21. Lei Natural Clássica e Teoria Libertária

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Carlo Lottieri

[Carlo Lottieri ([email protected]) é um filósofo político italiano da Universidade de Siena e do Instituto Bruno Leoni, cujos principal interesse é pensamento libertário contemporâneo. Mais recentemente, ele editou uma antologia de escritos de Bruno Leoni, Law, Liberty and the Competitive Market (New Brunswick, N.J.: Transaction, 2009).]

 

Se o libertarianismo deseja abandonar as categorias políticas modernas, ele tem que pensar sobre a lei de uma maneira diferente.

Murray N. Rothbard, o expoente mais importante da escola libertária radical, está certo quando rejeita o historicismo e o relativismo do realismo jurídico, e quando – pelas mesmas razões – ele critica Hayek e Leoni. Mas, infelizmente, ele não compreende realmente a função da evolução para a lei natural clássica. Além disso, sua ideia de construir um código libertário é completamente inconsistente com suas referências frequentes à herança jurídica grega e cristã.[1]

Em Por uma nova liberdade, Rothbard aponta que a história de uma lei que muda e evolui pode ser útil para encontrar regras justas: “no entanto, já que temos um corpo de princípios de lei comum [NT: direito consuetudinário] aos quais recorrer, a tarefa da razão em corrigir e aditar a lei comum seria muito mais fácil do que tentar construir um corpo de princípios jurídicos sistemáticos de novo, do nada.”[2]

Mas a relação entre a lei comum e a lei natural deve ser vista de forma diferente. A lei comum não é apenas uma ferramenta interessante para descobrir a lei natural: ela tem seu papel específico. A lei positiva precisa interagir com os princípios da lei natural, mas mesmo esta última não pode ser considerada autossuficiente.

Além disso, em sua defesa da racionalidade, Rothbard não percebe que o direito não pode ser lido inteiramente no quadro praxeológico, que é axiomático e dedutivo. A divisão de teoria e história coloca algumas disciplinas em oposição a outras, mas acima de tudo faz uma distinção dentro de qualquer campo de estudo.

A economia, por exemplo, é uma ciência teórica se considerada como economia política, mas uma atividade histórica e empírica se analisa o que aconteceu no passado.[3] Isso também vale para os estudos jurídicos, porque eles têm uma parte teórica, mas, ao mesmo tempo, incluem muitos outros aspectos que, pelo contrário, são históricos e não podem ser examinados por métodos lógicos e a priori.

Em seus escritos metodológicos, Rothbard distingue entre empirismo e experiência, e observa que a recusa do primeiro não implica uma desvalorização do segundo. Ao criticar Mises por sua abordagem kantiana, ele encontra na experiência humana exatamente a principal fonte dos axiomas, as verdades fundamentais que são o ponto de partida de uma teoria baseada na lógica dedutiva.[4] Mas diante da lei, Rothbard parece minimizar a dimensão contextual e não teórica de grande parte das controvérsias jurídicas e, principalmente, da lei positiva.

Utilizando o referencial tomista, neste ensaio irei enfatizar a importância da lex naturalis, ao mesmo tempo destacando uma lex humana profundamente enraizada na complexidade de diferentes épocas e sociedades, relacionada à subjetividade e especificidade de opiniões que não podem ser examinadas com sucesso por uma abordagem praxeológica. Muitos problemas, e mesmo algumas inconsistências da teoria rothbardiana, são uma consequência disso.

Além disso, a maneira como Rothbard trata os argumentos de causalidade e responsabilidade mostra uma compreensão inadequada da antropologia da Escola Austríaca, que parte de um estudo da ação humana (intencional e racional) e não por uma simples análise behaviorista.

