A grande depressão americana

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Introdução à quinta edição

O colapso de Wall Street de setembro e outubro de 1929 e a Grande Depressão que se seguiu estão entre os mais importantes acontecimentos do século XX.  Eles possibilitaram a Segunda Guerra Mundial, ainda que não a tivessem tornado inevitável — e, ao minar a confiança na eficácia do mercado e do sistema capitalista, ajudaram a explicar por que o comunismo soviético, sistema absurdamente ineficiente e assassino, sobreviveu por tanto tempo.  Com efeito, seria possível afirmar que as derradeiras consequências emocionais e intelectuais da Grande Depressão só foram finalmente apagadas da mente da humanidade no fim da década de 1980, quando a alternativa coletivista soviética desfez-se em ruínas sem esperança, e o mundo inteiro aceitou que não havia substituto para o mercado.

Diante da importância desses acontecimentos, a incapacidade dos historiadores de explicar sua magnitude ou duração é um dos grandes mistérios da historiografia moderna.  A queda de Wall Street em si não foi extraordinária de modo algum, para começar.  Com a ajuda da inflação criada pelos banqueiros e pelo governo federal, a economia dos Estados Unidos vinha crescendo rapidamente desde o último declínio em 1920. Assim, já era hora, e mais do que hora, de um ajuste.  De fato, a economia já havia parado de crescer em junho, e era inevitável que essa mudança na economia real se refletisse na bolsa de valores.

A alta do mercado havia efetivamente terminado em 3 de setembro de 1929, imediatamente após os operadores mais argutos terem voltado das férias e olhado atentamente os números que estavam por baixo.  As altas posteriores não foram mais do que soluços numa tendência de queda contínua.  Na segunda-feira, 21 de outubro, pela primeira vez, a fita do teleimpressor não conseguiu mais acompanhar as notícias das quedas.  Os pedidos de cobertura de posição haviam começado a ser feitos por telegrama no sábado anterior, e no começo da semana os especuladores começaram a perceber que poderiam perder suas economias e até suas casas.  Na quinta, 24 de outubro, as ações sofreram uma queda vertical, porque ninguém comprava: os especuladores não tinham mais o que vender e não conseguiam fazer a cobertura adicional. Então veio a Terça-Feira Negra, 29 de outubro, e a primeira venda de ações fortes para tentar conseguir a liquidez de que se precisava tão desesperadamente.

Até aí tudo era explicável e poderia ter sido previsto com facilidade.  Esse ajuste específico da bolsa de valores estava fadado a ser drástico por causa da especulação sem precedentes que as regras de Wall Street permitiam naquele momento.  Em 1929, 1.548.707 clientes tinham contas nas 29 bolsas de valores americanas.  Numa população de 120 milhões de pessoas, quase 30 milhões de famílias tinham uma associação ativa com a bolsa, e um milhão de investidores poderiam ser considerados especuladores.  Além disso, desses, quase dois terços, ou 600 mil, estavam negociando na conta margem — isso é, estavam operando com fundos que não possuíam ou que não tinham como obter com facilidade.

O risco desse crescimento nas operações na conta margem foi agravado pela rápida expansão de fundos de investimento que marcou a última fase da alta do mercado.  As ações costumavam ser valoradas em dez vezes o valor dos rendimentos.  Com o grande volume de operações na conta margem, os rendimentos das ações, de apenas 1% ou 2%, eram muito inferiores aos juros de 8% ou 10% dos empréstimos usados para comprá-las.  Isso significava que quaisquer lucros vinham exclusivamente de ganhos de capital. Assim, aRadio Corporation of America, que jamais havia pago qualquer dividendo, subiu de 85 para 410 pontos em 1928. Em 1929, algumas ações estavam sendo vendidas a 50 vezes o valor dos rendimentos.

