14. A abolição da guerra

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Algumas centenas de anos atrás, a devastação de pragas e fomes periódicas era aceita, sem questionamento, como uma parte normal e inescapável da existência humana – elas eram consideradas punições de um Deus indignado, ou meios da natureza de acabar com o “excesso de população”. Hoje, apesar de muito falar-se sobre paz, muitas pessoas aceitam a necessidade das guerras da mesma maneira impensada; ou pelo menos sentem que as guerras serão necessárias pelo futuro previsível. Serão as guerras uma parte inevitável da sociedade humana? E se não, por que todos os anos de negociações, as resmas de teorias, os solenes tratados e uniões de nações, e a enxurrada de esperanças e orações devotas não conseguiram manter a paz? Depois de toda a conversa, planejamento e esforço, por que nosso mundo está cheio de conflitos mais brutais e perigosos do que nunca?

A guerra é uma espécie de violência, e a causa mais básica da violência é a crença de que é certo, prático ou necessário que os seres humanos iniciem o uso de força uns contra os outros – que a coerção é permissível ou mesmo inevitável nas relações humanas. Na medida em que os homens acreditarem na praticidade e conveniência de iniciar a força contra outros homens, eles serão assolados por conflitos.

Mas a guerra é um tipo muito especial de violência – é um “conflito aberto e armado entre países, ou facções dentro do mesmo país” (Dicionário Webster), o que significa um uso organizado da força na maior escala possível, e uma devastação de amplitude e profundidade incomparáveis com qualquer outra catástrofe provocada pelo homem. Um conflito tão cuidadosamente organizado, maciço e deliberadamente destrutivo não pode ser explicado simplesmente pela crença dos homens na permissibilidade de iniciar a força contra outros homens. Deve haver algum outro fator nas crenças e instituições humanas que faz com que milhões de pessoas dediquem tamanho esforço à destruição e subjugação de outros milhões.

Na busca da causa da guerra, os homens já culparam de tudo, desde uma suposta depravação humana natural até as “necessidades dialéticas da história”. O bode expiatório mais popular da atualidade é o Grande Capital. Ouvimos falar dos que lucram com a guerra, do imperialismo econômico e do complexo militar-industrial, e nos dizem que os empresários precisam de guerras de conquista para ganhar mercados.

É perfeitamente verdade que existe uma aliança fascista entre o governo e muitas empresas em nossa sociedade atual, e que essa liga resulta no complexo militar-industrial-acadêmico que apoia firmemente o governo e suas políticas imperialistas. A questão é: qual é a causa dessa aliança profana? São empresários gananciosos pervertendo um governo que normalmente seria pacífico e não agressivo, ou é uma perversão das empresas pelo governo?

O complexo industrial-militar surgiu como resultado do poder do governo de usar tanto ameaças como benefícios para controlar as empresas (o que era apenas uma parte dos esforços dos políticos para controlar a todos).

Do lado das ameaças, temos leis antitruste, leis de comércio interestadual, leis de segurança, de saneamento, de licenciamento e toda uma série de outras proibições e regulações penduradas como uma espada de Dâmocles sobre as cabeças das empresas. Há muitos anos, o governo conseguiu tornar a legislação regulatória tão complexa, contraditória, vaga e abrangente que os burocratas podiam multar e prender qualquer empresário e destruir seu negócio, independentemente do que ele fizesse ou de quanto tentasse obedecer à lei. Essa trapaça legalizada dá aos burocratas um poder de vida ou morte sobre toda a comunidade empresarial, um controle que eles podem exercer e exercem por qualquer capricho, e contra o qual suas vítimas têm poucas chances de defesa.

Do lado dos benefícios, os políticos oferecem grandes e lucrativos contratos governamentais. Ao paralisar a economia com regulamentações e sangrá-la com impostos, o governo reduz drasticamente o número de contratos grandes e lucrativos provenientes do setor privado, o que força muitos empresários a escolher entre obter esses contratos do governo, ou prescindir deles. Para manter seu negócio viável, o empresário precisa ter lucro, e muitos deles simplesmente aceitam contratos governamentais, sem se preocupar em avaliar as questões éticas, ou então com a confortante crença de que estão sendo patriotas. O controle do governo sobre as empresas, usando essa tesoura de ameaças e benefícios, vem acontecendo há tanto tempo que a maioria dos empresários o aceita como normal e necessário (assim como a maioria das pessoas aceita impostos como normais e necessários).

