Capítulo 3. A Busca por Valores Absolutos
AO LIDARMOS com julgamentos de valor costumamos nos referir aos fatos, isto é, à maneira pela qual as pessoas realmente escolhem os fins últimos. Embora os julgamentos de valor de diversas pessoas sejam idênticos, embora se possa falar de certos valores aceitos quase que universalmente, seria manifestamente falso negar que há uma diversidade nos julgamentos de valor realizados.
Desde tempos imemoriais uma imensa maioria dos homens concordou em optar pelos efeitos produzidos através de uma cooperação pacífica — pelo menos entre um número limitado de pessoas — e não pelos efeitos de um hipotético isolamento de todos os indivíduos ou uma hipotética guerra de todos contra todos. Esta maioria de homens preferiu o estado da civilização ao estado natural, pois estes homens visavam atingir da maneira mais eficaz possível certos fins — a preservação da vida e da saúde — que, como julgaram corretamente, necessitavam da cooperação social. É um fato conhecido, também, que existiram e existem homens que rejeitaram estes valores e, por consequência, preferiram o Eu solitário de um eremita ao Nós dentro de uma sociedade.
É óbvio, portanto, que qualquer tratamento científico dos problemas dos julgamentos de valor deva levar em conta o fato de que estes julgamentos são subjetivos e mutantes. A ciência procura saber o que é o universo, e formular proposições existenciais que o descrevam tal como ele é. No que diz respeito aos julgamentos de valor, ela não pode afirmar nada além de que eles existem, e investigar quais seriam os efeitos das ações realizadas sob a sua influência. Qualquer passo além destes limites equivale a substituir um julgamento pessoal de valor pelo conhecimento da realidade. A ciência e a epistemologia nos ensinam apenas o que é, não o que deveria ser.
Esta distinção entre um campo da ciência que lida exclusivamente com proposições existenciais e um campo de julgamentos de valor foi rejeitada pelas doutrinas que sustentam que existem valores absolutos eternos que têm de ser descobertos pela investigação científica e filosófica da mesma maneira que o são as leis da Física. Aqueles que apoiam estas doutrinas argumentam que existe uma hierarquia absoluta de valores; eles tentam definir o bem supremo; afirmam que é admissível e necessário distinguir entre julgamentos de valor verdadeiros e falsos, corretos e incorretos, do mesmo modo que é possível distinguir entre proposições existenciais verdadeiras e falsas, corretas e incorretas.[1] A ciência não estaria restrita à descrição daquilo que existe; na opinião deles, há um outro ramo da ciência, inteiramente legítimo, a ciência normativa da Ética, cuja tarefa é mostrar os verdadeiros valores absolutos e apontar normas para a conduta correta dos homens.
O fardo de nossos tempos, de acordo com os partidários desta filosofia, é que as pessoas não reconhecem mais estes valores eternos, e não deixam que seus atos sejam guiados por eles. As condições, segundo eles, eram muito melhores no passado, quando os povos da civilização ocidental eram unânimes na defesa dos valores da ética cristã. Na sequência, abordaremos as questões levantadas por esta filosofia.
2. Conflitos dentro da Sociedade
Depois de termos discutido o fato de que os homens discordam no que diz respeito aos seus julgamentos de valores e suas escolhas de fins últimos, devemos enfatizar que muitos dos conflitos que são comumente considerados valorativos são causados, na realidade, por uma divergência de opinião a respeito da escolha dos melhores meios a serem utilizados para se atingir fins com os quais as partes conflitantes estão de acordo. O problema da adequação ou inadequação de determinados meios deve ser resolvido através de proposições existenciais, não de julgamentos de valor. Seu tratamento é o tópico principal da ciência aplicada.
É, portanto, necessário se levar em conta, quando se lida com as controvérsias relacionadas à conduta humana, se a divergência de opinião se refere à escolha dos fins ou dos meios. Isto, muitas vezes, é uma tarefa difícil. Pois o que para algumas pessoas são os fins, para outras são os meios.
Com exceção do número pequeno, quase desprezível, de eremitas convictos, quase todas as pessoas concordam em considerar algum tipo de cooperação social entre os homens como o principal meio para se atingir alguns dos fins que têm como meta. Este fato inegável fornece um ponto de partida comum, a partir do qual as discussões políticas entre os homens se tornam possíveis. A unidade espiritual e intelectual de todos os espécimes do Homo sapiens se manifesta no fato de que a imensa maioria dos homens considera a mesma coisa — a cooperação social — a melhor maneira para satisfazer o impulso biológico, presente em todos os seres vivos, de preservar a vida e a saúde do indivíduo e propagar a sua espécie.
É lícito descrever esta aceitação quase universal da cooperação social como um fenômeno natural. Ao recorrer a este meio de expressão e ao se afirmar que a associação consciente está de acordo com a natureza humana, fica implícito que o homem se caracteriza como homem através da razão, e torna-se, assim, capacitado a tomar consciência do grande princípio da evolução e da transformação cósmica, isto é, diferenciação e integração, e de fazer uma utilização consciente deste princípio para melhorar sua condição. Não se deve, no entanto, considerar um fenômeno natural universal a cooperação entre os indivíduos de uma espécie biológica. Os meios de sustento são escassos para todas as espécies de seres vivos; logo, a competição biológica prevalece entre os membros de todas as espécies, um conflito irreconciliável de “interesses” vitais. Somente uma parte daqueles que vêm à existência conseguem sobreviver. Alguns perecem porque outros de sua própria espécie retiraram deles seus meios de sustento. Uma luta implacável pela existência é travada entre os membros de cada espécie, justamente porque eles pertencem à mesma espécie e competem com os outros membros de lapelas mesmas oportunidades escassas de sobrevivência e reprodução. Apenas o homem, pela força de sua razão, substituiu a competição biológica pela cooperação social. O que tornou possível a cooperação social foi, claro, um fenômeno natural, a alta produtividade do trabalho obtida através do princípio da divisão do trabalho e da especialização das funções. Porém foi necessária a descoberta deste princípio, a compreensão de seu impacto sobre os assuntos humanos, e o seu emprego consciente como um meio nesta luta pela existência.
