução da humanidade a uma situação de escravidão e terror quase inimagináveis.[54]

É certo que, do ponto de vista estritamente económico,[55] não podemos julgar a decisão individual da pessoa que não dê importância ao custo do sistema socialista desde que este sistema seja alcançado e, de facto, como já vimos, Mises, no final do seu artigo seminal de 1920, afirma que, nesse caso, o seu argumento contra o cálculo económico socialista não será tido em conta. No entanto podemos perguntar-nos quantos seguidores do ideal socialista a nível popular e político estariam dispostos a continuar a apoiá-lo se tivessem consciência das suas verdadeiras implicações.[56] É também preciso considerar até que ponto o modelo socialista pode manter-se em cada etapa histórica concreta por meio do uso da força e que possibilidades existem de manter isolado do resto do mundo um determinado país ou zona geográfica, com o objetivo de que a sua população não descubra aquilo a que está realmente a renunciar ao deixar-se aliciar ou enganar pela propaganda oficial do seu governo. Todas estas considerações são de grande interesse e relevância, especialmente no que diz respeito à avaliação, em cada caso histórico, de quais são as possibilidades de uma conquista democrática ou revolucionária do poder e da manutenção do mesmo por parte de um regime socialista. Mas nenhuma delas diminui a solidez do desafio teórico de Mises e Hayek, que desmascarou completamente o facto de o socialismo implicar forçosamente um empobrecimento generalizado das massas, uma vez que não possibilita o cálculo em termos de eficiência económica e de, em última instância, se tratar de um sistema impossível, incapaz de conseguir os «paradisíacos» fins que, com o objetivo de aliciar o público, normalmente, e pelo menos até agora, vêm sendo associados ao mesmo.

 

4. EM QUE SENTIDO É O SOCIALISMO IMPOSSÍVEL?

No Capítulo III, demonstrámos que o socialismo é um erro intelectual porque é teoricamente impossível que se ajustem os comportamentos sociais por meio de um sistema de coação institucional contra a livre interação humana. Ou seja, a tese do livro é a de que sem liberdade para exercer a função empresarial, por um lado, não se cria a informação necessária para possibilitar o cálculo económico racional (ou seja, uma tomada de decisões não arbitrária, uma vez que a informação relevante em cada caso é tida em conta subjetivamente) e, por outro lado, não é possível que os agentes económicos aprendam a disciplinar o seu comportamento em função das necessidades e circunstâncias dos demais (coordenação social). Ora, esta tese coincide inteiramente com a tese defendida por Ludwig von Mises já desde o seu artigo de 1920. De facto, para Mises, o conceito de «racional» significa a tomada de decisões baseada na informação relevante necessária quer no que respeita aos fins que vão ser perseguidos quer no que se refere aos meios e custos de oportunidade previstos. Mises mostra que só num contexto competitivo no qual exista liberdade de empresa e propriedade privada dos meios de produção é que essa informação se irá gerar e transmitir empresarialmente. Desta forma, na ausência de mercados não intervencionados, de propriedade privada dos meios de produção e do livre exercício da função empresarial, a informação não é gerada e as decisões são tomadas (a nível central ou descentralizadamente) com total arbitrariedade. É neste sentido, e em mais nenhum, que se devem ler as seguintes afirmações de Mises. «As soon as one gives up the conception of the freely established monetary price for goods of a higher order, rational production becomes completely impossible. Every step that takes us away from private ownership of the means of production and from the use of money also takes us away from rational economics.»[57] E, pelas razões apontadas, «socialism is the abolition of rational economy».[58] Mas o que Mises nunca afirma, ao contrário das parciais e interessadas interpretações feitas por alguns adversários, é que é impossível tentar pela força levar à prática qualquer utopia em geral, e o sistema socialista em particular. Pelo contrário, Mises defende que o conhecimento teórico de que é impossível efetuar o cálculo económico no sistema socialista só impressionará aqueles que erroneamente pensem que esse sistema pode alcançar graus de eficiência, desenvolvimento económico e civilização maiores do que os do sistema capitalista. Não terá esse efeito naqueles que defendam o socialismo por inveja ou por razões de cariz emotivo ou passional, «éticas» ou «ascéticas». De facto, em 1920 Mises escreve o seguinte: «The knowledge of the fact that rational economic activity is impossible in a socialist commonwealth cannot, of course, be used as an argument either for or against socialism. Whoever is prepared himself to enter upon socialism on ethical grounds on the supposition that the provision of goods of a lower order for human beings under a system of a common ownership of the means of production is diminished, or whoever is guided by ascetic ideals in his desire for socialism, will not allow himself to be influenced in his endeavours by what we have said … But he who expects a rational economic system from socialism will be forced to re-examine his views.»[59]

Por sua vez, Hayek, em acordo total com Mises, refere que embora, em certo sentido, seja «possível» empreender qualquer curso de ação, por mais absurdo ou louco que possa parecer, e nesse sentido, se possa tentar até levar à prática um sistema socialista, do ponto de vista teórico, a questão da «impossibilidade do socialismo» coloca-se, única e exclusivamente, em saber se o curso de ação socialista é coerente com os objetivos que pretende alcançar: em concreto, um desenvolvimento económico e social coordenado e harmonioso, pelo menos igual, e se possível superior, àquele que se alcança por meio do sistema capitalista.  Ora, se o objetivo era acabar com a «anarquia do mercado», superando as suas «ineficiências» e conseguindo uma maior eficiência económica graças à coação e à utilização de um plano económico racional centralizado, é evidente que o socialismo, por não ser capaz de atingir estes objetivos, é, nos termos explicados, umaimpossibilidade. Ou, por outras palavras, como o sistema socialista impossibilita o cálculo económico racional e o comportamento ajustado dos agentes sociais, não é possível que um sistema desse tipo consiga alcançar o objetivo de superar o sistema capitalista em criatividade, coordenação e eficiência. Por fim, Hayek reconhece que a impossibilidade de se conseguir a eficiência económica e o declínio geral no desenvolvimento que forçosamente decorrerá da impossibilidade do cálculo económico socialista podem deixar inalteradas as pretensões daqueles que continuam a apoiar o socialismo por outro tipo de razões (religiosas, passionais, éticas ou políticas), embora nesse caso a ciência económica proporcione um conhecimento e serviço de grande valor, mesmo a este segundo grupo de pessoas, uma vez que lhes dá a conhecer os verdadeiros custos das suas opções políticas, éticas ou ideológicas e pode ajudá-las, conforme o caso, a rever ou a reafirmar essas opções.[60]

Em todo o caso, é indubitável que a análise de Mises e Hayek foi um verdadeiro «balde de água fria» para todos aqueles, especialistas e não especialistas em economia, que ingénua e avidamente apoiaram o socialismo pensando que este se iria constituir como a panaceia para todos os problemas sociais e permitir alcançar uma eficiência e um desenvolvimento económico nunca vistos no capitalismo. E tão-pouco restam dúvidas de que, para a maior parte das pessoas, o facto de o socialismo implicar um empobrecimento generalizado e uma perda de eficiência é um argumento poderoso, e muitas vezes definitivo, para que esse ideal seja abandonado. Todavia, não se pode ignorar que o socialismo como «ideal» comporta uma importante componente ética, e até «religiosa», que faz com que seja inevitável que o tratemos numa perspetiva de ética social. Por isso, cada vez se dedicam mais esforços de investigação a analisar se, independentemente dos problema teóricos de eficiência económica já descritos, o socialismo é ou não um sistema eticamente admissível. E de facto, pelo menos numa das perspetivas do campo da ética social que foram analisadas (a do direito natural), existem fortes razões para considerar que o ideal socialista é radicalmente contrário à natureza do homem (o que parece inevitável, uma vez que o socialismo se baseia no exercício da violência e da coação sistemática contra a mais íntima e essencial característica do ser humano: a sua capacidade para atuar livremente). Assim, com base neste argumento, o sistema socialista não só seria teoricamente erróneo, como eticamente inadmissível (ou seja, imoral e injusto), pelo que «a longo prazo» seria impossível levá-lo à prática de forma coerente e, por ser contrário à natureza do género humano, estaria inexoravelmente condenado ao fracasso. Na verdade, nesta perspetiva, ciência e ética são apenas as duas faces da mesma moeda, e no mundo existe uma ordem coerente, não contraditória e na qual as conclusões nos campos científico, histórico-evolutivo e ético tendem sempre, em última instância, a convergir.[61]

Se a ciência económica demonstra que o cálculo económico racional é impossível no sistema socialista, e se a análise teórica da ética social evidencia que o socialismo também é impossível por ir contra a natureza humana, que conclusões retirar de um estudo histórico-interpretativo das experiências socialistas que foram levadas a efeito até agora? A questão é, pois, a de esclarecer se os factos históricos ocorridos nos países socialistas se enquadram na análise teórica do socialismo, tal como foi desenvolvida por Mises e Hayek. De acordo com esta análise, o que se pode esperar da introdução de um sistema socialista, no qual não existe liberdade de exercício da função empresarial, e precisamente na medida em que essa liberdade se encontre restringida, é, por um lado, uma má alocação generalizada dos recursos e dos fatores de produção, no sentido em que determinadas linhas de produção se desenvolverão excessivamente em detrimento de outras que produzam bens e serviços mais necessitados pela população. Da mesma forma, verificar-se-á um desenvolvimento excessivo, justificado apenas por razões estritamente técnicas ou tecnológicas, de determinados projetos que se desenvolvem sem ter em conta os custos que implicam. Paradoxalmente, esta tendência descontrolada para desenvolver projetos por razões estritamente «técnicas» impedirá a introdução generalizada de novas tecnologias e métodos de produção economicamente mais interessantes, e que poderiam ser descobertas e experimentadas na prática se existisse completa liberdade para o exercício da empresarialidade.[62] Em suma, verificar-se-á um excesso de investimento nas indústrias mais intensivas em capital, em detrimento da produção de bens e serviços de consumo, como resultado da baixa taxa de juro arbitrariamente fixada. Em geral, a irracionalidade e a descoordenação social alargar-se-ão a todos os níveis, o que fará com que, mantendo-se inalteradas as restantes circunstâncias, com o mesmo esforço e apoio social, o nível de vida diminua e a produção de bens e serviços de consumo se torne muito mais reduzida em quantidade e em qualidade num sistema socialista do que num sistema capitalista. Por outras palavras, mantendo-se inalteradas as restantes circunstâncias, o sistema socialista não conseguirá mais do que aproximar-se do sistema capitalista, incorrendo em custos humanos, ambientais e, em geral, relativos aos restantes fatores de produção muito maiores, ou, por outras palavras, desnecessários e completamente desproporcionados.

