14 – Liberdade e Virtude Revisitadas

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Por Douglas J. Den Uyl

 

P: Quantos libertários são necessários para trocar uma lâmpada?

R: Nenhum. O mercado livre fará isso.

 

Para mim, é um prazer e uma honra estar associado a este volume de ensaios em homenagem a Murray Rothbard. Fui apresentado, figurativa e literalmente, ao professor Rothbard por alguns empresários de Milwaukee que estavam lendo Homem, Economia e Estado em um grupo de discussão sobre economia. Mais tarde naquele mesmo ano, o professor Rothbard falou ao Fórum de Wisconsin, onde o encontrei pessoalmente pela primeira vez. A reunião aconteceu em um momento em que eu estava superando o fato de que Ayn Rand não era Deus. Já que Rothbard era persona non grata entre os randianos, eu esperava encontrar um homem de quem eu não gostaria. Em vez disso, encontrei um homem caloroso, humano e bem-humorado, cuja personalidade me atraiu. Era apenas uma questão de tempo até eu desenvolver uma afeição por ele.

Minha vontade de prestar homenagem a Murray Rothbard vai além da afeição pessoal. Em primeiro lugar, sua paixão pela liberdade é contagiante. Meu espírito, com relação às perspectivas e defesa da liberdade, foi elevado mais de uma vez ao ler Rothbard. Em segundo lugar, seu intelecto é penetrante. Eu aprendi com ele. Mas o mais importante do meu ponto de vista é o fato de que Rothbard e eu partimos da mesma estrutura aristotélica ou teleológica eudaimonística para a defesa da liberdade.[1] Ele é, portanto, não apenas um amigo e mentor, mas um parceiro intelectual.

Desejo homenagear o professor Rothbard discutindo alguns temas e questões relacionadas ao tema da liberdade e da virtude. Nós dois publicamos ensaios sobre esse tópico. No meu próprio caso, escrevi um artigo intitulado “Liberdade e Virtude” alguns anos atrás, cuja versão revisada foi posteriormente reimpressa.[2] Com relação a Rothbard, vou me concentrar em um de seus artigos recentes, talvez menos conhecidos, intitulado “Frank S. Meyer: fusionista ou libertário?.”[3] O tópico da conexão, se houver, entre liberdade (ou autonomia) e virtude me interessa muito; mas os fóruns para explorá-lo são raros, porque no mundo de hoje somos obrigados a gastar tempo apenas defendendo apenas a legitimidade da liberdade.

Algumas observações preliminares

Em meu próprio artigo sobre liberdade e virtude, argumento que a coerção é necessariamente destrutiva da agência moral e que a agência moral deve estar presente para que a virtude esteja presente. Entendo que agência moral não se refere apenas à “intenção” (por exemplo, a suposta imoralidade do “desejo em seu coração” de Jimmy Carter), nem simplesmente ao comportamento ou “ação” do agente. Conforme entendia Aristóteles,[4] a agência moral envolve ambos os elementos ligados entre si pelo propósito do agente. A coerção oblitera um ou ambos os elementos da agência moral (para não mencionar a ligação entre eles). Ela pode forçar um comportamento “bom”, mas à custa da presença de uma boa intenção. Ela pode efetivamente destruir completamente a intenção (seja boa ou má) forçando ações (boas ou más) que são executadas simplesmente porque são forçadas e por nenhum outro motivo. Finalmente, ao cortar a conexão entre intenção e ação, a coerção pode encorajar boas intenções que resultam em ações más (ou seja, prejudiciais). Este último ponto é assim porque a separação tende a criar a ilusão de que a maneira pela qual a ação é realizada (por exemplo, coercitivamente) não é um fator na determinação do caráter moral da ação.[5] Assim, se a intenção é “sincera”, “profunda”, “compassiva” ou o que quer que seja, isso é suficiente para qualificá-la como “boa”. Os meios pelos quais a intenção é realizada tornam-se uma questão prática, não moral.

Visto que a coerção destrói o arbítrio moral, uma condição necessária para a virtude é a liberdade (ou autonomia). O lado social do meu argumento, portanto, era que para uma “sociedade” ser virtuosa, ela também deveria ser livre. Isso, é claro, não diz que a liberdade é uma condição suficiente para a virtude. Não é. Mas quaisquer outras condições suficientes que possam existir para alcançar a virtude, elas não podem vir à custa da condição necessária. Isso implica que, embora uma sociedade livre não possa ser totalmente imoral (porque os direitos básicos são respeitados), pode ser uma sociedade cujos cidadãos aderem a uma forma de virtude minimalista (isto é, simplesmente respeitando os direitos). Níveis mais elevados de excelência moral podem ser ignorados. Esta tese levanta questões que não abordei no meu artigo anterior, e que aqui abordarei apenas parcialmente. A questão principal, é claro, é se a sociedade livre tem muita perspectiva de ir além de uma moralidade minimalista. Essa questão é desinteressante para aqueles libertários que são céticos morais ou minimalistas morais,[6] mas, dentro de uma estrutura aristotélica, a questão é real, porque a vida social e política é considerada um componente no desenvolvimento da perfeição moral para Aristóteles.

O artigo de Rothbard aborda a questão da liberdade e da virtude de uma perspectiva diferente. Em primeiro lugar, a tese principal daquele artigo era que Frank Meyer era, em virtualmente todos os aspectos essenciais, um libertário e não um fusionista. Em segundo lugar, o artigo mostra que realmente não há muito em comum entre libertários e conservadores. A conexão entre liberdade e virtude é menos importante do que as duas teses que acabamos de mencionar. No entanto, seis teses sobre a relação entre liberdade e virtude estão contidas no artigo de Rothbard.

O que se segue, portanto, depende primeiro da suposição de que o argumento básico do meu primeiro artigo está correto. Em outras palavras, não oferecerei aqui uma defesa adicional de minha tese original. Em segundo lugar, estarei ignorando os temas principais do artigo de Rothbard e me concentrando nas seis teses subjacentes sobre liberdade e virtude. Essas seis teses serão tópicos de seção para o que se segue. Considero o que digo a seguir uma apresentação esquemática de questões relacionadas às seis teses, e não um tratamento definitivo. Mas, dada a escassez de literatura libertária sobre esse tópico, um tratamento esquemático pode ser suficiente para encorajar uma exploração mais aprofundada da relação entre liberdade e virtude.