Durante os últimos cem anos mais ou menos, muitos empresários ajudaram no crescimento desse fascismo, míopes quanto aos seus efeitos de longo prazo. Grandes industrialistas, que viam a intervenção do governo como uma maneira rápida e fácil de eliminar a concorrência e obter vantagens imerecidas, muitas vezes estavam na vanguarda das forças que exigiam regulação e controle do mercado. Afinal, o governo é um instrumento de força. Ele pode ser usado por qualquer um que obtiver controle temporário dele para extorquir vantagens de seus semelhantes. Empresários fizeram uso desse instrumento de força – assim como líderes trabalhistas, planejadores sociais, racistas, religiosos devotos e muitas outras forças sociais. Enquanto existir tal instituição de força organizada, indivíduos e grupos de interesse a usarão – se não para obter uma vantagem injusta, então para se proteger daqueles que buscam tais vantagens.

A atual aliança fascista entre governo e empresas, que definitivamente é agressiva e imperialista, é uma aliança forçada – forçada pelo governo e por aqueles que usam o poder do governo para extorquir vantagens de vítimas legalmente desarmadas. Mas se fossem separados, qual dos dois parceiros seria agressivamente malicioso e imperialista? Serão as empresas ou o governo a causa fundamental das agressões?

As empresas, quando separadas do governo, não apenas não são imperialistas, como são fortes e intransigentes inimigas da coerção. Os homens de negócios não têm nada a ganhar, e tudo a perder, com a destruição. As guerras de conquista não ganham mercados para as empresas. O efeito mais significativo da guerra sobre os mercados é prejudicá-los e destruí-los, matando e empobrecendo multidões de pessoas e paralisando a vida econômica de áreas inteiras. A iniciativa privada conquista mercados pela excelência de seus produtos em um ambiente competitivo; não tem nada a ganhar com o imperialismo.

O mundo dos negócios como um todo também não ganha com o lucro da guerra. Guerras são caras, e o ônus de apoiar as guerras recai pesadamente sobre as empresas, diretamente e também tirando dinheiro do bolso do consumidor que seria usado para a aquisição de bens e serviços. A vultosa quantidade de dinheiro despejada em uma guerra é permanentemente perdida, sem trazer nenhum retorno econômico. Depois de explodir cem mil dólares em bombas, você não ganhou nada, exceto cem mil dólares em crateras de bombas e escombros. Assim, os ganhos obtidos pelos fabricantes de munições e fornecedores do governo são mais do que engolidos pelas perdas sofridas pelas empresas como um todo. Aqueles poucos que ganham grandes fortunas com a guerra o fazem não como empresários operando em um livre mercado, mas porque têm influência política. E seu lucro com a guerra prejudica todos os produtores (assim como o público consumidor) ao prejudicar a economia como um todo.

As empresas são oponentes naturais da guerra porque os empresários são comerciantes, e você não pode negociar em meio a bombas caindo. Um industrialista nada pode ganhar com as ruínas e a pobreza que são os principais resultados da guerra. Além disso, os empresários são os produtores de uma sociedade, e são sempre os produtores que devem pagar as contas.

Não são as empresas que ganham com a guerra, mas o governo. Guerras bem-sucedidas deixam os governos com mais poder (sobre seus próprios cidadãos e sobre os das nações conquistadas), mais dinheiro (na forma de pilhagem, tributos e impostos) e mais território. Quanto mais totalitário um governo, mais despojos ele tenta extrair de suas guerras, mas todos os governos, mesmo os relativamente limitados, ganham grandes quantidades de poder e pilhagem com guerras bem-sucedidas. Além disso, a guerra costuma ser ideologicamente útil para unir a população em torno do governo diante de um “inimigo comum”. As pessoas podem ser convencidas a sacrificar mais, com menos resistência, se acreditarem que correm o risco de serem invadidas pelos terríveis russos (ou os chineses vermelhos, ou “chucrutes”, ou japas, ou outros “inimigos comuns” ad infinauseum!).

As guerras são iniciadas e realizadas pelos governos. Governos, não indivíduos privados, provocam conflitos maciços através de corridas armamentistas e apropriações territoriais imperialistas. São os governantes, não os empresários e cidadãos, que declaram guerras, recrutam soldados e cobram impostos para sustentá-las. Não há organização social capaz de travar uma guerra de agressão, exceto o governo. Se não houvesse governos, ainda haveria agressores individuais e possivelmente até pequenas gangues, mas não poderia haver guerra.