Ao integrar o libertarianismo rothbardiano com a lei positiva, uma contribuição importante vem de Bruno Leoni, que em Liberdade e a lei e outros escritos desenvolveu uma contribuição original para o liberalismo clássico. O estudioso italiano pode ajudar a melhorar algumas partes da teoria libertária do direito de Rothbard. Se o autor de A ética da liberdade é muito mais embasado na lei natural e ainda menos ingênuo frente a Wertfreiheit,[5] Leoni pode corrigir alguns limites da abordagem rothbardiana e sua incapacidade de perceber a especificidade do direito: uma ciência prática e amplamente empírica, historicamente situada e essencialmente voltada à busca de soluções razoáveis ​​para casos muito específicos.

Se a filosofia do direito precisa investigar os princípios eternos e imutáveis ​​da justiça, os estudos jurídicos devem encontrar a melhor tradução deles para os problemas específicos de uma sociedade. Por isso, levar Leoni a sério significa imaginar um ponto de encontro da doutrina do direito natural com as exigências de um direito positivo como uma realidade em evolução. E implica um esforço de transferir para o contexto jurídico a metodologia misesiana e sua separação radical entre teoria e história: a esfera dos estudos axiomáticos e dedutivos (praxeologia) e a esfera da pesquisa baseada na experiência (história).

Devemos lembrar que a atenção específica às características históricas e em evolução das ordens jurídicas tem sido um elemento crucial da Escola Austríaca desde suas origens. Em suas Investigações sobre o Método das Ciências Sociais, Carl Menger elogia a Escola Histórica de Jurisprudência (Gustav Hugo, Friedrich Carl von Savigny, Barthold Georg Niebuhr), cujas origens ele atribuiu a Edmund Burke.

Menger também destaca o conteúdo individualista do direito evolutivo, com o objetivo de ajudar a tradição liberal clássica a redescobrir suas raízes perdidas:

O direito, como a linguagem, não é (pelo menos originalmente) o produto em geral de uma atividade das autoridades públicas destinada a produzi-lo, nem em particular o produto de uma legislação positiva. Em vez disso, é o resultado não intencional de uma sabedoria superior, do desenvolvimento histórico das nações.[6]

É exatamente nesse sentido que podemos compreender a preferência de Leoni pelo direito evolutivo (direito anglo-saxão e jus civile romano): um direito não orientado à preservação da tradição ou da ordem espontânea per se. Pelo contrário, Leoni pensa que uma ordem policêntrica e evolucionária está em melhor posição para salvaguardar os direitos individuais. As regras que emergem da troca interpessoal de reivindicações são ferramentas que podem proteger efetivamente a sociedade dos governantes.

Como estudante de história jurídica inglesa, Leoni mostra um grande interesse na lei comum da natureza que estava no cerne da perspectiva de Edward Coke. De fato, nessa teoria o direito não expressa uma atitude anti-racionalista, mas, ao contrário, incorpora a razão natural emergindo de forma evolucionária. Essa cultura jurídica é aprimorada por várias contribuições (práticas, pragmáticas, profissionais) de muitas pessoas. Desse modo, a lei é consequência de uma atividade humana voltada para a melhoria da realidade, com uso da inteligência e da experiência.

Criticando os sistemas jurídicos modernos, Leoni observa que

    há muito mais legislação, há muito mais decisões de grupo, escolhas muito mais rígidas e muito menos “leis escritas em mesas vivas“, muito menos decisões individuais, muito menos escolhas livres em todos os sistemas políticos contemporâneos que seriam necessárias para preservar a liberdade individual de escolha.[7]

Mesmo que ele nunca tenha aderido a uma teoria do direito natural consistente, Leoni tentou uma espécie de reconciliação da lei natural e do realismo jurídico (direito positivo corretamente entendido), explorando a possibilidade de conjugar a flexibilidade do antigo direito comum e os princípios justos de uma teoria moral universal.