A Virtude e o Estado

A primeira das seis teses do ensaio de Rothbard argumenta que o Estado não é um instrumento apropriado para promover a virtude. O argumento aqui é semelhante ao meu, conforme esbocei acima. Além disso, Rothbard – referindo-se ao capítulo de Hayek em O Caminho da ServidãoPor que os piores chegam ao poder[7] – mostra como aqueles em posições de poder no Estado provavelmente têm precisamente os tipos de caráter que alguém preocupado com a virtude não gostaria de encorajar. Não parece muito apropriado, então, que tais pessoas conduzam uma cruzada pela excelência moral. No entanto, se concedermos – como deveríamos conceder – a Rothbard seu argumento, quem ou o que resta para encorajar o desenvolvimento da excelência moral?

Existem duas respostas libertárias padrão para essa pergunta: (1) persuasão e (2) o mercado. A partir da segunda, vemos aqui a aplicação da velha piada com a qual iniciei este ensaio. A maioria das pessoas não vê o mercado como algo encorajador em relação à moralidade e, se entendermos o mercado de maneira literal, elas estão certas. Pois, se os desejos e objetivos da maioria das pessoas são básicos, o mercado fornecerá o mecanismo para satisfazer esses desejos e objetivos. No entanto, os defensores dos mercados livres têm uma visão mais profunda sobre o que os mercados fazem do que a interpretação literalista oferece. Como Hayek demonstrou com bastante frequência, o mercado encoraja alguns valores sociais não desprezíveis — a saber, ordem e cooperação. Além disso, as exigências e rigores do mercado tendem a encorajar numerosas virtudes como prudência, honestidade, independência, parcimônia e diligência. A resposta padrão, portanto, vai longe ao dissipar o mito de que, ao defender o mercado, não se está defendendo algo moralmente positivo.

Mas a resposta padrão vai longe o suficiente? Pode ser que as virtudes incentivadas pela ordem do mercado sejam compensadas por uma série de vícios. É preciso ter cuidado aqui. Algumas coisas que muitas vezes são apontadas como vícios podem não ser, por exemplo, comercialização. Além disso, certas formas de comportamento autodestrutivo podem ser permitidas pelo mercado, mas, de forma alguma, encorajadas. Suponha, apenas para fins de argumentação, que usar certas drogas causa em todos os usuários o tipo de vício irracional retratado na televisão. Uma sociedade livre permitiria tais vícios, mas é improvável que fossem encorajados pelas forças do mercado. Se as ações fossem verdadeiramente autodestrutivas, os custos de praticá-las seriam altos e, portanto, contrários às virtudes admitidas como incentivadas pelo mercado. No entanto, para não parecer muito ideológico, fiquemos abertos à possibilidade de que talvez existam alguns vícios incentivados pelo mercado. Se assim for, somos, no entanto, forçados a admitir que devem ser vícios consistentes com as virtudes admitidas como incentivadas pelo mercado.

Acredito que encontrar tais vícios não seja tão fácil quanto as primeiras aparências podem sugerir. A lista usual, por exemplo, luxúria (a pornografia que leva a crimes sexuais ou a degradação das mulheres), ganância, egoísmo, materialismo e assim por diante, parecem aumentar à medida que diminui o compromisso da sociedade com o livre mercado. Se há aspectos desses “vícios” que realmente são vícios, não está claro como o mercado os estimula. Se um indivíduo deve arcar com os custos dessas ações sozinho – sem uma renda garantida ou centros de desintoxicação apoiados pelo Estado – que encorajamento pode haver para tais buscas hedônicas míopes? A esse respeito, parece haver uma confusão geral entre o que é permitido e o que é incentivado. A sociedade livre pode permitir muitos vícios, mas dificilmente se segue disso que ela os encoraje.

Mesmo admitindo que o livre mercado possa encorajar alguns vícios que não são contrabalançados por suas virtudes, parece-me que o argumento mais forte contra a segunda resposta padrão é que o mercado ignora certas virtudes. Uma virtude frequentemente mencionada é a caridade, mas o argumento aqui não é convincente. As sociedades mais livres costumam ser as mais generosas. De fato, nossa própria sociedade parece bastante propensa a todo e qualquer esquema de compartilhamento de riqueza, e entendo que isso se deve tanto à generosidade dos cidadãos quanto à astúcia dos políticos. O argumento aqui deve, portanto, repousar sobre aquelas virtudes que dizem respeito à perfeição moral e não as virtudes comuns que requerem pouco mais do que uma atitude apropriada para serem adquiridas. Essas virtudes de perfeição podem incluir aquelas mais frequentemente associadas às artes liberais e belas-artes: o desenvolvimento da mente, o incentivo à verdadeira excelência artística, o incentivo a amizades baseadas em valores significativos e duradouros, e assim por diante. O mercado falha em encorajar esses valores, segundo o argumento, porque o mercado é um mecanismo para atender às massas de homens, e esses valores se distanciam ou vão além do que é comum e tem apelo de massa.

Às vezes, infere-se que o mercado desencoraja esses valores ao apelar para o menor denominador comum da sociedade. Mas esta inferência é falsa. O livre mercado distribui os recursos de acordo com seus usos mais valorizados. Pode ser que a maior parte da sociedade valorize bens que pouco têm a ver com a perfeição moral, comandando, assim, uma grande parcela dos recursos. Outros valores “mais altos”, no entanto, não são ignorados nem desencorajados. Os recursos destinados a esses valores superiores são distribuídos imparcialmente pelo mercado na proporção de seu valor. Se os valores mudassem, a distribuição de recursos também mudaria. O mercado não desencoraja esses valores, embora sua imparcialidade possa fazer pouco para encorajá-los.