Considerando a natureza dos governos, não é nenhuma surpresa que sejam a fonte da guerra. Um governo é um monopólio coercitivo – uma organização que deve iniciar a força contra seus próprios cidadãos para existir. Uma instituição construída sobre a força organizada necessariamente cometerá agressões e provocará conflitos. Todas as guerras são, em última análise, guerras políticas. Elas são disputadas pela questão de quem irá governar.

Assim, para abolir a guerra, não é necessário tentar a tarefa impossível de mudar a natureza do homem para que ele não mais possa escolher iniciar a força contra outros – é apenas necessário abolir os governos. Isso não significa que o estabelecimento de uma ou mesmo várias áreas de laissez-faire vá acabar imediatamente com a guerra, porque enquanto houver um governo viável e poderoso, a ameaça de guerra permanecerá, e as áreas livres precisarão se manter em guarda. Mas se a sociedade laissez-faire se tornasse uma realidade em todo o mundo civilizado, a guerra deixaria de existir. Existe alguma esperança prática de que tal situação sem governo e sem guerra venha a existir em todo o mundo após o estabelecimento de uma área livre? Para responder a esta pergunta, será necessário examinar os efeitos que uma sociedade laissez-faire teria no resto do mundo.

Uma sociedade laissez-faire não poderia ter “relações exteriores” com as nações do mundo, não no mesmo sentido que um governo, porque cada habitante seria um indivíduo soberano agindo apenas em seu próprio nome, e não por um conjunto coletivo de seus semelhantes. No entanto, apesar disso, uma sociedade laissez-faire teria um efeito profundo e inescapável no resto do mundo como resultado de sua mera existência.

Uma sociedade laissez-faire seria, em virtude de sua liberdade, superior a qualquer sociedade governamental em três áreas econômicas cruciais – pesquisa científica, desenvolvimento industrial e seu sistema monetário. É óbvio que quanto mais os homens forem livres para investir em qualquer interesse não coercitivo, para auferir as recompensas de sua pesquisa e para usufruir de plena propriedade sobre qualquer bem assim conquistado, mais esforço inteligente eles dedicarão à pesquisa e mais descobertas serão feitas. E como o mercado recompensa apenas a pesquisa produtiva, uma sociedade livre evita o tremendo desperdício de esforços e recursos inerentes aos programas de pesquisa patrocinados pelo governo. Da mesma forma, a liberdade fornece o maior incentivo ao desenvolvimento industrial, pois qualquer interferência governamental constitui uma distorção do mercado. Quanto ao sistema monetário, as moedas do governo raramente ficam livres de problemas por muito tempo, e quanto mais forem manipuladas, mais profundos e desconcertantes se tornam seus problemas. Não é exagero dizer que, em uma sociedade industrial moderna, uma empresa bancária operando no livre mercado e emitindo dinheiro em concorrência com outras empresas não ousaria experimentar o tipo de política monetária absurda e desastrosa em que os governos continuamente se envolvem. Qualquer empresa de livre mercado que emitisse uma moeda tão pouco confiável quanto a emitida pela maioria dos governos seria rapidamente levada à falência por seus concorrentes financeiramente mais robustos.

Em suma, homens livres podem e irão construir uma economia mais forte do que homens que são tributados, perseguidos, regulamentados, legislados, obrigados – isto é, mantidos em algum grau de escravidão pelos governos. Esse princípio pode ser visto em operação mesmo nos dias de hoje, no contraste de forças econômicas entre as nações do bloco comunista, totalitárias e controladas pelo governo, e as nações comparativamente menos escravizadas do Ocidente. A despeito da propaganda soviética e da adulação dos ocidentais de mentalidade estatista, a economia soviética é continuamente assolada por incompetência grosseira, escassez de produtos fundamentais, produtos de baixa qualidade, crises agrícolas, desemprego severo e desorganização generalizada. O “rápido crescimento econômico” da Rússia não passa de um mito.[1] Na verdade, é extremamente duvidoso que a tirania comunista pudesse ter sobrevivido sem a ajuda substancial dos governos do Ocidente, especialmente dos EUA.[2]

A economia americana, apesar de prejudicada por interferências governamentais e roubada de bilhões de dólares para “ajuda externa”, ainda consegue superar em muito a economia cambaleante da União Soviética, mesmo os soviéticos tendo obtido de países europeus conquistados e da ajuda do governo americano fábricas inteiras, hordas de técnicos, rios de bens estratégicos e navios carregados de alimentos. Uma comparação das economias americana e soviética permite vislumbrar a vasta superioridade de uma economia laissez-faire sobre qualquer economia não livre. E a força militar é necessariamente baseada na força econômica.