Leoni tinha um forte interesse na exploração das potencialidades libertárias de uma perspectiva semelhante. Em seus escritos, há muitos elementos de um libertarianismo radical que recusa qualquer coerção. Quando alguns participantes do seminário de Claremont sobre a Liberdade e a lei lhe perguntaram quem deveria escolher os juízes em uma sociedade livre, ele respondeu: “é bastante irrelevante estabelecer de antemão quem nomeará os juízes, pois, em certo sentido, todos poderiam fazê-lo, como acontece até certo ponto quando as pessoas recorrem a árbitros privados para resolver suas próprias disputas.”[8]

Em sua opinião, o sistema estatista contemporâneo deveria desaparecer, abrindo espaço para uma ordem competitiva de tribunais privados. A convergência entre Leoni e Rothbard é evidente em vários níveis, pois ambos imaginam o fim do monopólio estatal da justiça e da segurança, com o objetivo de abrir caminho para uma competição institucional entre as pessoas responsáveis ​​por evitar comportamentos criminosos.[9]

É também por essa razão que a teoria libertária rothbardiana pode encontrar em Leoni, e sobretudo em sua compreensão do direito, a forma de superar suas dificuldades teóricas e práticas.

Da Praxeologia à Timologia: o papel da Lei Positiva

Em seu desenvolvimento diário, o direito remete a princípios, mas ao mesmo tempo trata de disputas modestas, mas não irrisórias. O raciocínio jurídico vive essencialmente neste contexto pragmático e deixa os tópicos específicos do direito natural em segundo plano.

No pensamento de Mises, existe uma noção que é extremamente útil para nos ajudar a compreender a relação entre teoria e prática no direito. Na verdade, em Teoria e História, ele opõe a praxeologia à timologia, que está em estreita relação com a história.[10] A timologia é um ramo da história e “deriva seu conhecimento da experiência histórica”.[11] Representa aquele conjunto de conhecimentos empíricos de caráter psicológico, sociológico e até factual que usamos para encontrar o nosso caminho nos relacionamentos com outras pessoas. Essa “psicologia literária” é a condição de um comportamento racional: “na falta de qualquer ferramenta melhor, devemos recorrer à timologia se quisermos antecipar as atitudes e ações futuras de outras pessoas”.[12]

Quando Leoni retorna à tradição do realismo jurídico (à lei em ação que Roscoe Pound opõe à lei nos livros) e comenta uma correspondência entre a lei positiva e aquilo que é previsível (muitas vezes usando a fórmula id quod plerumque accidit),[13] ele destaca que a lei positiva é sempre inteligível de uma perspectiva timológica. Em seu propósito explícito de aplicar a metodologia misesiana ao direito, Leoni descobre uma dimensão praxeológica (a parte mais teórica, coincidindo com a análise das reivindicações individuais e sua interação), mas também outra dimensão timológica. (dependendo inteiramente da experiência, opiniões comuns e tradições).

Sua ideia é que o direito positivo tem uma forte relação com os costumes. Como atividade prática, a lei deve reduzir a incerteza: é por isso que a reivindicação do credor é legal, porque geralmente o devedor devolve o que recebeu, enquanto a reivindicação do ladrão é ilegal, porque geralmente as pessoas não roubam. A análise probabilística é puramente empírica, mas não é irrazoável. Nosso comportamento é muitas vezes conduzido pela racionalidade de nossas experiências passadas e por nossos preconceitos.

Nesse sentido, a teoria leoniana da reivindicação individual é ao mesmo tempo praxeológica e timológica.

É praxeológica porque traça de forma dedutiva as condições teóricas da troca e do cumprimento de diferentes reivindicações individuais. Quando, em seus escritos, ele se opõe ao ponto de vista dos profissionais do direito (que se baseiam nas normas) e à perspectiva dos filósofos (interessados ​​na origem das normas), seu objetivo é rejeitar o positivismo predominante na teoria do direito.

