A perspectiva de liberdade real em uma sociedade laissez-faire é deslumbrante, mas como tal sociedade pode ser tornada realidade? Ao longo das décadas, o governo silenciosamente cresceu e se espalhou, lançando tentáculos insidiosos e entrelaçados em quase todas as áreas de nossas vidas. Nossa sociedade está agora tão profundamente penetrada pela burocracia governamental, e nossa economia tão enredada em controles governamentais, que a dissolução do Estado causaria deslocamentos substanciais, temporários, porém dolorosos. Os problemas de se ajustar a uma sociedade laissez-faire são como aqueles enfrentados por um alcoólatra ou viciado em heroína que está pensando em largar o vício, e as dificuldades e desconfortos envolvidos podem fazer com que algumas pessoas decidam que seria melhor deixar as coisas do jeito que estão.
É ingênuo, no entanto, supor que podemos “deixar as coisas do jeito que estão”. Os EUA, e a maior parte do resto do mundo, estão presos em uma onda de decadência econômica e convulsão social que nada pode deter. Depois de décadas de “ajuste fino” governamental, nossa economia agora está tão distorcida e aleijada que temos uma classe numerosa e crescente de pobres sem perspectiva ou esperança. Esses pobres e despossuídos sentem um ressentimento muito bem justificado (embora geralmente mal direcionado) que expressam em manifestações e tumultos. As tentativas governamentais de ajudá-los, mesmo que tais tentativas pudessem ser livres de corrupção e clientelismo burocrático, apenas pioram a situação. Afinal, o governo só pode obter seu dinheiro de “ajuda” sangrando-o de nossa economia já doente, enfraquecendo-a ainda mais e criando mais pobres para serem ajudados. À medida que os pobres veem suas vidas se tornando cada vez mais miseráveis, apesar de todas as promessas políticas de ajuda, seu ressentimento deve se tornar mais violento.
Enquanto isso, as tentativas dos burocratas de impor cada vez mais controles governamentais para salvar uma economia que está morrendo devido a esses mesmos controles está nos empurrando rapidamente para o caminho da ruína financeira. Se esses esforços frenéticos para curar nosso envenenamento coletivista forçando-nos a engolir mais coletivismo não forem parados, mais cedo ou mais tarde nos empurrarão para o abismo do colapso econômico total – o tipo de colapso em que o dinheiro do governo perde todo o seu valor e pessoas morrem de fome nas ruas.
A escolha não é laissez-faire versus o status quo, porque não podemos manter o status quo de qualquer maneira. Forças socioeconômicas tremendas, postas em movimento há muito tempo através da pilhagem e usurpação de autoridade por parte do governo, estão quebrando a ordem atual sob nossos pés. Nossas escolhas se limitam a permitirmo-nos ser empurrados para o caos econômico e a tirania política, ou resistir aos tiranos e saqueadores burocráticos e trabalhar para estabelecer uma sociedade livre, onde cada homem possa viver sua própria vida e “fazer as coisas do seu jeito”. Qualquer que seja a nossa escolha, o caminho à frente provavelmente será difícil; mas a questão importante é: “A que tipo de sociedade queremos chegar no final?”
Com que rapidez uma sociedade laissez-faire pode ser estabelecida, e quais exatamente são as condições que podem acompanhar uma transição do governo para a liberdade, são questões impossíveis de prever devido a duas variáveis importantes – a rapidez com que a ideia de liberdade pode ser difundida, e por quanto tempo nossa economia pode resistir aos efeitos da intromissão governamental.