Os aspectos fundamentais da cooperação social foram interpretados de maneira errônea tanto pela escola do darwinismo social quanto por muitos de seus críticos. Os primeiros sustentaram que a guerra entre os homens é um fenômeno inevitável e que todas as tentativas de implementar uma paz duradoura entre as nações são contrárias à natureza; os últimos responderam que a luta pela existência não é travada entre membros da mesma espécie animal, mas entre os membros de espécies diferentes. Em geral, tigres não atacam outros tigres, mas sim animais mais fracos, seguindo o caminho que oferece a menor resistência. Logo, eles concluíram, a guerra entre os homens, que são espécimes da mesma espécie, não é natural.[2]
Ambas as escolas não compreenderam o conceito darwinista da luta pela sobrevivência. Ele não se refere apenas ao combate e à troca de golpes: significa, metaforicamente, o impulso obstinado dos seres de se manterem vivos, apesar de todos os fatores contrários a eles. Como os meios de sustento são escassos, a competição biológica prevalece entre todos os indivíduos que se alimentam da mesma substância — sejam eles da mesma espécie ou de espécies diferentes. Não é relevante se tigres combatam uns aos outros. O que torna cada espécime de uma espécie animal um inimigo mortal dos outros espécimes é o mero fato de que existe entre eles uma rivalidade de vida ou morte em seus esforços para obter uma quantidade suficiente de comida. Esta rivalidade inexorável também está presente nos animais gregários que vivem em rebanhos e manadas, entre formigas do mesmo formigueiro e abelhas da mesma colmeia, entre filhotes da mesma ninhada e sementes geradas pela mesma planta. Apenas o homem tem o poder de evitar, até certo ponto, de ser governado por esta lei, através da cooperação intencional. Enquanto houver cooperação social e a população não ultrapassar um número ideal, a competição biológica é suspensa. Não é, portanto, apropriado referir-se aos animais e às plantas quando se lida com os problemas sociais do homem.
No entanto, o reconhecimento quase universal do princípio da cooperação social por parte do homem não resultou em concordância em todas as relações inter-humanas. Embora quase todos os homens concordem que a cooperação social é o principal meio para realizar todos os fins humanos, quaisquer que eles sejam, eles discordam no que se refere ao grau em que a cooperação social pacífica é um meio apropriado para atingir suas metas, e até que ponto se deve recorrer a ela.
Aqueles a quem chamamos de harmonistas utilizam como a base de seu argumento a lei de associação de Ricardo e o princípio populacional de Malthus. Eles não presumem, como acreditam alguns de seus críticos, que todos os homens sejam iguais, biologicamente, mas levam em conta o fato de que existem diferenças biológicas inatas entre os diversos grupos de homens, assim como entre indivíduos que pertencem ao mesmo grupo. A lei de Ricardo mostrou que a cooperação, sob o princípio da divisão de trabalho, é favorável a todos os que participam dela. É uma vantagem para todos os homens cooperarem com os outros homens, mesmo se estes últimos forem inferiores em todos os aspectos — em termos de habilidades e capacidades mentais e corpóreas, diligência e valor moral aos primeiros. A partir do princípio de Malthus pode-se deduzir que há um tamanho populacional ideal, qualquer que seja o estado de oferta de bens de capital e do conhecimento de como se utilizar melhor os recursos naturais. Enquanto a população não ultrapassar este número, o acréscimo de novos indivíduos melhorará, e não piorará, as condições daqueles que já estão cooperando.
Na filosofia dos anti-harmonistas – as diversas escolas de nacionalismo e racismo — pode se distinguir duas linhas diferentes de raciocínio. Uma delas é a doutrina do antagonismo irreconciliável predominante entre os diversos grupos humanos, como nações ou raças. Segundo os anti-harmonistas, a comunhão de interesses existe apenas entre os membros de um grupo. Os interesses de cada grupo e de cada um de seus membros são implacavelmente opostos aos interesses de todos os outros grupos e de cada um de seus membros. Logo, é “natural” que exista um estado perpétuo de guerra entre estes diferentes grupos. Este estado natural de guerra de cada grupo contra todos os outros grupos pode, às vezes, ser interrompido por períodos de armistício, rotulados erroneamente como “períodos de paz”. Ocasionalmente um grupo também pode cooperar com outros grupos, formando alianças; estas alianças são formas temporárias e paliativas de política. Não afetam, no longo prazo, o conflito natural e inexorável de interesses. Uma vez que o grupo que lidera a coalizão, tendo cooperado com os grupos aliados, consegue derrotar vários dos grupos que lhes são hostis, este grupo se volta contra seus antigos aliados, para aniquilá-los da mesma forma e estabelecer sua própria supremacia mundial.
O segundo dogma das filosofias nacionalistas e racistas é considerado pelos seus partidários uma conclusão lógica derivada do primeiro dogma. Segundo eles, as condições humanas envolvem conflitos eternamente irreconciliáveis, primeiro entre os diversos grupos que combatem uns aos outros, depois, após a vitória final do principal destes grupos, entre ele e o resto da humanidade, a esta altura escravizada. Esta elite suprema, portanto, deve estar sempre pronta para esmagar os grupos rivais, e, em seguida, debelar as revoltas dos escravos. Este estado de preparo permanente para a guerra traz consigo a necessidade de se organizar a sociedade segundo o modelo de um exército. O exército não é um instrumento destinado a servir a um corpo político; é, ao contrário, a própria essência da cooperação social, a qual todas as outras instituições são subservientes. Os indivíduos não são cidadãos de uma comunidade; são soldados de uma força combatente e, como tal, devem obedecer incondicionalmente as ordens dadas pelo comandante supremo. Não têm direitos civis, apenas obrigações militares.
Assim, até mesmo o fato da imensa maioria dos homens enxergar a cooperação social como o principal meio para se atingir todos os fins desejados não serve como base para que se consiga atingir um consenso amplo acerca tanto dos fins quanto dos meios.
3. Um Comentário sobre a Suposta Unanimidade Medieval
Ao examinar as doutrinas de valores absolutos eternos devemos também nos perguntar se é ou não verdade que houve um período histórico em que todas as pessoas do Ocidente estiveram unidas na aceitação de um sistema uniforme de normas éticas.
Até o início do século IV o credo cristão foi difundido através de conversões voluntárias. Posteriormente também ocorreram conversão voluntárias, tanto de indivíduos quanto de povos inteiros; porém a partir dos dias de Teodósio I a espada passou a desempenhar um papel crucial na disseminação do cristianismo. Pagãos e hereges foram compelidos a se submeterem aos ensinamentos cristãos à força. Por muitos séculos os problemas religiosos foram decididos através do resultado de batalhas e guerras. Campanhas militares determinaram a devoção religiosa das nações. Os cristãos do Oriente foram obrigados a aceitar o credo de Maomé, e os pagãos da Europa e da América foram obrigados a aceitar a fé cristã. O poder secular teve um papel fundamental na luta entre a Reforma e a Contra-Reforma.
Houve uma uniformidade religiosa na Europa da Idade Média na medida em que tanto o paganismo quanto as heresias foram erradicadas a ferro e fogo. Toda a Europa Central e Ocidental reconheceu o Papa como Vigário de Cristo. Isto não significou, no entanto, que todas as pessoas concordavam com os seus julgamentos de valor e os princípios que regravam sua conduta. Poucas pessoas na Europa medieval viviam de acordo com os preceitos do Evangelho. Muito se disse e se escreveu sobre o espírito genuinamente cristão do código de cavalaria e o idealismo religioso que guiava a conduta dos cavaleiros. É difícil, no entanto, conceber algo menos compatível com Lucas 6:27-9 do que as regras de cavalaria. Os cavaleiros galantes certamente não amavam seus inimigos, não abençoavam aqueles que lhes maldiziam, e não ofereciam a face esquerda a quem lhes havia golpeado a direita. A Igreja Católica tinha o poder de evitar que acadêmicos e escritores questionassem os dogmas definidos pelo Papa e seus Concílios e de obrigar os governantes seculares a ceder a algumas de suas exigências políticas. Mas ela só conseguia conservar sua posição fechando os olhos àquelas condutas de parte dos leigos que desafiavam a maior parte – quando não a totalidade — dos princípios dos Evangelhos. Os valores que determinavam as ações das classes dominantes eram totalmente diferentes daqueles que a Igreja pregava. Nem mesmo os camponeses obedeciam a Mateus 6:25-8, e tribunais e juízes desafiavam Mateus 7:1: “Não julguem, para que não sejam julgados.”