Ele tem o projeto de apreender as categorias a priori – à la Reinach – subtendendo todas as ordens jurídicas. Ao encontrar na reivindicação individual o ponto de partida de uma relação jurídica, Leoni pensa ter compreendido um dado universal: sua “lei de oferta e demanda”. Se os preços emergem do encontro das ações de fornecedores e demandantes, as normas são o efeito da interação de diferentes reivindicações. Esta é uma regularidade universal e, com base nisso, ele também desenvolve suas observações teóricas (praxeológicas) sobre a relação entre legislação e lei viva, certeza e lei, e assim por diante.

Mas – como em Mises – essa avaliação positiva da praxeologia não implica uma opinião negativa da história ou da competência dos advogados. Pelo contrário, Leoni tem a ambição de descrever os papéis distintos, mas conectados de cada esfera.

Por essa razão, sua teoria é amplamente timológica quando ele observa que, se for verdade – como diz Mises – que “a timologia não diz nada além de que o homem é impulsionado por vários instintos inatos, várias paixões e várias ideias”,[14] então é evidente que as normas são aceitas quando satisfazem as reivindicações, os princípios e os desejos amplamente compartilhados em uma sociedade específica; e os profissionais do direito estão exatamente bem informados sobre esse ambiente peculiar e “local”. Quando Leoni enfatiza as qualidades do jus civile e da antiga lei comum, ele pretende destacar o papel dos advogados e de todas as pessoas engajadas na solução de litígios específicos e concretos.

Lei Positiva e História

Este é um ponto muito importante em grande parte da tradição filosófica. Os principais pensadores gregos e medievais foram claros sobre a ligação entre a lei natural (universal) e a dimensão contingente (historicamente definida e, lato sensu, subjetiva) de situações que só podemos compreender em contextos específicos, como resultado do cruzamento de preferências individuais.

Em Aristóteles, por exemplo, é claro que existem alguns princípios universais que julgam toda lei positiva. Esta passagem é muito franca a esse respeito:

    A lei universal é a lei da natureza. Pois realmente existe, como qualquer um até certo ponto adivinha, uma justiça e injustiça naturais que se aplicam a todos os homens, mesmo àqueles que não têm associação ou pacto uns com os outros. É isso que a Antígona de Sófocles quer dizer claramente quando ela diz que o sepultamento de Polinices foi um ato justo, apesar da proibição: ela diz que foi justo por natureza.

Não é de hoje nem de ontem,

Mas vive a eternidade: ninguém pode datar o seu nascimento.[15]

Ao mesmo tempo, Aristóteles sustenta a opinião de que “há dois tipos de conduta certa e errada para com os outros, uma fornecida por ordenanças escritas, a outra por não escritas”. No segundo grupo, uma classe “brota de uma bondade ou maldade excepcional” e está relacionada à honra, gratidão, amizade e assim por diante. Mas o outro “compensa os defeitos do código de lei escrito de uma comunidade. Isso é o que chamamos de equidade”. Essa noção aristotélica de equidade é muito importante. E, ao mesmo tempo, devemos perceber a relação entre essa ideia de equidade (“o tipo de justiça que vai além da lei escrita”)[16] e a ideia de phronesis, como prudência e sabedoria prática.

Equidade e phronesis não destroem a lei natural universal, mas nos dão uma maneira de entender como pode ser possível arrumar algumas situações (difíceis). Podemos construir uma ponte a partir da lei natural e da lei positiva de nosso relacionamento – imperfeito – com os outros. A percepção dos limites humanos e da complexidade do mundo nos impele a valorizar o conhecimento preservado por um complexo sistema de noções jurídicas, desenvolvido ao longo de séculos de história do direito.

Para Aristóteles, estava claro que um método puramente dedutivo não seria suficiente para satisfazer nossas exigências.