As economias de todas as principais nações estão em estágios variados de desintegração. Por décadas, os governos vêm inflando suas moedas para desviar mais dinheiro para o tesouro do que poderiam obter apenas com impostos. Mas o papel-moeda extra posto em circulação pela inflação distorce a economia ao causar maus investimentos. Esta é a parte de “expansão” do temido ciclo econômico. Os governos não se importam nem um pouco com uma expansão, já que a inflação lhes permite arrecadar mais receitas sem antagonizar o contribuinte (os burocratas sempre podem culpar a “espiral salário-preço” ou as “grandes empresas” ou “sindicatos gananciosos”). Mas assim que os efeitos de um aporte inflacionário passam, as pessoas veem o erro dos maus investimentos e os abandonam, e a “expansão” é substituída por uma “contração”. A única maneira de um governo evitar o doloroso reajuste de uma “contração” é aumentar continuamente a inflação, o que diminui continuamente o valor de cada unidade monetária na economia. Quando o valor do dólar de papel cai abaixo do valor do dólar-ouro, a população é proibida de possuir ouro, e o governo estabelece um “preço do ouro” artificial, o que eventualmente leva a crises recorrentes de “emigração” do ouro. Quando o valor de um dólar de papel cai abaixo do valor da prata física em quatro moedas de 25 centavos, as pessoas entesouram essas moedas, e o governo tem que emitir moedas de cuproníquel de baixo valor para aliviar a “escassez de moedas”.
Desta forma, o valor do seu dinheiro é gradualmente corroído até que tudo o que você tem no bolso seja papel sem lastro e cuproníquel de baixo valor. (Embora o dólar seja nominalmente lastreado em ouro, isso não ajuda em nada, pois o governo nos proíbe de possuir esse ouro!) A economia continua a operar com esse dinheiro falso simplesmente porque as pessoas estão acostumadas a acreditar que ele tem valor real. Mas, à medida que o governo é forçado a inflar cada vez mais para evitar uma depressão cada vez mais grave, a hiperinflação se instala e o valor da unidade monetária cai com velocidade crescente. O aumento de preços resultante força as pessoas a reconhecer o valor cada vez menor do dinheiro. Então há uma corrida louca para gastar dinheiro rapidamente, antes que ele perca mais de seu valor. As pessoas correm para comprar bens duráveis de qualquer tipo como reservas de valor, no lugar do dinheiro quase inútil. Essas tentativas frenéticas de se livrar do dinheiro e agarrar-se aos bens reduzem rapidamente o valor comercial do dólar a zero, e a economia fica sem nenhum meio de troca e deve recorrer ao escambo. Uma vez que o escambo é totalmente inadequado para sustentar uma economia industrializada (de que forma a General Motors pagaria seus empregados com base no escambo? Como sua mercearia pagaria o atacadista de quem compra os alimentos?), há desemprego em massa, miséria e fome.
Assim, a tentativa dos burocratas de evitar a depressão causada por suas políticas inflacionárias só consegue tornar a depressão muito mais severa, quando ela finalmente chega. Se eles recorrerem à hiperinflação, a depressão resultante envolverá o colapso completo da estrutura monetária do país, como na Alemanha após a Primeira Guerra Mundial. A Alemanha conseguiu se recuperar de seu colapso monetário rapidamente porque muitas das outras nações ainda tinham moedas bastante sólidas às quais os alemães podiam recorrer como meio de troca. O colapso para o qual estamos rumando será muito mais difícil de superar. A maioria das moedas do mundo não tem mais valor real por trás delas do que a dos Estados Unidos e, além disso, as principais moedas estão todas vinculadas umas às outras e ao dólar, de modo que, se o dólar entrar em colapso, todas elas também o farão. Tal colapso monetário mundial nos deixaria sem qualquer meio de troca, exceto o ouro e a prata que alguns indivíduos previdentes entesouraram, e mesmo isso pode ter que ser trocado no mercado negro devido a proibições governamentais. Até que esse ouro e prata possam se espalhar suficientemente pelas economias do mundo para levantá-las do escambo de volta para uma base monetária, milhões poderão ter morrido de fome. Os governos não podem criar dinheiro com papel, tinta e promessas. Uma vez que tenham destruído suas moedas, eles podem apenas esperar até que os processos do mercado restabeleçam um meio de troca.
