A anatomia do estado

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4. Como o estado transcende seus limites

Como Bertrand de Jouvenel sabiamente salientou, ao longo dos séculos os homens foram formando conceitos com o intuito de refrear e limitar o domínio estatal; e o estado, recorrendo aos seus aliados intelectuais, tem se mostrado capaz de transformar, um a um, todos estes conceitos em carimbos de legitimidade e virtude, anexando-os aos seus decretos e ações.  Originalmente, na Europa Ocidental, o conceito de soberania divina afirmava que os reis podiam governar apenas de acordo com a lei divina; os reis, entretanto, perverteram esse conceito e o transformaram em um carimbo de aprovação divina para qualquer ato real.  O conceito de democracia parlamentar começou como uma restrição popular ao domínio monárquico absoluto e terminou com o parlamento não apenas se tornando parte essencial do estado, como também a manifestação da plena soberania deste.  Tal como de Jouvenel conclui:

Muitos escritores interessados nas teorias da soberania se debruçaram sobre estes mecanismos restritivos.  Mas, por fim, cada uma destas teorias perdeu, mais cedo ou mais tarde, o seu propósito original e acabou por funcionar como um trampolim para o Poder, provendo-lhe a ajuda poderosa de um soberano invisível com o qual ele podia, com o passar do tempo, se identificar por completo.[xx]

O mesmo aconteceu com doutrinas mais específicas: os “direitos naturais” do indivíduo, consagrados por John Locke e pela Carta dos Direitos (Bill of Rights), converteram-se no estatista “direito a um emprego”; o utilitarismo abandonou seus argumentos em prol da liberdade e passou a se concentrar em argumentos contra a resistência aos ataques do estado à liberdade etc.

É certo que a mais ambiciosa tentativa de impor limites ao estado foi a Carta dos Direitos e outras partes restritivas da Constituição Americana, na qual foram escritos limites explícitos ao governo os quais deveriam servir como lei fundamental a ser interpretada por um sistema judicial supostamente independente dos outros ramos do governo.  Todos os americanos estão cientes do processo ao longo do qual esta construção de limites presentes na Constituição foi sendo alargada de modo inexorável durante o século passado.  Mas poucos foram tão perspicazes como o Professor Charles Black em notar que, neste processo, o estado transformou a própria revisão judicial, a qual, de um mecanismo limitador, passou a ser cada vez mais um instrumento que provê legitimidade ideológica às ações do governo.  Pois se um decreto judicial de “inconstitucionalidade” é um poderoso entrave ao poder do governo, um veredicto implícito ou explícito de “constitucionalidade” é uma arma poderosa para promover a aceitação pública de um crescente poder governamental.

O Professor Black começa a sua análise indicando a necessidade crucial da “legitimidade” para que qualquer governo sobreviva, sendo que esta legitimidade corresponde a uma aceitação majoritária básica do governo e de suas ações[xxi].  A aceitação da legitimidade torna-se um problema peculiar em um país como os Estados Unidos, em foram colocadas “limitações substanciais na teoria sobre a qual o governo se baseia”.  O que é preciso, acrescenta Black, é um meio pelo qual o governo possa assegurar ao público que a expansão dos seus poderes é, de fato, “constitucional”.  E isto, conclui, tem sido a principal função histórica da revisão judicial.

Deixemos Black ilustrar o problema:

A ameaça suprema [para o governo] é a ampla disseminação de um sentimento de ultraje e desafeição entre a população, e a consequente perda de autoridade moral por parte do governo, independentemente de quanto tempo ele consiga mantê-la pela força ou pela inércia ou pela simples falta de uma alternativa atraente e imediatamente disponível.  Quase todas as pessoas que vivem sob um governo com poderes limitados serão, cedo ou tarde, sujeitados a alguma ação governamental que, em sua opinião, consideram estar além do poder do governo ou mesmo totalmente proibida ao governo.  Um homem pode ser conscrito embora não encontre nada na Constituição autorizando o recrutamento para o serviço militar obrigatório ….  A um agricultor é dito o quanto ele pode produzir de trigo; ele acredita, e descobre que alguns advogados respeitáveis partilham desta crença de que o governo tem o direito tanto de lhe dizer o quanto de trigo ele pode produzir como de lhe dizer com quem é que a sua filha se pode casar.  Um homem vai para a cadeia por dizer o que quer e entra em sua cela proferindo …. “o Congresso não passará quaisquer leis que limitem a liberdade de expressão” …. A um comerciante é dito o quanto pode cobrar, e quanto tem de cobrar, por leite desnatado.

Existe uma ameaça real que cada uma destas pessoas (e quem não se encontra entre elas?) chegue a um momento em que irá confrontar o conceito de limite do poder governamental com a realidade (tal como a vê) da flagrante transgressão dos limites efetivos, e que tire a conclusão óbvia acerca do status do governo em relação à legitimidade.[xxii]

Esta ameaça é afastada pelo estado por meio da propaganda doutrinal de que uma agência terá de ter a decisão final no que diz respeito à constitucionalidade, e que esta agência, em última análise, terá de fazerparte do estado.[xxiii] Pois, embora a aparente independência do poder judicial tenha desempenhado um papel vital em fazer com que as suas ações pareçam sagradas para o grosso da população, é também — e cada vez mais — verdade que o poder judicial é uma parte essencial do aparato governamental e é designado pelos ramos legislativo e executivo.  Black admite que isto significa que o estado se colocou no papel de juiz de sua própria causa, violando assim o princípio jurídico básico de se procurar chegar a decisões justas.  Ele nega peremptoriamente a possibilidade de qualquer alternativa.[xxiv]

Black acrescenta:

O problema, então, é criar meios de decisão governamental que possam [esperamos] reduzir a um mínimo tolerável a intensidade da objeção ao governo ser juiz de sua própria causa.  Tendo feito isto, podemos apenas ter a esperança de que esta objeção, embora ainda teoricamente sustentável, perca força efetiva até o ponto em que o trabalho de legitimação das instituições de decisão possa ganhar aceitação.[xxv]

Em sua última análise, Black considera que, dado o fato de que o estado perpetuamente julga em sua própria defesa, ele conseguir desta forma chegar a decisões justas e legítimas seria “algo milagroso”.[xxvi]

Aplicando a sua tese ao famoso conflito entre a Corte Suprema e o New Deal, o Professor Black repreende de forma ríspida os seus companheiros pró-New Deal, pela sua falta de visão, que denunciaram a obstrução judicial:

A versão padrão da história entre o New Deal e a Suprema Corte, embora de certa maneira acurada, enfatiza a questão errada …. Concentra-se nas dificuldades e quase se esquece do resultado que acabou por ser produzido.  A consequência desta história foi que [e isto é o que eu gosto de enfatizar], após cerca de vinte meses a opor-se …. a Suprema Corte, sem uma única alteração na lei de sua autoria, ou sequer em seus membros, colocou o selo afirmativo de legitimidade no New Deal, chancelando uma concepção completamente nova de governo nos EUA.[xxvii]

Desta forma, a Suprema Corte foi capaz de silenciar a grande massa de americanos que vinha demonstrando fortes objeções constitucionais ao New Deal:

Claro que nem todos ficaram satisfeitos.  O mito do laissez-faireconstitucionalmente ordenado ainda acalenta o coração de alguns sonhadores na terra da irrealidade raivosa.  Mas já não há qualquer dúvida no público, perigosa ou significativa, quanto ao poder constitucional do Congresso para lidar como lida com a economia nacional….

