V Doutrina de Marx interpretada por seus sucessores
Salvo equívoco, o terceiro volume da doutrina marxista é o começo do fim da teoria do valor do trabalho. A dialética de Marx sofreu um abalo tão evidente que mesmo seus seguidores vacilaram na sua fé cega. Sinais desse abalo começam, desde já, a aparecer na literatura. No momento, trata-se de tentativas de salvar, através de reinterpretações, uma doutrina que já não consegue manter-se em sua forma original.
- Reinterpretação de, Werner Sombart
Recentemente surgiram vários prenúncios de tais reinterpretações, por parte de teóricos sérios. Werner Sombart admitiu claramente que a lei do valor de Marx não se mantém quando exigimos que corresponda à realidade empírica. Mas pretende interpretar a doutrina marxista dizendo que seu “conceito de valor” deve ser apenas “um auxiliar de nosso raciocínio”. O valor, em Marx, não apareceria nem na relação de troca das mercadorias produzidas no método capitalista, nem teria papel algum como fator de distribuição do produto anual nacional. Seria apenas um conceito auxiliar do raciocínio, para conceber como grandezas quantitativas os bens de uso não comensuráveis devido à sua diversificação qualitativa, tornando-os assim comensuráveis em nosso pensamento. Nessa função, tal conceito poderia ser mantido [1].
Creio, e já manifestei essa opinião em outros lugares [2], que essa sugestão é totalmente inaceitável para ambos os lados. Por entrar em conflito com as palavras mais óbvias de Marx, não pode satisfazer aos marxistas [p. 308]: porque, materialmente, contém uma aceitação total da doutrina marxista — uma vez que se trata de uma teoria que, admitidamente, não está de acordo à realidade -, não serve para explicar e avaliar as condições reais. No terreno marxista já se ouvem vozes decididamente contrárias a tudo isso [3].
Por sua vez, o estudioso imparcial, que analisa tudo com exigências puramente teóricas, também não se pode satisfazer com tal doutrina, pois os conceitos auxiliares com que o teórico opera, embora possam fazer abstração da realidade, não podem conflitar com ela. Por isso, considero que a tentativa de reinterpretação de Sombart dificilmente conseguirá muitos defensores e simpatizantes.
- Reinterpretação de Konrad Schmidt
Presumivelmente, a segunda tentativa de reinterpretação, que Konrad Schmidt apresentou recentemente, oferece mais matéria de discussão literária. Num comentário de respeitável objetividade e imparcialidade sobre meu já mencionado texto Zum Abschluss des Marxschen Systems, Schmidt concluiu que a lei de valor de Marx na verdade perdia, pelos fatos provados no terceiro volume, o significado “que parecia ter segundo o Volume I de O Capital — contra o qual se dirigira minha crítica — embora com isso ganhasse um novo sentido, mais profundo, que apenas teria de ser elaborado no seu contraste com a concepção original da lei do valor”. Através de uma “reinterpretação” da teoria do valor, feita de uma maneira “que o próprio Marx não expressou claramente”, seria possível, “ao menos em princípio”, superar as contradições que eu tinha apontado. E Schmidt indica já as linhas básicas para essa mudança de interpretação.
Ele diz que preço e tempo de trabalho são grandezas mensuráveis. Em si, pode-se pensar numa dupla relação entre ambos. “Ou o preço se orienta diretamente pelo tempo de trabalho contido na mercadoria, ou certas regras, formuláveis ao menos num sentido geral, prevêem um desvio da norma dessa relação direta.” Como esta segunda alternativa é tão concebível quanto a primeira, dever-se-ia considerar a lei do valor, baseada na primeira delas, só como hipótese, “cuja confirmação ou nova modificação será tarefa de novas pesquisas concretas”. Os dois primeiros volumes de Marx desenvolvem “a simples hipótese original com todas as suas consequências”, para assim chegar “a um quadro detalhado da economia capitalista exploradora, do modo como esta se apresentaria caso houvesse coincidência direta de preço e tempo de trabalho. Mas esse quadro, embora “espelhe” a realidade capitalista, em seus traços básicos, contradiz, em certo sentido, seus traços e por isso — como se vê no terceiro volume — é preciso que se faça uma modificação daquela hipótese, “anulando a contradição parcial entre ela e a realidade”. “A simples regra da coincidência entre os dois fatores — necessária para uma orientação de momento — só pode ser mudada quando se diz que os preços reais [p. 309] se desviam daquela norma pressuposta a partir de uma regra geral.” Por esse descaminho — e apenas por ele — se poderia reconhecer e conceber em detalhes não só a verdadeira relação entre os preços e o tempo de trabalho, mas também o verdadeiro processo da exploração que caracteriza o modo de produção capitalista [4].