Embora este não seja o lugar adequado para analisar ao pormenor a experiência histórica dos sistemas socialistas, podemos agora constatar que a interpretação histórica dessas experiências ilustra plenamente (e coincide com) as conclusões a priori da teoria do socialismo tal como foi desenvolvida por Mises e Hayek. De facto, os sistemas socialistas mostraram-se incapazes de coordenar racionalmente as suas decisões económicas e sociais, de manter um nível mínimo de ajuste e eficiência,[63] de satisfazer os desejos de bens e serviços de consumo dos seus cidadãos e de impulsionar o desenvolvimento económico, tecnológico e cultural das suas sociedades. Efetivamente, as distorções e contradições dos sistemas socialistas dos países de Leste tornaram-se tão evidentes para a maioria da sua população, que o grito popular em favor abandono do socialismo e da reintrodução do capitalismo foi insuportável para os antigos regimes, que se foram sucessivamente desmoronando a partir de 1989.  Neste sentido, é indiscutível que a queda do socialismo nos países do Leste deve ser vista como um grande triunfo científico e uma ilustração, sem precedentes na história da ciência social, da análise teórica do socialismo que a Escola Austríaca da Economia tem vindo a realizar desde os anos vinte do século passado. Todavia, e depois de salientarmos o que as referidas circunstâncias históricas significaram em termos de reconhecimento para Ludwig von Mises e de satisfação para o próprio Hayek, os outros economistas da sua escola e poucos mais, não podemos deixar de acrescentar que, tendo a sua análise teórica demonstrado a priori que o socialismo não podia funcionar por se basear num erro intelectual que levaria a todo o tipo de desajustamentos e distorções sociais, pode considerar-se uma verdadeira tragédia que tenha sido preciso que passassem tantos anos de indescritível sofrimento de milhões de seres humanos para que historicamente se tornasse evidente algo que, do ponto de vista teórico, e graças às contribuições da Escola Austríaca da Economia, se sabia desde o início que iria necessariamente ocorrer. Particularmente responsáveis por esse sofrimento humano são não só a maioria dos membros da própria comunidade científica, ao ignorar negligentemente e até ocultar dolosamente o conteúdo da análise austríaca do socialismo, mas também esse vil e antiquado, mas ainda predominante, positivismo, de acordo com o qual a experiência, à margem de qualquer teoria, seria capaz de demonstrar as possibilidades de sobrevivência de qualquer sistema social.[64] Com a gloriosa exceção de Mises, Hayek e dos restantes economistas da sua escola e poucos mais, praticamente toda a comunidade de cientistas sociais traiu a humanidade, e, no mínimo, falhou no cumprimento do seu importantíssimo dever científico de avisar e advertir os cidadãos sobre os perigos decorrentes do ideal socialista, pelo que se torna indispensável levar a cabo um muito saudável e formativo apuramento de responsabilidades científicas que, tendo em conta a cidadania e o futuro da história do pensamento económico, situe cada teórico no seu verdadeiro lugar, independentemente da fama, do nome ou da popularidade que conjunturalmente tenha adquirido.

Apesar de tudo, são necessárias algumas palavras de cautela acerca dos comentários que acabámos de fazer sobre a interpretação histórica das experiências socialistas, uma vez que, ao contrário de muito teóricos «positivistas», não consideramos que a evidência empírica, por si só, seja suficiente para confirmar ou refutar uma teoria científica no campo da economia. Afirmámos deliberadamente que os estudos históricos «ilustravam» e «coincidiam» com as conclusões teóricas, mas não que «confirmavam» ou «demonstravam» a sua validade.[65] De facto, embora este não seja o lugar adequado para apresentar a análise das insuficiências lógicas da «metodologia positivista»,[66] é evidente que a experiência do mundo social é sempre uma experiência de cariz histórico, ou seja, referente a factos muito complexos nos quais intervêm inúmeras «variáveis» que não é possível observar diretamente, mas apenas à luz de uma teoria prévia. A interpretação dos factos será também diferente dependendo da teoria, pelo que adquire extraordinária relevância o estabelecimento prévio de teorias que permitam interpretar a realidade de forma correta, por meio de outros procedimentos que não sejam os positivistas. Não existe, pois, uma evidência histórica incontestável, nem tão-pouco uma evidência que permita confirmar se uma teoria está certa ou errada. Além disso, e mesmo que assim não fosse, a discussão teórica em geral, e a discussão sobre o socialismo em particular, permite alcançar conclusões de enorme valor, que, se fossem levadas em conta atempadamente, teriam poupado, como já vimos, não só décadas e décadas de esforços infrutíferos, mas também numerosos conflitos de todo o tipo e uma indescritível quantidade de sofrimentos humanos.  Assim, esperar que a história «confirme» se um sistema económico é ou não exequível não só constitui uma impossibilidade lógica, uma vez que a história não pode confirmar nem refutar nenhuma teoria, como implica cair no absurdo de rejeitar a priori os ensinamentos das teorias corretas desenvolvidas à margem da experiência. Além disso, convida a experimentar qualquer absurdo ou utopia, com custos humanos desproporcionados,[67] sob o pretexto de permitir a análise dos respetivos «resultados experimentais».

Estes comentários eram necessários porque, embora no momento de escrever estas linhas (1990-1991), a queda dos sistemas socialistas dos países do Leste da Europa e a sua evolução nas últimas décadas, em geral, confirmem plenamente as «previsões» que poderiam depreender-se dos ensinamentos de Mises e Hayek acerca do socialismo, nem sempre foi assim[68] e, em determinadas etapas históricas, chegou mesmo a acreditar-se de forma generalizada no contrário, isto é, que a evolução dos acontecimentos nos países de Leste «refutava» plenamente a teoria da impossibilidade do socialismo tal como tinha sido enunciada pelos economistas austríacos. Além disso, em certas ocasiões chegámos a ler que os próprios Hayek[69] e Robbins,[70] vendo o funcionamento prático do socialismo na União Soviética, abandonaram a posição extrema de Mises e refugiaram-se numa «segunda linha de defesa» que consistia em afirmar que, embora o socialismo pudesse «funcionar» (ou seja, «não fosse impossível»), na prática iria gerar graves problemas de ineficiência. Como já sabemos, esta interpretação é completamente errónea, dado que, em nenhum momento, Robbins e Hayek se retiraram para uma «segunda linha de defesa». Pelo contrário, sempre pensaram que os factos da União Soviética respaldavam inteiramente a teoria misiana do socialismo mesmo nas fases históricas nas quais os fracassos e as insuficiências do sistema socialista foram mais bem disfarçadas e pareciam menos evidentes.[71]

 

5. CONCLUSÕES FINAIS

Tendo em conta a nossa análise do debate acerca do cálculo económico socialista, podemos concluir que nenhum dos teóricos socialistas foi capaz de responder satisfatoriamente ao desafio colocado por Mises e Hayek. Em primeiro lugar, na maioria das ocasiões, estes teóricos não foram capazes de compreender o verdadeiro significado do referido desafio. Moviam-se dentro do contexto do paradigma neoclássico-walrasiano e utilizavam um instrumental analítico que lhes dificultava em grande medida a compreensão de quais são os verdadeiros problemas que surgem num sistema em que não exista propriedade privada dos meios de produção nem liberdade para exercer a função empresarial. Em segundo lugar, o desvio em direção aos problemas da estática (que, por sua vez, foi consequência do fenómeno anterior) impediu uma avaliação e uma análise detalhadas dos verdadeiros problemas em questão e deu origem a uma falsa sensação de que tinham sido «teoricamente resolvidos». Por isso, o verdadeiro desafio teórico de Mises e Hayek ficou sem resposta e continua ainda hoje por resolver, como acabaram por reconhecer, cada vez mais, os próprios teóricos do socialismo. Por outro lado, a evolução dos acontecimentos sociais, económicos e políticos ao longo do século xx veio confirmar plenamente as contribuições teóricas de Mises e Hayek sobre a teoria do socialismo, embora para a maior parte dos economistas dos países ocidentais o debate tenha terminado e ficado decidido no início dos anos 40. Desde esta data até à atualidade têm vindo a ser desenvolvidas diversas linhas de investigação, tanto no campo dos «sistemas comparados» como na área da teoria da «reforma dos sistemas socialistas» e no desenvolvimento da planometria, com um desconhecimento praticamente total dos problemas teóricos analisados por Mises e Hayek ao longo  do debate, o que contribuiu em grande medida para a esterilidade e o fracasso de todas estas linhas de investigação.

No que respeita à Escola Austríaca, não só os teóricos inicialmente envolvidos no debate (sobretudo Mises e Hayek), mas também um crescente número de jovens economistas, continuaram a desenvolver um prometedor conjunto de teorias que pode considerar-se que têm a sua origem científica no próprio debate. Neste sentido, o debate está repleto de consequências científicas e foi muito frutífero para a Ciência Económica, pelo que é de grande interesse analisar as diferentes áreas da Economia que foram enriquecidas pelas contribuições que originalmente se intuíram ou nasceram como consequência da polémica sobre o cálculo económico socialista. A maioria destes jovens autores já foi referida em diferentes lugares deste livro sempre que as suas contribuições eram relevantes, embora seja necessário deixar para outro trabalho um estudo mais profundo e detalhado das mesmas.

A situação atual, certamente decorrente dos acontecimentos históricos testemunhados pelo mundo a partir de 1989 com a queda dos regimes socialistas dos países do Leste da Europa, está a impulsionar um revisão generalizada da versão «tradicional» do debate, que está a ser levada a cabo de acordo com as linhas mestras que foram expostas neste livro já desde a sua primeira edição em 1992 e na qual desempenha um papel muito  significativo a maioria dos que até agora eram os teóricos mais considerados nos países socialistas, juntamente com um grupo cada vez mais numeroso de economistas ocidentais. Esperamos que, continuando a investigação no campo da história do pensamento económico desta forma, se chegue em poucos anos a um consenso generalizado sobre a necessidade de modificar a avalização e as conclusões que até agora vinham sendo defendidas em torno do «debate sobre o cálculo económico socialista». Se assim for, consideraremos um motivo de grande honra e satisfação o facto de termos contribuído com o nosso pequeno grão de areia para a destruição daquele que não foi senão mais um mito grave e injustificado da ciência económica.

 

 



[1] E.F.M. Durbin, Purchasing Power and Trade Depression, Chapman & Hall, Londres 1933.

[2] Publicado em Economic Journal, dezembro de 1936, e reeditado em Problems of Economic Planning, Routledge & Kegan Paul, Londres 1968, pp. 140-155. Também é interessante o seu artigo «A Note on Mr. Lerner’s “Dynamical” Propositions», Economic Journal, set. 1937, n.º 47, pp. 577 a 581.