A lição de Tomás de Aquino segue na mesma direção, como fica claro em sua distinção entre Lei Natural (Lex naturalis) e Lei Humana (Lex humana). Se os princípios morais da lei natural são imutáveis ​​e podem ser investigados racionalmente partindo de alguns axiomas sólidos, a lei humana é consequência de contingências culturais e históricas. Como diz a Summa Theologiae, “a lei natural contém certos preceitos universais que são eternos, ao passo que a lei humana contém certos preceitos particulares de acordo com várias emergências”. Ao mesmo tempo, “nada pode ser absolutamente imutável nas coisas que estão sujeitas a mudanças. E, portanto, a lei humana não pode ser totalmente imutável.”.[17]

Aquino acrescenta que “o costume tem força de lei, abole o direito e é o intérprete do direito”.[18] Ele aceita o direito consuetudinário porque tem a aprovação dos indivíduos: “porque, pelo próprio fato de o tolerarem, eles parecem aprovar aquilo que é introduzido pelo costume.”[19] Essa lei que se dissolve no costume não é lei natural, porque Tomás de Aquino não acredita que possamos aceitar uma ordem jurídica que surgiu historicamente se for contra a justiça; mas a evolução histórica modifica o direito positivo e até abre espaço para diferentes interpretações.[20]

Lei e interpretação

No direito positivo, existe uma função essencial de interpretação, porque há sempre uma distância entre a norma e os casos em questão. Como explica Giorgio Agamben, “no caso do direito, a aplicação de uma norma não está de forma alguma contida na norma e não pode dela derivar; caso contrário, teria havido a necessidade de se criar o grande edifício do direito processual. Assim como entre a linguagem e o mundo, quanto entre a norma e sua aplicação, não há nexo externo que permita derivar uma imediatamente da outra.”[21]

Qual é o significado disto? Usar regras gerais em situações concretas e específicas sempre implica uma decisão e (pelo menos hipoteticamente) um poder arbitrário. A diferença entre a lei nos livros e a lei em ação é em grande parte uma consequência disso.

Em muitos escritos, Chaïm Perelmen observa que a lógica jurídica é:

    um caso individual muito elaborado de raciocínio prático, que não é uma demonstração formal, mas uma argumentação que visa persuadir e convencer aqueles a quem se dirige de que tal escolha, decisão ou atitude é preferível a escolhas, decisões e atitudes concorrentes.

Perelman acrescenta: “o que caracteriza uma argumentação é seu caráter não coercivo”.[22] Assim, o raciocínio jurídico “não é apresentado como uma dedução formalmente válida a partir de verdades atemporais”, porque “razões consideradas boas em um período de tempo ou em um ambiente não são em outro; elas são social e culturalmente condicionadas, assim como as convicções e as aspirações do público que devem convencer.”[23]

Apesar de seu ceticismo discutível, Perelman está certo quando aponta que a lei positiva é uma atividade “prática”, porque é uma operação de solução de casos e muitas vezes surge de uma transação entre interesses diferentes. Em grande medida, o direito não é uma ciência: é uma técnica orientada para a resolução de problemas específicos, porque advogados e juízes não procuram a verdade, mas apenas a verdade legal.

Lei e intencionalidade

Se analisarmos responsabilidade e causalidade em Rothbard, temos que lembrar os princípios fundamentais da tradição austríaca.

Em um artigo recente, Hans-Hermann Hoppe criticou seu mentor e destacou como é contraditório focar a atenção no nascimento da propriedade (com a apropriação original da terra) e, em seguida, excluí-lo, aceitando uma teoria da responsabilidade objetiva cujas origens positivistas e comportamentais são evidentes. Hoppe observa que “apropriação original implica intenção”, um elemento subjetivo; pelo contrário, a teoria de causação e responsabilidade de Rothbard ignora esse aspecto.[24] Os estudiosos da Escola Austríaca enfatizam o papel da intencionalidade como um elemento crucial no momento da origem da propriedade privada e de sua negação (roubo, agressão, etc.).