Não posso fazer, para essa tentativa de reinterpretação, prognóstico mais favorável do que o que fiz para os originais marxistas. K. Schmidt, sendo o dialético perspicaz que é, poderá, ao elaborar melhor esse esboço de doutrina, apresentá-la com muitos argumentos convincentes e hábeis torneios. Mas, com toda a arte de apresentação e de argumentação, ele não poderá evitar dois obstáculos objetivos, previsíveis desde o esboço desse seu programa. Tal reinterpretação comete um pecado metodológico de ação e omissão, que já agora aparece em seu programa: uma petitio principii* contraditória, e a precariedade do ponto de partida.
Uma petitio principii contraditória: coloquemo-nos no ponto de vista que Schmidt nos convida a assumir. Encaremos, por enquanto, a “lei de valor” — segundo a qual a relação de trocas de mercadorias se determina só pelo trabalho nelas contido — como mera hipótese, ainda não justificada. Por enquanto, essa lei está sendo testada pela análise mais detida dos fatos. Como termina esse teste?
Admite-se abertamente que a hipótese não se confirma. Aliás, pelo contrário, é preciso aceitar que a quantidade de trabalho não é o único motivo determinante dos preços que o dono das mercadorias recebe. Se lembrarmos que a “exclusividade” da influência do trabalho — sua influência parcial é admitida em todas as teorias do trabalho — é exatamente aquele traço característico e distintivo da teoria do valor de Marx, vê-se que a “confirmação não absoluta” nesse caso significa não confirmação da hipótese, no seu único ponto essencial.
Continuo minha indagação: com que direito Schmidt pode postular, nessas condições, não só que a hipótese, não confirmada em seu cerne, “espelha a realidade capitalista em seus traços fundamentais”, como também que o ganho em juros, que cabe aos capitalistas, repousa basicamente numa “verdadeira exploração dos trabalhadores”? Se Schmidt apresentasse quaisquer outras ponderações que provassem o caráter explorador do juro, naturalmente teríamos de verificá-las. Mas Schmidt não corrobora esses fundamentos, e nem poderia fazê-lo, como veremos adiante. Sua única defesa para a tese de que o lucro tem um caráter explorador está na hipotética lei do valor. Ora, nessa hipótese, o caráter explorador do lucro [p. 310] tem origem unicamente na ideia de que o trabalho é a causa exclusiva do valor de troca, bem como da magnitude desse valor. Só se nenhum átomo do valor de troca pudesse ter outra origem que não o trabalho, ficaria provado que uma parcela de valor que um não trabalhador recebe só pode existir às custas do trabalhador, constituindo-se em ganho de exploração. Mas, a partir do momento em que se admite que o valor de troca das mercadorias nem sempre equivale à quantidade de trabalho nelas aplicada, fica claro, também, que, na formação do valor de troca, entra outro fator causal que não o trabalho. E, então, já não se pode afirmar que a parcela de valor que recai para o capitalista brota da exploração dos trabalhadores pois, possivelmente — e até provavelmente — essa parcela procede daquela outra causa de valor que concorre com o trabalho e sobre cuja natureza nada sabemos ao certo. A justificativa para, com base na hipótese da “lei de valor”, se considerar o juro de capital como exploração, surge e cai com a verificação total e plena dessa mesma hipótese. O enfraquecimento parcial da tese já tira seu sustentáculo, porque ela se enraíza exatamente na parte não provada da hipótese, que é a pressuposição de que o trabalho é a causa exclusiva de valor de troca. Partindo da suposição precária de que a hipótese da exploração “espelharia a realidade capitalista em seus traços básicos”, como se fosse um princípio sólido, que surgisse de uma parte comprovada da lei do valor, Schmidt comete uma óbvia petitio principii.