Não havia qualquer outro meio, senão a Suprema Corte, para conceder legitimidade ao New Deal.[xxviii]

Como Black reconhece, um dos maiores teóricos políticos que constatou — e muito antes que outros — a brecha flagrante em fazer com que um limite constitucional ao governo esteja sob o poder de interpretação final da Suprema Corte foi John C. Calhoun.  Calhoun não se contentou com o “milagre”, e prosseguiu com uma profunda análise do problema constitucional.  No seu trabalho intitulado Disquisition, Calhoun demonstrou a tendência inerente do estado a ultrapassar os limites de uma constituição:

Uma constituição escrita certamente possui muitas vantagens importantes, mas é um erro crasso supor que a mera inserção de provisões para restringir e limitar o poder do governo, sem dotar aqueles para quem as provisões são inseridas com os meios para impor o seu cumprimento, [itálicos meus] será suficiente para prevenir que os partidos maiores e dominantes abusem dos seus poderes.  Uma vez na posse do governo, os partidos, pela mesma natureza humana que justifica a necessidade de um governo para proteger a sociedade, serão a favor dos poderes concedidos pela constituição e opor-se às restrições que visam limitá-los. … Os partidos mais fracos ou minoritários, pelo contrário, irão tomar a posição oposta e considerá-las [as restrições] como essenciais para a proteção contra a atuação do partido dominante. … Mas visto não haver meios pelos quais eles possam levar o partido maior a obedecer às restrições, o único recurso que sobra será o de manter uma interpretação estrita da constituição. … A isto o partido dominante irá opor-se com uma visão permissiva da constituição. … Será um jogo de interpretação contra interpretação — uma para contrair e a outra para alargar ao máximo o domínio do governo.  Mas qual o benefício da visão rigorosa do partido minoritário face à visão permissiva do partido majoritário quando este tem todo o poder do governo para colocar em prática a sua visão ao passo que o primeiro se encontra privado de qualquer meio para concretizar a sua visão?  Em uma disputa tão desigual, o resultado não será difícil de prever.  O partido a favor das restrições será derrotado. … O final da disputa será a subversão da constituição. … as restrições serão por fim anuladas e o governo será convertido em um governo com poderes ilimitados.[xxix]

Um dos poucos cientistas políticos que valorizou a análise de Calhoun foi o Professor J. Allen Smith.  Smith notou que a Constituição foi concebida com um sistema de pesos e contrapesos para limitar qualquer poder governamental; contudo, foi criada uma Suprema Corte com o monopólio sobre o poder final de interpretação.  Se o Governo Federal foi criado para limitar as invasões da liberdade individual por parte de cada estado, quem é que limita o poder Federal?  Smith sustenta que, implícita na ideia de um sistema de pesos e contrapesos da Constituição, está a concomitante visão de que não se pode conceder a nenhum ramo do governo o poder final de interpretação: “O povo assumiu que ao novo governo não seria permitido determinar os limites da sua própria autoridade, uma vez que isto tornaria o próprio governo, e não Constituição, supremo.[xxx]

A solução proposta por Calhoun (e apoiada, no século XX, por escritores como Smith) foi, claro, a famosa doutrina da “maioria concomitante”.  Se qualquer interesse minoritário substancial, especificamente um governo estadual, acreditasse que o Governo Federal estivesse excedendo seus poderes e sobrepondo-se a esta minoria, a minoria teria o direito de veto deste exercício de poder baseando-se na sua inconstitucionalidade.  Aplicado aos governos estaduais, esta teoria implicava o direito à “anulação” da lei ou decisão federal dentro da jurisdição de um determinado estado.

Teoricamente, o sistema constitucional resultante assegurava que o governo federal colocasse entraves a qualquer invasão dos estados aos direitos individuais, ao passo que os estados restringiriam o poder federal excessivo sobre o indivíduo.  No entanto, embora as limitações fossem naquela época mais eficazes do que são atualmente, há muitas dificuldades e problemas na solução de Calhoun.  Se, de fato, um interesse subordinado deve legitimamente ter o poder de veto sobre um assunto que lhe diz respeito, por que parar nos estados?  Por que não colocar o poder de veto nos municípios, nas cidades, nos bairros?  Além do mais, os interesses não são apenas regionais, mas também profissionais, sociais etc.  E quanto aos padeiros ou os taxistas ou qualquer outra profissão?  Não deveriam eles poder vetar qualquer legislação que afete suas próprias vidas?