4. A Ideia de Lei Natural
A tentativa mais significativa de se encontrar um padrão absoluto e eterno de valor foi apresentada pela doutrina da lei natural.
O termo “lei natural” foi utilizado por diversas escolas de filosofia e jurisprudência. Muitas doutrinas apelaram à natureza como justificativa para seus postulados. Inúmeras teses descaradamente espúrias foram defendidas sob o rótulo de lei natural. Não foi difícil destruir essas falácias, comuns à maioria das linhas de pensamento. E não é surpreendente que diversos pensadores ficassem desconfiados assim que se mencionava a lei natural.
No entanto, seria um erro grave ignorar o fato de que todas as variantes da doutrina continham em si uma ideia sólida, que não poderia ser comprometida pela associação com excentricidades indefensáveis nem desacreditada por qualquer crítica. Muito antes dos economistas clássicos descobrirem que há uma regularidade na sequência de fenômenos que ocorrem no campo da ação humana, os defensores da lei natural já tinham uma vaga noção deste fato inexorável. A partir da diversidade estarrecedora de doutrinas apresentadas sob a rubrica de lei natural surgiu finalmente um conjunto de teoremas que cavilação alguma jamais poderá invalidar. Primeiro, existe a ideia de que há uma ordem das coisas, fornecida pela natureza, à qual o homem deve ajustar suas ações se ele quiser ser bem-sucedido. Segundo: os únicos meios disponíveis ao homem para a percepção desta ordem são o raciocínio e o pensamento, e nenhuma instituição social existente está isenta de ser examinada e avaliada pelo raciocínio discursivo. Terceiro: não existe um padrão para se avaliar qualquer modo de ação, seja de indivíduos ou de grupos de indivíduos, além daquele que examina os efeitos de tal ação. Levada até suas últimas consequências lógicas, a ideia da lei natural acabou por chegar ao racionalismo e ao utilitarismo.
A marcha da filosofia social rumo a esta conclusão inevitável teve sua velocidade reduzida por diversos obstáculos que não puderam ser removidos facilmente. Diversas armadilhas estavam ao longo do caminho, e muitas inibições obstruíram os filósofos. Lidar com as vicissitudes da evolução destas doutrinas é tarefa da história da filosofia. No contexto de nossa investigação, basta mencionar apenas dois destes problemas. Havia o antagonismo entre os ensinamentos da razão e os dogmas da Igreja. Alguns filósofos estavam dispostos a delegar uma supremacia incondicional aos últimos. A verdade e a certeza, segundo eles, poderiam ser encontradas apenas na Revelação. A razão do homem pode errar, e o homem nunca pode ter certeza de que suas especulações não foram desviadas por Satã. Outros pensadores não aceitaram esta solução do antagonismo; para eles, rejeitar a razão por antecipação era absurdo. A razão também seria derivada de Deus, que dotou o homem dela, logo, não pode existir qualquer contradição legítima entre o dogma e os ensinamentos corretos da razão. Cabe à Filosofia mostrar que os dois, no fim das contas, concordam. O problema central da filosofia escolástica era demonstrar que a razão humana, sem o auxílio da Revelação e da Sagrada Escritura, recorrendo apenas aos seus métodos de raciocínio, é capaz de fornecer a verdade apodítica dos dogmas revelados.[3] Não existe um conflito genuíno entre fé e razão; a lei natural e a lei divina não discordam.
Esta maneira de lidar com o assunto, no entanto, não elimina o antagonismo; ela apenas o desloca para outro campo. O conflito deixa de ser um conflito entre a fé e a razão, e passa a ser entre a filosofia tomista e outros modos de filosofar. Podemos deixar de lado dogmas genuínos como a Criação, a Encarnação, a Trindade, já que eles não têm qualquer relação direta com os problemas das relações inter-humanas. Mas muitas questões ainda permanecem, a cujo respeito a maioria, se não todas, as igrejas e denominações cristãs não estão preparadas para ceder ante o raciocínio secular e uma avaliação do ponto de vista da utilidade social. Assim, o reconhecimento da lei natural por parte da teologia cristã era unicamente condicional; referia-se a um tipo específico de lei natural, que não se opunha aos ensinamentos de Cristo da maneira como cada uma destas igrejas e denominações os interpretou. Não reconhecia a supremacia da razão, e era incompatível com os princípios da filosofia utilitarista.
Um segundo fator que obstruiu a evolução da lei natural em seu percurso rumo a um sistema de ação humana consistente e abrangente foi a teoria errônea da igualdade biológica de todos os homens. Ao repudiar os argumentos propostos a favor da discriminação legal entre os homens e de uma sociedade estamental, muitos defensores da igualdade diante da lei se excederam. Argumentar que “ao nascer, as crianças, independentemente de sua hereditariedade, são tão iguais quanto os Fords”[4] é uma negação de fatos tão óbvios que acabou colocando em xeque toda a filosofia da lei natural. Ao insistir na igualdade biológica a doutrina da lei natural colocou de lado todos os argumentos válidos levantados a favor do princípio da igualdade diante da lei, abrindo assim o caminho para a difusão de teorias propondo todo tipo de discriminações legais contra indivíduos e grupos de indivíduos; suplantou os ensinamentos da filosofia social liberal, gerando ódio e violência, guerras internacionais e revoluções internas e preparou a humanidade para a aceitação do racismo e do nacionalismo agressivo.
O principal mérito da noção da lei natural foi a sua rejeição da doutrina (por vezes chamada de positivismo legal) segundo a qual a fonte fundamental do direito estatutário deriva do poder militar superior do legislador, que está em condições de submeter à força todos aqueles que desafiarem os seus decretos. A lei natural ensinou que as leis estatutárias podem ser leis más, e colocou em contraste a estas leis más, leis boas, às quais atribuiu uma origem natural ou divina. Porém era uma ilusão negar que o melhor sistema de leis não pode ser posto em prática a menos que ele conte com o apoio e seja posto em prática por uma supremacia militar. Os filósofos fecharam seus olhos diante de fatos históricos evidentes; recusaram-se a admitir que as causas que consideravam justas puderam progredir apenas porque seus partidários derrotaram os defensores das causas más. A fé cristã deve seu sucesso a uma longa série de campanhas e batalhas vitoriosas, desde diversas batalhas entre césares e imperadores romanos rivais até as campanhas que abriram o Oriente para as atividades dos missionários. A causa da independência americana triunfou porque as tropas britânicas foram derrotadas pelos insurgentes e pelos franceses. É uma triste verdade, mas Marte está do lado de grandes batalhões, não de boas causas. Sustentar a opinião contrária implica a crença de que um conflito armado é um julgamento por combate em cujo desfecho Deus sempre concede a vitória aos defensores da causa justa. Esta opinião, no entanto, anularia todos os fundamentos da doutrina da lei natural, cuja ideia básica era a de contraste com as leis positivas, promulgadas e postas em prática por aqueles que detêm o poder, uma lei “superior” embasada na natureza mais interior do homem.