Nem todas as invasões físicas implicam responsabilidade e, ao contrário, algumas ações são responsáveis ​​mesmo que não haja invasão física. Em economia, Rothbard estava perfeitamente ciente disso e sempre foi muito crítico em relação às escolas econômicas com tendências positivistas. Em 1985, no prefácio de Teoria e História de Mises, ele ataca o positivismo dominante, observando que “para se tornar verdadeiramente científica como a física e as outras ciências naturais, então, a economia deve evitar conceitos como propósitos, objetivos e aprendizagem: deve abandonar a mente do homem e escrever apenas sobre meros eventos.”[25] Mas o principal erro do estudioso americano é analisar apenas eventos simples, evitando o problema da intencionalidade e da responsabilidade subjetiva, e a consequente necessidade de compreender uma ação específica – realizada por uma pessoa em particular, naquele momento e contexto.

Hoppe tem razão quando nota uma contradição em Rothbard entre essa teoria da responsabilidade objetiva e a defesa da apropriação original, a qual implica uma outra visão da ética e uma antropologia diferente. Quando Rothbard condena como agressão o ato de um homem reivindicar e ocupar uma terra anterior nitidamente apropriada originalmente (“homesteaded“) por outras pessoas, seus argumentos reivindicam uma ideia bem definida de moralidade que não é consistente com aquela teoria supersimplificada e behaviorista de causalidade e responsabilidade.

Um libertarianismo aristotélico-tomista

Por todas essas razões, a distinção tomista entre a lei natural e a lei humana é fundamental, especialmente se por lex humana não concebemos a lei estatal, mas nossa tradução sempre imperfeita, em termos de normas, da nossa aspiração de viver em uma sociedade justa. Como Paul Sigmund observou corretamente, “a lei humana é a aplicação a circunstâncias específicas dos preceitos da razão contidos na lei natural”.[26] Essa mediação é sempre insatisfatória, mas ao mesmo tempo necessária.

Rothbard e Perelman cometem erros simetricamente opostos, porque nenhum deles admite a autonomia da lei natural e da lei positiva. Se Perelman reduz a lei natural à lei positiva (e a razão à razoabilidade), Rothbard reduz a lei positiva à lei natural (e a razoabilidade à razão). No entanto, temos que admitir a existência de uma dimensão superior e objetiva do direito (onde o método racional de Rothbard se justifica) e de um nível muito mais prosaico e inferior, que pode obter muitas vantagens da abordagem dialógica e retórica de Perelman.

A consciência da necessidade de mediar entre os princípios a priori da lei natural e um conhecimento amplamente indutivo da experiência jurídica nem sempre está presente em Rothbard. Mas é por isso que a herança intelectual de Leoni pode ser útil na tentativa de desenvolver uma teoria jurídica libertária com o objetivo de proteger a dignidade e a liberdade do indivíduo.[27]

Se, em Rothbard, corre-se o risco de ignorar a especificidade do raciocínio jurídico, Leoni aponta as características empíricas do direito e adota uma visão misesiana ao colocar na perspectiva certa a experiência humana e o papel que ela desempenha no desdobramento prático de nossa existência.

Leoni percebe a importância da lei positiva, também de uma perspectiva libertária e antiestatista. A visão do que é justo por natureza deve estar enraizada em um determinado tempo, incorporada em instituições específicas e reconhecível em muitas situações diferentes. Mas o pensador italiano estava bem ciente de que essa proposta era um retorno à velha tradição da lei natural. Em uma passagem muito interessante, ele critica Kelsen, dizendo que a sociologia do direito é “a herdeira moderna da lei natural”.[28] E ele especifica sua ideia desta forma:

    a sociologia contemporânea das faculdades de direito pode ser considerada, em um sentido limitado, e sem os traços depreciativos usados ​​por Kelsen, os “herdeiros modernos do direito natural”, exatamente porque estão inclinados a reavaliar no “direito” o elemento das “persuasões” conduzindo a ação das pessoas, ao invés da “ordem jurídica” concebida como dogmática.[29]

Conclusão

Apesar de seu positivismo, Leoni pode nos ajudar a compreender a verdadeira natureza da lei natural clássica, pois não prevê um “código libertário” como o idealizado por Rothbard, parcialmente concebido com base no modelo dos sistemas jurídicos estatais. Pelo contrário, Liberdade e a lei pode ser o ponto de partida para uma compreensão mais “clássica” da lei natural libertária, enraizada de fato na tradição aristotélica-tomista.