Como o estado de nossa economia depende em grande parte dos caprichos de burocratas e políticos, é impossível prever se nossa moeda continuará a funcionar por vários meses ou por vários anos antes de entrar em hiperinflação e colapso final. Da mesma forma, é impossível dizer se o colapso acontecerá repentinamente, como em 1929-32, ou se tomará a forma de uma longa série de crises fiscais, cada uma pior que a outra. A única coisa que podemos dizer com certeza é que um dia de acerto de contas deve chegar para o dólar extremamente inflado e para todas as outras moedas instáveis do mundo, e que os governos inevitavelmente adotarão políticas destinadas a adiar esse dia de acerto de contas, tornando-o assim muito mais desastroso quando chegar.
Ao fazer a transição do controle governamental para uma sociedade laissez-faire, então, nossa primeira preocupação deve ser minimizar os efeitos do inevitável colapso econômico causado pelas peripécias fiscais dos políticos. Existem várias medidas que ajudariam muito, todas elas envolvendo a abolição das leis e regulamentações existentes – isto é, elas envolvem o retorno à liberdade do mercado.
Em primeiro lugar, a economia deve ser abastecida de meios de troca para substituir o dólar moribundo. Uma vez que o ouro e a prata provaram ser os meios monetários mais aceitáveis ao longo de séculos de comércio, isso significa que devemos colocar, o mais rapidamente possível, a maior quantidade possível de ouro e prata, nas mãos do maior número possível de indivíduos privados. Todas as restrições à propriedade e importação de ouro, sob qualquer forma, devem ser eliminadas o mais rápido possível, e as pessoas devem ser encorajadas a trocar seus dólares por todo o ouro e prata que resta no Tesouro a qualquer relação de preço que o livre mercado estabeleça. Todas as muitas restrições à mineração de ouro devem ser eliminadas para que a demanda por dinheiro possa ser parcialmente atendida com ouro recém-extraído.
Além de pôr metais monetários nas mãos de particulares, deve ser posto um fim a todas as leis que impedem a cunhagem privada de dinheiro. Os empresários devem ser tão livres para fabricar moedas para serem usadas no comércio quanto para fabricar aspiradores de pó. Em ambos os casos, os processos do mercado livre incentivarão os que têm os melhores produtos e eliminarão as fraudes.
O monopólio do banco central sobre o sistema bancário deveria ser quebrado, para que os empresários pudessem criar bancos completamente privados, regulados por nada além dos processos do mercado. É através do mecanismo do banco central que o governo inflaciona a moeda, e as leis de privilégios especiais que permitem que os bancos mantenham apenas reservas fracionárias contra seus depósitos à vista pioram o problema. A cunhagem privada e os bancos privados porão um fim permanente à inflação, à depressão e às crises monetárias.
Os críticos levantarão o ponto de que, sem as restrições que impedem os particulares de possuir ouro e cunhar seu próprio dinheiro, quase todos se apressariam em trocar seus dólares de papel por moedas de ouro e prata, ou por certificados lastreados por essas moedas. Isso precipitaria uma crise no dinheiro do governo e uma severa desvalorização real do dólar. E os críticos estão certos – isso é o que aconteceria. Mas uma crise econômica virá de qualquer maneira; os políticos já a tornaram inevitável. A crise será muito menos grave, e a recuperação muito mais rápida, se vier como resultado de as pessoas trocarem o dólar por um meio de troca verdadeiramente valioso, em contraste com o colapso do dólar devido à hiperinflação, deixando a população sem nenhum meio de troca monetário. Ao nos forçar a usar uma moeda inflacionada e cada vez mais desvalorizada, os burocratas estão nos negando nossa única chance de resgatar nossa economia e nossas poupanças do caos fiscal criado pelo governo. O dólar não pode ser salvo – já está morrendo de interferência governamental. Não deixemos os burocratas matarem toda a economia junto com ele, em uma fútil tentativa de salvar seu sistema monetário decadente e totalitário.
A discussão anterior assume que a transição para uma sociedade laissez-faire pode estar bem adiantada antes que a economia entre em colapso. Se a economia entrar em colapso primeiro, todas as medidas acima ainda serão aplicáveis para facilitar a recuperação; mas, é claro, ela será muito mais lenta e difícil.