No entanto, todas estas deficiências e contradições da doutrina da lei natural não nos devem impedir de reconhecer a sensatez de seu núcleo. Escondida sob uma pilha de ilusões e preconceitos um tanto arbitrários estava a ideia de que cada lei válida de um país estava sujeita ao exame crítico da razão. Acerca de qual padrão deveria ser utilizado neste exame, os antigos representantes da escola tinham apenas noções vagas; eles referiam-se à natureza, e relutavam em admitir que o padrão definitivo de bem ou mal deve ser descoberto nos efeitos produzidos por uma lei. O utilitarismo havia finalmente completado a evolução intelectual inaugurada pelos sofistas gregos. Mas nem o utilitarismo nem qualquer uma das variantes da doutrina da lei natural podiam ou foram capazes de encontrar uma maneira de eliminar o conflito entre os julgamentos antagonísticos de valor. É inútil enfatizar que a natureza é o árbitro derradeiro do que é certo e o que é errado; a natureza não revela com clareza seus planos e intenções ao homem. Logo, o apelo à lei natural não põe um ponto final na disputa; ele apenas substitui a discórdia no que diz respeito às interpretações da lei natural pela discórdia no que diz respeito aos julgamentos de valor. O utilitarismo, por outro lado, não lida de maneira alguma com objetivos finais e julgamentos de valor; ele, invariavelmente, se refere apenas aos meios.
5. Revelação
A religião revelada deriva sua autoridade e sua autenticidade da comunicação da vontade do Ser Supremo ao homem. Ela dá aos seus fiéis uma certeza inquestionável.
No entanto, as pessoas têm inúmeras discordâncias acerca do conteúdo da verdade revelada, bem como a sua interpretação correta — ortodoxa. Apesar de toda a grandiosidade, majestade e sublimidade do sentimento religioso, existem conflitos irreconciliáveis entre as diversas fés e credos. Mesmo que a unanimidade pudesse ser atingida, no que tange à autenticidade histórica e confiabilidade da revelação, o problema da veracidade das diversas interpretações exegéticas continuaria a existir.
Todas as fés alegam possuir a certeza absoluta. Mas nenhuma facção religiosa conhece alguma maneira pacífica que faça os dissidentes renunciarem voluntariamente ao seu erro e adotarem o credo verdadeiro.
Se pessoas de fés diferentes se encontrarem para uma discussão pacífica sobre suas diferenças, não conseguirão encontrar um ponto em comum para o seu colóquio além da afirmação: pelos seus frutos os conhecereis. Este artifício utilitarista, no entanto, não tem qualquer utilidade enquanto os homens discordarem sobre o padrão a ser aplicado quando os efeitos forem julgados.
O apelo religioso a valores eternos absolutos não eliminou os julgamentos conflitantes de valor; ele apenas resultou em guerras religiosas.
6. Intuição Ateística
Outras tentativas de se descobrir um padrão absoluto de valores, que não utilizavam como referência uma realidade divina, foram feitas. Rejeitando enfaticamente todas as religiões tradicionais, e reivindicando para seus ensinamentos o epíteto de “científicos”, diversos autores tentaram substituir as antigas fés por uma nova. Alegaram saber exatamente o que o poder misterioso que guia toda a transformação cósmica tem guardado para a humanidade; decretaram um padrão absoluto de valores. O bem é aquilo que funciona de acordo com a orientação que este poder quer que a humanidade siga; todo o resto é o mal. No seu vocabulário, “progressivo” é sinônimo de bom e “reacionário” de mau. O progresso inevitavelmente triunfará sobre a reação porque é impossível para os homens desviar o curso da história da direção prescrita pelo plano do primeiro movente[5] misterioso. Esta é a metafísica de Karl Marx, a fé do autointitulado progressismo contemporâneo. O marxismo é uma doutrina revolucionária; ela declara expressamente que o desígnio do primeiro movente será obtido através da guerra civil. Ele deixa implícito que no fim das batalhas destas campanhas a causa justa, isto é, a causa do progresso, sairá vitoriosa; e então todos os conflitos que envolvem julgamentos de valor desaparecerão. A eliminação de todos os dissidentes estabelecerá a supremacia inconteste dos valores eternos absolutos.
Esta fórmula para a solução de conflitos de julgamentos de valor certamente não é nova. É um artifício conhecido e praticado desde tempos imemoriais. Matem os infiéis! Queimem os hereges! O que é novo é apenas o fato de que hoje em dia ele é vendido ao público sob o rótulo de “ciência”.
7. A Ideia de Justiça
Um dos motivos que compelem os homens a procurar por um padrão de valor absoluto e imutável é a presunção de que a cooperação pacífica somente é possível entre pessoas guiadas pelos mesmos julgamentos de valor.
É óbvio que a cooperação social não teria evoluído nem poderia ser preservada se a imensa maioria não a considerasse o meio para a obtenção de todos os seus fins. Ao lutar pela preservação de sua própria vida e saúde, e pela melhor maneira possível de remover as inquietudes que ele sente, o indivíduo enxerga a sociedade como um meio, não como um fim. Não há uma unanimidade perfeita até mesmo no que diz respeito a este ponto. Porém podemos deixar de lado a discordância dos ascetas e dos anacoretas, não porque são poucos, mas porque seus planos não são afetados se as outras pessoas cooperarem em sociedade em busca de seus planos.
A discórdia é predominante entre os membros da sociedade no que diz respeito ao melhor método para a sua organização. Porém esta é uma discórdia relacionada aos meios, não aos fins últimos. Os problemas gerados por essa discórdia podem ser discutidos sem qualquer referência a julgamentos de valor.
É claro que quase todas as pessoas, guiadas pelo meio através do qual se lida tradicionalmente com preceitos éticos, repudiam categoricamente esta explicação da questão. As instituições sociais, segundo elas, devem ser justas. É abjeto julgá-las apenas de acordo com sua aptidão para atingir determinados fins, por mais desejáveis que estes fins possam ser de qualquer outro ponto de vista; o que importa, em primeiro lugar, é a justiça. A formulação extrema desta ideia pode ser encontrada na célebre frase: fiat justitia, pereat mundus. Seja feita justiça, mesmo que isso destrua o mundo. A maior parte dos defensores deste postulado da justiça rejeita esta máxima como extravagante, absurda e paradoxal. Mas ela não é mais absurda, apenas mais chocante, do que qualquer outra referência a uma noção arbitrária de justiça absoluta. Ela mostra claramente as falácias dos métodos aplicados na disciplina da ética intuitiva.