E essa petitio principii é agravada por uma contradição. A simples pressuposição, não provada, do caráter explorador do juro ainda não conduz Schmidt ao seu objetivo. Ao contrário, ele é obrigado a tratar, ora como válido, ora como não válido, o princípio falso de que a grandeza de valor de troca depende só da quantidade de trabalho, e é forçado a fazer isso pelo raciocínio lógico que o deveria levar à explicação do verdadeiro fenômeno do juro. Não basta explicar a origem do juro, é preciso explicar sua percentagem. Schmidt, junto com o Marx do terceiro volume, diz que a porcentagem do juro é determinada a partir da distribuição igual da massa total da mais-valia, obtida pelo capitalista, segundo a lei de equiparação dos ganhos sobre todos os capitais investidos, na proporção de seu montante e do tempo de investimento. Para poder tornar convincente essa parte de sua explicação. Schmidt admite, expressamente, que a hipótese da lei do valor — de que as mercadorias se trocam na proporção do trabalho nelas corporificado — não corresponde à realidade e não é uma verdade confirmada [p. 311].
Mas isso não basta para explicar a porcentagem do lucro. É preciso supor — e explicar — as cifras do dividendo obtido com distribuição igual, ou a cifra total da mais-valia obtida pelo capitalista através da exploração. Para essa parte da sua explicação Schmidt supõe — com o Marx dos três volumes — que os capitalistas conseguem, para as mercadorias que mandaram produzir com trabalho alheio, um valor de troca inteiramente correspondente ao que foi a elas atribuído naquela hipótese da lei do valor, ou seja, um valor que corresponderia exatamente ao número de horas de trabalho corporificadas nas mercadorias. Portanto, em duas fases de um só raciocínio, ele trata a lei do valor ora como válida, ora como falsa. Isso nos faria pensar mais, nos faria imaginar que as duas fases do raciocínio explicativo correspondessem a duas fases separadas nos fatos reais. Isso seria possível se a formação da mais-valia se desse num processo isolado, e a distribuição dessa mais-valia em outro, independente. Mais ou menos como acontece em relação aos ganhos de uma sociedade anônima, que, apesar de terem sua origem e cifra determinadas a partir dos negócios daquele ano, são distribuídos, num ato posterior, conforme uma resolução tomada em reunião de diretoria. Não é assim com a mais-valia dos capitalistas. Sua origem e distribuição, segundo a doutrina de Marx e Schmidt, não acontecem em dois atos diversos, mas num único fato, que é a constituição do valor de troca das mercadorias. A mais-valia forma-se na maneira e no montante dados por Marx, porque o valor de troca das mercadorias obtido pelos empresários capitalistas é determinado unicamente pelo tempo de trabalho nelas corporificado. E é distribuído, também, da maneira afirmada por Marx, porque esse mesmo valor de trabalho não depende unicamente do tempo de trabalho! Portanto, textualmente, diante do mesmo fato, que é a formação do valor de troca de mercadorias, pode-se afirmar, ao mesmo tempo, que a lei do valor é uma realidade empírica plena, e que não é uma hipótese correta!
Os marxistas gostam de se amparar em analogias com as leis e hipóteses das ciências naturais, cuja eficácia empírica também sofre certas modificações em função de obstáculos inibidores, sem que, por isso, a lei deixe de ser correta. Se, por exemplo, a lei da gravidade fosse absoluta, a queda dos corpos seria bem diferente do que é, pois [p. 312] esta queda sofre a influência da resistência do ar. Mas a lei de gravidade é uma lei verdadeira, legítima, científica. Da mesma forma sucederia com a “lei do valor”. A lei estaria certa, mas na prática sua eficácia ficaria deformada pela existência do capitalismo privado, que exige uma porcentagem de lucro. Assim como a resistência do ar impede que os corpos em queda assumam a velocidade prevista pela lei da gravidade, da mesma forma a influência do capitalismo privado, com sua exigência de juros iguais, impede que o valor de troca das mercadorias se harmonize inteiramente com as quantidades de trabalho.