Ao fazer a transição para uma sociedade laissez-faire, muitas instituições governamentais que têm sido parte integral da sociedade por anos, décadas ou séculos terão que ser abolidas. Os impostos são o menor dos problemas – obviamente, eles devem ser abolidos imediatamente. Tributação é roubo, e nunca há justificativa para continuar o roubo. A abolição de todos os impostos estimularia um surto imediato e rápido de crescimento em toda a economia, à medida que o dinheiro anteriormente drenado pelos desperdícios burocráticos e gastos políticos se tornasse disponível para uso produtivo. Imagine o impacto em sua própria prosperidade pessoal de ter sua renda real quase dobrada da noite para o dia (os impostos, incluindo todos os impostos ocultos, consomem mais de um terço da renda do homem médio). Essa mesma prosperidade seria sentida por toda a economia. À medida que a renda real de cada homem produtivo disparasse, haveria um aumento acentuado tanto no consumo quanto no investimento. O consumo significaria uma demanda maior por todos os produtos e serviços, e o investimento proporcionaria a estrutura de capital necessária para atender a essa demanda. Novos produtos seriam comercializados, novos empregos seriam criados e o padrão geral de vida aumentaria. (É verdade que o governo tanto gasta quanto investe receitas tributárias, mas sempre aloca essas receitas de maneira diferente de como seus legítimos proprietários as teriam alocado, distorcendo assim o mercado. Além disso, os investimentos governamentais são notoriamente esbanjadores e contraproducentes. O governo dos EUA criou certa vez um departamento (Abaca Production and Sale) para tomar controle do cultivo de cânhamo em quatro países da América Central, com base na teoria de que o cânhamo, que é usado para a fabricação de cordas, era estrategicamente vital. Mas esse cânhamo produzido pelo governo era de qualidade tão inferior que não podia ser vendido, nem mesmo para a própria fábrica de cordas do governo. Para se livrar do constrangimento, a Abaca Production and Sales vendeu o cânhamo inútil para outra agência do governo, o Estoque Estratégico. O cânhamo foi então armazenado, à custa dos contribuintes, em armazéns especialmente construídos. A cada ano, a safra do ano anterior era retirada e destruída para dar espaço para armazenar a nova safra. O prejuízo do contribuinte teve média anual de US$3 milhões.[1]
Os funcionários públicos teriam que encontrar empregos na iniciativa privada se quisessem trabalhar. Existem dois tipos principais de funcionários públicos – aqueles cujos serviços seriam demandados no livre mercado (professores, bibliotecários, secretários, bombeiros etc.) e aqueles que não desempenham nenhuma função útil, mas simplesmente mantêm a máquina governamental em funcionamento (legisladores, cobradores de impostos, arquivistas burocráticos, executivos do complexo militar-industrial, presidente e vice-presidente etc.). O primeiro tipo provavelmente encontraria dificuldades relativamente pequenas para se ajustar a uma sociedade livre. Um guarda florestal no Parque Nacional de Yellowstone poderia continuar com seu trabalho quase inalterado, se o Parque fosse adquirido por uma empresa privada para ser administrado com fins lucrativos. Advogados e juízes cujas mentes fossem jovens e flexíveis o suficiente para se ajustar à liberdade no lugar da lei estatutária poderiam vender seus serviços para agências de arbitragem da iniciativa privada. Por outro lado, os homens que passaram suas vidas como cobradores de impostos da Receita Federal, ou como agentes federais de narcóticos, não encontrariam demanda por seus “serviços” e, para sobreviver, teriam que mudar de carreira – talvez para a de lixeiros ou zeladores (trabalho honesto, para variar). Em certo sentido, isso seria uma penalidade parcial por terem escolhido carreiras de subjugar outros.