[3] Assim, é preciso abandonar a «teoria funcional» da determinação dos preços que desde Marshall até hoje inunda os manuais de economia e contra a qual Carl Menger se insurgiu na sua carta de fevereiro de 1884 a Léon Walras, onde conclui que «la me´thode mathe´matique est fausse» (E. Antonelli, «Le´on Walras et Carl Menger a` travers leur correspondence», E´conomie Applique´, volume VI, abril-setembro de 1953, p. 282, e os comentários a respeito de E´mil Kauder no artigo «Intellectual and Political Roots of the Older Austrian School», Zeitschrift fu¨r Nationalo¨konomie, n.º 17, pp. 411-425, incluído no volume I de Austrian Economics, Stephen Littlechild, editorial Edward Elgar, Vermont 1990, especialmente as pp. 10- 11). Bo¨hm-Bawerk, no volume II de Capital and Interest, obra citada, pp. 233-235, critica que se conceba mecanicamente que a oferta e a procura são meras «quantidades» dependentes de uma variável independente (o preço), e não o que na realidade são: o resultado de decisões e ações humanas reais e concretas. Assim, a teoria funcional e científica dos preços deve ser substituída por uma teoria «genético-causal», ou, mais exatamente, praxeológica, dos preços, na qual os estes surgem como resultado de umasequência de ações humanas de cariz empresarial e que, mantendo e enriquecendo as conclusões válidas do modelo «funcional», permite evitar os graves riscos e erros a que este dá origem. Ver, neste sentido, o artigo de Hans Mayer, «Der Erkenntniswert der Funktionellen Preistheorien», em Die Wirtschaftstheorie der Gegenwart, volume 2, edit. Springer, Viena 1932, pp. 147-239b. Ver também os comentários sobre o tema de Israel M. Kirzner no seu artigo «Austrian School of Economics», The New Palgrave: A Dictionary of Economics, obra citada, volume I, p. 148. As ideias de Mises nesta mesma linha encontram-se sobretudo na sua obraHuman Action, obra citada, pp. 327 a 333. Ver, igualmente, a citação na nota 53 do Capítulo V, e as considerações que fazemos no final do mesmo. Em Espanha, um exemplo recente da metodologia científica prejudicial baseada na «engenharia social» e na utilização da matemática no campo da economia é o livro do socialista José Borrell Fontelles La República de Taxonia, Ediciones Pirámide, Madrid, 1992.

[4] «A capacidade de descobrir os produtos marginais não depende da existência de nenhum conjunto particular de instituições sociais.» E.F.M. Durbin, «Economic Calculus in a Planned Economy», em Problems of Economic Planning, obra citada, p. 145.

[5] «It may be very difficult to calculate marginal products. But the technical difficulties are the same for capitalist and planned economies alike. All difficulties that are not accountancy difficulties are not susceptible to theoretical dogmatism.» E.F.M. Durbin, «Economic Calculus in a Planned Economy», emProblems of Economic Planning, obra citada, p. 143.

[6] O papel de Durbin — que morreu tragicamente afogado na Cornualha em 1948 quando se encontrava em plena juventude — na construção da fundamentação ideológica do Partido Trabalhista inglês depois da Segunda Guerra Mundial (sobretudo através da denominada Sociedade Fabiana) juntamente com J.E. Meade, Hugh Gaitskell e, em menor medida, Dickinson e Lerner, foi analisado pela sua filha, Elisabeth Durbin, na obra New Jerusalems: The Labour Party and the Economics of Democratic Socialism, Routledge and Kegan Paul, Londres 1985. A maior parte destes «ideólogos» acabou por defender um modelo baseado no intervencionismo e a planificação macroeconómica keynesiana dentro de um contexto social-democrata. Elisabeth Durbin é também a autora do breve artigo sobre o seu pai que surge na página 945 do volume I doThe New Palgrave: A Dictionary of Economics, obra citada. Também é de interesse o seu livro The Fabians, Mr. Keynes and the Economics of Democratic Socialism, Routledge and Kegan Paul, Nova Iorque, 1984. Refira-se, a propósito que Elisabeth Durbin foi parte (juntamente com Kirzner, Fritz Machlup, James Becker e Gerald P. O’Driscoll) da equipa arguente da tese de doutoramento de Don Lavoie sobre o debate em torno do cálculo socialista na Universidade de Nova Iorque e que constitui a base do seu livro Rivalry and Central Planning, obra citada.

[7] T.J.B. Hoff, Economic Calculation in the Socialist Society, obra citada, pp. 224 a 229 e em especial o cabeçalho da p. 227. «No seu desejo de não “dogmatizar sobre questões práticas” passou ao lado do cerne de todo o problema, a saber, como se obteriam os dados sobre os quais os trusts socialistas deveriam basear os seus cálculos.»

[8] H.D. Dickinson, The Economics of Socialism, Oxford University Press, Londres 1939.

[9] The Economics of Socialism, obra citada, p. 104, onde Dickinson considera que a solução matemática que propôs em 1933 não era exequível, não por ser impossível solucionar o sistema de equações correspondente, mas porque se apercebeu de que «the data themselves which would have to be fed into the equation machine, are continually changing».

[10] «Uma figura excêntrica e pouco convencional, muito querida e dotada de um grande sentido de humor e de uma mente muito astuta.» Ver o artigo de Collard sobre Dickinson na p. 836 do volume I de The New Palgrave. A Dictionary of Economics, obra citada.

[11] F.A. Hayek, «Socialist Calculation III: The Competitive Solution», em Individualism and Economic Order, obra citada, p. 185.

[12] Esta crítica, publicada no Economic Journal, nº 50 (junho/setembro de 1940), nas pp. 270 a 274, referia-se ao livro de Hoff escrito em norueguês com o título de Okonomisk Kalkulasjon i Socialistike Samfund, publicado por H. Ashekovg, Oslo, 1938 (posteriormente traduzido para inglês por M.A. Michael e publicado em Londres por William Hodge em 1949 com o título de Economic Calculation in the Socialist Society, obra citada). Dickinson conclui que: «The author has produced a critical review, at a very high level of theoretical competence of practically everything that has been written on the subject in German and English.»

[13] Don Lavoie, Rivalry and Central Planning, obra citada, pp. 135 a 139. Aliás, a conceção estática da economia e a subsequente incapacidade para entender o papel e a natureza da incerteza numa economia de mercado, que são próprias de Dickinson, são hoje em dia partilhadas por autores da dimensão de, por exemplo,  Kenneth J. Arrow, para quem, e como veremos na próxima nota 55, a incerteza é uma «falha» evidente do mercado e do seu sistema de preços.

[14] Ver a secção “Criatividade, Surpresa, e Incerteza” do Capítulo II, bem como as notas de rodapé 11 e 12 do mesmo.

[15] Ver Dickinson, The Economics of Socialism, pp. 103, 113 y 191. Sobre os qualificativos (omnisciente e omnipresente) que Dickinson atribui ao órgão de planificação, Mises faz o seguinte comentário irónico: «It is vain to comfort oneself with the hope that the organs of the collective economy will be “omnipresent” and “omniscient”. We do not deal in praxeology with the acts of omnipresent and omniscient Deity, but with the actions of men endowed with a human mind only. Such a mind cannot plan without economic calculation.» Ludwig von Mises, Human Action, obra citada, p. 710. E 14 páginas antes, na 696, lemos também que «we may admit that the director or the board of directors are people of superior ability, wise and full of good intentions. But it would be nothing short of idiocy to assume that they are omniscient and infallible».

[16] “Because the managers of socialist industry will be governed in some choice by the direction laid down by the planning authority, it does not follow that they will have no choice at all.” Ver Dickinson, The Economics of Socialism, p. 217.

[17] De facto, para Dickinson, o princípio essencial seria o de que «although the making of profits is not necessarily a sign of success, the making of losses is a sign of failure». Dickinson, The Economics of Socialism, obra citada, p. 219.

[18] Considerem-se apresentados aqui os argumentos críticos que demos na crítica 7 ao modelo clássico de Lange no Capítulo VI.

[19] Nas palavras do próprio Kirzner, e recordando a citação do Capítulo VI «incentives to socialist managers deny the essential role of entrepreneurial discovery». Ver Discovery and the Capitalist Process, obra citada, pp. 34 a 37. Por sua vez, Don Lavoie, resume os argumentos austríacos contra o sistema socialista de bónus e incentivos da seguinte maneira: «This implies that the planning board that examines the individual profit and loss accounts must be in a position to distinguish genuine profit from monopoly gain in the standard sense. However, this evades the question under consideration, since the calculation argument contents that the planning board would lack the knowledge that decentralized initiative generates and that this knowledge is revealed only in profit and loss accounts. There is no superior store of knowledge against which profit figures can be compared, so that the managers’ remuneration can be correspondingly altered.» Ver Don Lavoie, Rivalry and Central Planning, obra citada, pp. 138-139.

[20] «A ideia de estabelecer incentivos específicos como instrumento de planificação é contraditória com a ideia da experimentação como processo de descoberta genuinamente descentralizado. Se o órgão central de planificação não tem o conhecimento necessário para diferenciar as iniciativas arrojadas das apostas temerárias, não poderá alocar incentivos entre os gerentes para fomentar umas e impedir outras.» Don Lavoie, Rivalry and Central Planning, obra citada, p. 139.

[21] «O sistema capitalista não é um sistema gerencial, mas um sistema empresarial.» Ludwig von Mises,Human Action, obra citada, p. 708. Mises acrescenta na p. 709 seguinte que «one cannot play speculation and investment. The speculators and investors expose their own wealth, their own destiny … If one relieves them of this responsibility; one deprives them of their very character. They are no longer businessmen, but just a group of men to whom the director has handed over his main task, the supreme direction of economic affairs. Then they — and not the nominal director — become the true directors and have to face the same problem the nominal director could not solve: the problem of calculation.»

[22] Dickinson, The Economics of Socialism, obra citada, p. 26.

[23] «Numa sociedade socialista, a sempre artificial distinção entre o económico e o político desapareceria, a maquinaria política e económica da sociedade fundir-se-iam numa só.» Dickinson, The Economics of Socialism, obra citada, p. 235.

[24] Ver F.A. Hayek, «Socialist Calculation III: The Competitive Solution», em Individualism and Economic Order, obra citada, pp. 206-207.

[25] Os artigos de Lerner mais relevantes para o debate sobre o cálculo económico são os seguintes: «Economic Theory and Socialist Economy», publicado na Review of Economic Studies, n.º 2, outubro de 1934, pp. 51 a 61; «A Rejoinder», Review of Economic Studies, n.º 2, fevereiro de 1935, pp. 152 a 154; «A Note on Socialist Economics», Review of Economic Studies, n.º 4, outubro de 1936, pp. 72 a 76; «Statics and Dynamics in Socialist Economics», Economic Journal, n.º 47, junho de 1937, pp. 253 a 270; e, finalmente, «Theory and Practice of Socialist Economics», publicado na Review of Economic Studies, n.º 6, outubro de 1938, pp. 71 a 75.

[26] Abba P. Lerner, The Economics of Control: Principles of Welfare Economics, Macmillan, Nova Iorque, 1944.

[27] A.P. Lerner, The Economics of Control, obra citada, p. 119.

[28] Tibor Scitovsky, «Lerner’s Contribution to Economics», Journal of Economic Literature, dezembro de 1984, volume XXII, n.º 4, pp. 1547 a 1571, e em especial a p. 1552. Scitovsky faz um resumo do debate sobre o cálculo económico socialista e da intervenção de Lerner (p. 1551) que demonstra a sua incompreensão acerca do conteúdo do mesmo e em que só utilizou determinadas fontes secundárias cujas referências não correspondem à realidade de evolução dos acontecimentos. O facto de nessa altura do século xx determinados economistas de renome continuarem a escrever estas coisas é absolutamente dececionante. Sobre Lerner é igualmente de interesse a introdução de Karen Vaughn ao livro de T.J.B. Hoff, Economic Calculation in the Socialist Economy, obra citada, pp. xxiv a xxvi, e o Capítulo 12 do mesmo livro, pp. 224 a 236.