Isto nos leva a um ponto crucial: a teoria da anulação confina suas restrições às próprias agências do governo.  Não esqueçamos que os governos federal e estaduais, e os seus respectivos ramos, são ainda estados, e, como tal, são ainda guiados pelo seu interesse estatal próprio e não pelos interesses dos cidadãos civis.  O que impede que o sistema de Calhoun funcione de forma contrária, com os estados tiranizando os seus cidadãos e vetando o governo federal sempre que este tente intervir no sentido de restringir essa tirania?  Ou de os estados estaduais se alinharem à tirania federal?  O que impede os governos estaduais e o governo federal de formarem alianças mutuamente lucrativas para explorarem em conjunto os cidadãos?  E mesmo que as associações profissionais privadas ganhassem algum tipo de representação “funcional” no governo, o que impediria que elas utilizassem o estado para obter subsídios e outros privilégios para si mesmas ou para se imporem compulsivamente aos seus próprios membros?

Em resumo, Calhoun não leva a sua inovadora teoria da concordância suficientemente longe: ele não a leva até ao próprio indivíduo.  Se, afinal, são os direitos do indivíduo que devem ser protegidos, então uma teoria da concordância implicaria que o poder de veto pertencesse a cada indivíduo; ou seja, uma forma de “princípio da unanimidade”.  Quando Calhoun escreveu que seria “impossível instituir ou manter [um governo] sem o consentimento de todos”, ele estava implicitamente, ainda que não intencionalmente, sugerindo justamente esta conclusão.[xxxi]  Mas tal especulação começa a nos levar para longe do assunto em questão, pois indo por este caminho encontramos sistemas políticos que dificilmente poderiam ser chamados “estatais”.[xxxii]  Para começar, assim como o direito de anulação de um estado implica logicamente o seu direito à secessão, também o direito de anulação individual implicaria o direito de qualquer indivíduo se “separar” do estado sob o qual vive.[xxxiii]

Portanto, o estado tem invariavelmente demonstrado um talento exímio para a expansão dos seus poderes para além de quaisquer limites que possam lhe ser impostos.  Uma vez que o estado sobrevive necessariamente do confisco compulsório do capital privado, e uma vez que a sua expansão envolve necessariamente uma incursão cada vez maior sobre indivíduos e empresas privadas, é imperativo afirmar que o estado é uma instituição profunda e inerentemente anticapitalista.  Em certo sentido, a nossa posição é o inverso da máxima marxista que diz que o estado é atualmente o “comitê executivo” da classe dominante, supostamente os capitalistas.  Ao contrário, o estado — a organização dos meios políticos — é constituído pela — e é a fonte da — “classe dominante” (ou melhor, casta dominante) e está em permanente oposição ao capital genuinamente privado. Podemos, portanto, concordar com Jouvenel:

Apenas aqueles que nada sabem sobre outras épocas senão a sua, que estão completamente às escuras quanto ao modo de funcionamento do Poder desde há milhares de anos, verão estes procedimentos [estatização, imposto de renda etc.] como o fruto de um conjunto particular de doutrinas.  Estas são, na realidade, as manifestações normais do Poder, e em nada diferem na sua natureza em relação aos confiscos dos mosteiros realizados por Henrique VIII. É o mesmo princípio em operação; o apetite por autoridade, a sede por recursos; e em todas estas operações estão presentes as mesmas características, inclusive o rápido crescimento daqueles que dividem os espólios.  Seja Socialista ou não, o Poder tem sempre de estar em guerra com as autoridades capitalistas e despojar os capitalistas da sua riqueza acumulada; ao fazê-lo, obedece às leis da sua própria natureza.[xxxiv]

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