Mudar para uma sociedade laissez-faire certamente exigiria grandes ajustes na vida de muitas pessoas. É incrível, porém, como os ajustes podem ser feitos de forma rápida e eficiente em uma situação de livre mercado. Quando alguns homens querem vender seus serviços, outros homens querem comprar serviços para fabricar um produto, e ainda outros homens querem comprar o produto, nada pode impedi-los de se unir em um negócio mutuamente benéfico, exceto a interferência do governo. Assim, enquanto o nascimento de uma sociedade livre traria dificuldades temporárias para muitos, o período de ajuste seria bastante breve. No final, todos estariam melhor do que estavam sob o governo (com a possível exceção de parasitas como presidentes, conselheiros da Casa Branca e generais do Pentágono).
Mas e as obrigações do governo, como a dívida pública – quem irá garantir que sejam cumpridas? Aqueles que fazem essa pergunta nunca pararam para analisar o que se entende por “obrigações do governo”. Moralmente, o governo não passa de um bando bem organizado de assaltantes ricos. Para se manter no poder, ele pede dinheiro emprestado, concede privilégios especiais, e faz promessas a certos grupos e indivíduos. Mas de onde tira dinheiro para pagar suas dívidas e cumprir suas promessas? Dos impostos, ou seja, do roubo. Obviamente, as vítimas de uma gangue de bandidos não podem ser moralmente obrigadas a entregar seu dinheiro obtido honestamente para pagar dívidas que a gangue contraiu, no decorrer de seus esforços para perpetuar seu poder sobre essas mesmas vítimas. Nenhuma obrigação governamental de qualquer tipo é moralmente vinculativa para os cidadãos-súditos (ou ex-cidadãos-súditos) desse governo. Aqueles que voluntariamente emprestaram dinheiro ao governo são culpados de legitimar e apoiar as atividades da gangue de bandidos, e a justiça exige que eles assumam seus prejuízos e contentem-se com isso.
É claro que muitos daqueles que “emprestaram” dinheiro ao governo, esperando algum retorno futuro, o fizeram sem muita escolha (a Previdência Social é o principal exemplo desse ponto). Outros, que nunca pagaram voluntariamente aos cofres públicos, foram tornados dependentes de pagamentos de bem-estar social do governo, por causa da intromissão política que estrangulou a economia e lhes negou empregos decentes. Essas pessoas estão entre as vítimas mais trágicas dos sedentos por poder. Mas seguir coletando dinheiro à força para continuar esses pagamentos seria simplesmente perpetuar o próprio sistema que os escravizou em primeiro lugar. Em uma sociedade laissez-faire recém-nascida, essas pessoas teriam que encontrar empregos (que seriam abundantes após o período de ajuste) ou depender de caridade privada. Isso pode parecer duro, mas é muito menos terrível do que o que acontecerá com os pobres, os doentes e os velhos, se permitirmos que o governo continue no poder até que isso nos leve ao colapso econômico e à fome em massa.
Ao considerar as dificuldades pelas quais passariam pessoas como os beneficiários da Previdência Social durante a transição para uma sociedade laissez-faire, é justo lembrar que a maioria dessas pessoas é culpada de consentir, pelo menos passivamente, às predações dos políticos. Se um número suficiente delas tivesse protestado há algumas décadas, não estaríamos enfrentando essa crise induzida pelo governo hoje. As pessoas que docilmente compactuam com injustiças (afinal, ninguém mais está se opondo a elas) estão enchendo um reservatório de sofrimento. Se a barragem romper e forem engolidas pela enchente, elas não deveriam ficar muito surpresas. Elas mesmas, afinal, têm parcela de culpa pelas dificuldades, por consentirem passivamente quando deveriam ter resistido.
Uma das considerações mais importantes levantadas em relação à abolição do governo é o que deve ser feito com as riquezas e propriedades do governo. No que diz respeito à riqueza pecuniária, isso não é problema … já que o governo não tem nenhuma (como pode-se constatar com uma rápida olhada nos números da dívida pública). O governo possui, no entanto, uma tremenda quantidade e variedade de “propriedades” na forma de terrenos, edifícios, estradas, instalações militares, escolas, empresas como os Correios, Imprensa Oficial e centenas de outras menos conhecidas, prisões, bibliotecas, etc., etc. Embora esses itens estejam na posse temporária de quaisquer burocratas encarregados deles, na verdade eles não são de propriedade de ninguém. “O público” é incapaz de possuí-los, pois nada pode ser possuído por um mito coletivo como “o povo”. Políticos e burocratas não os possuem pela mesma razão que um ladrão não possui por direito a propriedade que roubou. “Propriedade pública” é, na verdade, propriedade potencial, sem dono e aberta a apropriação.