É uma comparação defeituosa. O silogismo marxista revela uma excrescência que não ocorre no impecável silogismo dos físicos. Os físicos têm certeza de que a gravidade é a única causa da velocidade de queda dos corpos no vácuo. Mas também sabem que essa velocidade na atmosfera é efeito de várias causas, evitando, por isso, fazer afirmações que só seriam válidas caso a gravidade agisse isoladamente. Com os marxistas, é diferente. Mesmo depois de terem incluído na hipótese a existência do capital privado — em analogia à resistência do ar — continuam afirmando, como vimos, que a quantidade total de mais-valia depende do valor de troca das mercadorias, que por sua vez sofre influência exclusiva das quantidades de trabalho nelas incorporadas. E é só a partir da explicação da distribuição do valor total sobre as parcelas isoladas do capital que eles começam a lembrar-se de que outra causa também concorre para isso. É como se os físicos afirmassem que também na atmosfera a velocidade total de um corpo em queda é igual à que seria no vácuo, só que, na atmosfera, ela se distribui sobre as várias camadas numa proporção diversa do que ocorre no vácuo!
Os físicos têm um bom motivo para presumir que, ao menos no vácuo, a queda dos corpos ocorreria exatamente como dita a lei da gravidade. Os marxistas, ao contrário, não têm um bom motivo — nem mesmo um mau motivo — para acreditarem analogamente que, sem capitalismo privado, o valor de troca das mercadorias seria determinado exatamente pela pretensa lei do valor do trabalho: eles simplesmente não têm motivo algum para afirmar isso. E assim chegamos ao segundo pecado capital do programa de Schmidt, acima mencionado: a textual precariedade do seu ponto de partida.
Creio que os marxistas vão longe demais com a “hipótese” do valor do trabalho. Certamente essa hipótese nada contém que seja a priori inconcebível ou impossível. Mas isso não basta para fazer de uma hipótese o alicerce de uma teoria séria. A priori, não é inconcebível que o valor de troca repouse no peso específico dos corpos! Mas também não é possível, com bases sólidas, dizer que podemos considerar válida uma hipótese enquanto não conseguirmos provar literal e palpavelmente o que ela contém. Eu poderia, por exemplo, levantar a hipótese de que todo o universo [p. 313] está cheio de incontáveis duendes invisíveis, grandes e pequenos, que puxam e apertam os corpos, e com isso provocam aquele fenômeno que os físicos — por meio de outra hipótese — atribuem à gravidade da matéria. Qualquer teórico do conhecimento há de admitir que não é possível uma objeção estrita daquela hipótese fantástica, por mais fantástica que ela seja — ou, pelo menos, que esta objeção não é possível a partir dos nossos meios de conhecimento. Nunca se poderá provar que existem esses gnomos que puxam e apertam. Quando muito poderemos dizer que sua existência é extremamente improvável. No entanto, haveriam de rir de mim, com toda a razão, se eu preferisse essa hipótese apenas por não lhe terem ainda feito qualquer objeção eficaz. É evidente — e essa foi sempre a postura da ciência — que só pode haver pesquisa científica séria sobre uma hipótese que tenha algum fundamento positivo que a torne ou uma boa hipótese, ou, ao menos, aquela relativamente melhor.
Ora, na presente fase do debate, a hipótese de que o valor do trabalho das mercadorias se fundamenta apenas no trabalho nelas corporificado não tem, a seu favor, fundamento algum.
Certamente, não é um daqueles axiomas evidentes, que dispensam provas, e já vimos isso anteriormente. A única tentativa de lhe dar alguma comprovação interna, a tentativa de Marx, fracassou. Aparentemente Schmidt também desistiu, por causa do fracasso. Aliás, parece exagero querer nos fazer crer que é uma necessidade imanente de cada troca de mercadoria, que sejam trocadas quantidades iguais de trabalho, quando o próprio Marx, em seu terceiro volume provou que, em certas condições, é preciso igualar quantidades desiguais de trabalho numa troca! Por outro lado, essa teoria não apresenta conformidade com os fatos empíricos, coisa que eventualmente poderia substituir uma fundamentação interna:precisa ser substituída sempre que os fatos fogem à análise. Ao contrário, como já comentei amplamente, a experiência revela inúmeras contradições flagrantes, e, de qualquer forma, não é possível encontrar coincidência maior com a “hipótese”. Por fim, nunca se tentou, com base em qualquer fundamentação interna, provar ou tornar compreensível, pela análise das razões da troca, alguma tendência a se formarem valores segundo quantidades de trabalho. Obstáculos externos não permitiriam isso. Os marxistas sequer tentaram prová-lo, por saberem estar fadados ao fracasso.
