“Tanto mercado quanto possível, tanto estado quanto necessário.”
(Lema do Programa de Godesberg de 1959 do Partido Social Democrata da Alemanha)
I. Tese Um
Friedrich Hayek é geralmente conhecido como um defensor da economia de livre mercado e um franco anti-socialista; de fato, a vida de Hayek foi uma luta nobre, e na sua maior parte solitária, contra uma onda crescente de estatismo e ideologias estatistas. Porém, apesar destes fatos:
(1) a visão de Hayek sobre o papel do mercado e do estado não pode ser sistematicamente distinguida da de um social-democrata moderno; e
(2) a razão imediata para as visões social-democratas de Hayek é sua definição contraditória e, logo, absurda de “liberdade” e “coerção”. (Outra razão epistemológica fundamental – o anti-racionalismo autocontraditório de Hayek – será discutido na Tese Dois).[1]
II. Sobre Governo
Segundo Hayek, o governo é necessário para preencher as seguintes tarefas (e pode adquirir os meios necessários para fazê-lo por meio de tributação)[2]: não apenas para “aplicação da lei” e “defesa contra inimigos externos”, mas “em uma sociedade avançada o governo deve usar seu poder de arrecadar fundos por tributação para prover uma série de serviços, que por várias razões não podem ser providos, ou não podem ser providos adequadamente, pelo mercado”.[3] (Uma vez que há sempre um número infinito de bens e serviços que não são fornecidos pelo mercado, Hayek dá um cheque em branco para o governo). Entre estes estão “proteção contra violência, epidemias ou forças da natureza como enchentes e avalanches, mas também muitas amenidades que fazem a vida em cidades modernas toleráveis, a maioria das estradas … o fornecimento de padrões de medidas e de muitos tipos de informações se estendendo desde registros fundiários, mapas e estatísticas até a certificação da qualidade de alguns bens ou serviços oferecidos no mercado”.[4] Funções governamentais adicionais são “a garantia de certa renda mínima para todos”[5]; o governo deveria “distribuir seus gastos ao longo do tempo de um modo que intervenha quando o investimento privado diminuir”[6]; deve financiar escolas e pesquisa, bem como aplicar “normas de construção civil, leis de pureza alimentar, a certificação de certas profissões, restrições à venda de certos bens perigosos (como armas, explosivos, venenos e drogas), assim como algumas regulamentações de segurança e saúde para os processos de produção e provisão de instituições públicas como teatros, centros esportivos, etc…”[7]; e deveria fazer uso de seu poder de “desapropriação” para aprimorar o “bem público”.[8]
Além disso, ele afirma que “há motivos para crer que, com o aumento geral da riqueza e da densidade demográfica, a porção de todas as necessidades que possa ser satisfeita apenas por ação coletiva continuará a crescer”.[9]
Em Os Fundamentos da Liberdade, Hayek queria que o governo ofertasse “estabilidade monetária” (enquanto mais tarde viria a preferir um esquema bizarro de desnacionalização monetária) ;[10] o governo deveria implantar um sistema extenso de seguridade compulsória (“coerção com intenção de evitar coerção maior”);[11] moradia pública subsidiada era uma possível função governamental;[12] do mesmo modo, “planejamento urbano” e “zoneamento” são consideradas funções governamentais apropriadas – desde que “a soma dos ganhos exceda a soma das perdas”;[13] e, por último, ”o fornecimento de amenidades e oportunidades de recreação, ou a preservação das belezas naturais ou de lugares históricos ou lugares de interesse científico, … parques naturais, reservas naturais, etc.,” eram consideradas como funções governamentais.[14]
Ademais, Hayek insiste que reconheçamos que é irrelevante quão grande é o governo ou se ele cresce e quão rápido cresce. A única coisa que importa é que as ações do governo cumpram certos requerimentos formais. “É o caráter e não o volume de atividade governamental que importa”.[15] Impostos enquanto tais e o nível absoluto de tributação não são um problema para Hayek. Impostos – e da mesma forma, serviço militar compulsório – perdem seu caráter como medidas coercivas, “se eles forem ao menos previsíveis e impingidos independentemente de como o indivíduo empregaria de outra forma suas energias; isto retira dos impostos a natureza maléfica da coerção. Se a necessidade conhecida de pagar certa quantidade de impostos se torna a base de todos os meus planos, se um período de serviço militar é uma parte previsível de minha carreira, então eu posso seguir um plano geral de vida feito por mim mesmo e sou tão independente da vontade de outra pessoa quanto os homens aprenderam a estar em sociedade”.[16]
Mas, por favor, deve ser um imposto proporcional e o serviço militar deve ser universal!
À luz desta prestidigitação terminológica e das já citadas funções governamentais, a diferença entre Hayek e um social-democrata moderno reduz-se à questão de se o serviço postal deveria ser privatizado ou não (Hayek diria “sim”).