Uma vez que objetos de valor em poder do governo não são realmente sua propriedade, seria perfeitamente apropriado para qualquer um tomar posse de qualquer pedaço de “propriedade pública” a qualquer momento em que o governo se tornasse fraco ou descuidado demais para impedi-lo de fazê-lo. O homem que tomasse posse de uma outrora “propriedade pública”, reivindicando-a e marcando-a como sua para todos verem, se tornaria o legítimo proprietário dessa propriedade.
Já foi proposto por alguns que o processo de liquidação de “propriedade pública” deve ser feito de forma ordenada, vendendo os itens em leilão, em vez de simplesmente permitir que sejam reivindicados por quem chegar primeiro. O dinheiro assim arrecadado, afirmam, poderia então ser devolvido aos contribuintes na forma de restituições de imposto de renda, ou poderia simplesmente ser destruído (supondo que seja na forma de papel-moeda ou moeda fiduciária semelhante) para reverter o processo inflacionário e restaurar algum valor ao dólar.
No entanto, várias objeções podem ser levantadas a esse plano. Em primeiro lugar, seria quase impossível evitar uma grande quantidade de corrupção com as vultosas somas envolvidas. Dado um fluxo de dinheiro, um burocrata sempre pode descobrir uma maneira de desviar parte dele para seu próprio bolso; e quem policiaria os burocratas e políticos… se não outros burocratas e políticos? Em segundo lugar, este sistema é definitivamente tendencioso em prol de grandes empresas e indivíduos ricos. Isso não seria um problema, se os ricos fossem ricos em boa parte por seu próprio mérito, e os pobres fossem pobres em geral por sua própria incompetência e preguiça, como seria o caso em uma sociedade laissez-faire madura. Mas em nossa sociedade controlada pelo governo, muitos dos pobres são pobres porque a regulamentação burocrática e a tributação lhes negaram uma chance, e muitos dos ricos são ricos por causa de sua influência política.
Finalmente, vender “propriedade pública” em leilão inevitavelmente envolveria uma longa espera até que muitos dos itens pudessem ser usados de forma produtiva. Esse atraso tornaria o período de transição para uma sociedade laissez-faire mais longo e difícil, pois um atraso na produção significa um atraso na criação de empregos e de itens produzidos para consumo. E, a não ser que o processo se arrastasse indefinidamente, muitos itens teriam que ser abandonados, para serem simplesmente apropriados no futuro (quantas pessoas você conhece que estão interessadas em 100 acres a vinte quilômetros de distância da estrada mais próxima no meio do Deserto Mojave?). É claro que os políticos tentariam fazer com que os leilões se arrastassem indefinidamente, a fim de prolongar seu poder, e, assim, tornar-se-ia mais difícil se livrar deles.
De um ponto de vista moral, itens sem proprietário não podem ser vendidos de qualquer maneira. A venda é um meio de desfazer-se da propriedade, e propriedade é o que é possuído. Se algo não é possuído, não pode ser vendido, e a “propriedade pública” não é possuída por ninguém: nem pelo público, nem pelos políticos.
Uma objeção é que, se a “propriedade pública” pudesse ser apropriada por qualquer um que a reivindicasse, haveria um turbilhão de reivindicações confusas e contraditórias, e possivelmente violência e derramamento de sangue. É verdade que isso pode acontecer inicialmente, especialmente se o governo perder o poder de manter suas posses de uma só vez. Certas sociedades sobreviveram a um súbito fluxo de reivindicações de alguma riqueza particular em menor escala (as corridas do ouro são um exemplo notável). Embora haja muita confusão e alguma injustiça no início, as coisas geralmente se acalmam em um período de tempo bastante curto, especialmente quando há uma grande quantidade de potenciais propriedades desejáveis a serem reivindicadas, como é o caso da atual “propriedade pública.” E deve-se notar que tal situação de reivindicações conflitantes certamente estimularia o crescimento dos serviços de proteção, defesa e arbitragem da iniciativa privada. Esse efeito colateral positivo ajudaria a jovem sociedade laissez-faire a se desenvolver e fortalecer rapidamente.