O método desta semi-ciência normativa era derivar certos preceitos a partir da intuição, e lidar com eles como se adotá-los como guia de ação não afetasse a obtenção de quaisquer outros fins considerados desejáveis. Os moralistas não se preocupam com as consequências inevitáveis da realização de seus postulados. Não precisamos discutir a atitude das pessoas para quem apelar à justiça é manifestamente um pretexto, escolhido consciente ou inconscientemente, para disfarçar seus interesses de curto prazo, nem expor a hipocrisia em noções improvisadas de justiça como estas, presentes em conceitos populares como o de preços e salários justos.[6] Os filósofos que, em seus tratados de ética, atribuíram o valor supremo à justiça e utilizaram o critério da justiça a todas as instituições sociais não são os culpados por este engodo. Eles não apoiaram preocupações grupais egoístas afirmando que apenas elas eram justas, certas e boas, e mancharam o nome de todos os dissidentes retratando-os como apologistas de causas injustas; eram platonistas, que acreditavam que existe de fato uma ideia perene de justiça absoluta e que é obrigação do homem organizar todas as instituições humanas de acordo com este ideal. A percepção de justiça é concedida ao homem através de uma voz interna, isto é, através da intuição. Os defensores desta doutrina não perguntaram quais seriam as consequências da realização destes planos que chamaram de justos; eles presumiram, silenciosamente, que ou estas consequências seriam benéficas ou que a humanidade estaria fadada a aguentar as consequências tão dolorosas da justiça. Estes professores da moral deram ainda menos atenção ao fato de que as pessoas podem discordar — e de fato discordam — no que diz respeito à interpretação desta voz interna, e que é impossível descobrir qualquer método de acomodação pacífica destas diferenças de opinião.
Todas estas doutrinas éticas foram incapazes de compreender que, fora dos laços sociais e antes, temporal e logicamente, da existência da sociedade, nunca houve nada a que possa ser dado o epíteto de “justo”. Um indivíduo hipoteticamente isolado, sob a pressão da competição biológica, enxergará todas as outras pessoas como inimigos mortais. Sua única preocupação é a de preservar a sua própria vida e saúde; ele não precisa pensar nas consequências que sua própria sobrevivência terá para os outros homens; a justiça não tem qualquer serventia para ele. Suas únicas preocupações são a higiene e a defesa. Na cooperação social com outros homens, no entanto, o indivíduo é obrigado a se abster de condutas incompatíveis com a vida em sociedade. Somente então surge a distinção entre o que é justo e o que é injusto; ela invariavelmente se refere às relações inter-humanas. O que é benéfico ao indivíduo sem afetar os outros, como a observância de determinadas regras na utilização de certas drogas, permanece no campo da higiene.
O critério definitivo da justiça é a contribuição à preservação da cooperação social. Aquelas condutas apropriadas para preservar a cooperação social são justas, e as condutas prejudiciais à preservação da sociedade são injustas. É inadmissível organizar uma sociedade de acordo com os postulados de uma ideia arbitrária e preconcebida de justiça. O problema é organizá-la de modo a obter da melhor maneira possível aqueles fins que os homens querem atingir através da cooperação social. A utilidade social é o único padrão de justiça. É o único guia da legislação.
Logo, não há conflitos irreconciliáveis entre o egoísmo e o altruísmo, entre a Economia e a Ética, entre as preocupações do indivíduo e as da sociedade. A filosofia utilitarista e seu melhor subproduto, a Economia, reduziram estes aparentes antagonismos à oposição entre interesses de curto prazo e interesses de longo prazo. A sociedade não poderia ter existido ou sido preservada sem uma harmonia entre os interesses corretamente entendidos de todos os seus membros.
Só há uma maneira de se lidar com todos os problemas da organização social e a conduta dos membros da sociedade, a saber, o método aplicado através da praxeologia e da economia. Nenhum outro método pode contribuir de qualquer maneira para a elucidação destas questões.
O conceito de justiça, tal como empregado pela jurisprudência, se refere à legalidade, isto é, à legitimidade do ponto de vista dos estatutos válidos de um país. Ele se refere à justiça de lege lata. A ciência do Direito nada tem a dizer de lege ferenda, isto é, sobre como as leis deveriam ser. Promulgar novas leis e abolir as antigas cabe à legislatura, cujo único critério é a utilidade social. A assistência que o legislador pode esperar dos advogados se restringe apenas às questões referentes à técnica legal, não à essência dos estatutos e decretos.
Não existe uma ciência normativa, uma ciência daquilo que deveria ser.
8. A Doutrina Utilitarista Reafirmada
Os ensinamentos essenciais da filosofia utilitarista, quando aplicados aos problemas da sociedade, podem ser reafirmados assim:
O esforço humano exercido sob o princípio da divisão do trabalho na cooperação social consegue obter, se todos os outros fatores permanecerem constantes, uma maior produção por unidade de aporte do que os esforços isolados de indivíduos solitários. A razão do homem é capaz de reconhecer este fato e adaptar a isso sua conduta. Assim, a cooperação social se torna, para quase todos os homens, o grande meio para a obtenção de todos os fins. Um interesse humano eminentemente comum, a preservação e intensificação dos laços sociais, substitui a competição biológica impiedosa, marca característica da vida animal e vegetal. O homem se torna um ser social; ele não é mais forçado pelas leis inevitáveis da natureza a enxergar todos os outros espécimes de sua espécie animal como inimigos mortais. Outras pessoas tornam-se seus companheiros. Para os animais, a geração de cada novo membro da espécie significa o surgimento de um novo rival na luta pela vida. Para o homem, até que se atinja o tamanho ideal de uma população, isso significa, pelo contrário, uma melhoria, e não um prejuízo, em sua busca pelo bem-estar material.
Apesar de todas as suas conquistas sociais, o homem continua sendo, em sua estrutura biológica, um mamífero. Suas necessidades mais urgentes são alimentação, calor e abrigo. Apenas quando estas necessidades estiverem satisfeitas ele poderá se preocupar com outras preocupações, peculiares à espécie humana e, por consequência, chamadas especificamente de necessidades humanas ou superiores. Do mesmo modo, a satisfação destas depende, via de regra — ou pelo menos até certo ponto — da disponibilidade de diversas coisas materiais tangíveis.
Como a cooperação social é, para o agente homem, um meio, e não um fim, nenhuma unanimidade, no que tange a julgamentos de valor, é necessária para fazer com que ela funcione. É um fato que quase todos os homens concordam em ter como meta determinados fins, aqueles prazeres que os moralistas, do alto de suas torres de marfim, desprezam como degradantes e abjetos. Mas, da mesma maneira, é verdade que até mesmo os fins mais sublimes não podem ser perseguidos por pessoas que não tiverem satisfeitas antes as necessidades de seu corpo animal. Os feitos mais elevados da filosofia, da arte e da literatura jamais teriam sido realizados por homens que vivessem fora da sociedade.