A ideia de que o mercado ignora certas virtudes foi observada por Leo Strauss.[8] Se olharmos para as origens das defesas das sociedades comerciais através dos olhos de pensadores como Montesquieu, descobriremos que a ordem do mercado encoraja o que Strauss chama de “virtudes liberais” às custas das virtudes “severas e restritivas”. Paz, humanidade, conforto, cooperação e liberdade são incentivados pela ordem do mercado. Coragem, abnegação, justiça (em oposição a “equidade” ou benevolência) e disciplina são ignorados ou desencorajados. Vamos admitir, para fins de argumentação, que os mais altos níveis de perfeição moral não são necessariamente encorajados por uma sociedade fundamentada em princípios libertários e que tal sociedade pode ser propensa a ignorar as “virtudes restritivas”. Essa concessão implicaria que o libertarianismo ignora a virtude? Eu acho que não. Em primeiro lugar, é um completo non sequitur supor que uma ação corretiva por parte do Estado seja necessária se fizermos essa concessão. Pode acontecer, por exemplo, que a ligação entre a virtude e o Estado seja o verdadeiro problema aqui, e não o grau em que as virtudes estão ou não presentes na sociedade. Na verdade, eu diria que é precisamente a perspectiva coletivista da virtude – necessária quando se pensa na virtude em termos de ação estatal – que destrói a perfeição moral. Mesmo que os métodos coercitivos do Estado não estivessem em questão, o entendimento coletivista da virtude estaria.[9] Faz pouca diferença se as virtudes em questão são “liberais” ou “restritivas”.[10] O que está latente na teoria social libertária é a ideia de que a virtude não é um fenômeno coletivo. Mas, para entender esse ponto, devemos examinar os demais temas discutidos em nossas outras seções.

Com relação à primeira resposta padrão, a persuasão, pouco precisa ser dito. A persuasão é o meio que devemos usar para alcançar nosso fim (virtude). Como resposta à nossa pergunta, no entanto, a persuasão não nos diz nada sobre se alguém em uma sociedade livre provavelmente empreenderá o esforço de persuadir os outros. No entanto, se Aristóteles está correto em acreditar que somos animais sociais, parece que nossa própria sociabilidade serviria para encorajar a preocupação com as ações dos outros. E claramente tal preocupação se manifesta tanto em sociedades livres quanto nas não livres – as ações de uma pessoa são constantemente avaliadas por vizinhos, pares, colegas, superiores e outros. A diferença, então, é que em uma sociedade onde apenas a persuasão é permitida como um meio de alterar o comportamento, podemos prever um aumento dessa técnica em relação a uma onde formas sutis e não tão sutis de coerção também são permitidas.

Liberdade, Política e Ética

O segundo argumento de Rothbard é que o libertarianismo é uma filosofia política e não uma doutrina ética. Em outra parte do mesmo volume em que aparece o ensaio de Rothbard, Tibor Machan assume uma posição semelhante. Enquanto Rothbard e Machan podem acreditar que a única defesa plausível da liberdade pode ser dada a partir de uma teoria moral particular, o libertarianismo pode ser, e tem sido, defendido a partir de uma variedade de perspectivas morais. Defender o libertarianismo como uma doutrina social de forma alguma implica que alguém está defendendo que os indivíduos se tornem libertinos. Esse ponto é eficaz para neutralizar a tendência conservadora de equiparar o libertário ao libertino. Isto também é usado por Rothbard (e Machan) para mostrar que não há incompatibilidade necessária entre libertarianismo e uma preocupação com a virtude. Se aceitarmos esse argumento (como devemos), surge uma dificuldade. Se não há incompatibilidade necessária entre o libertarianismo e uma preocupação com a virtude, então também parece não haver compatibilidade necessária. Pois, desde que o libertarianismo como uma doutrina estritamente política é logicamente distinta das teorias morais que podem estar preocupadas com a virtude, parece difícil traçar algo mais do que uma conexão contingente entre liberdade e virtude. De fato, o libertarianismo parece ser melhor caracterizado como indiferente à virtude.

A alegação sobre a indiferença do libertarianismo à virtude ignora meu argumento de que virtude e coerção não podem ser conectadas uma à outra. Portanto, a relação entre os dois não é tão contingente quanto as primeiras aparições podem sugerir. Mas meu argumento apresenta apenas uma conexão necessária ou formal, não substantiva. Para apresentar o caso substantivo, precisamos dizer algo mais sobre a crença falaciosa de que, se algo não é diretamente defendido por uma doutrina política, essa doutrina deve, portanto, ser indiferente a isso. Vou me referir a essa falácia como a “falácia da defesa”. Em geral, a falácia da defesa é cometida quando se assume que existe uma conexão necessária entre o que as pessoas dizem que é, será ou deveria ser o caso e o que realmente é, será ou deveria ser o caso. Os economistas, por exemplo, há muito sabem que o que as pessoas dizem que acreditam ou farão tem pouca influência sobre como elas realmente se comportam. E na teoria política, se uma doutrina não tem provisão explícita para o bem-estar apoiado pelo Estado, não se segue que os crentes nessa doutrina não tenham preocupação ou compaixão pelos pobres. Na verdade, pode ser exatamente o oposto — ou seja, pode ser que a preocupação com os pobres seja exatamente o que atrai uma pessoa a essa teoria política em primeiro lugar.[11]

A versão da falácia da defesa com a qual estamos lidando aqui é o lado negativo da falácia. A falha do libertarianismo em incluir explicitamente um lugar para a virtude como um princípio de suas conclusões políticas não dá, em outras palavras, fundamento para afirmar que o libertarianismo é indiferente à questão. Seria preciso mostrar, além disso, que existem características do libertarianismo que são incompatíveis com uma preocupação substantiva com a virtude. Curiosamente, é a própria característica do libertarianismo que permite que ele seja defendido a partir de diferentes perspectivas morais (e até do ceticismo moral) que liga a doutrina política a uma concepção substantiva da natureza da virtude. Para entender isso, é preciso ter em mente que a virtude é algo que deve ser alcançado e, portanto, é algo que pode ser perdido. Se reconhecemos que a conquista da virtude implica a possibilidade do vício, também devemos reconhecer que o mesmo solo que nutre a flor da virtude também pode nutrir a erva daninha do vício.

O caráter tênue e contingente da virtude está correlacionado a um componente central do libertarianismo – o individualismo. Valores são perseguidos, conquistados e perdidos por indivíduos, e somente indivíduos podem ter valores, não coletividades. A virtude, sendo a busca ou posse de bons valores, também deve ser alcançável apenas por indivíduos. A perspectiva individualista pode ser discutível, mas constitui um componente central da teoria política libertária. E se a virtude (novamente indiscutivelmente) deve ser entendida de acordo com linhas individualistas, os esforços coletivos para garantir a virtude constituiriam uma virtual contradição em termos. A virtude é única e exclusivamente uma conquista dos indivíduos. A ação coletiva, se é que ela pode fazer alguma coisa, só pode lançar as bases para a conquista da virtude.