Outros objetam que, se alguém pudesse reivindicar qualquer parte da outrora “propriedade pública”, muitos itens valiosos poderiam ser reivindicados por vagabundos, burocratas ou outras pessoas indignas. Novamente, é certamente verdade que isso pode acontecer em muitos casos. Mas as operações do livre mercado sempre penalizam os incompetentes, fazendo com que percam propriedades que são incapazes de operar efetivamente. Se um vagabundo bêbado reivindicasse a principal agência de correio de Chicago, o que ele faria com ela? Se lhe faltasse a capacidade de operar a instalação, teria simplesmente que mantê-la, e enquanto isso outra pessoa abriria um serviço de correio privado lucrativo em algum outro prédio de Chicago. Ou então o bêbado teria que vendê-la, e dessa forma ela seria colocada em uso produtivo, enquanto ele ficaria com uma quantia em dinheiro para desperdiçar em bebidas. De qualquer forma, o mercado logo atingiria uma condição de produtividade máxima, e o destino do vagabundo se tornaria irrelevante para todos, com exceção dele próprio.
Mas, enquanto os incompetentes seriam deixados de lado pelo funcionamento do livre mercado, aqueles com capacidade e iniciativa teriam a chance de fazer fortuna, independentemente de sua condição social e financeira anterior. Esse sistema de abrir para todos a possibilidade de reivindicar bens controlados pelo governo não só daria finalmente oportunidades valiosas para os pobres e vítimas de discriminação, mas também ajudaria a contrabalançar os efeitos da eliminação dos empregos no governo e dos programas de bem-estar social.
Certamente haveria dificuldades e incertezas temporárias envolvidas na transição da escravidão governamental para a liberdade do laissez-faire, mas homens livres agindo em um mercado livre seriam capazes de superá-las. E quando a transição fosse concluída, novas oportunidades se abririam para todos. Haveria mais e melhores empregos, melhores salários, miríades de novas ideias, invenções e oportunidades de negócios, e inúmeras chances de “ficar rico”. A inflação não poderia ameaçar a sociedade, porque haveria um sistema monetário sólido. Os bens de consumo se multiplicariam, os padrões de vida aumentariam, e a pobreza desesperadora e degradante das favelas de hoje se tornaria coisa do passado. Mais importante de tudo, haveria liberdade. Ninguém seria tributado, regulamentado ou forçado a viver sua vida de acordo com os padrões de outra pessoa. Ninguém precisaria temer que seus passatempos pacíficos e privados pudessem trazer a polícia até sua porta com um mandado de prisão. Ninguém seria forçado a se curvar à vontade de algum burocrata sedento por poder.
Por outro lado, se nossa sociedade continuar a ser controlada pelo governo, podemos esperar um aumento gradual de problemas econômicos, desemprego, inflação, crime, pobreza, e, eventualmente, um colapso completo do sistema monetário governamental, trazendo fome generalizada. Também podemos esperar uma erosão constante de nossas “liberdades” permitidas pelo governo, à medida que mais e mais burocratas encontram cada vez mais maneiras de cuidar de nossas vidas e exercer poder sobre nós.
Uma sociedade laissez-faire vale o pensamento, o esforço e a luta necessários para alcançá-la, porque a liberdade é a resposta para todos os nossos problemas sociais.
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Notas
[1] Para este e outros exemplos ridículos de desperdício do governo, ouça “Hayfoot, Straw-foot”, um LP de Willis Stone, disponível pela Key Records, caixa postal 46128, Los Angeles, Califórnia.