[29] Abba P. Lerner, «Statics and Dynamics in Socialist Economics», obra citada, pp. 253, 269 e 270.

[30] Nas palavras do próprio Lerner: «The question is then the sociological one, whether the socialist trust is able to estimate this future value more accurately or less accurately than the competitive owner of the hired instrument, and here we leave pure economic theory.» Ver «Statics and Dynamics in Socialist Economics», obra citada, p. 269.

[31] De facto, Lerner comparou jocosamente Durbin com um «schoolboy in the examination room who wrote “I do not know the social effects of the French Revolution, but the following were the kings of England”» («A Rejoinder», obra citada, 1935, p. 75).

[32] De facto, na p. 74 do artigo já citado «A Note on Socialist Economics», publicado em 1936, Lerner escreveu: «Methodologically my objection is that Dr. Lange takes the state of competitive equilibrium as his end, while in reality it is only a means to the end. He fails to go behind perfect competitive equilibrium and to aim at what is really wanted. Even though it be true that if the state of classical static perfectly competitive equilibrium were reached and maintained in its entirety the social optimum which is the real end would thereby be attained, it does not follow that it is by aiming at this equilibrium that one can approach most nearly the social optimum that is desired

[33] Outra prova do caráter estático da análise de Lerner, no sentido em que pressupõe que o órgão de intervenção ou planificação dispõe de toda a informação necessária para atuar, radica no desenvolvimento da teoria do «especulador produtivo», cuja função seria benéfica e deveria ser preservada numa economia «controlada», e que é preciso distinguir do especulador «monopolista ou agressivo» cuja função será neutralizada por meio do mecanismo que Lerner designa de «contraespeculação» (ver The Economics of Control, obra citada, pp. 69 e 70). O que Lerner não diz é que, como a diferença que ele tenta criar se baseia inteiramente nos motivos subjetivos da atividade especulativa, não existe qualquer possibilidade de distinguir objetivamente entre os dois tipos de especulação, uma vez que não existe um critério objetivo e inequívoco que permita descrever e interpretar quais são as motivações humanas subjetivas. Como foi demonstrado por Murray N. Rothbard na sua análise sobre o monopólio na obra Man, Economy, and State(Nash Publishing, Los Angeles 1970, volume II, Capítulo 10, pp. 586-620), a distinção entre preços de «concorrência» e preços de «monopólio» é teoricamente absurda, dado que, sendo os segundos referidos em função dos primeiros e não se conhecendo na vida real quais teriam sido os hipotéticos preços de equilíbrio num mercado de «concorrência perfeita», não existe nenhum critério teórico objetivo para determinar se estamos ou não numa situação de monopólio. Além disso, como foi evidenciado por Kirzner (Competition and Entrepreneurship, obra citada, Capítulo 3, pp. 88-134), o problema de «concorrência» versus«monopólio», entendidos ambos no seu sentido estático como situações ou modelos de equilíbrio, é um problema irrelevante, já que o que é teoricamente importante é analisar se existe ou não um processo realde natureza competitiva movido pela força empresarial e que se exerça livre de restrições governamentais, independentemente de o resultado da criatividade empresarial parecer por vezes surgir na forma de situações «monopolistas» ou «oligopolistas».

[34] Ver a este respeito o comentário de Don Lavoie na p. 129 (nota 8) da sua obra Rivalry and Central Planning, e que se refere ao artigo de Abba P. Lerner «The Concept of Monopoly and the Measurement of Monopoly Power», publicado na Review of Economic Studies, em 1934, n. º 1, pp. 157 a 175. E igualmente o meu artigo «La Crisis del Paradigma Walrasiano», publicado em El Pai´s, Madrid, 17 de dezembro de 1990, p. 36.

[35] De facto, Kowalik indica que, no final da vida de Lange, recebeu uma carta deste último datada de 14 de agosto de 1964, na qual Lange dizia que «what is called optimal allocation is a second-rate matter, what is really of prime importance is that of incentives for the growth of productive forces (accumulation and progress in technology); this is the true meaning of so to say “rationality”». E Kowalik conclui que «it seems that he must have lacked the indispensable tools to solve this question or even to present it in detail». Ver o artigo de Kowalik «Lange-Lerner Mechanism», publicado no volume III, de The New Palgrave: A Dictionary of Economics, obra citada, p. 131. Por outro lado, e como indica Kowalik, parece que Lange em alguns momentos da sua vida concordou com as conclusões de Lerner. De facto, no seu trabalho de 1938 «The Economist Case for Socialism», incluído na versão espanhola do livro editado por Lippincot, Lange escreveu: «The really important point in discussing the economic merits of socialism is not that of comparing the equilibrium position of a socialist and of a capitalist economy with respect to social welfare. Interesting as such a comparison is for the economic theorist, it is not the real issue in the discussion of socialism. The real issue is whether the further maintenance of the capitalist system is compatible with economic progress.» De facto, Lange não acreditava que o sistema socialista pudesse manter o ritmo de crescimento económico e de inovação tecnológica que alardeava desde a revolução industrial até à Grande Depressão. Dificilmente teria acreditado que, pouco mais de uma geração depois da sua morte, o problema económico fundamental daria uma volta de 180 graus, quando se demonstrou que é o sistema socialista, e não o capitalista, que não é compatível nem com o progresso económico nem com a inovação tecnológica (além de outras incompatibilidades com a liberdade e a democracia).

[36] Um caso curioso é o de Milton Friedman, dado tratar-se de um autor com um instrumental analítico típico de um economista do equilíbrio pertencente ao paradigma neoclássico moderno

e, ao mesmo tempo, de um apaixonado defensor da economia capitalista frente aos sistemas socialistas. Este facto leva a que os estudos teóricos críticos do socialismo da autoria de Milton Friedman sejam incapazes quer de distinguir o cerne do desafio teórico colocado por Mises (que praticamente nunca cita e que frequentemente desdenha) quer de explicar a essência teórica da impossibilidade do cálculo económico socialista. De facto, Friedman carece de uma elaborada teoria da função empresarial e, logo, do funcionamento dos processos dinâmicos que ocorrem no mercado e que são sempre movidos pela função empresarial. Por isso, as suas «análises críticas» do socialismo são apenas uma amálgama de curiosidades empíricas relativas a interpretações do que acontece no mundo real ou a vagas observações sobre o problema colocado pela ausência de «incentivos» (entendidos no sentido «estrito» que tanto criticamos em Dickinson) nas economias socialistas. Prova palpável das carências analíticas de Milton Friedman neste campo é a sua obra Market or Plan?, publicada pelo Center for Research into Communist Economies, Londres 1984. Neste breve panfleto, Friedman chega mesmo a afirmar que os escritos de Lange, em geral, e, em particular, o livro de Lerner The Economics of Control é «an admirable book that has much to teach about the operation of a free market; indeed, much more, I believe, than about their actual objective, how to run a socialist state» (obra citada, p. 12). Friedman não se apercebe de que se os trabalhos de Lerner e Lange são irrelevantes para fundamentar teoricamente um sistema socialista, tal se deve precisamente à sua profunda incompreensão sobre a forma como funciona realmente o sistema capitalista. Ou, dito de outra forma, Mises e Hayek foram capazes de construir toda uma teoria acerca da impossibilidade do socialismo precisamente dado o seu conhecimento teórico sobre a forma como na realidade funciona o sistema capitalista. Receamos, pois, que o elogio de Friedman ao livro de Lerner evidencie a pobreza teórica do próprio Friedman no que respeita à sua conceção dos preços dinâmicos de mercado movidos pela função empresarial. Além disso, Friedman objetifica desnecessariamente o sistema de preços, considerando-o um maravilhoso «transmissor» de informação, aparentemente objetiva, juntamente com o «incentivo» necessário para utilizá-la adequadamente. Não percebeu que o problema não é esse. Que os preços não «criam» nem «transmitem» informação, e que estas funções só podem ser realizadas pela mente humana num contexto de uma ação empresarial. Não percebeu também que a maravilha do mercado não é o facto de o sistema de preços atuar de forma «eficiente» transmitindo informação (Friedman, obra citada, pp. 9-10). A maravilha do mercado tem que ver com o facto de se tratar de um processo que, movido pela força empresarial inata em cada ser humano, cria constantemente informação nova, tendo em conta os novos fins que cada um se propõe alcançar e que, em interação com outro seres humanos, dá origem a um processo coordenador através do qual todos aprendemos inconscientemente a ajustar o nosso comportamento em função dos fins, desejos e circunstâncias dos demais. Ou seja, os preços, mais do que transmitir informação, criam oportunidades de lucro que são aproveitadas pela função empresarial, que é o que cria e transmite informação nova, coordenando todo o processo social. Por fim, Friedman considera (p. 14) que o problema fundamental de um sistema socialista é o de controlar se os agentes económicos cumprem as «regras» pré-estabelecidas. Não é esse o problema; o problema básico, como sabemos, é que num sistema em que não exista liberdade de exercício da função empresarial, não é possível que se gere a informação necessária para permitir o cálculo económico racional e o processo coordenador que acabámos de referir aquando da tomada de decisões. Apenas em dois lugares, e de forma muito breve, Friedman faz referência ao problema económico fundamental que aqui explicámos, mas atribuindo-lhe uma importância secundária e não analisando detidamente nem estudando as suas implicações. Num lugar, refere-se à dificuldade de o órgão central de planificação obter a informação necessária para controlar os gerentes (p. 14), embora não se aperceba de que nem ao nível dos gerentes se criaria esse tipo de informação. E na crítica que Milton Friedman publicou sobre  o livro de Lerner The Economics of Control (Journal of Political Economy, n.º LV, outubro de 1947, pp. 405 a 416, ao estudar os «mecanismos institucionais para conseguir um ótimo», Friedman censura vagamente Lerner por este não ter tido em conta que os lucros se constituem como um critério de atuação e servem para determinar a capacidade do empresário no domínio dos recursos. Porém, Friedman não foi capaz, em nenhuma destas duas ocasiões ou em qualquer outra, de explicar a razão da impossibilidade teórica de o sistema proposto por Lange funcionar, o que explica que, muitas vezes, procure refugiar-se nas implicações não económicas (sobre a liberdade pessoal e de tipo político e ético) das reformas institucionais propostas pelos sistemas socialistas e que a sua crítica teórica ao socialismo seja muito débil. Este longo comentário era necessário, uma vez que, em muitas ocasiões, Friedman é identificado com Hayek e Mises, como formando parte da mesma escola, o que, na verdade, deu azo a uma profunda confusão entre os economistas ocidentais e dos países de Leste que, por não terem estudado o problema com o devido detalhe, ainda não se aperceberam das profundas e radicais diferenças de paradigma teórico existentes entre Friedman, por um lado, e Mises e Hayek, por outro. A crítica a Friedman pode estender-se, de forma geral, aos restantes teóricos da Escola de Chicago, que, obcecados pelo empirismo e centrados num fantasmagórico equilíbrio objetivista (de origem ricardiana e marshalliana), não são capazes de conceber que no mercado existam outros problemas de informação além do constituído pelo elevados «custos de transação» para a obter. Trata-se de um erro, uma vez que implica, implicitamente, que o ator é capaz de avaliar a priori o que irá valer a informação que ainda não conhece e, por conseguinte, faz com que seja completamente impossível perceber em que consiste a função empresarial e quais são as suas implicações teóricas para a economia. Os erros da Escola de Chicago remontam a Frank H. Knight, segundo o qual «socialism is a political problem, to be discussed in terms of social and political psychology, and economic theory has relatively little to say about it» (Frank H. Knight, «Review of Ludwig von Mises’ Socialism», Journal of Political Economy, n.º 46, abril 1938, pp. 267-268). Rothbard explicou que a raiz deste erro de conceção se encontra não só na obsessão já comentada pelo equilíbrio, mas também na ausência de uma verdadeira teoria do capital, dado que, seguindo J.B. Clark, a Escola de Chicago sempre o considerou um mítico fundo sem estrutura temporal e que se autorreproduz automaticamente à margem de qualquer tipo de decisões humanas de cariz empresarial. Ver Murray N. Rothbard, «The End of Socialism and The Calculation Debate Revisited», The Review of Austrian Economics, volume 5, n.º 2, 1991, pp. 60-62.