III. Sobre Liberdade e Coerção
A última citação em suporte da tese anterior é, ao mesmo tempo, a confirmação da teoria social-democrata de Hayek do governo e que encontra sua explicação no absurdo de sua definição de liberdade e coerção.[17]
Hayek define liberdade como a ausência de coerção. Entretanto, ao contrário de uma longa tradição de pensamento liberal clássico, ele não define coerção como a iniciação ou ameaça de violência física contra outra pessoa ou sua propriedade adquirida legitimamente – por meio de apropriação original, produção ou troca. Pelo contrário, ele oferece uma definição cujo único mérito é sua confusão. Por coerção “nós queremos dizer aquele controle do ambiente ou das circunstâncias de uma pessoa por outra que, a fim de evitar um mal maior, ele é forçado a agir não de acordo com um plano próprio coerente, mas a servir aos fins de outrem”,[18] ou “coerção ocorre quando as ações de uma pessoas são feitas para servir a vontade de outra pessoa, não para seus próprios propósitos mas para os de outra pessoa”.[19] Liberdade, por contraste, é “um estado no qual cada um pode usar seu próprio conhecimento [não sua própria propriedade] para seus próprios propósitos”.[20]
Essa definição não contém nada referente a ações, bens escassos e propriedade. Em vez disso, “coerção” refere-se a configurações específicas de vontades subjetivas (ou planos, pensamentos e expectativas). Logo é inútil pelas seguintes razões. Primeiro, é inútil como um guia para ações (o que eu estou autorizado a fazer aqui e agora se eu não quiser cometer um ato coercitivo?), porque em geral eu não conheço as vontades ou planos dos outros e, em todo caso, conhecer todas as outras vontades seria completamente impossível. Mesmo que eu quisesse, eu jamais saberia desde o princípio (ex ante) se aquilo que eu planejava não coagiria alguém. Ainda assim, os indivíduos obviamente devem estar autorizados a agir “corretamente” antes de saber algo sobre os planos dos outros, e mesmo que eles não saibam literalmente nada além de seus próprios planos. Entretanto, para que isso seja possível, o critério usado para distinguir entre “liberdade” e “coerção” deve ser do tipo objetivo. Deve referir-se a um evento/não-evento que possua uma descrição física (e sobre cujo resultado um agente possua controle físico). Segundo, a definição de Hayek é inútil também como um critério retrospectivo (ex post) de justiça (a acusação de A contra B é justificada? Quem é culpado e quem não é?). Enquanto A e B chegam à mesma conclusão a respeito de inocência e culpa (incluindo aquelas questões como compensação e/ou punição), não surge nenhum problema para o critério de Hayek. Entretanto, no caso de unanimidade nenhum critério pode falhar. Todavia, o critério de Hayek falha miseravelmente naqueles casos para o qual é destinado: quando quer que a parte queixosa e o acusado não concordam, e ainda assim deve-se chegar a um veredito. Uma vez que a definição de Hayek não contém quaisquer critérios físicos (intersubjetivamente verificáveis), seus julgamentos são arbitrários. Enquanto predicados mentais, as categorias de Hayek de liberdade e coerção são compatíveis com qualquer estado de coisas físico real. Eles não podem fazer quaisquer distinções reais.
Igualmente confusas e contraditórias são as tentativas de Hayek de aplicar suas definições:
- Ao aplicar sua definição, Hayek por um lado chega à conclusão de que a iniciação e ameaça de violência física constituem “coerção”. “A ameaça de força ou violência é a forma de coerção mais importante”.[21] “Verdadeira coerção ocorre quando bandos de conquistadores armados fazem a população súdita trabalhar para eles, quando criminosos organizados extorquem uma cobrança por ‘proteção’”.[22] Por outro lado (repare as citações acima) ele classifica atos de iniciação ou ameaça de violência física como serviço militar compulsório ou impostos como “não-coercivos”, desde que as vítimas de tais agressões pudessem ter com segurança esperado e se ajustado a isso, apenas.
- Por um lado, Hayek identifica violência física com “coerção”. Por outro lado, ele não aceita ausência de violência física ou dano como um critério de “não-coerção”. “A ameaça de força física não é a única maneira pela qual coerção pode ser exercida”.[23] Mesmo que A não tenha cometido nenhuma agressão física contra B ou sua propriedade, ele pode ainda assim ser culpado de “coerção”. Segundo Hayek, é assim sempre que A é culpado de omitir ajuda a B, i.e., sempre que ele não tenha provido B com seus bens ou serviços (os de A), os quais B esperava dele e considerava como “cruciais para a minha existência ou preservação daquilo que eu mais estimo”.[24] Hayek declara que apenas um pequeno número de casos cabem nesse critério: o proprietário de uma mina em uma cidade mineira que decide demitir um trabalhador alegadamente “coage”; e, da mesma forma, é supostamente “coercivo” se o proprietário da única fonte de água em um deserto não está disposto a vender esta água ou recusa-se a vender a um preço que os outros considerem “justo”. Mas é preciso pouca imaginação para reconhecer que o critério de Hayek é de fato totalmente abrangente. Qualquer ação pacífica de uma pessoa pode ser interpretada por outros – e de fato qualquer número deles – como constituindo “coerção”, pois cada atividade é ao mesmo tempo sempre a omissão de outras ações possíveis inumeráveis, e toda omissão se torna “coerção” se uma única pessoa reivindica que a execução da omissão foi “crucial para a preservação daquilo que eu mais estimo”.
Entretanto, sempre que casos de omissão de ajuda e violência física são identificados categoricamente como “coerção”, contradições inescapáveis resultam.[25] Se a omissão de A constitui “coerção” em relação a B, então B deve possuir o direito de “defender” a si mesmo contra A. A única defesa de B seria que ele poderia empregar violência física contra A (fazer A executar o que de outra forma ele evitaria fazer) – mas então atos de violência física não poderiam mais ser classificados como “coerção”! Violência física seria “defesa”. Neste caso, “coerção” seria a recusa pacífica de participar de uma troca, bem como a tentativa de defender a si mesmo contra toda troca forçada (sob a ameaça de violência executada). Por outro lado, se violência física fosse definida como “coerção”, então B não seria autorizado a “defender” a si mesmo contra um A omisso; e se B ainda assim tentasse fazê-lo, então o direito de defesa estaria com A – mas neste caso omissões não poderiam constituir “coerção”.
- Dessas confusões conceituais deriva a tese absurda de Hayek da “inevitabilidade da coerção” e sua correspondente e igualmente absurda “justificação” do governo. “Entretanto, a coerção não pode ser completamente evitada, porque a única maneira de preveni-la é pela ameaça de coerção. A sociedade livre resolveu este problema ao conferir o monopólio da coerção ao estado e ao tentar limitar este poder do estado a circunstâncias onde ele é necessário para impedir coerção por pessoas privadas”.[26] Segundo ambas as definições de Hayek de “coerção”, essa tese é absurda. Se omissão de ajuda tipifica “coerção”, então coerção no sentido de violência física se torna necessário (e não inevitável). Caso contrário, se a iniciação e a ameaça de violência física são definidas como “coerção”, ela pode ser evitada; primeiro porque cada pessoa possui controle sobre se ele atacará fisicamente ou não outra pessoa; e segundo porque cada pessoa tem o direito de defender a si mesmo com todos os seus meios contra o ataque físico de outrem. É apenas inevitável que, enquanto houver agressão física, haverá também a necessidade de defesa física. Ainda assim, a inevitabilidade de violência defensiva não tem nada que ver com a suposta “inevitabilidade da coerção” (a não ser que se confunda a diferença categórica entre ataque e defesa, e afirme-se que a ameaça de defender-se no evento de um ataque é o mesmo tipo de coisa que a ameaça de atacar). Se violência física é proibida, então se infere que é permitido defender a si mesmo contra ela. Logo é absurdo classificar ataque e defesa sob a mesma rubrica de “coerção”. Defesa está para coerção como o dia está para a noite.