Os moralistas louvam a nobreza das pessoas que procuram uma coisa unicamente por esta própria coisa. “Deutsch sein heisst eine Sache um ihrer selbst willen tun“, declarou Richard Wagner,[7] e os nazistas, mais que qualquer outro grupo de pessoas, adotaram este dito como princípio fundamental de seu credo. O que é procurado como um fim último passa a ser avaliado de acordo com a satisfação imediata derivada da sua obtenção. Não há mal em declarar, de maneira obscura, que se procurou obter uma coisa pelo próprio mérito desta coisa. A frase de Wagner, então, passa a ser reduzida a um truísmo: os fins últimos são fins, e não meios para a obtenção de outros fins.
Os moralistas ainda levantam contra os utilitaristas a acusação de materialismo (ético). Aqui, também, eles interpretam erroneamente a doutrina utilitarista. A sua essência é a percepção de que a ação visa a determinados fins escolhidos, e que, consequentemente, não pode existir qualquer outro padrão para a avaliação da conduta além de quão desejáveis ou indesejáveis são os seus efeitos. Os preceitos da Ética têm como função preservar, e não destruir, o “mundo”. Eles podem exigir que as pessoas aguentem efeitos indesejáveis, no curto prazo, para evitar efeitos ainda mais indesejáveis no longo prazo; porém eles nunca devem recomendar ações cujos efeitos eles próprios julguem indesejáveis para o propósito único de não se desafiar uma regra arbitrária derivada da intuição. A fórmula fiat justitia, pereat mundus é então destruída, por ser pura tolice. Uma doutrina ética que não leve em conta todos os efeitos da ação é uma mera fantasia.
O utilitarismo não ensina que as pessoas devem se empenhar apenas em obter o prazer sensual (embora ele reconheça que a maior parte, ou ao menos muitas, das pessoas se comportam assim). Tampouco ele incorre em julgamentos de valor. Através do seu reconhecimento de que a cooperação social é, para a imensa maioria, um meio de obter todos os seus fins, ela dissipa a noção de que a sociedade, o estado, a nação, ou qualquer outra entidade social, é o fim último, e que os indivíduos são escravos daquela entidade. Ele rejeita as filosofias do universalismo, coletivismo e totalitarismo. Neste sentido, é apropriado descrever o utilitarismo como uma filosofia do individualismo.
A doutrina coletivista não consegue reconhecer que a cooperação social é, para o homem, um meio de atingir todos os seus fins. Presume que um conflito irreconciliável predomine entre os interesses do coletivo e dos indivíduos, e neste conflito ela fica incondicionalmente ao lado da entidade coletiva. Somente o coletivo tem uma existência real; a existência dos indivíduos é condicionada pela existência do coletivo. O coletivo é perfeito e não pode fazer nada de errado. Os indivíduos são ignóbeis e intransigentes; sua obstinação deve ser freada pela autoridade a quem Deus ou a natureza deram o poder de conduzir os assuntos da sociedade. As autoridades, nas palavras do apóstolo Paulo, foram instituídas por Deus.[8] Elas foram instituídas pela natureza ou pelo fator sobre-humano que rege o curso de todos os eventos cósmicos, afirma o coletivista ateu.
Duas questões surgem, imediatamente. Primeiro: se fosse verdade que os interesses do coletivo e dos indivíduos fossem implacavelmente opostos um ao outro, como poderia a sociedade funcionar? Deve-se presumir que os indivíduos seriam impedidos à força de recorrer a uma rebelião aberta. Mas é impossível presumir que a sua cooperação ativa poderia ser mantida através da mera compulsão. Um sistema de produção no qual o único incentivo ao trabalho é o medo da punição não tem como durar. Foi este fato que fez com que a escravidão desaparecesse como sistema de administração da produção.
Segundo: se o coletivo não é um meio através do qual os indivíduos atingem seus fins, se o florescimento do coletivo exige dos indivíduos sacrifícios que não são maiores do que as vantagens advindas da cooperação social, o que instiga o defensor do coletivismo a colocar as preocupações da precedência coletiva acima dos desejos pessoais dos indivíduos? Há algum argumento que possa ser feito a favor desta exaltação do coletivo, além de julgamentos pessoais de valor?
Obviamente, os julgamentos de valor de todos são pessoais. Se um homem atribui um valor maior às preocupações do coletivo do que às suas outras preocupações, e age de acordo, isto é problema dele. Enquanto os filósofos coletivistas agirem desta maneira, nenhuma objeção poderá ser feita contra eles. Mas o seu argumento é diferente. Eles elevam seus julgamentos pessoais de valor à dignidade de um padrão absoluto de valor; incitam outras pessoas a deixar de atribuir valores de acordo com suas próprias vontades e a adotar incondicionalmente os preceitos ao qual o coletivismo atribui uma validade eterna absoluta.
A futilidade e a arbitrariedade do ponto de vista coletivista se tornam ainda mais evidentes quando nos lembramos de que os diversos partidos coletivistas competem pela lealdade exclusiva do indivíduo. Ainda que utilizem a mesma palavra para o seu ideal coletivista, os diversos autores e líderes discordam acerca das características essenciais daquilo que têm em mente. O estado que Ferdinand Lassalle chamava de deus e ao qual ele atribuía supremacia não era exatamente o ídolo coletivista de Hegel e Stahl, o estado dos Hohenzollern. Seria a humanidade como um todo um único coletivo legítimo, ou cada uma de suas diferentes nações? Seria o coletivo ao qual os suíços de idioma alemão devem fidelidade a Confederação Suíça ou a Volksgemeinschaft que abrange todos os homens que falam alemão? Todas as principais entidades sociais, como nações, grupos linguísticos, comunidades religiosas, organizações partidárias, já foram elevadas à dignidade daquele coletivo supremo que paira sobre todos os outros coletivos e clama para si a submissão de toda a personalidade de todos os homens bem-pensantes. Mas um indivíduo só pode renunciar aos seus atos autônomos e entregar a si próprio, incondicionalmente, a um único coletivo. Qual é esse coletivo só pode ser determinado através de uma decisão um tanto arbitrária. O credo coletivo é necessariamente exclusivo e totalitário. Ele anseia pelo homem em sua totalidade, e não quer partilhá-lo com qualquer outro coletivo. Ele visa estabelecer a validade suprema e exclusiva de um único sistema de valores.
Existe, claro, apenas uma maneira de se fazer com que os próprios julgamentos de valor de alguém se tornem supremos: deve-se submeter à força todos aqueles que discordem deles. É por isto que todos os representantes das diversas doutrinas coletivistas lutam. E acabam por recomendar, ao fim, o uso da violência e a aniquilação impiedosa de todos aqueles que condenam como hereges. O coletivismo é uma doutrina de guerra, intolerância e perseguição. Se qualquer um dos credos coletivistas conseguisse ser bem-sucedido em seus intentos, todas as pessoas — com exceção do grande ditador — seriam privadas de sua qualidade humana essencial; tornar-se-iam meros peões sem alma, nas mãos de um monstro.