[37] Pouco depois das contribuições de Lange e Lerner em 1948, James E. Meade publicou o seu livro Planning and the Price Mechanism: The Liberal-Socialist Solution, George Allen and Unwin, Londres 1948, no qual incorpora análises e propostas muito parecidas com as de Lange e Lerner, e que, logo, deveremos considerar como sendo parte dos mesmo grupo que analisámos no texto principal.

[38] Wlodzimierz Brus e Kazimierz Laski, From Marx to the Market: Socialism in Search of an Economic System, obra citada, pp. 167-168. A citação é retirada de Mises, Human Action, obra citada, pp. 706-707 e 710. A tradução para português poderia ser a seguinte: «O que estes neossocialistas sugerem é verdadeiramente paradoxal. Querem abolir o controlo privado dos meios de produção, os intercâmbios voluntários no mercado e a concorrência. Mas, ao mesmo tempo, querem organizar a utopia socialista de tal forma que as pessoas pudessem atuar como se estas coisas estivessem presentes. Querem que as pessoas brinquem ao mercado da mesma forma que as crianças brincam à guerra, aos comboios, ou à escola. Não compreendem o quanto estas brincadeiras de crianças diferem das instituições reais que tentam imitar… Um sistema socialista com mercado e preços de mercado é tão contraditório como a noção de “quadrado triangular”.» A citação de Anthony de Jasay foi retirada de Market Socialism: A Scrutiny. This Square Circle, cit., p. 35: «… an open contradiction in terms, much like hot snow, wanton virgin, fat skeleton, round square».

[39] Devemos, concordando com Arthur Seldon, manifestar a nossa surpresa por os economistas partidários do «socialismo de mercado» mais conhecidos continuarem a ser socialistas. De facto, Seldon afirma que: «I cannot therefore see why Nove remains a socialist. That revelation also applies to other market socialists — Ota Sik of Czechoslavakia (now teaching in Switzerland), Brus, the Polish economist (now at Oxford), Kornai of Hungary (now in Budapest), Kolakowski (also at Oxford) and others.» Ver «After a Hundred Years: Time to Bury Socialism», em Socialism Explained, por Brian Crozier e Arthur Seldon, The Serwood Press, Londres 1984, p. 61. Refira-se, porém, em defesa dos eminentes economistas referidos na citação de Seldon que, desde de 1984 até à atualidade, praticamente todos eles, com exceção talvez de Nove, deixaram de ser socialistas. A transição definitiva de Nove irá possivelmente verificar-se quando deixar de conceber o mercado nos termos da «concorrência perfeita» próprios do paradigma neoclássico, e tal como os outros teóricos, se imbua cada vez mais da teoria austríaca dos processos de mercado. O livro mais conhecido de Alec Nove é talvez The Economics of Feasible Socialism (Allen and Unwin, Londres 1983). Este livro é especialmente meritório pela classificação que faz das ineficiências dos sistemas socialistas. O seu principal defeito é a análise crítica pouco fundamentada que realiza sobre os sistemas capitalistas (em relação aos quais aponta problemas de desigualdade de rendimento, de inflação, de falta de «democracia» e de fracasso no campo das «externalidades) e que se deve a erros de interpretação decorrentes das insuficiências do instrumental analítico (de cariz neoclássico e centrado no equilíbrio) utilizado para interpretar o que ocorre nos sistemas capitalistas. Essa é a razão por que indicámos que, à medida que Alec Nove se for familiarizando com a teoria dinâmica dos processos empresariais desenvolvida pela Escola Austríaca, muito provavelmente evoluirá da mesma forma que outros autores de grande categoria como Kornai e Brus. No que se refere ao tipo de socialismo que Nove propõe (e que é «exequível» no sentido em que ele acredita que poderia estabelecer-se no espaço de uma vida humana), não oferece nada de novo salvo uma confusa amálgama composta pela nacionalização dos sectores básicos, o uso da planificação centrada nas áreas em que existam «externalidades», o fomento das cooperativas nas pequenas e médias indústrias e o impulso da «concorrência» sempre que possível. No esquema de Nove, os mercados podem funcionar, mas dentro de um quadro de todo o tipo de controlos. De qualquer forma, o livro de Nove encontra-se hoje muito datado, não só porque considera que o caminho ideal para o socialismo foi o iniciado pela Hungria em 1968, mas também porque foi incapaz de prever os importantes acontecimentos que acabaram com o socialismo (1989-1991), e não responde a nenhuma das detalhadas críticas que fizemos no texto ao «socialismo de mercado». Refira-se, por fim, que existem indícios muito prometedores quanto à «conversão» de Nove. Primeiro, num artigo escrito em março de 1988 dedicado a criticar e a comentar o seu livro The Economics of Feasible Socialism(«”Feasible Socialism” Revisited», Capítulo 16 de Studies in Economics and Russia, Macmillan, Londres 1990), Nove reconhece já explicitamente a validade de «algumas» das críticas «austríacas» ao «socialismo de mercado» e ao paradigma neoclássico, concluindo que «so, there is no harm in admitting that the Kirzner type of criticism hits the target» (p. 237). Nove meses depois, em dezembro de 1988, no seu artigo «Soviet Reforms and Western Neoclassical Economics» (Capítulo 17 de Studies in Economics and Russia, obra citada), admite já sem qualquer tipo de reserva que «… the Austrians are surely more relevant to soviet reforms than is the neoclassical paradigm», e conclui com a seguinte afirmação críptica: «One need not to accept their (os da Escola Austríaca) conclusions, but one must take their arguments seriously» (!) (p. 250).

[40] O grau em que o pensamento de Mises e Hayek está a impregnar até os antigos marxistas torna-se evidente em artigos como «The Power of the Weak», publicado no número de dezembro de 1988 de Marxism Today (talvez a mais prestigiada revista dos socialistas britânicos) por Geoff Mulgen. Neste artigo, Mulgen afirma que as instituições tradicionalmente mais queridas dos socialistas (o Estado, os sindicatos, os partidos políticos, etc.) são sistemas de gestão rígidos, inflexíveis, centralizados, hierárquicos e, portanto, profundamente anti-humanos. Por isso, e seguindo os ensinamentos de Hayek, inclina-se a favor daquilo a que chama «weak power systems», uma vez que gastam muito menos «energia humana», fazem uso da cooperação e da concorrência, são descentralizados, podem relacionar-se uns com os outros num complexo sistema ou rede e transmitem a informação de forma eficiente. Para este teórico, no futuro, o trabalhismo inglês deveria rumar em direção a este tipo de estruturas descentralizadas e ao mercado, abandonando as instituições tradicionalmente defendidas pelo socialismo. Além disso, Mulgen chega mesmo a intuir o nosso argumento essencial contra a possibilidade de utilização da capacidade informática presente ou futura para permitir o cálculo económico socialista (dado que a utilização descentralizada de qualquer capacidade informática dará origem a um volume e a uma variedade de informação que a mesma capacidade informática centralizada não poderia comportar) quando afirma que «Lange was wrong because technology runs up against the context in which information is produced». Mulgen acrescenta que os sistemas informáticos centralizados deturpam a informação, ao passo que, pelo contrário, os sistemas descentralizados criam incentivos para a gerar e transmitir de forma precisa, além do que os empresários revolucionam constantemente as técnicas de tratamento e controlo informático, enquanto os planificadores centrais, no melhor dos casos, vão sempre a reboque do que os empresários fazem nesta área. Perante esta demonstração do desmantelamento teórico do socialismo, torna-se um pouco desanimador o facto de haver autores, como David Miller (Market, State and Community: Theoretical Foundations of Market Socialism, Clarendon Press, Oxford 1989), que continuem empenhados em construir o utópico ideal do «socialismo de mercado». É muito difícil encontrar algo original no trabalho de Miller, que se baseia no estabelecimento, por meio da coação, de um sistema «competitivo» de cooperativas geridas «democraticamente» pelos trabalhadores. Miller não é economista, não estudou o debate sobre o cálculo económico e desconhece completamente as razões pelas quais tal sistema não poderia funcionar (ausência de livre exercício da função empresarial por não existir propriedade privada dos meios de produção e falta da criação da informação necessária para calcular eficientemente e coordenar todo o sistema). Todavia, Miller é suficientemente honesto para declarar o seu ceticismo em relação à possibilidade de que tal sistema fosse, pelo menos, tão eficiente como o capitalismo competitivo, e assinala que, por isso, os argumentos cruciais a favor do seu «socialismo de mercado» terão de ser de outro tipo: a maior «justiça», «liberdade» e «democracia» no trabalho que o mesmo proporcionaria (ver p. 14). À luz do que acabámos de escrever, o debate com este tipo de autores deve ser realizado mais no campo da filosofia política e da teoria ética do que no da ciência económica. Para uma crítica desta e de outras tentativas recentes de ressuscitar o «socialismo de mercado», consultar o trabalho de Anthony de Jasay, Market Socialism: A Scrutiny. This Square Circle, obra citada. Ver, ainda, a nota 4 do Capítulo VI. Em língua alemã, é ainda interessante o livro de Martin Feucht Theorie des Konkurrenz-sozialismus, G. Fischer, Estugarda, 1983.

[41] Nas palavras do próprio Maurice H. Dobb, «either planning means overriding the autonomy of separate decisions, or it apparently means nothing at all». Ver o capítulo intitulado «Economic Law in the Socialist Economy» do livro Political Economy and Capitalism: Some Essays in Economic Tradition, Routledge and Kegan Paul, Londres 1937, p. 279.