Ainda assim, da inevitabilidade da defesa não se infere nenhuma justificativa para o monopólio governamental da coerção. Ao contrário. Um governo não é de modo algum meramente um “monopolista da defesa” que ajuda os indivíduos privados a evitar gastos com defesa (ineficientemente, como todo monopolista) que seriam, de outro modo, “inevitáveis”. Por não poder, de outra maneira, oferecer atividades de defesa, o monopólio governamental da coerção inclui em particular o direito do estado de cometer violência contra cidadãos privados e sua obrigação complementar de não defenderem-se contra ataques do governo. Mas que tipo de justificação para o governo é esta: que se uma pessoa render-se incondicionalmente a um agressor, ele pode economizar gastos de defesa de outro modo “inevitáveis”?
IV. Tese Dois
A razão epistemológica fundamental para a teoria absurda de Hayek sobre governo e coerção deve ser encontrada no anti-racionalismo sistemático de Hayek.
(1) Este anti-racionalismo expressa-se primeiro no fato de que Hayek rejeita a ideia de uma ética cognitiva. Hayek é um relativista ético (que, como já demonstrado, nem ao menos considera possível a possibilidade de uma distinção moral inequívoca entre ataque e defesa).
(2) Segundo – e de maneira ainda mais dramática –, o anti-racionalismo de Hayek é expresso em sua “teoria da evolução social”, na qual ação propositada e auto-interesse, tentativa, erro e aprendizagem, força e liberdade, bem como estado e mercado (sociedade) foram sistematicamente eliminados como fatores explanatórios de mudança social e substituídos por uma obscura “espontaneidade” e um princípio coletivista-holista-organicista de “seleção cultural grupal”. (As citações que Hayek faz de Carl Menger como um precursor de sua própria teoria são falsas. Menger teria ridicularizado a teoria da evolução de Hayek como a um misticismo. O sucessor de Menger não é Hayek, mas sim Ludwig von Mises e seu “racionalismo social”.)[27]
V. Sobre Ética
“Além disso, se a civilização é o resultado de mudanças graduais não desejadas na moralidade, então, por mais que relutemos a aceitar isto, nenhum sistema universalmente válido de ética pode algum dia vir a ser conhecido por nós”.[28] Além disso, “A evolução não pode ser justa. … Na verdade, insistir que toda mudança futura seja justa seria demandar que a evolução cesse. A evolução nos leva adiante precisamente ao acarretar muitas coisas que não podemos querer ou prever, muito menos antecipar por suas propriedades morais”.[29] Ou: “Fingir saber a direção desejável do progresso me parece ser de uma arrogância extrema. Progresso guiado não seria progresso”.[30] (O mesmo pode ser dito sobre se Hayek pode ou não aconselhar os países outrora comunistas da Europa Oriental: ele não sugere nada senão confiar na “evolução espontânea”.)
É característico do anti-racionalismo de Hayek que ele não prove essa tese contra-intuitiva, como é necessário. De fato, ele nem tentar fazê-la plausível.
É o mesmo anti-racionalismo que leva Hayek a declarar – o mais das vezes apenas algumas páginas antes ou depois – algo aparentemente completamente diferente (consistência lógica não é um requisito necessário para um anti-racionalista). Por exemplo, “Onde não há propriedade, não há justiça”.[31] E John Locke é citado em aprovação com uma passagem que provavelmente não poderia ser mais racionalista: “‘Onde não há propriedade, não há justiça’ é uma proposição tão certa quanto qualquer demonstração em Euclides: pois a ideia de propriedade como sendo um direito a algo e a ideia à qual o nome de injustiça é dado sendo a invasão ou violação deste direito; é evidente que estas ideias assim estabelecidas, e estes nomes apensos a elas, eu posso certamente saber que esta proposição é verdadeira tanto quanto que um triângulo tem três ângulos iguais a dois retos”.[32]
E por último, é característico de Hayek quando, apenas uma página adiante, enquanto ainda estamos imaginando como conciliar a ideia lockeana de ética euclidiana com a tese da “impossibilidade” de uma ética universalmente válida, Hayek retorna, numa súbita guinada dialética em relação a seu ponto de partida. “As instituições de propriedade, como existem atualmente dificilmente são perfeitas; de fato, nós nem podemos dizer ainda do que consistiria tal perfeição”.[33] “Os conceitos tradicionais de propriedade têm sido reconhecidos recentemente como um pacote complexo e modificável cujas combinações mais efetivas ainda não foram descobertas em todas as áreas”.[34] As investigações da Escola de Chicago (Coase, Demsetz, Becker, e outros) em particular “têm aberto novas possibilidades para melhorias futuras na estrutura legal da ordem de mercado”.[35]
Hayek não considera mencionar, ou não reconhece, que as teorias de propriedade de Locke e da Escola de Chicago são incompatíveis. Segundo Locke, os princípios de autopropriedade, apropriação original (ocupação), produção e troca voluntária são normas éticas universalmente válidas. A teoria da propriedade privada de Locke é uma teoria da justiça, e Locke é um absolutista ético. Em contraste, os representantes da Escola de Chicago negam a possibilidade de uma ética racional universalmente válida. Não há nenhuma justiça em Chicago. Quem possui o que e quem não possui, e, do mesmo modo, quem é o agressor e quem é a vítima, não é para Coase e seus colegas algo fixo e estabelecido de uma vez por todas e não depende de quem fez o que no passado. Ao contrário, títulos de propriedade podem ser distribuídos entre as pessoas e redistribuídos com as mudanças nas situações, de modo que a eficiência econômica futura seja maximizada. A pessoa da qual se espera fazer o uso mais eficiente do recurso – como “mensurado” em termos de dinheiro – se torna seu dono; aquele que for incorrer em menores custos monetários caso evite a atividade em disputa é declarado o agressor em uma disputa sobre direitos de propriedade; e sempre que ao longo do tempo os papéis de usuário mais eficiente ou a “pessoa com menores custos” mudar de uma pessoa para outra, os títulos de propriedade devem ser redistribuídos de acordo.[36]
VI. Sobre a Evolução Social
O caráter místico-coletivista da teoria de Hayek da evolução social espontânea revela-se em passagens como estas:
- “No processo de transmissão cultural, no qual modos de conduta são passados adiante de geração a geração, um processo de seleção acontece, no qual aqueles modos de conduta que prevalecem levam à formação de uma ordem mais eficiente para todo o grupo, porque tais grupos prevalecerão sobre outros”.[37]