Por causa de sua força econômica, uma sociedade laissez-faire exerceria um efeito profundo sobre as nações do mundo, mesmo que não tivesse um governo para formular e executar uma política externa. Primeiro, a existência de uma área livre faria com que o resto do mundo experimentasse uma “fuga de cérebros” de proporções tão tremendas que faria a fuga de cérebros que atualmente preocupa os britânicos parecer risível em comparação. À medida que a economia da sociedade laissez-faire se expandisse quase explosivamente em resposta à liberdade, produziria uma grande demanda por homens de inteligência e habilidade, e seria capaz de oferecer a esses homens recompensas maiores – em termos de dinheiro, condições ideais de trabalho, oportunidade de se associar com outros homens capazes, e (acima de tudo) liberdade – do que qualquer sociedade controlada pelo governo. Produtores de todas as nações buscariam se mudar para a sociedade laissez-faire. Muitos poderiam mudar não apenas eles próprios, mas as suas empresas inteiras. Eles veriam que, escapando da tributação e da regulamentação, poderiam obter maiores lucros, mesmo que tivessem que pagar custos adicionais de frete e salários mais altos. Tal afluxo de negócios causaria uma grande demanda por mão de obra competente na área livre, o que elevaria os salários. Também tenderia a tornar economicamente dependentes da sociedade laissez-faire – e, portanto, relutantes em atacá-la – aquelas nações que perderam produtores e empresas.

Os governos não seriam capazes de oferecer o suficiente aos homens mais capacitados de seus países para impedi-los de afluir aos milhares para as excitantes oportunidades da sociedade laissez-faire. Se eles quisessem manter tais homens, os governos teriam que segurá-los à força, como os países da Cortina de Ferro fazem agora, e a experiência desses países demonstrou que homens capazes não funcionam bem sob coação. Uma fuga de cérebros dessa magnitude constituiria uma hemofilia incapacitante para as nações do mundo, e a única resposta que os governos poderiam dar a ela seria instituir medidas restritivas – um movimento em direção à tirania que também seria paralisante – ou dissolverem-se (o que é improvável, considerando a natureza da política).

Mas uma “fuga de cérebros” não é a única hemofilia que os governos do mundo experimentariam, à medida que seus cidadãos tomassem conhecimento das oportunidades na área livre – haveria também uma fuga de capital. Os investidores sempre tentam colocar seu capital em áreas de lucro máximo e risco mínimo (ou seja, incerteza futura mínima), e uma das maiores fontes de incerteza futura é o poder dos burocratas de emitir diretrizes e regulações a qualquer momento. Isso significa que as empresas em uma sociedade laissez-faire estariam no topo da lista de investimentos atraentes para investidores em todo o mundo. Assim como a fuga de cérebros, a fuga de capitais fortaleceria a área livre às custas das nações; e, de forma semelhante, a única resposta que seus governos poderiam dar seria uma legislação mais restritiva – que enfraqueceria ainda mais suas economias – ou a autodissolução.

A existência de uma sociedade laissez-faire também teria um efeito profundo nos sistemas monetários governamentais. É comum que os governos minem a força de suas moedas adotando práticas inflacionárias. (Eles fazem isso porque a inflação é uma espécie de imposto sorrateiro que permite que o governo gaste mais dinheiro do que arrecada, colocando moeda nova na economia, roubando assim um pouco do valor real ou suposto de cada unidade de moeda já existente.) À medida que as cargas tributárias se tornam mais opressivas, poucos governos podem resistir à tentação de evitar o protesto dos cidadãos recorrendo à inflação. Eles então protegem suas moedas instáveis ​​da desvalorização, enquanto for possível, através de acordos internacionais que fixam o valor relativo das moedas, e obrigam as nações a se ajudarem em crises financeiras. De certa forma, a principal proteção de uma moeda inflacionada é o fato de todas as outras moedas importantes do mundo também serem inflacionadas. Mas as moedas de uma sociedade laissez-faire, estando sujeitas às regras do mercado, não poderiam ser inflacionadas (moedas inflacionadas seriam expulsas de um mercado livre por moedas estáveis). Os detentores de capital naturalmente querem mantê-lo na forma do dinheiro mais estável disponível, então eles tenderiam a vender moedas governamentais e comprar dinheiro do livre mercado. Esse movimento por si só enfraqueceria ainda mais as economias governamentais, pois causaria uma efetiva desvalorização de suas moedas. Poderia muito bem precipitar uma série de crises financeiras quase fatais entre as nações. Assim, um governo teria que escolher entre manter uma moeda estável (necessitando uma limitação estrita das funções do governo) ou tentar proteger sua moeda com um muro de legislações restritivas que paralisariam sua economia e, na melhor das hipóteses, fariam pouco mais do que adiar seu colapso.