Para o libertário, esse fundamento é a proteção dos direitos individuais. Esforços para ir além desse fundamento prescrevendo coletivamente cursos de ação apropriados podem alcançar conformidade de comportamento, mas não virtude. As ações virtuosas são desejadas por si mesmas pelo agente que as realiza. O comportamento apropriado sem a correspondente compreensão e vontade do agente individual não é suficiente para produzir a virtude. Assim, mesmo que o Estado, por mais impossível que seja isso, pudesse dirigir ou encorajar formas apropriadas de comportamento de forma não coercitiva, ainda não haveria virtude devido à falta do componente intencional por parte do agente individual. Esse componente intencional deve ser fornecido pelo próprio agente individual.

Se os straussianos estão corretos e a modernidade é, pelo menos em parte, caracterizada pela crença de que os esforços do Estado para assegurar e promover a virtude nas linhas defendidas por Platão e Aristóteles fracassaram, então o libertarianismo deve aqui ficar do lado da modernidade. O que venho argumentando é que não são apenas as técnicas coercitivas da ação estatal incompatíveis com a virtude, mas também a pressuposição coletivista que está por trás dessas técnicas. Assim como a prosperidade econômica não pode ser alcançada com base em princípios coletivistas, assim também o coletivismo deve falhar com relação à prosperidade moral. Os conservadores não podem criar estilos de vida produtivos ou sexualidade humanizada por meio de guerras contra as drogas e a pornografia, assim como os progressistas não podem criar compaixão e caridade por meio de esquemas de redistribuição. Tudo o que pode ser alcançado por tais esforços coletivos é uma restrição na oportunidade para o vício que simultaneamente restringe a oportunidade para a virtude. No final, tais esforços não promovem a excelência moral, mas uma forma monótona de mediocridade moral e conformidade.

Estamos agora em posição de perceber que a afirmação rothbardiana de que o libertarianismo é uma doutrina política que não é necessariamente incompatível com uma preocupação com a virtude não implica indiferença à virtude. O que está implícito é que a virtude deve ser entendida à luz de dois princípios libertários – liberdade e individualismo. Se ambos os princípios estão substancialmente conectados com a virtude, então o libertarianismo também está. Isso seria verdade mesmo se o libertarianismo permitisse vícios que não violam direitos. E seria verdade mesmo que os defensores do libertarianismo dissessem que não têm interesse na virtude, mas apenas na liberdade. Pois o que está em questão aqui não é se certas virtudes são mais ou menos promovidas por certos arranjos sociais, mas se a virtude é mais apropriadamente compreendida dentro do contexto dos princípios libertários básicos do que em outros contextos. Em última análise, então, o debate não é sobre quem se importa com a virtude, mas sobre o que constitui a própria natureza da virtude. Os conservadores, como seus inimigos de esquerda, incorporam premissas coletivistas em seu modelo de virtude. Os libertários rejeitam essas premissas desde o início.

Virtude e Comunidade

O terceiro argumento de Rothbard diz respeito à relação entre virtude e comunidade. Aqui Rothbard argumenta que a virtude pode ser ligada à comunidade, mas apenas se uma comunidade for entendida como a associação livre e voluntária de indivíduos. Se os dois princípios mencionados na última seção – liberdade e individualismo – forem abandonados, então Rothbard argumentaria que não estamos falando de verdadeiras comunidades humanas. Concepções de comunidade que sustentam que o valor do indivíduo é subserviente ao coletivo, ou que defendem a natureza orgânica e metafisicamente primária das comunidades sobre os indivíduos, ou que definem papéis apropriados para os indivíduos em termos de contribuições para o coletivo, todas falham em constituir verdadeiras comunidades humanas. Há mutualidade significativa entre as pessoas somente quando essas pessoas se associam livremente sob termos mutuamente acordados. A natureza “humana” dessa mutualidade significativa é definida pela centralidade da escolha e do julgamento. O respeito pelas pessoas é demonstrado ao fundamentar as comunidades no julgamento e na escolha individual. E como a virtude deve ser alcançada por julgamento e escolha individual, virtude e comunidade estão conectadas pela mesma concepção de personalidade.

Pouco precisa ser acrescentado a essa concepção de comunidade, pessoas e virtude. Ou alguém acha a perspectiva atraente, ou não. Não oferecerei uma defesa adicional dessa perspectiva, mas, em vez disso, tratarei de uma questão que pode estar subjacente a ela. Pois me parece que uma certa concepção de ética está no cerne tanto do tratamento rothbardiano da relação entre indivíduos, comunidades e virtude quanto da aparente crença de que a teoria política libertária não enfatiza suficientemente a virtude da comunidade. Se pudermos isolar algumas abordagens diferentes da ética, talvez possamos isolar qual abordagem é mais compatível com o libertarianismo e como essa abordagem pode afetar o conceito de virtude. Considere a seguinte definição de ética ou moralidade por um notável teórico da moral contemporânea:

      A moralidade é um conjunto de requisitos categoricamente obrigatórios para a ação … que se preocupam em promover os interesses … de pessoas ou destinatários que não sejam o agente ou o orador.[12]

Os filósofos morais de hoje provavelmente debaterão a primeira parte dessa definição, a saber, se a moralidade é melhor pensada em termos de obrigações categóricas. A última parte da definição raramente receberia comentários ou discordâncias. Mas é precisamente esta última parte que está aqui em causa. Observe que a definição implica que a moralidade está, em primeira instância, essencialmente preocupada com os padrões de como se comportar em relação aos outros. Pode-se, adicionalmente, considerar a si mesmo também, mas o eu é um adendo ao empreendimento moral básico. Agora, esta é certamente uma maneira precisa de conceber a ética na era moderna. No entanto, é bastante incorreto concluir que a própria natureza da ética é essencialmente focada no outro. Existe outra tradição.