- Na medida em que essas regras prevalecem porque o grupo que as adotou foi mais bem sucedido, ninguém precisa saber porque este grupo foi bem-sucedido e porque, por consequência, suas regras foram adotadas comumente.[38]
- “Cultura … é uma tradição de normas aprendidas de conduta que nunca foram “inventadas” e cuja função os agentes individuais não compreendem…, o resultado de um processo de joeirar e peneirar, dirigido pelas vantagens diferentes ganhas por grupos por meio de práticas adotadas por razões talvez puramente acidentais e algumas até desconhecidas”.[39] “O homem não adotou novas regras porque ele era inteligente. Ele se tornou inteligente ao submeter-se a novas regras de conduta”.[40] “Nós nunca projetamos nosso sistema econômico. Nós não éramos inteligentes o suficiente para isso. Nós nos deparamos com ele e ele nos levou a alturas inesperadas e deu origem a ambições que podem ainda levar-nos a destruí-lo”.[41]
- A civilização “surgiu não do desígnio ou intenção humanos mas espontaneamente: surgiu a partir da conformação não-intencional a certas práticas tradicionais e, em larga medida, morais, muitas das quais o homem tende a não gostar, cuja significância geralmente eles não conseguem compreender, cuja validade eles não podem provar e que não obstante espalharam-se rapidamente por meio de uma seleção evolucionária – o aumento comparativo da população e da riqueza – desses grupos que eventualmente a seguiram.”[42] “As tradições morais sobrepujam as capacidades da razão.”[43] “A mente não é um guia mas um produto da evolução cultural, e é baseada mais na imitação do que na compreensão ou razão”.[44]
A teoria de Hayek consiste então destas três proposições:
(1) Uma pessoa inicialmente executa uma ação espontânea – sem saber o porquê e por qual propósito; e uma pessoa retém esta prática por razão nenhuma – quer ela tenha resultado em sucesso, quer não (pois sem propósito e objetivo não pode haver nem sucesso nem falha). (Mutação cultural.)
(2) A nova prática é imitada por outros membros do grupo – de novo, sem motivo ou razão. A proliferação da prática cessa uma vez que todo o grupo a tenha adotado. (Transmissão cultural.)
(3) Os membros dos outros grupos não imitam a prática. Aqueles grupos que adotam espontaneamente e imitam inconscientemente uma prática moral melhor exibirão um crescimento populacional comparativamente maior, maior riqueza, ou de alguma maneira “prevalecem”. (Seleção cultural.)
Hayek reivindica que esta teoria explica a evolução da propriedade privada, da divisão do trabalho e do comércio, bem como do dinheiro e do governo. Entretanto, essas práticas e instituições demonstram, na verdade, o completo absurdo da teoria (de modo que Hayek não pode deixar de contradizer sua teoria repetidamente).[45]
VII. Mutação cultural
A teoria de Hayek da espontaneidade pode ser aplicável a vegetais (ainda que mesmo aqui encontraria dificuldades por causa do “lamarckismo” explicitamente adotado por Hayek),[46] mas definitivamente não é aplicável a agentes humanos. Toda ação envolve o emprego de meios escassos, e todo agente pode sempre distinguir entre uma ação bem-sucedida e uma malsucedida. O conceito de uma ação espontânea-inconsciente à la Hayek é uma contradictio in adjecto. Ação é sempre consciente e racional. Logo, a teoria de Hayek leva a um dilema inescapável: se a teria de Hayek for aplicada a si mesma, então sua própria atividade de escrever livros não é nada além de uma emanação sem finalidade sobre a qual as questões de verdadeiro e falso e de sucesso e falha simplesmente não surgem. Ou os escritos de Hayek representam uma ação propositada. Entretanto, neste caso, a sua teoria é obviamente falsa, porque ao esclarecer-se (e a nós) sobre o curso da evolução social, Hayek não mais age espontaneamente, mas, ao contrário disso, tenta moldar a mudança social consciente e racionalmente.
Sobre o problema da origem da propriedade privada em particular, é necessário apenas inserir na proposição (1) práticas como a apropriação original de bens previamente sem donos ou a produção de um bem de capital para reconhecer imediatamente seu absurdo. A apropriação e produção de bens de capital são atividades propositadas. Empreende-se apropriação original e produzem-se bens de capital porque se prefere mais bens a menos bens e se reconhece a maior produtividade física da terra apropriada e da produção capitalista. Mesmo que a invenção de um bem de capital como, por exemplo, um martelo ou machado, aconteceu primeiro por acidente, o inventor ainda assim reconheceu para que propósito isso era útil, e toda repetição da prática inventada então ocorreu propositadamente e com razão.
VIII. Transmissão Cultural
Igualmente absurda é a teria de Hayek da “associação espontânea” por meio de imitação inconsciente. A imitação de práticas de apropriação original e produção capitalista indireta por outros é da mesma maneira motivada pelo desejo por uma maior riqueza pessoal. É uma imitação justificada. Nem forças externas nem acaso são necessários para explicá-la. Nem estas são necessárias para explicar a emergência da divisão do trabalho e das trocas interpessoais. As pessoas reconhecem e tem reconhecido que a divisão do trabalho e trocas voluntárias levam à maior produtividade física do que se permanecêssemos em autossuficiência.[47] Da mesma maneira, para a origem de uma economia monetária não se deve esperar por uma mutação espontânea. Sob condições de incerteza, em qualquer economia de escambo impedimentos à venda vão surgir (sempre que não houver uma dupla coincidência de vontades). Nesta situação uma pessoa pode ainda assim aumentar sua própria riqueza se ele reconhecer que bens podem ser empregados não apenas para uso pessoal, mas também como um meio de troca – para o propósito de revenda –, e se ele então lograr êxito ao adquirir um bem mais negociável em troca de um bem menos negociável. A demanda por um bem qua meio de troca aumenta ainda mais a negociabilidade deste bem. A prática será imitada por outros para resolver seus próprios problemas de venda, e no curso de um processo auto-reforçante de imitação, mais cedo ou mais tarde um único meio de troca universal – uma moeda mercadoria – irá emergir, o qual é unicamente distinguível de todos os outros bens por ser aquele com o mais alto grau de revendagem.[48]
Nada disso é resultado do acaso. Em todo lugar, na origem da propriedade privada, o comércio e o dinheiro, o propósito individual, o discernimento e a ação com interesse próprio estão em operação.