[42] Na opinião de Paul M. Sweezy, a tentativa de introduzir a descentralização num sistema socialista serviria apenas para reproduzir no mesmo as piores características do capitalismo, e não conseguiria alcançar as mais importantes «vantagens» e «possibilidades» da planificação socialista («Some of the worst features of capitalism and fail to take advantage of the constructive possibilities of economic planning»). Ver Paul M. Sweezy, Socialism, McGraw Hill, Nova Iorque, 1949, p. 233. O que Sweezy tem em mente é, pois, um sistema de planificação total que inclui diretrizes concretas para os gerentes das diferentes indústrias sobre como têm de levar a efeito os correspondentes planos sectoriais e empresariais. Para Sweezy, toda a teoria da planificação se baseia em decisões de cariz político (ou seja, na imposição pela força dos critérios do ditador). Não entende o problema (de tomada de decisões arbitrárias) colocado pelo cálculo económico num sistema socialista, e, na prática, não o acha importante, uma vez que pensa que assim que os objetivos do plano tenham sido estabelecidos, a quantidade e a qualidade dos respetivos fatores de produção serão determinadas «automaticamente» pelos planificadores e impor-se-ão pela força aos diferentes setores e empresas. Ver os comentários à posição de Sweezy em «The Theory of Planning according to Sweezy», emSocialism and International Economic Order, por Elisabeth L. Tamedly, The Caxton Printers, Caldwell, Idaho, 1969, pp. 143- 145.

[43] Ludwig von Mises, Human Action, obra citada, pp. 695-701.

[44] Os principais artigos de Maurice Dobb relativos a este debate são: «Economic Theory and the Problems of a Socialist Economy», publicado no Economic Journal, n.º 43 de 1933, pp. 588 a 598; e «Economic Theory and Socialist Economy: A Reply», publicado na Review of Economic Studies, n.º 2, ano de 1935, pp. 144 a 151. Estos artigos e outras contribuições de interesse foram incluídos no livro On Economic Theory and Socialism: Collected Papers, publicado por Routledge and Kegan Paul, Londres 1955.

[45] Nas palavras do próprio Dobb: «Naturally, if matters are formulated in a sufficiently formal way, the “similarities” between one economic system and another will be paramount and the contrasting “differences” will disappear. It is the fashion in economic theory today for propositions to be cast in such a formal mould, and so devoid of realistic content, that essential differences disappear. The distinctive qualities of the laws of a socialist economy and of a capitalist economy … are not, of course, given in the rules of algebra, but in assumptions depending on differences existing in the real world.» Ver «Economic Theory and Socialist Economy: A Reply», obra citada, pp. 144-145. Além disso, é preciso notar que o próprio Dobb reconhece que inicialmente pensou que o problema do cálculo económico no sistema socialista poderia ser resolvido por meio de um procedimento parecido com o proposto por Dickinson, tendo pouco depois, ao ver as implicações que teria sobre o sistema socialista, abandonado essa ideia. Acresce que no seu artigo de 1933 critica o modelo de Dickinson, classificando-o de estático e utilizando palavras que poderiam ter sido escritas pelo próprio Hayek. De facto, Dobb afirma que tentar aplicar os postulados do equilíbrio estático a um mundo em constante mudança é um «barren feat of abstraction»; e que a economia é muito mais do que «a formal technique…, a system of functional equations, a branch of applied mathematics, postulating a formal relationship between certain quantities». Ver Economic Theory and the Problems of a Socialist Economy, obra citada, p. 589.

[46] Em concreto, e relativamente a Lerner, Dobb afirma que estava «embarrassed by a sense of battling with an invisible opponent» (ver a sua «Reply» de 1935, obra citada, p. 144). Exemplos da estratégia «evasiva» de Lerner são os seguintes comentários sobre o estabelecimento do sistema de preços num sistema socialista: no seu artigo de 1934, «Economic Theory and Socialist Economy», obra citada, p. 55, afirma que «the competitive price system has to be adapted to a socialist society. If it is applied in toto we have not a socialist but a competitive society»; no entanto, pouco depois, em «A Rejoinder», obra citada, 1935 (p. 152), Lerner contradiz-se afirmando: «And by a price system I do mean a price system. Not a mere a posteriori juggling with figures by auditors, but prices which will have to be taken into consideration by managers of factories in organizing production.»

[47] Anos depois, Dobb modificou de um pouco a sua posição introduzindo de forma ambígua um certo nível de descentralização e inclusivamente de concorrência na tomada de decisões. No entanto, não formalizou especificamente em que deveria consistir essa ligeira descentralização e, do ponto de vista teórico, a posição que achamos que tem verdadeiro interesse é a que manteve nos anos 30, que estamos a comentar e que, a partir de agora, designaremos de «modelo clássico de Dobb».

[48] Trygve J. B. Hoff, Economic Calculation in the Socialist Society, obra citada, Capítulo 14. O exemplo das espadas de molibdénio encontra-se nas pp. 278-279.

[49] A interpretação de Amartya Sen é, por sua vez, a de que o que, na realidade, para Dobb as considerações relativas à igualdade nos resultados eram muito mais importantes do que as considerações de eficiência (pelo que estas eram relegadas para segundo plano). Sen refere também que, para Dobb, era muito mais importante a planificação coativa dos investimentos do que o pretensamente perfeito ajustamento microeconómico. Este argumento de que as considerações de «eficiência» deverão subordinar-se às considerações de igualdade tornou-se moeda comum entre a intelectualidade de esquerda que se resignou ao facto de o socialismo não poder competir com o capitalismo em termos de criação de riqueza. No entanto, ao adotar esta posição, estes intelectuais esquecem-se de que: 1) a eficiência e a ética são as duas faces da mesma moeda, ou seja, que o ineficiente não pode ser justo e que não há nada mais eficiente do que a moral; 2) o custo do igualitarismo que propõem é não só a pobreza generalizada, como a mais brutal repressão contra a ação humana; 3) a experiência histórica ilustra que a coação institucional do estado em vez de diminuir a desigualdade, em muitos casos, aumenta-a e agrava-a; e 4) que não há nada mais injusto, imoral e contrário à ética do que impor a igualdade pela força, dado que o homem tem o direito natural e  inalienável de idear novos fins e de obter os frutos que cria com a sua própria criatividade empresarial. Amartya Sen, «Maurice Herbert Dobb», The New Palgrave. A Dictionary of Economics, obra citada, volume I, pp. 910-912.

[50] «Abrogation of the Sovereignty of Consumers», secção 4 de «The Present State of the Debate», publicado em Collectivist Economic Planning, obra citada, pp. 214 a 217.

[51] «Dr. Maurice Dobb has recently followed this to its logical conclusion by asserting that it would be worth the price of abandoning the freedom of the consumer if by the sacrifice socialism could be made possible. This is undoubtly a very courageous step. In the past, socialists have consistently protested against any suggestion that life under socialism would be like life in a barracks, subject to regimentation of every detail. Now Dr. Dobb considers these views as obsolete.» Ver F.A. Hayek, «The Present State of the Debate» emCollectivist Economic Planning, obra citada, p. 215.

[52] «We assume that the director has made up his mind with regard to the valuation of ultimate ends.» Ludwig von Mises, Human Action, obra citada, p. 696.

[53] Nas palavras do próprio Hayek: «The dictator, who himself ranges in order the different needs of the members of the society according to his views about their merits, has saved himself the trouble of finding out what people really prefer and avoided the impossible task of combining the individual scales into an agreed common scale which expresses the general ideas of justice. But if he wants to follow this norm with any degree of rationality or consistency, if he wants to realize what he considers to be the ends of the community, he will have to solve all the problems which we have discussed already.» Ver Hayek, «The Present State of the Debate» em Collectivist Economic Planning, obra citada, pp. 216 a 217. Assim, Hayek parece referir-se aqui, já em 1935 de forma percursora, ao «Teorema da Impossibilidade de Arrow», quando fala da tarefa impossível de combinar as escalas individuais de valor numa escala comum que expresse os ideais gerais de justiça e com a qual todos estejam de acordo. No entanto, é seguro que Hayek considerava que esta impossibilidade não se devia tanto a razões de pura lógica dentro de um contexto estático em que toda a informação necessária se considerava dada e sujeita a condições predeterminadas (como acontece no teorema de Arrow), mas a uma razão muito mais geral e profunda decorrente da impossibilidade de as preferências pessoais se gerarem e transmitirem num contexto não empresarial (problema essencial da informação dispersa, subjetiva e não articulável que constitui o cerne da crítica ao cálculo económico socialista). As alternativas são, pois, as seguintes : primeira: que o diretor socialista imponha a sua vontade arbitrária em cada momento sem se submeter a nenhum fim pré-estabelecido (seria o destrucionismo ditatorial caótico e arbitrário do «modelo clássico» de Dobb); segunda, que o ditador tenha estabelecido previamente a sua própria escala de valores com a respetiva hierarquia (o cálculo económico racional seria impossível para o próprio ditador); terceira, que o ditador tente descobrir os fins gerais perseguidos pelos cidadãos de acordo com uma escala comummente aceite por todos eles (impossível teoricamente dado o caráter disperso do conhecimento e a forma estritamente subjetiva e empresarial em que é gerado; além disso, em condições estáticas aplicar-se-ia o teorema da impossibilidade de Arrow); e, em quarto lugar, estabelecer a propriedade pública dos meios de produção, mas tentando que, na medida do possível, os agentes económicos tomassem as suas decisões de forma descentralizada (esta seria a solução dos «socialistas de mercado»; também impossível teoricamente por não se gerar a informação prática necessária para tornar possível o cálculo económico racional dado não existir uma função empresarial completamente livre nem ser permitido que os lucros funcionem como incentivo, como acontece num sistema capitalista).

[54] Para Mises o destrucionismo é a essência do socialismo: «Socialism is not the pioneer of a better and finer world, but the spoiler of what thousands of years of civilization have created. It does not build; it destroys. For destruction is the essence of it.» (Ludwig von Mises, Socialism, obra citada, p. 44). Por isso, qualquer tentativa de coagir institucional e sistematicamente a livre interação empresarial constitui, na verdade, uma tentativa de verdadeiro genocídio ou crime contra a humanidade, dadas as terríveis consequências a longo prazo dessas experiências sociais. De facto, todas as tragédias da humanidade dos últimos cem anos que não se deveram a causas naturais (e inclusivamente muitas destas, na medida em que os seus efeitos poderiam ter sido mitigados mais facilmente de outro modo) tiveram a sua origem, direta ou indiretamente, no desejo, muitas vezes bem intencionado, de levar à prática a utopia socialista. Como é evidente, existem diferenças de grau significativas quanto à extensão e intensidade com que essa ideia pode ser perseguida, mas nunca devemos esquecer que as diferenças existentes, por exemplo, entre o genocídio cometido pelo Estado Soviético, pelo nacional socialismo, pela China comunista ou por Pol Pot contra os seus respetivos povos e as consequências perniciosas geradoras de constante conflito, violência social e corrupção moral que são próprias do «socialismo democrático» e do paradoxalmente denominado «Estado do Bem-estar», embora muito importantes,  são apenas diferenças de grau, e não de tipo, uma vez que o erro intelectual e o destrucionismo que constituem a essência do socialismo «real» e do socialismo «democrático» ou «intervencionista» são basicamente os mesmos. Ver neste sentido o meu artigo «El Fracaso del Estado “Social”», ABC, Madrid, 8 de abril, 1991, pp. 102-103.