Esses exemplos mostram como uma sociedade laissez-faire de tamanho considerável, simplesmente por existir, amplificaria as tensões dentro das nações e compeli-las-ia a se mover rapidamente em direção à tirania ou à liberdade completa. A sociedade laissez-faire não criaria essas tensões; sua presença apenas agravaria as tensões criadas há muito tempo pelas políticas irracionais e coercitivas dos governos. Essas tensões destruiriam o equilíbrio precário de todas as nações ao mesmo tempo.

Em todas as nações, há algum grau de conflito entre os cidadãos e o governo. Em nações com governos relativamente limitados, esse conflito pode ser apenas marginal; mas nos países totalitários pode chegar a uma guerra civil latente entre os governados e os governantes.[3] Na medida em que as pessoas percebem que a liberdade é prática, mas que lhes está sendo negada, esse conflito se intensifica. Também é intensificado pela adição de novas medidas restritivas pelo governo, especialmente se as medidas forem impostas repentinamente, sem muita propaganda prévia para preparar os cidadãos. A existência de uma sociedade laissez-faire bem-sucedida demonstraria a praticidade da liberdade e forçaria os governos a tomar novas e repentinas medidas restritivas, ampliando ainda mais suas tensões internas, colocando as pessoas conscientemente contra seus governos.

Ao demonstrar que o governo é não só desnecessário, mas positivamente prejudicial, uma sociedade laissez-faire bem-sucedida despojaria todos os governos de sua santidade mística aos olhos de seus cidadãos. A razão pela qual a instituição do governo persistiu nos tempos modernos é que as pessoas se submetem às suas depredações, e o fazem porque acreditam que sem um governo haveria caos. Essa crença quase universal na necessidade do governo é o baluarte mais forte da tirania. Uma vez que a ideia da natureza da liberdade plena tenha sido semeada no mundo e sua praticidade demonstrada, os governos perderão o respeito de seus cidadãos, e a única lealdade que poderão inspirar neles será aquela obtida pela força. Afinal, são as ideias que determinam como os seres humanos moldarão suas vidas e sociedades.

Mas os funcionários do governo não abrem mão de seu poder e renda com facilidade, mesmo quando há uma grande demanda popular por uma redução no governo. Em alguns países, a ideia de liberdade pode ser forte o suficiente, e o governo fraco o suficiente, para que a opinião popular force uma série de cortes no tamanho e poder do governo até que ele se torne apenas simbólico, e finalmente inexistente. É provável, no entanto, que a maioria dos governos resistam, tornando-se mais restritivos e tirânicos; e isso é particularmente verdadeiro em países com grau avançado de controle governamental. Assim, a maior parte do mundo sem liberdade degeneraria em várias combinações e graus de tirania, revolta e caos social.

Apesar da crença popular em contrário, na verdade o grau de tirania de um governo é o grau de sua vulnerabilidade, particularmente na esfera da economia. Os governos totalitários, a despeito de sua aparência de unidade maciça e invencível, estão interiormente apodrecidos com inépcia, desperdício, corrupção, medo, e um grau inacreditável de má governança. Essa é, necessariamente, a sua realidade… em razão da própria natureza do controle governamental.

O controle governamental é o controle pela força, pois a coerção é a fonte do poder do governo (a fonte do poder de mercado é a excelência do produto e do desempenho). Quanto mais totalitário um país, mais seus cidadãos devem ser motivados, não pelo incentivo das recompensas esperadas (a motivação do lucro), mas pelo medo. Sem liberdade para desfrutar das recompensas de sua produtividade, um homem não tem incentivo para produzir, exceto o medo das armas do governo. Mas tal ameaça evocará apenas o esforço mínimo necessário para evitar o dano ameaçado, e isso apenas na medida em que o ameaçador estiver constantemente observando.