De fato, tão evidentemente errada é sua teoria que Hayek frequentemente retrocede para uma segunda variação mais moderada. Segundo esta versão, a divisão do trabalho e o comércio são “as consequência não-intencionais da ação humana”, “o resultado da ação humana, mas não do desígnio humano”.[49] O processo de associação humana pode não proceder completamente inconscientemente, mas em grande parte sim. Um agente pode ser capaz de reconhecer seus ganhos pessoais de atos de apropriação, produção, troca, uso-de-dinheiro – e nesta medida, o processo de evolução pode parecer racional. Entretanto, um agente não pode reconhecer as consequências indiretas de suas ações (e são alegadamente essas consequências não-intencionais inconscientes para a sociedade como um todo que são decisivas para o sucesso ou fracasso evolucionário de práticas individuais). E uma vez que essas consequências não podem ser conhecidas, o processo de evolução social é, em última instância, irracional,[50] motivado não por ideias verdadeiras ou falsas e discernimentos, mas por um mecanismo de seleção grupal cego inconscientemente efetivo.
Entretanto, essa variante é também contraditória e absurda.
Primeiro, é autocontraditório caracterizar ações por suas consequências indiretas inconscientes e então, no fôlego seguinte, nomear essas consequências. Se as consequências indiretas podem ser nomeadas e descritas, elas também podem ser intencionadas. Caso contrário, se elas fossem de fato inconscientes, nada poderia ser dito sobre elas. Algo sobre o qual não se pode dizer nada, obviamente não pode ter uma influência identificável sobre a ação de ninguém; nem pode ser responsabilizado pelo sucesso evolucionário diferente de diferentes grupos. Logo, desde o princípio é absurdo descrever – como Hayek o faz – a função de um teórico social como a de explicar as “regularidades e padrões não-intencionais que encontramos em existência na sociedade humana”. [51]A função do teórico social é a de explicar as consequências diretas, bem como as indiretas (e não as intencionais e não-tencionais) da ação humana e, assim, contribuir para uma progressiva racionalização da ação humana – uma expansão do conhecimento dos objetivos (intencionáveis) possíveis e da incompatibilidade ou compatibildade mútua de vários objetivos.[52]
Segundo, a variação moderada também não pode explicar a origem da divisão do trabalho, do comércio e do dinheiro. Pode-se conceder inicialmente a Hayek que pode ser possível que uma pessoa que empreende uma troca ou adquire um meio de troca pela primeira vez irá desse modo reconhecer apenas o seu ganho pessoal (mas não as consequências sociais indiretas). Ele pode não saber (e a humanidade no princípio certamente não sabia) que como um permutador e usuário de dinheiro ele contribui em última instância para o desenvolvimento de um mercado mundial, integrado por meio de uma única moeda-mercadoria universalmente utilizada (historicamente o ouro), para um crescimento populacional duradouro, para uma divisão do trabalho cada vez mais extensa e riqueza econômica global continuamente crescente. Além disso, é em princípio impossível prever hoje (ou em qualquer tempo presente) a diversidade, as quantidades, os preços e as distribuições pessoais de bens futuros. Mas disto não se infere a conclusão anti-racionalista-cética de Hayek – de que “progresso guiado não é progresso”, que “não podemos antecipar as propriedades morais dos resultados evolucionários” e que “nós nunca planejamos nosso sistema econômico, mas nos deparamos com ele, e ele pode ainda nos levar à destruição”.
Pois mesmo que uma pessoa não compreenda imediatamente as consequências sociais indiretas de suas próprias ações, é difícil de imaginar como esta ignorância possa durar por muito tempo. Uma vez que trocas repetidas entre comerciantes específicos, ou uma vez que vejamos nossa própria prática de adquirir um meio de troca copiada por outros, começa-se a reconhecer que suas próprias ações não são apenas unilateralmente benéficas, mas mutualmente benéficas. Mesmo que se fosse ainda incapaz de predizer sistematicamente o desenvolvimento de mercados futuros e a forma e a composição da riqueza futura, então, com a natureza da troca bilateral e do meio de troca, ainda ao mesmo tempo se reconheceria o princípio de justiça interpessoal e do progresso econômico universal e individual: quaisquer resultados que emergem de trocas voluntárias são justas; e progresso econômico consiste na expansão da divisão do trabalho baseado no reconhecimento da propriedade privada e na universalização do uso da moeda e do cálculo monetário. Mesmo se a divisão do trabalho, a moeda e o cálculo econômico se tornarem rotina ao longo do tempo, o reconhecimento dos fundamentos da justiça e da eficiência econômica nunca desaparece completamente. Uma vez que, por qualquer razão, a divisão do trabalho (guerra) ou a moeda (hiperinflação) colapsem, as pessoas se lembrarão disso. Então, eles não devem esperar inconscientemente o posterior curso da evolução social – sua própria extinção. Pelo contrário, eles são capazes de reconhecer o colapso enquanto tal e saber (e sempre souberam) como começar de novo, sistematicamente.
Além disso, como os exemplos citados por Hayek de Carl Menger e Ludwig von Mises claramente demonstram, não é nem preciso chegar a uma catástrofe antes de se recuperar a consciência. Tão logo se compreenda os pensamentos desses homens, pode-se agir com plena compreensão de suas próprias atividades. A evolução não procede acima do raciocínio dos indivíduos agentes, mas ao invés disso torna-se um progresso da mudança social experimentada e/ou planejada. Cada progressão e cada revés no processo de integração econômica podem ser identificados e explicados, e a identificação consciente de reveses em particular torna possível que se possa conscientemente ajustar a uma catástrofe antes que realmente aconteça ou que um erro seja corrigido conscientemente (na medida em que se possua controle sobre isso).