O traço característico de uma sociedade livre é que ela consegue funcionar a despeito de seus membros discordarem em diversos julgamentos de valor. Na economia de mercado as atividades comerciais não servem apenas à maioria, mas também às diversas minorias, com a condição de que não sejam demasiadamente pequenas, no que diz respeito aos bens econômicos necessários para satisfazer seus desejos especiais. Publicam-se tratados filosóficos — embora poucas pessoas os leiam, e as massas prefiram outros livros, ou nenhum — caso se presuma que haverá um número suficiente de leitores para cobrir os seus custos.
9. Sobre os Valores Estéticos
A busca por padrões absolutos de valor não se limita ao campo da ética. Ela também se refere aos valores estéticos.
Na Ética, há uma base comum para a escolha de regras de conduta, contanto que as pessoas concordem em considerar a preservação da cooperação social o principal meio de se obter todos os fins. Assim, praticamente qualquer controvérsia acerca das regras de conduta se refere aos meios, e não aos fins; é, portanto, possível avaliar estas regras a partir do ponto de vista de sua adequação ao funcionamento pacífico da sociedade. Até mesmo os partidários mais rígidos de uma ética intuicionista acabam por recorrer a uma avaliação de conduta a partir do ponto de vista de seus efeitos sobre a felicidade humana.[9]
O mesmo não ocorre com julgamentos estéticos de valor. Neste campo não há a mesma concordância, como ocorre no que diz respeito ao ponto de vista de que a cooperação social é o principal meio para a obtenção de todos os fins. Todas as discordâncias aqui invariavelmente envolvem julgamentos de valor, e nenhuma delas tem relação com a escolha de meios para a realização de um fim com o qual todos concordam. Não há como se reconciliar julgamentos conflitantes. Não há um padrão através do qual se possa determinar que um veredito que diga “isto me agrada” seja mais correto que outro que diga “isto não me agrada”
A infeliz propensão a hipostasiar diversos aspectos do pensamento e das ações humanas gerou tentativas de se definir a beleza, e aplicar então este conceito arbitrário como medida. Não existe, no entanto, uma definição aceitável de beleza além de “aquilo que agrada”. Não existem normas de beleza, e não existe uma disciplina normativa de Estética. Tudo o que um crítico profissional de arte e literatura pode falar, além de observações históricas e técnicas, é que ele gosta ou não de uma obra. A obra pode fazer com que ele teça comentários e reflexões profundas; seus julgamentos de valor, no entanto, continuarão a ser pessoais e subjetivos, e não afetarão, necessariamente, os julgamentos de outras pessoas. Uma pessoa com discernimento observará com interesse o que um autor inteligente fala sobre as impressões que uma obra de arte lhe provocou. Mas cabe ao arbítrio de cada homem determinar se ele deixará seu próprio julgamento ser influenciado pelo julgamento de outros homens, por mais primorosos que eles sejam.
A apreciação da arte e da literatura pressupõe certa disposição e suscetibilidade por parte do público. O gosto é inato apenas para alguns poucos; os outros devem cultivar a sua aptidão para esta apreciação. Existem muitas coisas que um homem deve aprender e viver para se tornar um connoisseur. No entanto, por mais que um homem possa se destacar como um especialista bem-informado, seus julgamentos de valor continuarão a ser pessoais e subjetivos. Os críticos mais eminentes, bem como os mais célebres escritores, poetas e artistas, discordavam enormemente em suas opiniões sobre as obras-primas mais famosas.
Apenas pedantes afetados podem conceber a ideia de que existem normas absolutas que dizem o que é belo e o que não é. Eles tentam extrair de obras do passado um código de regras que, segundo sua própria fantasia, os escritores e artistas do futuro devem obedecer. O gênio, no entanto, não colabora com o expert.
10. A Importância Histórica da Busca por Valores Absolutos
A controvérsia a respeito de valores não é uma disputa escolástica que interessa apenas a acadêmicos bizantinos. Ela lida com questões vitais da vida humana.
A visão de mundo que foi destituída pelo racionalismo moderno não tolerava julgamentos de valor discordantes. Uma mera discordância era considerada uma provocação insolente, um insulto mortal aos próprios sentimentos do outro. Seguiam-se então prolongadas guerras religiosas.
Embora ainda reste algum grau de intolerância, fanatismo e desejo de perseguição em assuntos religiosos, dificilmente a paixão religiosa desencadeará guerras no futuro próximo. O espírito agressivo de nossos tempos vem de outra fonte, dos esforços para tornar o estado totalitário e privar o indivíduo de sua autonomia.
É verdade que os defensores de programas socialistas e intervencionistas os recomendam apenas como um meio de atingir fins que eles têm em comum com todos os outros membros da sociedade. Eles acreditam que uma sociedade organizada de acordo com os seus princípios terá mais capacidade de fornecer às pessoas aqueles bens materiais que elas trabalham para adquirir. Qual situação pode ser mais desejável para uma sociedade do que a “fase mais elevada da sociedade comunista”, na qual, como Marx nos disse, a sociedade proverá “a cada um de acordo com suas necessidades”?
Os socialistas, no entanto, fracassaram totalmente nas suas tentativas de comprovar sua tese. Marx não soube refutar as objeções fundamentadas que foram feitas ainda durante sua vida sobre as pequenas dificuldades do projeto socialista. Foi sua impotência diante deste fato que o motivou a desenvolver as três doutrinas fundamentais de seu dogmatismo.[10] Quando, posteriormente, os economistas demonstraram porque uma ordem socialista, que não tem, necessariamente, qualquer método de cálculo econômico, jamais poderia funcionar como sistema econômico, todos os argumentos a favor da grande reforma ruíram. A partir daquele momento os socialistas deixaram de colocar suas esperanças no poder dos seus argumentos e passaram a colocá-las no ressentimento, na inveja e no ódio das massas. Mesmo hoje em dia, os adeptos do socialismo “científico” dependem exclusivamente deste apelo emocional. A base do intervencionismo e do socialismo contemporâneo são os julgamentos de valores. O socialismo é louvado como a única variante justa de organização econômica de uma sociedade. Todos os socialistas, marxistas ou não, advogam o socialismo como o único sistema condizente com uma escala de valores absolutos estabelecidos arbitrariamente. Estes valores, alegam, são os únicos valores que valem para todas as pessoas decentes, principalmente os trabalhadores, que formam a maioria da população numa sociedade industrial moderna. São considerados absolutos porque têm o apoio da maioria — e a maioria está sempre certa.