Ainda mais paralisante é o fato de que as ameaças não produzem ideias inovadoras. A mente de um homem só pode pertencer a ele; ele é a única pessoa que pode ordenar que a mente produza ideias. O medo é paralisante; se uma ameaça é forte o suficiente para motivar um homem a tentar produzir uma ideia inovadora, geralmente gerará medo demais para que ele pense bem. É por isso que as ditaduras sentem necessidade de permitir a seus cientistas e outros intelectuais um status privilegiado especial, com liberdades e incentivos extras. Eles precisam fazer isso, embora seja extremamente perigoso para uma tirania abrigar intelectuais que são livres para pensar e expressar até mesmo uma leve condenação de seus governantes. Qualquer ditadura deve andar constantemente sobre a corda bamba entre dar liberdade demais a seus intelectuais, permitindo que se tornem rebeldes, e reprimi-los demais para que produzam ideias. E o que é verdade para os intelectuais é verdade em menor grau para todos os milhões de indivíduos comuns e trabalhadores cujas pequenas ideias de “como fazer melhor” contribuem tanto para o avanço econômico.

Além dos efeitos de sufocação da iniciativa causados por substituir a liberdade pelo medo, as inevitáveis ​​regras e regulamentações governamentais estorvam e estrangulam a economia. Quando livre de interferência, o mercado está sempre se movendo em direção ao equilíbrio – isto é, em direção a uma condição que elimina a escassez e o excedente e minimiza o desperdício econômico. Na medida em que o mercado sofre interferência dos controles governamentais, ele não consegue mais responder à realidade econômica, e torna-se distorcido. Então escassez, excedentes, atrasos, desperdícios, filas, racionamentos, preços altos e mercadorias de má qualidade tornam-se a regra.

O planejamento central também não é a resposta para esses problemas. A suposição de que alguém, ou mesmo um grupo de pessoas, poderia regular uma economia é absurdamente ingênua. O maior computador já construído não conseguiria lidar com o volume de dados que é tratado automaticamente pelas escolhas individuais feitas diariamente no mercado. Além disso, esses dados são baseados em milhões de escolhas de valores individuais, todas feitas a partir de pontos de referência individuais e separados, de modo que os itens não podem ser medidos e comparados como exigido por um computador. O “planejamento centralizado” apenas distorce o mercado, impondo-lhe configurações que normalmente não assumiria e impedindo seus mecanismos autocorretivos de funcionarem. Não há como uma economia planejada funcionar. Quanto mais planejada for, mais distorcida e inflexível será, e mais fraca será a nação.

A tirania é, por sua própria natureza, contraproducente e cheia de tensões internas. A União Soviética, por exemplo, deriva sua força quase inteiramente das enormes quantidades de ajuda fornecidas pelos países relativamente menos escravizados do Ocidente, particularmente os Estados Unidos da América. Sem essa ajuda fornecida por impostos confiscados de produtores em nações menos tirânicas, a ditadura soviética já teria desmoronado há muito tempo.[4]

A tirania por si só é impotente, porque saqueadores não produzem e produtores não podem produzir a menos que sejam livres para fazê-lo. A crença de que as nações totalitárias são naturalmente mais fortes do que as mais livres é uma consequência da dicotomia moral versus prática. Se aquilo que é moral fosse, por sua própria moralidade, inevitavelmente impraticável, então o bem estaria necessariamente vulnerável e desarmado, pois o mal teria tudo que é prático a seu favor.

Aqueles que continuam a acreditar, apesar de todas as evidências em contrário, que o totalitarismo fortalece uma nação estão revelando uma admiração enrustida pela ditadura. Tal admiração surge a partir de uma dependência psicológica, que não consegue conceber a ideia de ser livre e depender de seus próprios meios incertos. O homem psicologicamente dependente deseja ser conduzido e dirigido, para fugir à responsabilidade de tomar decisões; ou então ditar aos outros, para se convencer de uma eficácia que não possui.

Como a tirania é necessariamente fraca e vulnerável, as tensões criadas pela existência de uma sociedade laissez-faire dentro das nações controladas por governos as forçariam a se mover em direção à liberdade completa ou à impotência e ao caos. Ao mesmo tempo, a ideia fascinante de que a liberdade real é possível e prática criaria uma onda crescente de demanda popular por essa liberdade em nações de todo o mundo. Os governos perderiam apoio à medida que seus cidadãos perdessem seu patriotismo irracional. Assim, a sociedade laissez-faire, simplesmente por existir, enfraqueceria seus inimigos e promoveria a ascensão da liberdade fora de suas fronteiras, provocando o desmantelamento de governos e o surgimento de novas áreas livres.