Ademais, da mesma forma como as pessoas não estão condenadas a tropeçar cegamente em direção à auto-destruição, eles também não devem permanecer passivos e impotentes vis-à-vis um declínio econômico previsto. Ao contrário, a todo tempo pode-se sempre expandir sistematicamente o escopo de erros controláveis – e, logo, corrigíveis. Pois qualquer desvio institucionalizado do processo de integração econômica e associação – tal quais expropriações governamentais, impostos, depreciações monetárias ou restrições comerciais – deve ter a aprovação da maioria do público. Sem esse apoio da opinião pública, não obstante possa ser relutante, seu cumprimento contínuo torna-se impossível. Logo, a fim de impedir um declínio, não mais – e nem menos – que uma mudança na opinião pública é necessária; e a opinião pública pode ser influenciada, a todo momento, por ideias e ideologias.[53]
Ironicamente, um declínio econômico inconsciente só é possível se a maioria do público seguir o conselho de Hayek de agir “espontaneamente” – sem realmente saber o porquê – e livres da ‘arrogância extrema de saber a direção do progresso’. É claro que não podemos agir completamente sem consciência. Ainda assim, de acordo com as recomendações de Hayek, presta-se atenção exclusivamente às causas e consequências imediatas e diretas de nossas ações e riqueza. Em contraste, conhecimento e ideias sobre causas e consequências indiretas e invisíveis a olho nu são consideradas sem importância, arbitrárias e até mesmo ilusórias. Participa-se rotineiramente da divisão do trabalho porque se reconhece sua vantagem direta; e se reconhece o dano direto de impostos, depreciações monetárias e restrições comerciais. Entretanto, não se reconhece que ao participar da divisão do trabalho ao mesmo tempo se promove o bem-estar de todos os outros participantes do mercado literalmente até o último recanto da terra, e de fato que quanto maior o lucro pessoal, maior é a contribuição ao bem público. Nem se reconhece que o dano direto causado por meio da intervenção governamental em outros, quer na vizinhança imediata, quer na outra extremidade do mundo, sempre diminui indiretamente nosso próprio padrão de vida. Porém, essa ignorância possui consequências fatais; pois aquele que não compreende as causas e consequências indiretas de suas ações age diferentemente. Ele agirá ou como se a vantagem ou desvantagem econômica de uma pessoa não tivesse nada que ver com a de outra pessoa – e ele de acordo permanecerá neutro ou indiferente em relação a toda intervenção governamental que seja dirigida contra outros. Ou ele pode até agir na crença de que o ganho de um pode ser o prejuízo de outro; e então pode ele até acolher bem a expropriação governamental, impostos, desvalorizações monetárias ou restrições comerciais como um meio de trazer ‘restituição’ para os perdedores ‘injustiçados’ (de preferência a si mesmo e outros na mesma condição). Enquanto essa atitude intelectual prevalecer na opinião pública, um crescimento firme em expropriação governamental, impostos, inflação e restrições governamentais, e o subsequente declínio econômico contínuo, será de fato inevitável.
Entretanto, o conselho de Hayek é falso e absurdo. É impossível agir inconscientemente ou conscientemente ser ignorante. E mesmo se causas e consequências sociais indiretas de nossas ações fossem desconhecidas, elas ainda são – com algum atraso e mesmo que mediadas – efetivas. Logo, conhecê-las é sempre vantajoso para todos. Ao contrário, o único beneficiário das recomendações de Hayek é o governo. Apenas os representantes do estado e do governo podem ter um interesse pessoal em propagar uma consciência hayekiana (enquanto eles mesmo reconhecem-na como uma “falsa consciência”), porque vis-à-vis um público ignorante se torna mais fácil para o governo crescer. Ainda assim, o público em geral fora do aparato estatal não tem nenhum interesse em ter uma falsa consciência (e, logo, conhecer menos que o governo). É pessoalmente vantajoso deixar suas ações serem guiadas por ideias corretas, e por consequência se é sempre receptivo a esclarecimento ideológico. Conhecimento é melhor que ignorância. E porque é melhor, é ao mesmo tempo contagiante. Entretanto, tão logo o público for esclarecido e sua maioria reconhecer que a participação de todos em uma economia de trocas beneficia simultaneamente a todos os outros participantes do mercado, e que toda intervenção governamental na rede de relações de troca bilaterais, não importando onde nem contra quem, representa um ataque à sua própria riqueza, um declínio econômico não é inevitável mais. Pelo contrário, ao invés de permanecer indiferentes e mesmo receptivos à intervenção governamental, o público não apoiará ou mesmo será hostil a elas. Com a opinião pública nesse clima, ao invés de declínio econômico, um processo de racionalização social consciente e integração econômica continuamente avançando resultará.
IX. Seleção Cultural
Entretanto, segundo Hayek, progresso não tem nada que ver com esclarecimento. Quanto menos se é capaz de reconhecer as razões para um declínio econômico, tanto menos o progresso é devido ao discernimento. Da mesma forma que se cai inconsciente e impotente em direção ao abismo, também se tropeça cegamente avante. Não são ideias verdadeiras ou falsas que determinam o curso da evolução social, mas o destino místico. Progresso ocorre naturalmente, sem qualquer compreensão dos indivíduos participantes, quando um grupo coincidentemente com práticas melhores, de alguma forma, ‘prevalece’ sobre um outro grupo com práticas piores.
Além do fato de que essa teoria é incompatível com a própria observação repetida de Hayek de que a evolução cultural procede mais rapidamente que a evolução biológica[54], é falsa também por duas razões. Primeiro, a teoria contém pressupostos que a tornam inaplicáveis a sociedades humanas. Segundo, quando aplicada, todavia, a teoria remostra-se vazia, e Hayek, de novo, revela a si memo – intencionalmente ou sem querer – como um apologista do estado.
Para fazer sua teoria funcionar, Hayek primeiro assume a existência de grupos separados. Hayek introduz esse pressuposto quando ele alega que uma nova prática “espontânea” será imitada cegamente dentro de um grupo, mas não (por que não?) fora dele. Se a prática fosse imitada universalmente e se, por conseguinte, existisse apenas um único grupo, seleção cultural grupal seria, por definição, impossível. Sem algum tipo de competidor não pode haver seleção nenhuma. Além disso, sem seleção, o conceito de progresso não pode mais ser empregado de forma significativa. Tudo que pode ser declarado sobre uma prática espontaneamente universalizada e gerada espontaneamente – sem propósito ou razão – é isto: que enquanto for praticada ela não se extinguiu.