Um boom do mercado baseado integralmente em ganhos de capital não passa de um esquema de pirâmide.  Ao fim de 1928, os novos fundos de investimento estavam chegado ao mercado à razão de um por dia, e praticamente todos seguiam o arquétipo de pirâmides invertidas.  Eles apresentavam “alta alavancagem” — um termo novo em 1929 — graças a seus investimentos supostamente perspicazes, e garantiram um crescimento fenomenal à bolsa de valores com uma base muito pequena de crescimento real. Por exemplo, aUnited Founders Corporation havia sido criada por um indivíduo falido com um investimento de apenas US$ 500, e em 1929 seus recursos nominais declarados, que determinavam o preço de suas ações, já estavam em US$ 686.165.000,00.  Uma outra empresa de investimentos tinha um valor de mercado de mais de um bilhão de dólares, mas seu principal ativo era uma companhia de luz que em 1921 valia apenas US$ 6 milhões. Esses fundos malucos, cujos ativos eram quase inteiramente compostos de papéis dúbios, deram ao boom uma superestrutura adicional de pura especulação; e, quando o mercado quebrou, a “alta alavancagem” funcionou ao contrário.

Por isso, o despertar do sonho tinha necessariamente de ser doloroso, e não surpreende que, ao fim do dia 24 de outubro, onze homens conhecidos de Wall Street haviam cometido suicídio.  O pânico imediato arrefeceu em 13 de novembro, quando o índice de pontos já havia caído de 452 para 224.  Foi um grande ajuste, mas é preciso lembrar que, em dezembro de 1928, o índice estava em 245, somente 21 pontos a mais.  Os declínios na bolsa de valores e nos empreendimentos possuem propósitos econômicos essenciais.  Eles têm de ser agudos, mas não necessariamente longos, porque se ajustam sozinhos. Tudo o que eles demandam do governo, da comunidade empresarial e do público é paciência.  A profunda recessão de 1920 foi corrigida em apenas um ano. Não havia razão para a recessão de 1929 ter demorado mais, porque a economia americana era fundamentalmente sólida. Se o governo permitisse que a recessão se ajustasse sozinha, como teria ocorrido ao fim de 1930, considerando as recessões anteriores, a confiança teria retornado e a queda mundial não precisaria jamais ter ocorrido.

Em vez disso, o mercado de ações se tornou um motor de destruição, levando a nação inteira à ruína e, em sua crista, o mundo.  Em 8 de julho de 1932, o índice de tendências da indústria do New York Times[1] havia caído de 224, ao fim do pânico inicial, para 58. A U.S. Steel, a maior e mais eficiente siderúrgica do mundo, que estava em 262 pontos antes de o mercado quebrar em 1929, estava agora em apenas 22.  A General Motors, que já era um dos grupos industriais de maior sucesso e mais bem geridos do mundo, havia caído de 73 para 8.  Essas quedas calamitosas foram gradualmente refletidas na economia real.  A produção da indústria, que estava em 114 em agosto de 1929, estava em 54 em março de 1933, uma queda de mais da metade, enquanto os bens duráveis caíram 77%, quase quatro quintos.  O setor de construção caiu de US$ 8,7 bilhões em 1929 para US$ 1,4 bilhão em 1933.

No mesmo período, o desemprego cresceu de meros 3,2% para 24,9% em 1933, e 26,7% no ano seguinte. Houve um momento em que 34 milhões de homens, mulheres e crianças não possuíam renda nenhuma, e essa cifra excluía as famílias rurais, que também sofreram um golpe duríssimo. As rendas urbanas desabaram, escolas e universidades fecharam ou faliram, e a subnutrição subiu 20%, algo que nunca havia acontecido antes na história dos Estados Unidos — nem nas épocas difíceis dos assentamentos dos colonos.

Esse padrão se repetiu por todo o mundo industrial.  Foi a pior crise da história humana, e a mais prolongada.  De fato, não houve recuperação natural.  A França, por exemplo, só recuperou um nível de produção industrial semelhante ao de 1929 na metade da década de 1950. A economia mundial só voltou a se aquecer em decorrências dos preparativos para guerra.  A primeira grande economia a se revitalizar foi a alemã, que, com o advento do regime nazista de Hitler em janeiro de 1933, iniciou imediatamente um programa de rearmamento.  Em um ano havia pleno emprego na Alemanha. Nenhuma das outras economias teve a mesma sorte. A Grã-Bretanha começou a rearmar-se em 1937, e a partir desse momento o desemprego caiu gradualmente, apesar de ainda estar em níveis historicamente altos quando a guerra estourou em 3 de setembro de 1939.  Essa foi a data em que Wall Street, contando com lucrativas vendas de armas e a entrada dos Estados Unidos na guerra, finalmente retornou aos preços de 1929.