Mas a sociedade laissez-faire espalharia a liberdade por todo o resto do mundo, não apenas de forma passiva, por meio das condições causadas por sua existência, mas ativamente – pelas relações comerciais. Indivíduos livres negociando com nativos de países estrangeiros não teriam nenhuma obrigação de reconhecer a validade de seus governos, assim como não teriam que reconhecer outros tipos de gangues de bandidos. Como eles enxergariam os governos como realmente são, estariam psicologicamente livres para se defenderem contra esses governos. Eles obedeceriam às restrições comerciais de estados estrangeiros apenas na medida em que fosse de seu interesse fazê-lo, e as ignorariam e desobedeceriam sempre que isso se mostrasse vantajoso. Eles não sentiriam nenhum remorso ao ver governos tombarem, já que o fim dos governos sempre significa um aumento na liberdade e na prosperidade.

Quando indivíduos livres fizessem negócios em territórios ainda sob o controle de governos, eles desejariam ter suas propriedades estrangeiras protegidas, assim como o restante de suas propriedades. As companhias de seguros e defesa, sempre à procura de novas oportunidades de vendas, ofereceriam essa proteção (com preços e particularidades adequadas à quantidade de perigo envolvida em cada nação, é claro). Os serviços de proteção e defesa poderiam aplicar-se simplesmente às depredações de criminosos privados. Ou, se o governo não fosse particularmente forte, também poderia proteger a empresa segurada da ameaça de nacionalização, e até mesmo de tributação e regulamentação.

Imagine uma pequena ditadura sul-americana, enfraquecida por tensões econômicas e uma demanda popular por mais liberdade, resultante da existência de uma sociedade laissez-faire nas proximidades. O que faria o ditador de tal país, se confrontado por uma grande e poderosa companhia de seguros e seu serviço de defesa (ou mesmo uma coalizão de tais empresas) exigindo que ele removesse todos os impostos, restrições comerciais e outras agressões econômicas de, digamos, uma mineradora protegida pela seguradora? Se o ditador recusar a exigência, enfrentará um confronto armado que certamente o expulsará de sua confortável posição de governo. Seu próprio povo está inquieto e pronto para se revoltar por qualquer motivo. Outras nações estão ocupadas com problemas semelhantes e não estão dispostas a provocar mais problemas apoiando sua pequena ditadura. Além disso, a seguradora, que não reconhece a validade dos governos, declarou que em caso de agressão contra seu segurado exigirá o pagamento de indenizações, não do país como um todo, mas de cada indivíduo diretamente responsável por comandar e realizar a agressão. O ditador hesita em correr um risco tão terrível, e sabe que seus oficiais e soldados ficarão muito relutantes em cumprir sua ordem. Pior ainda, ele não pode atiçar a população contra a companhia de seguros incitando-os a se defenderem – a companhia de seguros não representa nenhuma ameaça para eles.

Um ditador em uma posição tão precária seria fortemente tentado a ceder às demandas da companhia de seguros para não perder tudo (como os gestores da companhia tinham certeza que ele faria antes de firmar o contrato com a mineradora). Mas mesmo ceder não salvará por muito tempo o governo do ditador. Assim que a seguradora consegue impor a não interferência na mineradora, ela criou um enclave de território livre dentro da ditadura. Quando se tornar evidente que a seguradora pode cumprir sua promessa de proteção contra o governo, inúmeras empresas e indivíduos, tanto da sociedade laissez-faire quanto cidadãos da ditadura, correrão para comprar proteção semelhante (um lucrativo surto de vendas previsto pela seguradora no momento da sua ação original). Neste ponto, é apenas uma questão de tempo até que o governo desmorone por falta de dinheiro e apoio, e todo o país se torne uma área livre.

Dessa forma, a sociedade laissez-faire original, assim que suas companhias de seguros e agências de defesa se tornassem suficientemente fortes, geraria novas sociedades laissez-faire por todo o mundo. Essas novas áreas livres, à medida que o livre comércio as tornasse economicamente mais fortes, dariam à liberdade uma base tremendamente ampliada para operar, e ajudariam a evitar que a liberdade pudesse ser aniquilada por um ataque furtivo bem-sucedido contra a sociedade laissez-faire original. À medida que o mercado livre mundial e interconectado assim formado se tornasse mais forte, e os governos do mundo se tornassem mais tirânicos e caóticos, seria possível para as companhias de seguros e agências de defesa criarem enclaves livres dentro de mais e mais nações, uma oportunidade de vendas que elas rapidamente iriam aproveitar.