A Antiguidade (por exemplo, Platão e Aristóteles) parece tomar o eu como o objeto básico da ética, sendo nosso comportamento em relação aos outros uma função dos requisitos para o autoaperfeiçoamento. Ao contrário da definição anterior, a ética é essencialmente uma investigação teórica dos princípios de autoaperfeiçoamento e apenas secundariamente e derivativamente uma investigação das relações interpessoais. Deixe-me ilustrar isso com um exemplo de Platão que uso em meus cursos introdutórios de filosofia. Platão define justiça como alguém ter a alma em ordem adequada.[13] Pergunto a meus alunos se essa definição significa algo para eles. Eles sempre dizem não, porque pensam que a justiça se preocupa essencialmente com regras sobre o comportamento adequado para com os outros. Saliento para meus alunos que, para Platão, como nos comportamos em relação aos outros é uma função de como somos por dentro. Assim, o primeiro e principal objetivo da ética (justiça) é o autoaperfeiçoamento ou o desenvolvimento do caráter. Se nosso caráter for desenvolvido adequadamente, nossas ações para com os outros também serão apropriadas. O mesmo ponto poderia ser feito sobre Aristóteles, que dedica um livro inteiro (Livro II) da Ética a Nicômaco ao desenvolvimento do caráter. Da perspectiva de Platão, nenhuma quantidade de regras sobre como se comportar em relação aos outros, por mais obrigatórias que sejam, podem substituir o papel central do autoaperfeiçoamento. Mesmo a propagação excessiva de regras encontradas nas Leis de Platão parece refletir a crença equivocada de Platão de que tais regras ajudarão na busca de autoperfeição ou no desenvolvimento do caráter, e não porque essas regras são ditadas por uma teoria deôntica de obrigação categórica.

A filosofia moderna, no entanto, inverteu a ênfase. A ética tornou-se principalmente preocupada com os outros e apenas secundariamente preocupada consigo mesmo. A moralidade tornou-se completamente infundida com o social. Os dois principais teóricos éticos da era moderna, Kant e Mill, trabalharam arduamente, e provavelmente em vão, para manter alguma aparência de autoperfeição dentro do escopo de suas teorias éticas. Além disso, o cidadão comum no mundo moderno tem dificuldade em distinguir ética e lei. Há, no entanto, algumas boas razões para a posição moderna. A Antiguidade deu um papel mais ou menos significativo ao Estado no que diz respeito ao desenvolvimento do eu – Platão sendo um dos exemplos mais extremos, mas Aristóteles não deve ser excluído. A modernidade descobriu que as sociedades organizadas para promover a virtude eram fracassos terríveis. Faltou a virtude, especialmente entre os encarregados de promovê-la; e o valor da liberdade foi muitas vezes esquecido. Tornou-se mais plausível argumentar que o Estado não era o instrumento apropriado para promover a virtude. Em vez disso, o Estado deveria se concentrar no conflito interpessoal e na liberdade – fins que ele poderia realizar razoavelmente.

A posição moderna sobre a capacidade do Estado de assegurar a virtude é, obviamente, correta, mas traz consigo uma falha fatal. Apesar da crítica ao Estado como um veículo inadequado para promover a virtude, a era moderna nunca realmente cortou a conexão entre estado e virtude. Na melhor das hipóteses, a modernidade simplesmente diminuiu o número de tipos de virtudes que o Estado poderia controlar. Uma tendência era associar a virtude às relações interpessoais e ignorar o autoaperfeiçoamento. Os Estados e as comunidades pouco podiam fazer em relação ao autoaperfeiçoamento; mas como podiam observar as relações interpessoais, a virtude passou a ser cada vez mais compreendida em termos interpessoais. Surgiram então argumentos sobre até que ponto os Estados ou comunidades deveriam controlar as relações interpessoais. O liberalismo respondeu dizendo “apenas em um pequeno grau”, enquanto várias formas de estatismo responderam “em grande parte”. Nenhuma das respostas desafiou a proposição de que a moralidade está essencialmente preocupada com as relações interpessoais.

A outra tendência principal era o ceticismo moral e/ou o relativismo. Como os Estados e as comunidades foram tão malsucedidos em assegurar a virtude, e como o vício estava em toda parte, mesmo em face dos esforços para eliminá-lo, talvez não existam princípios gerais de virtude (ou vício), afinal. Talvez não possamos dizer mais sobre a virtude do que isso, se ela tiver algum significado, deve se referir a manter a sociedade funcionando, não permitindo que as pessoas prejudiquem umas às outras. Esse tipo de minimalismo e/ou ceticismo está no cerne de grande parte do liberalismo clássico e moderno.[14]

As implicações do libertarianismo a esse respeito são bastante interessantes. Como teoria política, concordaria que o Estado não é adequado para a promoção da virtude. Se existe um papel para o Estado, ele caberia na resolução de conflitos interpessoais e na manutenção da liberdade. No entanto, na medida em que o libertarianismo não é entendido em termos de ceticismo e relativismo que fazem parte da defesa tradicional do liberalismo, o individualismo do libertarianismo pode tornar sua teoria política mais compatível com a concepção de ética encontrada na antiguidade. Em suma, o libertarianismo pode ser entendido como uma teoria política moderna baseada em uma perspectiva moral clássica.

Tudo o que resta, então, é a questão do papel da virtude em relação à comunidade (em oposição ao Estado). Se o libertarianismo entende a comunidade da maneira descrita no início desta seção, então também deve ser o caso de que a virtude não é um conceito comunitário, mas um conceito individualista. Isso significa que a virtude não é um fenômeno alcançado pelas comunidades ou descritivo delas, mas sim uma conquista de indivíduos. O papel da comunidade é secundário. Serve para tornar possível a realização do autoaperfeiçoamento. Nesse sentido, as comunidades servem a indivíduos, não os indivíduos a comunidades. Em resposta à nossa pergunta inicial, portanto, o libertarianismo não enfatiza as virtudes da comunidade porque as comunidades não têm virtudes. Os indivíduos podem alcançar virtudes que dizem respeito às relações com os outros, e o ambiente da comunidade de alguém pode ser mais ou menos propício à virtude; mas o ponto de ênfase é o indivíduo, não a comunidade. É por esta razão que o foco explícito do libertarianismo no indivíduo é, dada a perspectiva esboçada acima, simultaneamente um foco na virtude e na comunidade.

Virtude e Razão

O quarto argumento de Rothbard diz respeito à tentativa de Meyer de fundir razão e tradição. Em um esforço para reconciliar conservadores e libertários, Meyer tentou dar igual peso ao valor da razão e da tradição. Rothbard contesta argumentando que isso viola a lei do terceiro excluído. Ou a razão reina suprema sobre a tradição, ou vice-versa. Não se pode ter as duas coisas, e Rothbard defende a supremacia da razão sobre a tradição. Em outras palavras, as tradições são valiosas apenas na medida em que são racionais.