Tudo o que vemos na experiência, e tudo o que sabemos sobre os motivos que provocam a troca, nos força a presumir que, assim como na realidade do capitalismo privado, também numa sociedade não capitalista o valor não seharmonizaria com a quantidade de trabalho. Em qualquer sociedade, e com qualquer tipo de distribuição de bens, as pessoas levam em conta a utilidade e os custos. Estes contêm em si, indubitavelmente, como componente parcial, a quantidade da aplicação de trabalho, mas também não se esgotam nela, pois o tempo em que os bens [p. 314] trazem seus resultados tem papel importante, e não há espaço para a hipótese não realista do valor do trabalho.
* Petitio principii do Lat., “petição de princípio”, erro de raciocínio, que “consiste em dar como fundamento de uma proposição a demonstrar a mesma proposição sob outras palavras” (apud Novo Dic. Brás. Melhoramentos. 1969 – N. do E.).
- Reinterpretação de Edward Bernstein
Apareceu recentemente uma notável publicação nos meios socialistas, que recua mais um importante passo em relação à linha defendida por Konrad Schmidt, pois já não considera a lei do valor apoio e prova da teoria socialista da exploração. Seu autor, Edward Bernstein [5], ainda dedica à lei do valor certa apologia morna, com um tipo de raciocínio que se situa entre o de Sombart e o de Schmidt. A irrealidade da lei do valor, na medida em que se deve ligar às relações de troca das mercadorias isoladas, é abertamente admitida. O valor do trabalho é declarado “construção puramente conceptual”, “fato puramente conceptual construído sobre abstração”. Seria “apenas uma chave, um símbolo”, como o “átomo animado”. Com a afirmação de que as mercadorias isoladas se vendem pelo seu valor. Marx teria apenas pretendido “concentrar” num “caso isolado” o verdadeiro processo que a produção sofreria, segundo seu ponto de vista, ou seja, o “mais-trabalho”.* Mas Bernstein já não o comprova pela lei do valor. Certamente sentindo que a própria lei é demasiadamente precária para poder apoiar mais outra coisa nela, ele declara: “É totalmente irrelevante, para provar o mais-trabalho, saber se a teoria do valor de Marx é correta ou não. Nesse sentido, ela não é uma tese comprobatória, mas apenas um instrumento de análise e visualização.” [6].
E faz, significativamente, outra concessão ainda maior: a de que o valor do trabalho, enquanto chave, “falha a partir de certo momento, e por isso torna-se funesto para quase todos os discípulos de Marx”. E diz que “a doutrina do valor não é norma de justiça ou de injustiça na distribuição do produto do trabalho, assim como a doutrina do átomo não constitui norma para a beleza ou defeito de um quadro”. O “valor de uso marginal da escola de Gossem-Jevons-Böhm”, por sua vez, que tem por fundamento — como o valor do trabalho de Marx — “relações reais”, apesar de se construir sobre abstrações, tem também “direito de validade dentro de certos limites”, e “para determinados fins”. Diz ainda que, levando-se em conta que também Marx enfatizou o significado do valor de uso, é impossível “desdenhar a teoria de Gossem-Böhm” [7].
Mas será que, com isso, Bernstein estaria pretendendo descobrir substitutos para aquelas provas já rejeitadas que o marxismo de seus antecessores [p. 315] havia procurado aplicar à lei do valor, para, assim, ele poder ainda sustentar a teoria da exploração, como, afinal, acaba fazendo? Ele recorre a uma
premissa extraordinariamente simples, mas também de força comprobatória extraordinariamente duvidosa. Aponta para o fato de que “da criação e distribuição de mercadorias participa ativamente só parte da população, enquanto há outra parte composta por pessoas que, ou auferem ganhos prestando serviços não diretamente ligados à produção, ou os auferem sem trabalhar. Portanto, há muito mais pessoas vivendo do trabalho aplicado por outros na produção do que trabalhando efetivamente, e a estatística dos ganhos nos mostra que, além de tudo, as camadas não ativas na produção se apoderam de parcela muito maior do produto total do que lhes caberia secundo sua relação numérica com a parte ativamente produtiva. O ‘mais-trabalho’ dessa camada é um fato comprovável na experiência; não precisa, portanto, de prova dedutiva” [8].