Trata-se de uma história horrenda, e não acho que historiador algum a tenha explicado satisfatoriamente.  Por que foi tão profunda?  Por que durou tanto?  Até hoje não sabemos efetivamente.  Mas o autor que, em minha opinião, chegou mais perto de oferecer uma análise satisfatória foi Murray N. Rothbard em A grande depressão americana.  Por meio século, a explicação convencional e ortodoxa, dada por John Maynard Keynes e seus seguidores, era a de que o capitalismo era incapaz de salvar-se de si próprio, e que o governo não fez o suficiente para salvar um sistema de mercado intelectualmente falido das consequências de seus próprios disparates.  Essa análise foi parecendo cada vez menos convincente à medida que os anos passavam, sobretudo porque o próprio keynesianismo foi se tornando desacreditado.

Nesse ínterim, Rothbard produziu, em 1963, sua própria explicação, que virou do avesso a explicação convencional.  Ele defendia que a severidade do crash de Wall Street não foi devida à licenciosidade irrestrita de um sistema capitalista bandido, mas à insistência do governo em manter artificialmente o boom expandindo o crédito de maneira inflacionária.  As ações continuaram a cair e a economia real entrou em queda livre não porque o governo interferiu pouco, mas porque interferiu demais.  Rothbard foi o primeiro a afirmar, nesse contexto, que o espírito dos tempos na década de 1920, e ainda mais na de 1930, era o de que o governo deveria planejar, intrometer-se, mandar e exortar.  Era a ressaca da Primeira Guerra Mundial, e o presidente Hoover — que havia adquirido fama no mundo inteiro durante a guerra gerenciando programas de assistência, e depois ocupou importantes posições na área econômica ao longo dos anos 1920, até instalar-se na própria Casa Branca em 1929 — era um planejador intrometido, mandão e exortador.

O único departamento do governo federal americano que cresceu constantemente em cifras e em poder durante a década de 1920 foi o de Hoover, e ele constantemente instava os presidentes Harding e Coolidge a assumir um papel mais ativo no gerenciamento da economia.  Coolidge, um verdadeiro minimalista em termos de governo, havia reclamado: “Por seis anos esse homem veio me dar conselhos que eu não pedi — todos péssimos.”  Quando Hoover finalmente assumiu a Casa Branca, ele seguiu seu próprio conselho, e fez dela um motor de interferência, primeiro injetando mais crédito numa economia já superaquecida e, depois, quando a bolha estourou, fazendo tudo que podia para organizar operações governamentais de resgate.

Graças às intuições de Rothbard, agora vemos que o período Hoover-Roosevelt foi na verdade um continuum, que a maioria das “inovações” do New Deal foram na verdade expansões ou intensificações das soluções de Hoover, ou pseudossoluções, e que o governo de Franklin Delano Roosevelt distinguiu-se do de Herbert Hoover em apenas dois aspectos relevantes — teve infinitamente mais sucesso em cuidar de suas relações públicas, e esbanjou muito mais dinheiro dos pagadores de impostos.  E, segundo os argumentos de Rothbard, o efeito líquido do continuum Hoover-Roosevelt de políticas públicas foi o de piorar a crise e prolongá-la quase até o fim da década de 1930.  A Grande Depressão foi uma falha do estado hiperativo, não do capitalismo.Não estragarei o prazer do leitor me aprofundando ainda mais nos argumentos de Rothbard.  Seu livro é um tour de force intelectual, por consistir, do começo ao fim, na sustentação de uma tese, a qual é apresentada com lógica implacável, exemplos abundantes e grande eloquência.  Conheço poucos livros que tornem tão vívido o mundo da história econômica, e que contenham tantas lições convincentes, válidas ainda hoje. O livro é também uma rica mina de conhecimentos misteriosos e interessantes, e insto os leitores a explorar suas notas de rodapé, que contêm muitas citações deliciosas dos grandes e dos tolos daqueles dias de três quartos de século atrás.  Não surpreende que o livro esteja chegando a mais uma edição.  Ele superou bem a prova do tempo, até mesmo com certa graça, e sinto-me honrado por ter sido convidado a apresentá-lo a uma nova geração de leitores.

 

Paul Johnson

1999


[1] N. do T.: “New York Times industrials” no original. Trata-se de um índice feito pelo jornal com 25 ações para verificar tendências na indústria americana.

 

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