O argumento de Rothbard está correto no que lhe diz respeito, mas levanta uma questão que ele não aborda e que poderia colocar sua tese em risco. Suponha, por exemplo, que o que é considerado racional seja em si uma função da tradição, ou mais amplamente, da cultura. Ou seja, a própria razão é um produto da cultura, de modo que não pode haver perspectiva racional além da cultura de alguém a partir da qual avaliar essa cultura. Os padrões de racionalidade, em outras palavras, são eles próprios reflexos das forças culturais que cercam o agente racional. A razão, em algum sentido subúltimo, ainda pode reinar suprema sobre a tradição porque a tradição pode ser vista como uma força cultural racional que precisa de crítica e avaliação. Mas, no final, os próprios padrões de crítica e avaliação seriam uma função da cultura e melhor compreendidos de maneira historicista.

Não precisamos procurar conservadores ou vários teóricos marxistas para encontrar a tese sobre a razão que acabamos de mencionar. A posição parece ser a adotada por F. A. Hayek. Hayek argumenta que somos essencialmente criaturas governadas por regras, cujas regras – algumas das quais nem mesmo são conhecidas, mas que nos guiam “tacitamente” – são elas mesmas o produto da evolução cultural.[15] Não há motivos para acreditar que a razão escapa ou fica fora dessas forças evolutivas. Além disso, Hayek defende o papel extremamente limitado da razão. A razão para Hayek é essencialmente um processo formal, talvez melhor exemplificado pela lógica. Seguindo Hume e Kant, a razão tem apenas um papel limitado a desempenhar nos assuntos humanos. O papel limitado da razão se traduz socialmente na doutrina de Hayek de regras universais e negativas. A universalidade, como Kant mostrou em sua teoria moral, é uma característica central da natureza da razão. A negatividade torna-se plausível pelo poder limitado da razão diante das forças evolutivas.

Mas o que impede que os componentes essenciais da razão sejam eles mesmos engolidos pela cultura? Em Hayek, como em Hume, não vejo nada que impeça isso. Aqui, Kant entendeu o problema melhor do que a maioria. Se a própria razão deve reter qualquer independência da cultura, devemos fazer o que Henry Veatch chama de “virada transcendental”.[16] Portanto, Kant localiza a razão em uma ordem numenal que permanece intocada pelas vicissitudes da ordem fenomenal, incluindo a cultura. Se a virada transcendental não for feita de alguma forma, restam apenas duas alternativas – a historicidade radical (onde o que é, é uma função do sistema conceitual de alguém e o próprio sistema conceitual é produto da cultura) ou um retorno aos princípios essenciais do realismo clássico. Agora, os méritos dessas alternativas estão muito além do escopo deste ensaio. Podemos, no entanto, trazer esse esboço de abordagens para mais perto de casa, fazendo mais um comentário.

Como o liberalismo clássico e o libertarianismo estão tão intimamente aliados em muitas questões políticas e sociais, as figuras históricas com as quais os libertários estão mais familiarizados também são os pais intelectuais do liberalismo clássico (por exemplo, Hume). Na ética, isso significa que os problemas tendem a ser examinados de uma certa perspectiva. Ainda é comum entre os libertários ver o principal problema teórico da ética como derivar um “deveria ser” de um “é”. Assim, os defensores da teoria da lei (ou direitos) natural são atacados por seus homólogos humeanos ou positivistas por sua falha em preencher a lacuna entre “é” e “deveria ser”. Como justificar racionalmente, ou mesmo encontrar, quaisquer “deveriam ser” na realidade é muitas vezes visto como o problema central. Infelizmente, esse problema agora é antiquado. O problema agora não é como derivar “deveria ser” de “é” ou encontrar valor se podemos derivar “é” de “deveria ser”, ou descobrir quaisquer fatos em um mundo de valores.[17] Em outras palavras, se os próprios padrões da razão são essencialmente ligados à cultura,[18] combater a historicidade radical torna-se a tarefa principal. E a principal tese dessa historicidade é que todas as facetas da avaliação (seja na ciência ou na ética) são carregadas de valores.

Obviamente, não “comprovei” nada nessas observações. Procurei apenas identificar uma tendência, da qual participam pensadores como Hayek. Vários esforços nesse sentido foram iniciados. Entre alguns economistas, por exemplo, a estratégia tem sido adotar uma forma de essencialismo que constrangeria até Platão. Dizem-nos que existem certos fins fixos que todos os seres humanos possuem no mesmo grau. A economia descreve a maneira como as pessoas tentam perseguir o mesmo conjunto de fins sob diferentes condições. O que parecem ser escolhas diferentes com base na premissa de uma diversidade de valores é, na verdade, melhor descrito como a economia de tentar buscar os mesmos valores em circunstâncias diferentes.[19] No entanto, outra opção se sugere. Essa é retornar ao realismo clássico em todas as principais áreas filosóficas da metafísica, epistemologia e ética.[20] É essa alternativa que Rothbard parece ter adotado.

A tese rothbardiana de que a razão é superior à cultura, tradição ou o que quer que seja, parece baseada em uma filosofia que coloca a razão no centro da teoria. Os esforços modernos para abandonar o realismo clássico e ainda assim manter a centralidade da razão parecem vulneráveis ao ataque do historicismo. É o insight de Rothbard (junto aos de Ayn Rand e outros) que alguns valores e verdades fixos são necessários se a liberdade deve ser defendida. Embora essa também seja minha opinião, meu argumento aqui foi simplesmente sugerir que os princípios básicos da filosofia clássica podem merecer a atenção que Rothbard e outros lhe concederam.

Liberdade, Virtude e Ordem

A quinta tese de Rothbard é que a liberdade, longe de criar caos e desordem, na verdade, conduz à própria ordem. Esta tese é um esteio tanto do liberalismo quanto do libertarianismo; e como o próprio Rothbard observa, a tese recebeu apoio adicional nos últimos anos pela análise de Hayek sobre “ordens espontâneas”. No entanto, assumindo a verdade da conexão entre ordem e liberdade, surge a questão de saber o que, se é que existe alguma coisa, a ordem tem a ver com a virtude? Para esta pergunta, a resposta deve ser “muito pouco”.