Em outras palavras, Bernstein entende o “mais-trabalho” num claro sentido marxista, como exploração de trabalho alheio. Pelo simples fato de que o produto nacional não é todo ele distribuído entre os trabalhadores produtivos, como salário de trabalho, pois existem outras formas de ganho, Bernstein quer fazer crer que a exploração sobre os trabalhadores seja um fato que, por ser empiricamente comprovado, prescinde de prévio esclarecimento dedutivo. Mas essa conclusão é, ao contrário, tão apressada, contém uma tão óbvia petitio principii, que praticamente não precisa de refutação. A partir desta mesma conclusão, poderíamos até superar os fisiocratas e provar que todo o resto da humanidade vive da exploração das classes agrícolas. Pois, afinal, é um fato que dos produtos do solo, produzidos pelos agricultores, se sustenta uma porção de outras pessoas!
Na verdade, o problema não é tão simples assim. A experiência mostra, sobretudo, que o produto nacional nasce da colaboração entre o trabalho humano e os meios de produção objetivos, de origem parcialmente natural, parcialmente artificial (solo, capital etc.). E que esse produto é dividido, segundo algum critério, entre aqueles que cooperam na produção. Mas, se alguém tiver a opinião — muito discutível, por sinal — de que só um dos participantes deveriaparticipar de fato, e de que a participação de qualquer outro resultaria em exploração daquele, essa pessoa precisa analisar a relação interna dos fatores, e procurar provar, através de fundamentação interna, que, apesar de tantos fatores participantes, apenas um deles significa tudo e tudo pode reclamar, pelo menos no que diz respeito à distribuição. Os outros, que nada significam, nada podem reivindicar.
Também Marx entendia assim esse problema. Partindo do princípio de que, na vida econômica, os bens operam conforme o seu valor, Marx [p. 316] procurou, coerentemente, para poder conceder aos trabalhadores todo o valor do seu produto, demonstrar que o valor é criação apenas do trabalho. Sua lei do valor era um meio de provar que as exigências de participação feitas pelos proprietários de terras e pelos capitalistas deveriam ser eliminadas.
O próprio Bernstein não há de querer prosseguir sem dedução. Obviamente sua prova, que ele afirma ser só empírica, contém um elemento dedutivo não mencionado: o princípio de Rodbertus de que, do ponto de vista econômico, todos os bens são puros produtos de trabalho. Se não considerarmos esse princípio um fator de ligação — uma vez que a lei de valor de Marx já foi expressamente excluída das premissas comprobatórias — a dedução de Bernstein nem formalmente será conclusiva. Mas essa premissa dedutiva, para a qual Bernstein é forçado a voltar, não consegue dar à teoria da exploração um apoio maior do que o que foi dado pela lei de valor de Marx. Como sabemos, essa lei é categoricamente falsa, na medida em que deforma e nega a significação que os dons raros da natureza têm, não só para a economia humana e para a produção [9], como também — o que é mais importante — para a questão do juro de capital, pois mesmo naquilo em que essa lei é correta, ela não oferece fundamento para a teoria da exploração em relação ao modo como essa teoria a concebe e às suas consequências. Isso porque — lembremo-nos — a teoria da exploração não se contenta com reclamar para os trabalhadores o total do que estes produzem: reclama esse total num momento anterior ao da sua produção. Ora, essa antecipação artificial não encontra respaldo em nenhum princípio da natureza ou do Direito natural, cuja transgressão se possa rotular de “exploração”. Os defensores da teoria da exploração não esclarecem, nem para si nem para seus leitores, essa impressão pouco natural — para não dizer antinatural — que se encontra em seus postulados pretensamente derivados de motivações naturais. Mas é impossível negar sua existência. Já o provei anteriormente, em relação a Rodbertus, num exemplo concreto, mas de pouca abrangência [10]. Pretendo, agora, demonstrá-lo mais uma vez e de modo bem abrangente. Parece que, depois que o episódio com a fantasiosa lei do valor de Marx finalmente começa a ser superado, a batalha em torno da teoria da exploração deverá recuar mais uma vez àquela posição onde Rodbertus se manteve com seus teoremas, para lá aguardar sua sentença.