Em outras palavras, em Leoni há um amplo espaço para a pesquisa jurídica e para a evolução histórica, por acreditar em uma lei viva em contínua e íntima interação com a realidade. A ordem jurídica possui alguns elementos “essenciais”, mas muda com o tempo, por isso exige um trabalho constante e desafiador para ajustar regras e comportamentos.

Se voltarmos aos clássicos, podemos entender melhor os principais problemas.

O racionalismo tomista parte da consciência dos limites da razão. Sigmund destaca exatamente isso quando diz que “o sistema de lei natural de Tomás de Aquino é e deve ser incompleto. Ele não poderia admitir a possibilidade aristotélica de que a natureza pudesse fornecer tudo para a realização do homem.”[30] O próprio Rothbard não está longe disso quando aponta que uma abordagem racional precisa de uma compreensão da imperfeição estrutural de nossas mentes: “Nenhum homem é onisciente ou infalível – isto é, a propósito, uma lei da natureza do homem.”[31] Mas essa observação deve ter consequências significativas para a teoria jurídica.

 

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Notas

[1] A noção de código – tanto na despótica Prússia quanto na França napoleônica – estava ligada às necessidades de um poder soberano orientado a absorver a ordem jurídica e mudar qualquer norma em uma simples decisão política.

[2] Murray N. Rothbard, Por uma nova liberdade – O Manifesto Libertário (Lanham, Maryland: University Press of America, 1973), p. 318.

[3] Ver Ludwig von Mises, Teoria e história (Auburn, Ala.: Mises Institute, 1985).

[4] Ver Murray N. Rothbard “Em defesa do apriorismo extremo,” The Logic of Action One (Londres: Edward Elgar, 1997), pp. 100–08. Exatamente neste sentido, Larry Sechrest descreve que um “exame cuidadoso do pensamento austríaco revelará que o método praxeológico em si é fundamentalmente empírico.” Ver Larry J. Sechrest, “Praxeology, Economics, and Law: Issues and Implications,” Quarterly Journal of Austrian Economics 7, no. 4 (inverno de 2004): 22. Na tradição aristotélica-tomista, a experiência é uma fonte de conhecimento: encontramos o mundo (que é comum a todos nós) e temos experiências com significados. Rothbard compartilha dessa perspectiva ao distinguir sua posição da de Mises. Por isso, Sechrest se opõe a Hoppe (e Mises) por serem kantianos e compartilha da perspectiva rothbardiana, abraçando o projeto de “postular uma base empírica para a Escola Austríaca”. Ibid., 23.

[5] Veja, em particular, Murray N. Rothbard, “The Symposium on Relativism: A Critique”, 1960, memorando conservado nos Arquivos Ludwig von Mises, agora em Murray N. Rothbard, Diritto, natura e ragione. Scritti inedita versus Hayek, Mises, Strauss e Polanyi, Roberta Modugno, ed. (Soveria Mannelli: Rubbettino, 2005), pp. 125-45.

[6] Carl Menger, Investigations into the Method of the Social Sciences, Francis J. Nock, trad. (Nova York: New York University Press, 1985), pp. 174–75.

[7] Bruno Leoni, Liberdade e a Lei, 3ª ed. (Indianapolis: Liberty Fund, 1991), 131; meu itálico.

[8] Ibid., p. 129.