É óbvio que, embora uma sociedade laissez-faire possa ser vulnerável em sua infância, rapidamente ganharia força à medida que amadurecesse. Ao mesmo tempo, as nações do mundo se tornariam mais fracas e caóticas, abrindo caminho para o estabelecimento de enclaves livres que destruiriam governos e formariam um livre mercado mundial. Na maturidade final desse livre mercado, não haveria mais governos, e assim… não haveria mais guerras. A única maneira pela qual essa condição de paz e liberdade mundial poderia ser perdida é se um grande número de pessoas regredisse à superstição “queremos um líder” e exigisse o retorno de governos em todo o mundo. No entanto, existem fortes salvaguardas contra esse desastre. Não apenas seria difícil que um movimento como esse se espalhasse por um mundo esclarecido, mas indivíduos capazes tendem a não querer um líder, e os incapazes tendem a não ser influentes no ambiente justo de uma sociedade laissez-faire.

A duração da infância possivelmente vulnerável de uma sociedade laissez-faire, e a possibilidade e magnitude de quaisquer guerras durante esse período, dependem de fatores variáveis ​​além de nossa capacidade de previsão. Por exemplo, o tamanho e a localização da área livre original teriam grande influência em sua força, e consequentemente sobre sua segurança e taxa de propagação. Um país grande e bem industrializado com recursos naturais adequados é obviamente preferível, enquanto uma pequena ilha correria o risco de ser invadida antes de começar a prosperar.

Outra variável importante é o grau de deterioração econômica presente no mundo como um todo no momento em que a sociedade laissez-faire é estabelecida. As políticas econômicas governamentais estão levando o mundo a um caminho sem volta para o desastre econômico. Seria ideal que os governos estivessem tão fracos economicamente quanto possível, mas ao mesmo tempo, se a sociedade laissez-faire surgisse em circunstâncias de ruína financeira, muita energia valiosa terá que ser gasta apenas para trazer ordem fiscal e sanidade à desordem social resultante.

Provavelmente as variáveis ​​mais importantes se referem ao grau de difusão da ideia da liberdade, sua natureza e praticidade. Se a esmagadora maioria das pessoas na área livre estiver firmemente convencida dos benefícios pessoais da liberdade, ela obviamente será uma força a ser respeitada. Além disso, a disseminação da ideia pelas principais nações contribuiria muito para minar sua força. É bom lembrar que as ideias não conhecem fronteiras.

Uma vez que os governos do mundo são geralmente controlados por homens que têm um profundo desrespeito pela importância e eficácia das ideias, é um tanto questionável se eles seriam capazes de reconhecer a ameaça que a ideia de liberdade representa para eles a tempo de evitá-la. Para os homens que vivem com base no pragmatismo do momento, as ideias podem ser quase invisíveis. Além disso, os líderes do mundo estão paralisados ​​por sua cínica fidelidade à filosofia desgastada e ensanguentada do estatismo, que há muito provou sua incapacidade de gerar qualquer felicidade humana. Eles não têm nenhum fervor idealista para estimulá-los e excitar seus seguidores, mas apenas um apego cansado e medroso a um status quo familiar. A onda do progresso já os ultrapassou.

Já que a vida não oferece garantias automáticas de segurança e sucesso, não há garantia de que uma sociedade laissez-faire sobreviveria e prosperaria. Mas a liberdade é mais forte que a escravidão, e uma boa ideia, uma vez difundida, é impossível de ser eliminada. A ideia de liberdade é a inoculação que pode matar governos parasitas e prevenir a doença da guerra.

 

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Notas

[1] Para verificação, ver Workers’ Paradise Lost, de Eugene Lyons.

[2] Para documentação desta ajuda inacreditável, veja Roosevelt’s Road to Russia, de George N. Crocker.

[3] Ver Eugene Lyons, Workers’ Paradise Lost, página 105.

[4] Esta afirmação é adequadamente corroborada pelo excelente livro de Werner Keller, East Minus West Equals Zero.

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Morris & Linda Tannehill
são dois ativistas e pensadores libertários que, no início dos anos 1970, fizeram avanços surpreendentemente profundos na teoria da sociedade sem estado. Seu manifesto de livre mercado, O Mercado da Liberdade, foi escrito logo após um período de intenso estudo dos escritos de Ayn Rand e Murray Rothbard; tem o ritmo, a energia e o rigor que você esperaria de uma discussão de uma noite com qualquer um desses dois gigantes.

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