Bernstein resume o conteúdo dessa posição num conceito de surpreendente simplicidade: diz que também pessoas que não são trabalhadores produtivos vivem do produto nacional. A essa afirmativa quero opor fatos não menos simples e elementares. **
É fato que os métodos de produção, hoje empregados, com os quais se produzem através de “trabalho indireto”, materiais, instrumentos, máquinas, materiais auxiliares, meios de transporte etc., são muito mais rendosos do que os antigos métodos de produção, que não precisam desses longos preparativos. É fato que, quando se considera [p. 317] como uma coisa só não apenas o trabalho aplicado direta e indiretamente a um bem de consumo, o fruto maduro só poderá ser colhido ao fim de um processo completo de trabalho, que pode abranger vários anos. É fato, também, que os socialistas reivindicam esse produto total — ou todo o seu valor — como “salário pleno” para os trabalhadores ativos na produção. Por outro lado, os socialistas não querem, de modo algum, admitir que a distribuição desse valor total aos trabalhadores seja adiada até aquele momento em que o produto por eles criado esteja pronto e disponível para distribuição. Pretendem, muito pelo contrário, que os trabalhadores recebam, cada um imediatamente após a conclusão de sua parte no trabalho, o equivalente pleno daquilo que resultará do trabalho de todo o grupo, dali há alguns anos.
Entra aqui uma nova série de constatações. É certo que qualquer distribuição a trabalhadores antes da conclusão da obra só poderá ocorrer se, de alguma fonte, surgirem bens prontos para o consumo antes de que aquela obra esteja concluída. E essa mesma condição é imprescindível para que o trabalho possa ser dirigido para fins e consumo remotos, e para que possam ser adotados métodos de produção abrangentes e fecundos. Caso contrário, seria preciso aceitar lucros de trabalho menores, obtidos com métodos de produção menos sofisticados e abrangentes. Tais provisões de bens existem, são herdadas, e se multiplicam, de geração em geração, nas mãos dos capitalistas. A obtenção de tais bens — por enquanto deixaremos isso de lado — talvez tenha sido parcialmente justa e parcialmente injusta. Mas é certo que essa provisão de bens foi criada — e mantida — graças a um mérito que não é dos trabalhadores, e estes, no entanto, serão sustentados e pagos por ela enquanto durar o processo de produção em curso.
Portanto, não é mérito pleno dos trabalhadores hoje ativos, nem de seu esforço e de sua habilidade unicamente, que se venha a obter, depois de certo número de anos, um produto mais abundante. Se parte desse mérito recai sobre pessoas que realizaram algum trabalho prévio, pessoas que cuidaram da criação e da manutenção dos bens armazenados, será razoável afirmar que a obra dos primeiros trabalhadores lhes dá o direito de reivindicar, sem nenhuma contestação, todo o lucro daquele produto maior e mais abundante? E ainda mais, será possível reconhecer-lhes o direito de o receberem antesdo produto totalmente pronto?
Pois é exatamente o que a teoria da exploração nos quer fazer crer, embora nem o mais fervoroso defensor dos trabalhadores que veja os fatos com clareza — coisa que a teoria da exploração não faz [p. 318] — possa concordar com isso. Até o momento, essa teoria tem evitado em todas as suas formulações, o ponto espinhoso da questão: a diferença de tempo entre o pagamento aos trabalhadores e a finalização do produto, bem como o significado dessa diferença de tempo no que concerne à técnica da produção e à valorização dos bens. Esse tema ou fica intocado, ou é abordado de maneira falaciosa e incorreta — e Marx muito colaborou para isso. Às vezes ele considera ser uma “circunstância totalmente irrelevante” para a valorização do produto o fato de que parte do trabalho necessário para se ter um produto pronto tenha sido realizado em momentos anteriores, “num passado mais que perfeito.” [11]. Outras vezes, através de uma dialética deturpadora, chega a provar o contrário; prova que os prazos habituais para se pagarem salários não são uma antecipação, mas sim um atraso dos pagamentos, que vai contra os trabalhadores: como estes costumam receber os salários somente ao fim do dia, da semana ou do mês em que trabalharam para os empresários, não são os empresários que antecipam salários, e sim os trabalhadores que antecipam trabalho [12].