[9] A noção de ordem policêntrica – conforme formulada por Michael Polanyi – pode ser útil para avaliar a complexidade de um sistema baseado em freios e contrapesos e que opera sem uma constituição escrita imposta por uma autoridade. Polanyi aponta que a mão invisível empurrando em direção a uma ordem de livre mercado não é tão diferente das forças que definem a lei comum e a pesquisa científica. O progresso do conhecimento é baseado nos princípios de que “todo acréscimo proposto ao corpo da ciência está sujeito a um processo regular de escrutínio”. Encontramos uma lógica semelhante na ordem jurídica, porque a lei comum “constitui uma sequência de ajustes entre juízes sucessivos, guiada por uma interação paralela entre os juízes e o público em geral”. Michael Polanyi, The Logic of Liberty (Chicago: University of Chicago Press, 1980), pp. 162-63.

[10] Seguindo Mises, “a timologia é uma disciplina histórica”. Mises, Teoria e História, p. 313.

[11] Ibid., p. 272.

[12] Ibid., p. 313.

[13] Tradução: “o que costuma acontecer”.

[14] Mises, Teoria e História, p. 313.

[15] Aristóteles, Retórica, 1373b.

[16] Ibid., 1374a.

[17] São Tomás de Aquino, On Law, Morality, and Politics, William P. Baumgarth e Richard J. Regan, eds. (Indianapolis-Cambridge: Hackett Publishing Company, 1988), p. 77.

[18] Ibid., p. 80.

[19] Ibid., p. 81. Como Anthony Lysska apontou, Tomás de Aquino “estava ciente da diversidade cultural em relação aos costumes”. Anthony J. Lysska, Aquinas’s Theory of Natural Law: An Analytic Reconstruction (Oxford: Clarendon Press, 1996), p. 112.

[20] No desenvolvimento mais recente de sua teoria, Leoni introduziu uma noção interessante ao falar sobre as reivindicações a-jurídicas (em italiano, pretese agiuridiche). Assim, temos não apenas reivindicações legais e ilegais, mas também algumas reivindicações não totalmente aceitas hoje, que no futuro podem ser consideradas legais e legítimas. Ver Bruno Leoni, “Appunti di filosofia del diritto”, em Il diritto come pretesa (Macerata: Liberilibri, 2004), p. 200.

[21] Giorgio Agamben, State of Exception (Chicago: The University of Chicago Press, 2005), p. 40.

[22] Chaïm Perelman, Justice, Law and Argument. Essays on Moral and Legal Reasoning, com uma introdução de Harold J. Berman (Dordrecht: Reidel, 1980), p. 129.

[23] Ibid., p. 131.

[24] Para Hoppe, em Rothbard existe uma “teoria da responsabilidade objetiva”. Hans-Hermann Hoppe, “Property, Causality, and Liability,” Quarterly Journal of Austrian Economics 7, no. 4 (inverno de 2004): pp. 88–89.

[25] Murray N. Rothbard, “Prefácio” a Mises, Teoria e História, p. iii.

[26] Paul E. Sigmund, Natural Law in Political Thought (Cambridge, Mass.: Winthrop, 1971), p. 39; os itálicos são meus.

[27] Nesse sentido, a lei natural deve ser sempre concebida em uma relação estrita com a contingência da realidade social. Se tudo fosse governado pelo destino, não haveria espaço para a lei natural (porque suas características normativas implicam na liberdade humana). Mas, ao mesmo tempo, é verdade que o caráter em constante mutação das relações sociais força a lei natural a ter um vínculo específico com a história.

[28] Bruno Leoni, Lezioni di filosofia del diritto (Soveria Mannelli: Rubbettino, 2004), p. 160.

[29] Bruno Leoni, “Oscurità ed incongruenze nella dottrina kelseniana del diritto”, em Scritti di scienza politica e teoria del diritto (Milão: Giuffrè, 1980), p. 202.

[30] Sigmund, Natural Law in Political Thought, p. 46.

[31] Murray Rothbard, A ética da liberdade (Atlantic Highlands, N.J.: Humanities Press, 1982), p. 11.

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