[55] Por sua vez, Dobb afirma que: «The advantage of the planned economy per se consists in removing the uncertainties inherent in a market with diffused and autonomous decisions, or it consists in nothing at all.» Ver Maurice H. Dobb, «Review of Brutzkus and Hayek», publicado no Economic Journal, n.º 45, 1935, p. 535. Esta afirmação de Dobb enquadra-se perfeitamente no seu modelo ditatorial de socialismo, no qual pretende contornar o problema do cálculo económico simplesmente impondo pela força os desejos arbitrários do ditador. De facto, como vimos no Capítulo II, uma das características essenciais da ação humana é o caráter criativo dos seus resultados, pelo que o futuro é sempre incerto e encontra-se aberto à imaginação criativa dos empresários. Assim, a única maneira de acabar com a incerteza em relação ao futuro é esmagando pela força a capacidade humana de atuar livremente. A «vantagem» que Dobb associa à planificação centralizada baseia-se na «eliminação» da incerteza, suprimindo a ação humana e, assim, congelando o futuro. Ou, por outras palavras, em «curar» a pretensa doença do paciente acabando com a sua vida. Curiosamente este tratamento que Dobb dá à incerteza é muito próximo do dos economistas neoclássicos do equilíbrio, que a consideram um «incómodo defeito» do mercado por não se enquadrar nos seus «modelos». Assim, por exemplo, Kenneth J. Arrow, afirma que «there is one particular failure of the price system which I want to stress. I refer to the presence of uncertainty.» (Ver The Limits of Organization, Nova Iorque 1974, p. 33.)

[56] Recorde-se que Oskar Lange, na sua obra On the Economic Theory of Socialism, obra citada, também se refere à possibilidade de eliminar o mercado «livre» para os bens e serviços de consumo e afirma que, nessas circunstâncias, o seu sistema de tentativa e erro e de preços paramétricos também funcionaria, contanto que se estendessem os preços paramétricos não só aos bens e fatores de produção, mas também aos bens e serviços de consumo. Neste caso, o órgão de planificação também deveria modificar os preços sempre que ocorressem excessos ou escassezes de bens de consumo e não se verificassem situações de racionamento (como é evidente, este sistema não permitiria o cálculo económico por todas as razões que vimos quando analisámos a proposta de Lange). Embora, neste artigo, Lange afirme que o facto de discutir a possibilidade teórica de eliminar a liberdade dos consumidores não significa que a defenda (por a considerar não «democrática»), já sabemos que na fase final da sua vida se inclinou de forma gradual e cada vez mais evidente para a solução estalinista, na qual os desejos dos consumidores são praticamente ignorados e o problema colocado pelo cálculo económico é ficticiamente reduzido com base na imposição coerciva do conteúdo do plano a todos os níveis. Em língua alemã, Herbert Zassenhaus no seu «U¨ber die O¨konomische Theorie der Planwirtschaft», publicado no volume n.º 5 de Zeitschrift fu¨r Nationalo¨konomie, em 1934 (existe una tradução para inglês publicada em 1956, no n.º 6 de International Economic Papers com o título «On the Theory of Economic Planning», pp. 88 a 107), também defende um sistema de cálculo económico socialista baseado fundamentalmente na eliminação da liberdade de escolha dos consumidores e na utilização de uma solução de cariz matemático na qual a concorrência descentralizada se mantém até um certo nível. Zassenhaus caracteriza-se pela falta de clareza e, especialmente, pela falta de realismo, uma vez que considera que a comunidade se mantém estática em todos os momentos.

[57] «Assim que se deixa de conceber a existência de preços monetários livremente estabelecidos no mercado para os bens de capital, a produção racional torna-se completamente impossível. Todos os passos que nos afastem da propriedade privada dos meios de produção e da utilização do dinheiro também nos afastam da economia racional.» Ludwig von Mises, «Economic Calculation in the Socialist Commonwealth»,Collectivist Economic Planning, obra citada, p. 104.

[58] «O socialismo significa a abolição da economia racional.» Ludwig von Mises, «Economic Calculation in the Socialist Commonwealth», Collectivist Economic Planning, obra citada, p. 110. É preciso reconhecer que Mises apresenta a sua tese de forma um pouco mais «extrema», no que respeita aos termos utilizados, na versão alemã do seu livro sobre O Socialismo. Efetivamente, na p. 197 da segunda edição alemã de 1932, reimpressa em 1981 (Philosophia Verlag, Munique), lemos: «Der Kapitalismus ist die einzig denkbare und mo¨gliche Gestalt arbeitsteilenden gesellschaftlichen Wirtschaft.» Esta afirmação de que o capitalismo é o único sistema concebível de economia social é ligeiramente suavizada na versão inglesa, na qual se acrescenta a nota que em seguida colocamos em itálico: «Capitalism is the only conceivable form of social economy which is appropriate to the fulfilment of the demands which society makes of any economic organization» (p. 194 da versão inglesa). A formulação inglesa é um pouco mais matizada do que a alemã embora verifiquemos que a versão alemã se encontra em perfeita consonância com o que Mises tinha afirmado dois anos antes no seu artigo sobre o cálculo económico, uma vez que, para Mises, «economia social» tem o sentido de «economia racional» Outra ligeira suavização pode ser observada em relação ao que é dito na p. 117 da versão alemã: «Der Versuch, die Welt sozialistisch zu gestalten, ko¨nnte die Zivilisation zertru¨mmern, er wird aber nie zur Aufrichtung eines sozialistischen Gemein-wesens fu¨hren ko¨nnen.» Ora, na p. 118 da versão inglesa vemos que se afirma: «It would never set up a successful socialist community», tendo sido acrescentado o adjetivo «successful». Apesar destas ligeiras variações entre a versão inglesa e a versão original alemã do livro de Mises sobre O Socialismo, cremos que a ideia de Mises é perfeitamente apresentada no seu artigo de 1920 e não sofre modificações substanciais nos seus trabalhos subsequentes.

[59] «O conhecimento de que a atividade económica racional é impossível numa comunidade socialista não pode, como é evidente, ser usado como argumento em favor ou contra o socialismo. Quem estiver preparado para aderir ao socialismo por razões éticas, assumindo que o fornecimento de bens de consumo para os seres humanos diminuirá no âmbito de um sistema de propriedade comum dos meios de produção, ou quem se deixar guiar por motivos estéticos no seu desejo de socialismo, não se deixará influenciar pelo que nós tenhamos dito… Mas quem esperar do socialismo um sistema económico racional terá forçosamente de reexaminar as suas ideias.» Ludwig von Mises, «Economic Calculation in the Socialist Commonwealth»,Collectivist Economic Planning, obra citada, p. 130.

[60] Hayek censura Mises por este ter por vezes utilizado a expressão de que «o socialismo é impossível», quando, na realidade, o que queria dizer é que o cálculo racional é impossível num sistema socialista. Na nossa opinião, esta censura não é inteiramente justificada à luz das afirmações de Mises apresentadas no texto (apenas no seu livro sobre O Socialismo aparecem alguma expressões semelhantes às referidas por Hayek, embora, tendo em conta o contexto geral em que se encontram, não ofereçam qualquer dúvida relativamente ao seu significado). «Much of the objections made at first were really more a quibbling about words caused by the fact that Mises had occasionally used the somewhat loose statement that socialism was impossible, while what he meant was that socialism made rational calculations impossible. Of course any proposed course of action, if the proposal has any meaning at all, is possible in the strict sense of the word, i.e. it may be tried. The question can only be whether it will be lead to the expected results, that is whether the proposed course of action is consistent with the aims which it is intended to serve.» F.A. Hayek, «Nature and History of the Problem», Collectivist Economic Planning, obra citada, p. 36. Curiosamente, depois das mudanças revolucionárias nos países de Leste que acabaram com o socialismo a partir de 1989, a expressão resumida «o socialismo é impossível» adquiriu um uso coloquial generalizado nesses países.

[61] Sobre este tema, não podemos deixar de referir, sobretudo, os trabalhos desenvolvidos na área da ética social por Israel M. Kirzner (Discovery, Capitalism and Distributive Justice, Basil Blackwell, Londres, 1989) e Hans-Hermann Hoppe (A Theory of Capitalism and Socialism, Kluwer Academic Publishers, Holanda, 1989). Ambos os autores (aos quais talvez devamos acrescentar o livro, já algo datado, embora ainda notável, de Robert Nozick, Anarchy, State and Utopia, Basic Books, Nova Iorque, 1974) demonstram que o socialismo não só é teoricamente impossível como eticamente inadmissível. Kirzner baseia-se na estimulante teoria de que todo o ser humano tem o direito natural de ficar com os resultados da sua própria criatividade empresarial, e Hoppe, parte do axioma habermasiano, segundo o qual a argumentação com outros seres humanos significa sempre a aceitação e o reconhecimento implícito da individualidade e o direito de propriedade do outro «eu» sobre o seu ser, o seu pensamento e as suas realizações, para deduzir logicamente toda uma teoria do direito de propriedade e do capitalismo. Sobre a minha teoria dos três níveis diferentes mas complementares para estudar a realidade social (nível teórico, nível histórico-evolutivo e nível ético), pode consultar-se a minha «Introdução», volume I das Obras Completas de F.A. Hayek (Unio´n Editorial, Madrid 1990, pp. 23-24) e o meu artigo «Historia, ciencia econo´mica y e´tica social», Estudios de economi´a poli´tica, 2.ª edição, Unio´n Editorial, Madrid 2004, pp. 105-109. A imoralidade do socialismo pode ser entendida de forma diferente conforme o nível que se considere. Ou, se se preferir, o socialismo é imoral em pelo menos três sentidos diferentes. Primeiro, e do ponto de vista teórico, o socialismo é imoral, uma vez que, como sistema social, impossibilita a geração de informação de que o próprio sistema necessita para alcançar os fins pretendidos. Segundo, da perspetiva evolutiva, não há nada mais imoral do que o socialismo, no sentido em que consiste numa utopia construtivista que ignora o valor das normas e costumes tradicionais (mos-moris, costume). E, em terceiro lugar, do ponto de vista da ética, o socialismo implica a agressão contra o princípio mais essencial da natureza humana: a sua capacidade de atuar livre e criativamente, obtendo os lucros da sua criatividade empresarial.