Isso seria correto se aceitássemos que a reivindicação de salários dos trabalhadores nada tem a ver com o futuro produto que nascera do seu trabalho. Se disséssemos que o que o empresário compra não é esse futuro fruto do trabalho, mas simplesmente a atual ação física do trabalhador. E mais, se disséssemos que qualquer eventual resultado futuro, no que tange a utilidade, uma vez firmado um contrato, é problema do empresário e não do trabalhador ou do seu contrato. Em suma, se adotarmos essas posições, estará certo dizer que, quando o salário vem depois do trabalho, não é o empresário quem adianta salário, mas o trabalhador quem adianta trabalho.
No entanto, se reivindicarmos — como fazem Marx e os socialistas, talvez com algum acerto — um salário compatível com o produto que dele resultará, fundamentando nosso juízo crítico sobre salários na relação existente entre estes e o produto final do trabalho, nesse caso, não poderemos ignorar nem negar que, mesmo que o pagamento ocorra imediatamente depois de executadas as etapas parceladas de trabalho, esse pagamento ainda assim antecede em muito o surgimento dos produtos de consumo. Desse modo, a reivindicação de salários sobre produtos é até medida com uma antecipação artificial, que tem de ser compensada na cifra do salário, uma vez que há diferença entre o valor presente e o futuro dos produtos [p. 319].
Quando, acima, tratei dos vários setores que participam do produto nacional, fui propositadamente reservado e negativo, pois era essa a atitude condizente com a natureza de minha tarefa. O acerto ou a falsidade da teoria da exploração não depende do fato de as parcelas do produto nacional não empregadas em salários serem ou não aplicadas segundo o mérito real dos participantes: depende, única e exclusivamente, de se poder ou não provar que o mérito dos trabalhadores justifica uma aplicação artificialmente antecipada de todo o produto nacional em salários. Se isso não puder ser justificado, a teoria da exploração será falsa, pois uma parcela do produto nacional ficará livre para reivindicações justas de outros pretendentes. A utilização dessa parcela, de acordo com o bem comum permanente, poderá ficar a cargo de uma jurisprudência esclarecida. Pode ser — e os modernos seguros sociais, os impostos progressivos sobre lucros, a crescente estatização, entre outros, mostram que nossa justiça se dirige para isso — pode ser que a jurisprudência tenha razões não só de reforçar, através de medidas artificiais fundamentadas nas mais justificáveis conveniências, uma maior participação das classes trabalhadoras na parcela disponível do produto nacional, mas, também, de limitar direta ou indiretamente os lucros sobre propriedades. No entanto, o exame desse assunto — e a decisão a que esse exame há de levar — aponta para razões bem diversas daquelas invocadas pela teoria da exploração. Em última análise, essa teoria pretende cortar o debate, sob pretexto de um falso direito.
E, quando da discussão sobre qual parcela do produto nacional o direito justo dos trabalhadores não atinge, a teoria da exploração impede a manifestação dos verdadeiros motivos e ponderações.
* No original alemão, Mehrarbeit jogando com o termo Mehrwert (mais-valia). Pode-se usar “superávit de trabalho”, por exemplo. Preferi criar “mais-trabalho”, para tentar observar a direta ligação que fez o autor alemão (N. da T.).
** A refutação da reinterpretação de Bernstein sobre as ideias marxistas de exploração do trabalho é clara mas breve. Porém, para entender a plena força tio argumento de Böhm-Bawerk, é necessário ler sua Teoria positivo do capital, Vol. II de Capital e juro. Não há descrição melhor do uso de capital para a produção moderna (N. do E.).
NOTAS
[1] “Zur Kritik des ökonomischen Systems von KarI Marx”, Archiv für soziale Gesetzgebung (Vol. VII, cad. 4, pp. 573ss.).
[2] Zum Abschluss des Marxschen Systems (pp. 103 ss.).
[3] P. ex. de Engels em seu último trabalho publicado na Neue Zeit n° 1 e 2, Ano XIV (1895-96). “Ergänzung und Nachtrag zum dritten Buch des ‘Kapital'”.
[4] Supl. do número de 10. 4. 1897 da Vorwärts.
[5] Die Voraussetzungen des Sozialismus und die Aufgaben der Sozialdemokratie, Stuttgart, 1899.
[6] Op. cit. (pp. 38. 41. 42. 44).
[7] Op. cit. (pp. 41, 42, 45).
[8] Op. cit. (p. 42).
[9] Cf. acima (pp. 257 ss.).
[10] Cf. acima (pp. 263ss.).
[11] I (p. 175).
[12] II (pp. 197 ss.).