Uma visão um tanto superficial e rasa dos problemas do governo enxergou a distinção entre liberdade e despotismo numa característica externa do sistema de governo e administração, a saber, no número de pessoas que exercem controle direto sobre o aparato social de coerção e compulsão. Este padrão numérico é a base da célebre classificação feita por Aristóteles das diversas formas de governo. Os conceitos de monarquia, oligarquia e democracia ainda conservam esta maneira de lidar com o assunto. No entanto, sua inadequação é tão óbvia que nenhum filósofo consegue evitar a menção dos fatos que discordavam dele e que faziam com que fossem considerados paradoxais. Havia, por exemplo, o fato, bem conhecido inclusive pelos autores gregos, de que a tirania muitas vezes — ou até mesmo com frequência — contava com o apoio das massas e, neste sentido, era um governo popular. Autores modernos utilizaram o termo “cesarismo” para se referir a este tipo de governo, e continuaram a considerá-lo um caso excepcional, condicionado por circunstâncias peculiares; mas eles não foram capazes de explicar de maneira satisfatória o que estas condições tinham de excepcionais. Ainda assim, fascinados pela classificação tradicional, as pessoas se conformaram com esta interpretação superficial, enquanto parecia que ela servia para explicar apenas um caso na história europeia moderna, o segundo Império Francês. O colapso final da doutrina aristotélica veio apenas quando ela se deparou com a “ditadura do proletariado” e a autocracia de Hitler, Mussolini, Perón e outros sucessores modernos dos tiranos gregos.
O caminho rumo a uma distinção realista entre liberdade e servidão foi aberto há duzentos anos, pelo ensaio imortal de David Hume, Dos Primeiros Princípios do Governo. O governo, ensinou Hume, é sempre um governo dos muitos pelos poucos. Logo o poder, no fim das contas, está sempre do lado dos governados, e os governantes não têm nada para apoiá-los além da opinião. Esta percepção, seguida logicamente até a sua conclusão, mudou completamente a discussão a respeito da liberdade. Se a opinião pública é, enfim, responsável pela estrutura de governo, ela também é a agência que determina se existirá liberdade ou servidão. Existe praticamente apenas um fator que tem o poder de fazer com que as pessoas deixem de ser livres — uma opinião pública tirânica. A luta pela liberdade não consiste, portanto, da resistência a autocratas ou oligarcas, mas da resistência ao despotismo da opinião pública. Não se trata da luta dos muitos contra os poucos, mas das minorias — por vezes de uma minoria de um homem só — contra a maioria. A pior e mais perigosa forma de governo absolutista é o governo de uma maioria intolerante. Isto foi o que concluíram Tocqueville e John Stuart Mill.
Em seu ensaio sobre Bentham, Mill apontou porque este eminente filósofo não conseguiu ver a questão real e porque sua doutrina encontrou aceitação em alguns dos espíritos mais nobres. Bentham, segundo ele, viveu “numa época de reação contra os governos aristocráticos da Europa moderna”. Os reformistas de sua época “estavam acostumados a ver a maioria numérica, em todos os lugares, ser reprimida, pisoteada ou, na melhor das hipóteses, ignorada pelos governos”. Em tempos como estes era fácil se esquecer que “todos os países que permaneceram progressivos, ou foram grandes, durante um longo período de tempo, o conseguiram porque havia uma oposição organizada ao poder dominante, qualquer que fosse esse tipo de poder. (…) Quase todos os maiores homens que já viveram fizeram parte deste tipo de oposição. Sempre que este tipo de conflito não ocorreu — onde quer que ele tenha sido interrompido pela vitória total de um dos princípios envolvidos na contenda, e nenhuma nova disputa tenha tomado o lugar da antiga — a sociedade ou se solidificou na imobilidade chinesa ou entrou em decadência”.[11]
Muito do que havia de sólido nas doutrinas políticas de Bentham foi desprezado por seus contemporâneos, negado pelas gerações posteriores, e teve pouca influência prática. No entanto, seu fracasso na distinção correta entre despotismo e liberdade foi aceito sem qualquer hesitação pela maioria dos autores do século XIX. No seu ponto de vista, a verdadeira liberdade significava o despotismo desenfreado da maioria.
Sem ter a capacidade de pensar logicamente, e ignorando tanto a teoria quanto a história =, os tão admirados autores “progressistas” abriram mão da ideia essencial do Iluminismo: a liberdade de pensamento, expressão e comunicação. Nem todos eles eram tão francos quanto Comte e Lenin; mas todos, ao declarar que a liberdade significava apenas o direito de dizer as coisas certas, e não também o direito de dizer as coisas erradas, praticamente transformaram as ideias de liberdade de pensamento e expressão no seu oposto. Não foi o Silabo do Papa Pio IX que abriu o caminho para o retorno da intolerância e da perseguição aos dissidentes; foram os escritos dos socialistas. Após um triunfo efêmero da ideia de liberdade, a servidão voltou, disfarçada como consumação e conclusão da filosofia de liberdade, como acabamento da revolução incompleta, como emancipação final do indivíduo.
O conceito de valores absolutos e eternos é um elemento indispensável desta ideologia totalitária. Uma nova noção de verdade foi criada. A verdade é o que aqueles que estão no poder declaram ser verdade. A minoria dissidente não é democrática porque ela se recusa a aceitar como verdade a opinião da maioria. Todos os meios para se “liquidar” estes salafrários rebeldes são “democráticos” e, portanto, moralmente bons.
[1] Franz Brentano. Vom Ursprung sittlicher Erkenntnis, 2ª ed. Leipzig, 1921.
[2] Sobre esta controvérsia, ver Paul Barth, Die Philosophie der Geschichte als Soziologie (4ª ed. Leipzig, 1922), p. 289-292
[3] Louis Rougier, La Scholastique et le Thomisme (Paris, 1925), p. 102-5, 116-17, 460-562.
[4] Horace M. Kallen, “Behaviorism”, Encyclopaedia of the Social Sciences (Macmillan, 1930-35), 3, 498.
[5] Primus movens, tradução latina do termo grego ?????µe??? ???e?, que em português costuma ser traduzido como “primeiro motor” ou “primeiro movente”, é um conceito filosófico descrito por Aristóteles; segundo ele, seria a causa primária de todo o movimento no universo. Ele é responsável por mover todas as outras coisas, mas não é movido por qualquer outra ação anterior.
[6] Ver Mises, Ação Humana, capítulo III.
[7] Em Deutsche Kunst und Deutsche Politik, Sämtliche Werke (6ª ed. Leipzig, Breitkopf e Hartel), 8, 96.
[8] Epístola aos Romanos, 13:1.
[9] Até mesmo Kant. Ver Kritik der praktischen Vernunft, parte I, livro II, seção I (Insel-Ausgabe, 5, 240-1). Comparar com Friedrich Jodl, Geschichte der Ethik (2ª ed. Stuttgart, 1912), 2, 35-6.
[10] Mises, Socialism (nova edição, New Haven, Yale University Press, 1951), p. 15-16.
[11] F. R. Leavis (editor), Mill on Bentham and Coleridge (Nova York, Stewart, 1950), p. 85-7.