[62] Hoff demonstrou que qualquer tendência contrária à função empresarial e a favor do socialismo dá um maior protagonismo em todos os níveis sociais, implícita e explicitamente, à mentalidade técnica que é própria de um engenheiro. Uma vez que se eliminam as considerações relativas ao lucro e ao custo empresarial, é quase inevitável dar uma importância desproporcionada e unilateral às considerações de natureza «técnica». Este fenómeno verifica-se não só ao nível das diferentes indústrias e sectores, mas também ao nível geral de toda a sociedade. De facto, os políticos e os funcionários socialistas acabam inexoravelmente por acreditar que são extraordinários «engenheiros sociais» capazes de moldar a sociedade à sua vontade, introduzindo na mesma a «mudança» necessária para atingir «quotas crescentes» de desenvolvimento económico e social. Hoff conclui que «a product which is technically perfect is ex-hypothesi ideal for its purpose from the technical point of view: it gives joy to the engineers and technical experts and can even give laymen aesthetic pleasure, but it must be insisted that the production of a technical perfect article is economically irrational and an economic misuse of labour and material, if this would have satisfied more needs have they being used for another purpose». Hoff, Economic Calculation in the Socialist Society, obra citada, p. 141 (frase final da nota n.º 8). Paradoxalmente a tentativa de introduzir em cada setor de produção as últimas inovações tecnológicas independentemente das necessárias considerações de custos acaba por atrasar a sociedade do ponto de vista tecnológico, uma vez que as inovações tecnológicas verdadeiramente interessantes para a mesma (as descobertas e introduzidas com base em critérios empresariais) não são descobertas ou aplicadas no tempo e lugar adequados. Por sua vez, D.T. Armentano insiste que o planificador socialista não tem meios para saber qual é o projeto mais económico e eficiente, pelo que as suas decisões tenderão a ser descoordenadas, quer intra quer intertemporalmente, mesmo que tente justificar ou «vestir» a sua decisão com considerações técnicas. Armentano conclui, referindo-se ao famoso exemplo de Mises relativo ao gestor socialista que terá de escolher entre a construção de uma central energética que utiliza petróleo e outra que utiliza energia nuclear que «if and when the power plant is built at a particular point with particular resources, it will represent an “arbitrary” and not an economic decision», uma vez que não dispõe da informação relativa aos preços e aos custos que seria gerada de forma espontânea num mercado livre movido pela empresarialidade. Ver «Resource Allocation Problems under Socialism», em Theory of Economic Systems. Capitalism, Socialism, Corporation, William P. Snavely (ed.), Merrill, Columbus, Ohio 1969, pp. 133-134.

[63] Como é lógico, não entendemos a «eficiência» nos termos paretianos de maximização, mas como um atributo da coordenação empresarial em contextos criativos e de incerteza. Ver Jesu´s Huerta de Soto, The Theory of Dinamic Efficiency, Routledge, Londres e Nova Iorque, 2009.

[64] Assim, por exemplo, este torpe «cientismo positivista» obceca e impregna o sistema educativo e o mundo académico norte-americano em geral, e as contribuições da chamada «Escola de Chicago» em particular, incluindo as daquele que foi um dos seus membros mais destacados, George Stigler, que considerava que ambas as partes do debate tinham fracassado na apreciação das consequências «empíricas» das suas respetivas posições e para quem só a «evidência empírica» podia resolver as diferenças existentes entre os partidários do capitalismo e do socialismo (The Citizen and the State, The University of Chicago Press, Chicago 1975, páginas 1-13). Ver o comentário crítico à posição de Stigler desenvolvido por Norman P. Barry na sua «The Economics and Philosophy of Socialism», Il Politico, Universidade de Pavia, 1984, ano de XLIX, n.º 4, pp. 573-592.

[65] Ver as interessantes observações de Fritz Machlup em «Testing versus Illustrating», pp. 231-232 do volume III (The Economics of Information and Human Capital) de Knowledge: Its Creation, Distribution and Economic Significance, obra citada.

[66] Um resumo da análise crítica da metodologia positivista bem como da sua bibliografia mais relevante encontra-se no meu artigo «Método y Crisis en la Ciencia Económica», Hacienda Pública Española, n.º 74, 1982, pp. 33 a 48, incluído no volume I das minhas Lecturas de Economía Política, Unión Editorial, Madrid 1986, pp. 11 a 33. As ideias metodológicas da Escola Austríaca foram sendo aperfeiçoadas em paralelo com o desenvolvimento do debate sobre o cálculo económico socialista, e a formulação de toda a crítica à metodologia positivista pode considerar-se um dos subprodutos mais interessantes do referido debate, uma vez que, de facto e precisamente pelas mesmas razões pela quais o socialismo é um erro intelectual (impossibilidade de obter a informação prática necessária de forma centralizada), em Economia não é possível observar diretamente factos empíricos, nem contrastar empiricamente qualquer teoria, nem efetuar, em suma, previsões específicas de tempo e lugar sobre o que se irá passar. Isto é assim porque o objeto de investigação da Ciência Económica é constituído pelas ideias e pelo conhecimento que os seres humanos têm e criam sobre o que fazem, e esta informação está em constante mudança, é muita complexa e não pode ser medida, observada nem apreendida por um cientista (nem tão-pouco por um órgão central de planificação). Se fosse possível medir os factos sociais e contrastar empiricamente as teorias económicas, o socialismo seria também possível, e vice-versa, as mesmas razões que impossibilitam o socialismo fazem com que a metodologia positivista seja inaplicável. Dado o seu caráter «espiritual», os «factos» da realidade social só podem ser interpretados historicamente, e para isso é sempre preciso dispor de uma teoria prévia. Sobre estes importantíssimos aspetos, consultar as 33 citações bibliográficas do meu artigo sobre o «Método» já citado e, em especial, os trabalhos de Mises, Theory and History, Yale University Press, Yale 1957, e de Hayek «The Facts of the Social Sciences», em Individualism and Economic Order, obra citada, pp. 57 a 76, e The Counter-Revolution of Science, Free Press, Glencoe. Uma explicação positiva e desapaixonada do paradigma metodológico austríaco encontra-se em Bruce Caldwell, Beyond Positivism: Economic Methodology in the Twentieth Century, George Allen and Unwin, Londres 1982, e em especial as pp. 117 a 138.

[67] Mises insiste que os ensinamentos da experiência soviética não são suficientes para estabelecer qualquer argumento teórico relativamente ao socialismo e conclui que «the fallacies implied in a system of abstract reasoning — such as socialism is — cannot be smashed otherwise than by abstract reasoning».Socialism, obra citada, p. 535.

[68] Em certas ocasiões, a interpretação popular dos factos históricos foi comparativamente mais «fácil». Foi o caso, por exemplo, dos evidentes fracassos do mal designado «comunismo de guerra», que obrigaram Lenine a adotar a Nova Economia Política em 1921. A interpretação dos acontecimentos históricos ocorridos a partir de 1989 e que culminaram com a queda de todos os regimes comunistas dos países do Leste da Europa é também evidente. A interpretação dos factos históricos é, talvez, mais complicada noutras etapas que, porém, depois de um estudo aprofundado, confirmam as teses da teoria sobre a impossibilidade do cálculo económico socialista. Neste sentido pode ver-se, por exemplo, a secção «Does Russia refute Mises?» incluída no artigo «The Failure of Bolchevism and its Aftermath», de David Ramsay Steel, publicado no Journal of Libertarian Studies, volume 5, n.º 1, inverno de 1981, pp. 105-106.

[69] Para Hayek, esta versão não é mais do que uma «escandalosa distorção dos factos» (ver a nota 25 do Capítulo V), especialmente clara se tivermos em conta que os comentários em que os críticos se apoiam para justificar a referida «retirada» são efetuados por Hayek não só de passagem, como com a óbvia finalidade de manter a tradicional cortesia académica que sempre demonstrou, permitindo que os seus adversários, pelo menos no papel, não saíssem completamente derrotados. É neste sentido que devem ser interpretadas as observações da p. 187 de Individualism and Economic Order (obra citada), bem como as das pp. 238 e 242 do artigo sobre o «Present State of the Debate» (Collectivist Economic Planning, obra citada), nas quais podemos ler: «But while this makes it illegitimate to say that these proposals are impossible in any absolute sense, it remains not the less true that these very serious obstacles to the achievement of the desired end exist and that there seems to be no way in which they can be overcome…» (p. 238). «No one would want to exclude every possibility that a solution may yet be found. But in our present state of knowledge serious doubt must remain whether such solution can be found» (p. 242). Assim, não surpreende que mais de 40 anos depois da parte mais importante do debate sobre o cálculo económico, Hayek, no seu artigo de 1982, não tenha sido capaz de manter a sua característica paciência e cortesia relativamente aos seus adversários intelectuais que continuavam a fazer interpretações erróneas e grosseiras sobre a sua pretensa «retirada» para uma «segunda linha de defesa». O próprio Hayek reconheceu expressamente que as suas manifestações de cortesia e cavalheirismo foram utilizadas pelos seus adversários com pouca honestidade científica e que hoje não cometeria o erro de dar espaço a mal-entendidos para manter os bons modos académicos «I might, perhaps, also add that J.A. Schumpeter then accused me with respect to that book of “politeness to a fault” because I “hardly ever attributed to opponents anything beyond intellectual error”. I mention this as an apology in the case that, on encountering the same empty phrases more than 30 years later, I should not be able to command quite the same patience and forbearance.» «The New Confusion about Planning», Capítulo XIV de New Studies in Philosophy, Politics, Economics and the History of Ideas, obra citada, p. 235.

[70] Também não seria legítimo considerar, em nenhum sentido, que Robbins, perante a evidência prática, se refugiou numa «segunda linha de defesa». Pelo contrário, Robbins não só reconhece explicitamente (nota 1 da p. 148 de The Great Depression, obra citada) que o seu argumento continua muito próximo do desenvolvido por Mises no seu livro sobre O Socialismo (em cuja tradução para inglês o próprio Robbins contribuiu em grande medida, uma vez que elaborou um primeiro esboço de algumas das partes mais importantes, que mais tarde entregou ao seu amigo J. Kahane para a redação definitiva), como (quase 40 anos depois quando escreve a sua autobiografia, já Lord Robbins,) mantém explicitamente a sua opinião e reconhece a validade do argumento de Mises acerca da impossibilidade do cálculo económico socialista, tal como originalmente tinha sido enunciado em 1920. Nas palavras do próprio Robbins: «Mises’ main contentions that without a price system of some sort, a complex collectivist society is without the necessary guidance and that, within the general frame- work of such a society, attempts to institute price systems which have meaning and incentive in a dynamic context are liable to conflict with the main intention of collectivism — these still seem to me to be true and to be borne out by the whole history of totalitarian societies since they were propounded.» Ver Lionel Robbins, Autobiography of an Economist, Macmillan, Londres 1971, p. 107. E igualmente, Political Economy, Past and Present, Columbia University Press, Nova Iorque, pp. 135-150.

[71] Esta grande variação na dificuldade interpretativa dos factos da experiência manifesta-se de forma ainda mais dramática relativamente aos efeitos do intervencionismo e da social-democracia dos países ocidentais, o que faz com nesses contextos a ajuda da teoria seja, se possível, ainda mais imprescindível do que relativamente ao chamado socialismo «real».

 

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