Entretanto, o pressuposto de grupos separados, que Hayek tem de introduzir a fim de resgatar o conceito de progresso cultural (dentro de sua teoria anti-racionalista da ação e sociedade), imediatamente produz uma série de problemas insuperáveis para sua teoria. Primeiro, infere-se que a teoria de Hayek não pode ser aplicada ao presente. O mundo presente é caracterizado pelo fato de que as práticas de apropriação original e propriedade, de produção de bens de capital, de comércio e cálculo monetário são universalmente disseminadas – não existe nenhum grupo em que essas práticas são completamente desconhecidas e ausentes – e toda a humanidade está conectada por meio de uma rede de trocas bilaterais. Neste contexto, a humanidade é um único grupo. Então, qualquer competição entre diferentes grupos que possa existir não pode ter qualquer relevância para essas práticas universais. Práticas universais encontram-se – como uma constante – fora de qualquer mecanismo de seleção; e, então, segundo a teoria de Hayek, como justificação da apropriação original, da produção de bens de capital ou de divisão do trabalho e troca, nada mais poderia ser feito do que dizer que essas práticas ainda não desapareceram.
A teoria de Hayek é também inaplicável às sociedades primitivas ou pré-modernas. Nesse estágio da história humana, grupos isolados existiram. Mas mesmo nelas as práticas de apropriação, produção e troca eram universais. Não houve tribo, não importa quão primitiva, que não as conhecesse e praticasse. Este fato não causa problema para uma teoria da ação e sociedade que reconheça essas práticas como resultado de ação racional maximizadora de utilidade. Para esta teoria, o fato é facilmente explicável: cada grupo reconhece independentemente as mesmas normas universalmente válidas. Mas para Hayek esse fato elementar constitui um problema teórico fundamental. Pois se apropriação, produção, trocas e dinheiro são o resultado de mutação espontânea, imitação cega, contágio ou transmissão mecânica, como Hayek reivindica, torna-se inexplicável – exceto por referência ao acaso – por que cada grupo, em completo isolamento de todos os outros, viria aparecer com exatamente os mesmos padrões de ação. Seguindo a teoria de Hayek, deveria se esperar que, em vez disso, a humanidade, ao menos em seus primórdios, teria gerado uma variedade de ações bem diferentes e sociedades mutantes. De fato, se Hayek estivesse correto, teria de se assumir que no começo da humanidade as pessoas teriam adotado a prática de não apropriar, não produzir e não trocar tão frequentemente quanto elas adotaram o oposto. Uma vez que isso certamente não é o caso, Hayek teria de explicar tal anomalia. Entretanto, uma vez que ele identificasse a razão óbvia para esse fato – que a adoção das últimas práticas levam à morte imediata,[55] enquanto as primeiras são meios indispensáveis para a sobrevivência –, ele teria de reconhecer a existência da racionalidade humana e contradizer sua própria teoria.
Segundo, mesmo considerando grupos isolados, a teoria de Hayek da seleção cultural grupal não pode explicar como progresso cultural inconsciente poderia ser possível. (Sua explicação do conceito de “prevalecer” é, da mesma forma, vago.) Grupos isolados – e principalmente grupos conectados pelo comércio – não competem um contra o outro. O pressuposto, familiar à teoria da evolução biológica, de que organismos diferentes estão envolvidos em uma competição de soma-zero por recursos naturalmente limitados não pode ser aplicada a sociedades humanas, e logo qualquer tentativa de inferir retrospectivamente, a partir da sobrevivência de um fenômeno, a sua melhor adaptação (como é, dentro de limites, possível em biologia) falha aqui. Um grupo de pessoas isoladas de todas as outras que segue as práticas de apropriação, produção de bens de capital e de trocas não reduz assim oferta de bens de outros grupos. Este aumenta sua própria riqueza sem diminuir a dos outros. Se ele começa a comerciar com outros grupos, ele até mesmo faz aumentar a riqueza desses outros. Entre grupos humanos, não é competição, mas independência auto-suficiente ou cooperação mutuamente vantajosa que existe. Um mecanismo de seleção cultural, logo, não pode tornar-se efetivo aqui.[56]
Hayek, nas dificuldades teóricas criadas por ele mesmo, apesar disso indica muitas possibilidades. “Prevalecer” significa ou que um grupo se torna mais rico que outro, que ostenta um crescimento populacional comparativamente maior, ou que derrota militarmente e assimila o outro. Além do fato de que esses critérios são mutuamente incompatíveis – qual seria o caso de, por exemplo, se um grupo mais populoso fosse derrotado militarmente por um menos populoso? –, todos eles falham em explicar o progresso. O critério aparentemente mais plausível – riqueza – falha porque a existência de grupos com riquezas diferentes não tem relevância para suas sobrevivências ou extinções. Dois grupos praticam a apropriação, produção e troca independentemente um do outro. Entretanto, os membros de ambos os grupos não são biologicamente idênticos, nem é a natureza externa (terra) para ambos os grupos a mesma. Disso se infere que os resultados de suas ações – suas riquezas – serão diferentes também. Isso é assim para grupos e indivíduos. Para indivíduos também é verdade que, por meio da aplicação de uma mesma prática de apropriação, produção e troca, riquezas diferentes resultam. Mas, então, a inferência de “maior riqueza” a “melhor cultura” é ilegítima. A pessoa mais rica não representa uma cultura melhor, e a mais pobre uma pior, mas com base em uma mesma cultura, uma pessoa se torna comparativamente mais rica que outra. Por consequência, nenhuma seleção ocorre. Ambos, ricos e pobres, coexistem – enquanto, como resultado da sua cultura compartilhada, a riqueza absoluta de ambos, ricos e pobres, aumenta.
Da mesma forma, o tamanho da população falha como um critério para seleção cultural. O tamanho do grupo também não implica nada a respeito de “cultura melhor”. Tudo que vigora para indivíduos aplica-se a grupos também. Do fato de que uma pessoa não tem uma prole biológica não se infere que ele seguiu outras práticas piores enquanto estava vivo. Em vez disso, indivíduos diferentes agindo com base nas mesmas regras produzem números diferentes de prole. Da mesma maneira que o pobre em relação ao rico, os sem filhos não estão em competição com aqueles com filhos. Eles existem independentemente um do outro ou eles cooperam um com o outro. E mesmo que um grupo seja literalmente extinto ou se um indivíduo comete suicídio, isso ainda assim não implicaria nenhuma seleção cultural. Pois os sobreviventes seguem as mesmas normas de apropriação, produção e troca que os extintos seguiam enquanto estavam vivos.