Se a virtude é como a concebemos – isto é, alcançada por indivíduos de acordo com padrões teleológicos eudaimonísticos de autoperfeição – então o valor da ordem deve ser, na melhor das hipóteses, instrumental. O que parece evidente sobre os conservadores é que a ordem é considerada um fim, não um meio. No entanto, se usarmos o teste simples de Aristóteles para distinguir fins em si de meios ou fins intermediários, podemos ver que a ordem não é um fim em si. Aristóteles sustentava que algo era um fim último se fosse buscado por si mesmo e não devido a qualquer outra coisa. Isso pode ser dito sobre a ordem? Parece que a ordem é valiosa devido ao que ela torna possível. Ordem geralmente significa paz, e a paz permite que os aspectos produtivos da natureza humana floresçam. A ordem possibilita o planejamento; a segurança que oferece permite que planos de longo prazo sejam concebidos e executados. A ordem fornece o tipo de estabilidade necessária para que as relações sociais entre os indivíduos sejam nutridas. Mas quer se esteja falando de paz, planejamento ou estabilidade, o valor de cada um é uma função do que é contribuído para a perfeição humana. A ordem não parece ser valiosa por si só. De fato, a ordem nem mesmo é uma condição necessária para a virtude, já que, pelo menos, certas virtudes podem ser, e frequentemente são, exibidas em tempos de desordem e caos social.

A ordem tende a nutrir a virtude criando as condições sob as quais a virtude tem maior probabilidade de florescer. Mas, é claro, o tipo de ordem que se tem também influencia a promoção da virtude. Uma ordem livre conduz à virtude; uma ordem imposta não. Como já argumentamos aqui e alhures, se há desordem e conflito presentes na sociedade, a solução não passa pela imposição de regras de conduta. Isso é ordem pela ordem e é comprada ao preço do que é uma condição necessária para a virtude, ou seja, a liberdade. Não devemos confundir um ambiente favorável à produção da virtude com a própria virtude.

Nosso argumento implica que a ordem, como a própria virtude, deve ser endógena e não exógena. Esforços exógenos para ditar a ordem por meio de regras formalizadas de conduta impostas por um instrumento como o Estado (em oposição a princípios procedimentais destinados a encorajar formas endógenas de cooperação) podem, na verdade, produzir desordem e conflito. É nesta conjuntura que os fatores de tradição são tão importantes. O que é tradicional não é necessariamente virtuoso nem racional, mas pode ser extremamente significativo em relação ao que é ordeiro. A posição é melhor expressa por James Buchanan.

      É neste contexto que algumas das mudanças comportamentais dos anos 1960 levantam questões fundamentais e inquietantes para a estabilidade social. Conforme observado, os indivíduos viveram, uns com os outros, sob as regras implícitas de comportamento respeitadas por todas, ou quase todas as pessoas da comunidade. Mas um dos instrumentos empregados pelos participantes da contracultura envolvia a ostentação explícita dos códigos de conduta tradicionais, o desrespeito direto e aberto ao que antes era considerado padrão aceitável de “boas maneiras” elementares. Isso colocou ênfase na anarquia ordenada que ainda descreve grande parte da vida social comum em nossa sociedade, estresse evidenciado por apelos à “lei e ordem”, à formalização e aplicação de regras que antes eram inexistentes.[21]

O aumento dos esforços para resolver conflitos por meio da formalização de todas as regras de conduta tem o efeito de gerar mais conflitos sobre as próprias regras, de gerar instituições burocráticas para executar e monitorar essas regras e de incutir um sentimento de alienação das regras por parte dos cidadãos. Buchanan descreve corretamente a situação atual como “anarquia constitucional” – desordem em face de inúmeras regras e regulamentos.[22]

As tradições são regras de ordem endógenas. Elas não podem ser ostentadas sem comprometer o ambiente mais propício à perfeição humana. Mas dizer isso é simplesmente reconhecer o importante valor da tradição. De forma alguma nos obriga a tratar a tradição e a ordem como virtudes ou fins em si mesmos. A tradição e a ordem são valiosas porque servem aos indivíduos para alcançar o autoaperfeiçoamento e não porque são objetos do próprio autoaperfeiçoamento.

Conclusão

Na seção final do artigo de Rothbard, as questões de elitismo e populismo são discutidas. Os conservadores, argumenta Rothbard, têm em suas fileiras aqueles que favorecem o governo de uma elite (por exemplo, Kirk e Wilhelmsen) e aqueles que são atraídos por perspectivas mais populistas (por exemplo, Wanniski). As várias escolas de pensamento dentro do conservadorismo não nos interessam aqui, mas Rothbard sugere que, para os libertários, as “massas” não são inerentemente boas nem inerentemente más. Essa posição reflete o caráter individualista da virtude de que falamos acima. As massas não são nem virtuosas, nem viciosas, porque tais termos não são aplicáveis às coletividades.

Mas a questão das massas levanta uma questão antiga na teoria moral e social. É verdade, como Aristóteles parecia acreditar, que existe uma superioridade natural entre os homens? Ou Hobbes está mais correto ao acreditar que os homens são iguais por natureza? A primeira tese sugere que a virtude será provavelmente alcançada apenas pelos poucos que, por suas naturezas superiores, já têm uma vantagem na busca pela virtude. A segunda tese sugere que a virtude pode ser alcançada por quase qualquer um que se esforce. Rothbard argumenta que os libertários tendem mais para a posição de igualdade do que para a posição elitista. As razões para isso provavelmente decorrem da reação original da modernidade à antiguidade. O liberalismo inicial sustentava que “todos os homens são criados iguais” e possuíam direitos iguais. A antiguidade parecia dar direitos adicionais àqueles poucos com poderes e talentos naturalmente superiores.

No entanto, à luz do que defendemos neste artigo, a questão de saber se as pessoas são iguais por natureza ou desiguais é irrelevante. Em primeiro lugar, a igualdade de direitos básicos deve valer devido à tese metaética de que os direitos naturais (ou humanos) se aplicam às pessoas como tais. O tipo de pessoa que se é, seja por natureza ou criação, não é um fator determinante com relação aos direitos naturais. Se acrescentarmos ao ponto metaético nossa afirmação de que o Estado não é um instrumento adequado para a promoção da virtude, então a superioridade natural seria relevante apenas se tivesse alguma relação com a proteção de direitos legítimos. Da mesma forma, a igualdade natural do homem só seria relevante se desse uma razão para tratar todas as desigualdades como aberrações da natureza que precisam ser corrigidas. Parece-me que ambas as posições falham em justificar as conclusões comumente tiradas delas. A superioridade natural não é uma pré-condição necessária para proteger os direitos básicos, e a igualdade da natureza humana não implica que a desigualdade seja de alguma forma ilegítima. A primeira é em grande parte uma questão administrativa; a proteção dos direitos pode ser alcançada igualmente bem sem homens e mulheres de talento superior. A segunda só poderia ser verdadeira se a igualdade excluísse diferenças de talento, esforço, desejo, gosto e assim por diante, o que claramente não é o caso.

O que parece ser verdade empiricamente é que a virtude é relativamente rara. Talvez seja o caráter excepcional da virtude que nos leva a considerar suas qualidades como virtuosas em primeiro lugar. No entanto, seja qual for o motivo de sua raridade, a liberdade exige que enfrentemos diretamente a perspectiva de que uma sociedade pode ser povoada com relativamente menos homens e mulheres virtuosos do que com mais. Nenhum mecanismo – sejam mercados, democracia, socialismo, progressismo ou qualquer outro – pode garantir mais do que menos virtude. A tentativa das eras modernas de substituir o governo de homens e mulheres virtuosos por mecanismos ou “sistemas” de ordem social como meio de controlar o vício ou promover a virtude não garante mais a virtude do que os esforços da antiguidade para instituir o governo dos sábios. Ambas as abordagens cometem o erro de pensar que a virtude é essencialmente um problema social. Embutida na teoria social libertária está a alternativa. A virtude é essencialmente um problema para os indivíduos. Se a sociedade em que se vive tem mais ou menos virtude é irrelevante para a obrigação de persegui-la.

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Gostaria de agradecer a Douglas Rasmussen por algumas sugestões úteis sobre um rascunho inicial deste artigo. Minha compreensão das questões metafísicas e epistemológicas relacionadas ao tópico deste artigo deve muito à sua influência.

 

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Notas

[1] Veja, por exemplo, os dois primeiros capítulos de A ética da liberdade (Atlantic Highlands, N.J.: Humanities Press, 1982).

[2] “Freedom and Virtue,” Reason Papers 5 (1979); reimpresso em The Libertarian Reader, edited by Tibor Machan (Totowa, N.J.: Rowman and Littlefield, 1982); também reimpresso em The Main Debate, editado por Tibor Machan (New York: Random House, 1986).

[3] O ensaio pode ser encontrado em Freedom and Virtue: The Conservative/Libertarian Debate, editado por George W. Carey (Lanham, Md.: University Press of America, 1984).

[4] Ética a Nicômaco, livro II, cap. 4, 1105a30-35.

[5] Douglas Rasmussen me lembrou que o termo “moral” aqui se opõe não apenas a “amoral”, mas também a “imoral”. O autodirecionamento, em outras palavras, não é apenas uma condição necessária para que uma ação seja moral, mas é necessariamente um constituinte do moralmente bom.

[6] “Minimalistas morais” são aqueles libertários que, como seus homólogos progressistas do Estado de bem-estar social, igualam moralidade essencialmente a direitos – havendo menos direitos para o libertário.

[7] F. A. Hayek, O caminho da servidão (Chicago: University of Chicago Press, 1944.

[8] Leo Strauss, Natural Right and History (Chicago: Chicago University Press, 1974), p. 300.

[9] É aqui que uma grande dívida é devida aos romances de Ayn Rand; pois ela, mais do que ninguém, cortou a conexão entre a perfeição moral e a premissa coletivista que sempre esteve ligada a ela.

[10] No que diz respeito às “virtudes restritivas”, a promoção destas pelo Estado é geralmente conseguida ao preço das virtudes liberais (por exemplo, Esparta vs. Atenas). Em face disso, este seria um preço muito alto a pagar. Em todo caso, é presumivelmente a presença de ambos os tipos de virtudes que desejamos.

[11] Entretanto, a falácia é válida para ambos os lados. Os críticos do libertarianismo podem argumentar que, embora a doutrina afirme respeitar os direitos individuais, a sociedade que os libertários imaginam não o faz de fato. Devemos manter separadas as questões do que é o caso do que se afirma ser o caso, como indica o próximo parágrafo. A falácia da defesa simplesmente argumenta que dizer X (ou não) não torna X (ou não X).

[12] Alan Gewirth, Reason and Morality (Chicago: University of Chicago Press, 1978), p. 1.

[13] República, Livro IV, 443d-e.

[14] Este último se vê oferecendo uma interpretação diferente sobre o que significa ser prejudicado, e não expandindo o papel do Estado na promoção direta da moralidade ou da virtude.

[15] F. A. Hayek, Law, Legislation and Liberty, vol. 1 (Chicago: University of Chicago Press, 1973), cap. 1.

[16] Henry B. Veatch, For an Ontology of Morals (Evanston, 111.: Northwestern University Press, 1971), pp. 49-56.

[17] Dada a posição kantiana de que não podemos conhecer as coisas em si mesmas e que, portanto, o que é X é uma função de nosso sistema conceitual, a questão que enfrentamos é qual sistema conceitual adotar? Filósofos contemporâneos, de Quine a Feyerabend e Rorty, parecem responder a essa pergunta em termos de quais valores temos. Mas então qual sistema de valores devemos adotar? Para uma discussão útil sobre esses assuntos, consulte Douglas Rasmussen, “Ideology, Objectivity, and Political Theory” (Paragon Press, 1986). A própria crença de Kant de que havia descoberto um esquema conceitual fixo foi, é claro, ameaçada pela geometria não euclidiana.

[18] E encontramos esta tese avançada de diversas fontes. Veja Post-Analytic Philosophy, editado por John Rajchman e Cornel West (Nova York: Columbia University Press, 1983).

[19] George J. Stigler e Gary S. Becker, “De Gustibus Non Est Disputandum”. The American Economic Review (março de 1977).

[20] Os princípios centrais do realismo clássico são: (1) a existência existe independentemente de nossa consciência dela; (2) podemos conhecer a natureza das coisas existentes; e (3) que a ética se preocupa essencialmente com a autorrealização. Para algumas perspectivas realistas em uma ou mais dessas categorias, veja Douglas Rasmussen, “Quine and Aristotelian Essentialism,” The New Scholasticism 58 (Verão 1984): 316-35; David Kelley, The Evidence of the Senses, (Baton Rouge: Louisiana State University Press, 1986); Henry Veatch, For an Ontonology of Morals, pp. 49-56; David Norton, Personal Destinies (Princeton: Princeton University Press, 1976); Douglas Den Uyl e Douglas Rasmussen, The Philosophic Thought of Ayn Rand (Champaign, 111.: University of Illinois Press, 1984), caps. 1, 4, 8.

[21] James Buchanan, The Limits of Liberty (Chicago: University of Chicago Press, 1975), p. 20.

[22] Ibid., pp. 7, 14.

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