O terceiro critério, a conquista militar, sai-se bem ao trazer grupos de um estado de independência isolada ou cooperação a uma competição de soma-zero. Entretanto, sucesso militar não representa progresso moral mais do que um assassinato indica a superioridade moral do assassino sobre sua vítima. Além disso, a ocorrência de uma conquista (ou de um assassinato) não afeta a validade de normas universais, i.e., aquelas de que nem o assassino nem o assassinado podem prescindir: a fim de introduzir um conflito militar entre grupos, Hayek primeiro deve pressupor que em ao menos um desses grupos uma nova prática surge espontaneamente. Em vez de seguir as práticas de apropriação original, produção de bens de capital e troca, alguém deve aparecer com a ideia de que se possa também aumentar a própria riqueza ao forçosamente expropriar apropriadores, produtores e permutadores. Entretanto, tão logo essa prática seja, então, segundo a teoria de Hayek, imitada cegamente por todos os outros membros, uma guerra de todos contra todos aconteceria. Em pouco tempo não haveria nada que ainda pudesse ser expropriado, e todos os membros do grupo extinguir-se-iam – não por causa de um mecanismo de substituição cultural ou seleção, mas por causa de sua própria estupidez! Toda pessoa pode independentemente apropriar, produzir e trocar, mas nem todos podem expropriar apropriadores, produtores e permutadores. Para que expropriações sejam possíveis, deve haver pessoas que continuam a seguir a prática de apropriação, produção e troca. A existência de uma cultura de expropriação requer a existência continuada de uma cultura de apropriação, produção e troca. A primeira encontra-se em uma relação parasítica com a última. Entretanto, então, a conquista militar não pode gerar progresso cultural. Os conquistadores não representam uma cultura fundamentalmente diferente. Entre eles mesmos os conquistadores devem seguir a mesma prática de apropriação, produção e troca que também era seguida pelos conquistados. E após a conquista bem-sucedida, os conquistadores devem retornar a essas práticas tradicionais – porque todos os conquistados morreram ou toda a pilhagem foi consumida ou porque se quer institucionalizar sua prática de expropriação e, logo, se precisa de uma população produtiva contínua (de pessoas conquistadas).
Não obstante, tão logo a teoria de Hayek é aplicada a esse único caso de competição cultural concebível (em vez de independência ou cooperação) em que um subgrupo (os conquistadores) segue uma cultura parasítica de expropriação enquanto o resto do grupo (os conquistados) simultaneamente apropria, produz e troca, o resultado é uma apologia descarada ao governo e ao estado.
Isso manifesta-se primeiro na maneira em que a teoria de Hayek explica a origem de uma cultura de expropriação. Assim como a cultura de apropriação, produção e troca é alegadamente o resultado de uma mutação acidental, da mesma forma a prática de expropriação representa um desenvolvimento “espontâneo”. Assim como apropriadores, produtores e perrmutadores não compreendem o significado de suas atividades, da mesma maneira os conquistadores não entendem o significado de conquista. Da mesma maneira que apropriadores, produtores e permutadores reconhecem a vantagem pessoal imediata de suas atividades, os conquistadores também podem reconhecer seus ganhos pessoais de atos de expropriação. Ainda assim, da mesma forma que os participantes numa economia de mercado não são capazes de compreender que, por meio de suas atividades, a riqueza de todos os outros participantes é simultaneamente aumentada, os conquistadores também não podem saber que, por meio expropriações, a riqueza dos expropriados é reduzida. Falando francamente: um grupo de assassinos, ladrões ou caçadores de escravos não sabem que os assassinados, roubados ou escravizados sofrem, assim, uma perda. Eles seguem suas práticas tão inocentemente quanto os assassinados, roubados e escravizados seguem suas práticas diferentes de apropriação, produção e troca. Expropriação, impostos ou restrições comerciais são tanto expressões de espontaneidade humana como o são a apropriação, produção e comércio. Todo grupo de conquistadores agradecerá Hayek por tanta (má) compreensão!
Segundo, a teoria de Hayek falha lamentavelmente também em sua tentativa de explicar a ascensão e queda de civilizações históricas – e destarte mais uma vez fornece implicações estatistas absurdas. De fato, o que mais quereria ouvir um grupo de conquistadores senão que suas próprias ações não têm nada que ver com a ascensão e declínio de civilizações. Ainda assim, é exatamente isso que a teoria de Hayek implica: pois, segundo Hayek, progresso cultural é possível apenas enquanto uma cultura pode de alguma forma “prevalecer” sobre outra. Contudo, sobre o relacionamento entre uma cultura de base de apropriação e uma subcultura parasítica de expropriação não pode haver “prevalência”. A cultura parasítica não pode prevalecer, ainda que como uma subcultura esta possa continuar a operar tão logo exista uma cultura de base de apropriação. Progresso por meio de seleção grupal é impossível dentro desse relacionamento; e, então, segundo Hayek, estritamente falando, nada pode ser declarado sobre o posterior curso da evolução social. Porque os membros da cultura de apropriação supostamente não compreendem que eles promovem o bem-estar social por meio de suas ações e porque os membros da cultura de expropriação são igualmente ignorantes do fato de que suas ações reduzem o bem-estar geral, mudanças espontâneas na magnitude relativa de ambas as culturas podem ocorrer. Às vezes, a cultura de apropriação atrairá mais aderentes espontâneos; outras vezes, a cultura de expropriação é que os atrairá. Entretanto, uma vez que não há razão pela qual essas mudanças espontâneas, se é que ocorrem, devam seguir qualquer padrão – previsível –, também não há nenhuma relação específica reconhecível entre mudanças culturais espontâneas e a ascensão e declínio de civilizações. Tudo é acaso. Nenhuma explicação para a ascensão e o declínio da civilização Romana existe. Da mesma forma, nenhuma razão compreensível para a ascensão da Europa Ocidental ou dos Estados Unidos existe. Essa ascensão poderia muito bem ter acontecido em outro lugar – na Índia ou África. De acordo, seria “arrogância extrema”, por exemplo, dar conselhos à Índia ou à África do ponto de vista da Europa Ocidental; pois isto implicaria – ó, quão presunçoso – que se conheceria a direção do progresso.
Todavia, se essa teoria for rejeitada como vazia, e já foi apontado que, a partir da própria descrição da situação inicial – a coexistência de uma cultura de base de apropriação e uma subcultura parasítica de expropriação – uma lei fundamental da evolução social é inferida, todo o sistema anti-racionalista de Hayek de novo cai por terra. Uma relativa expansão da cultura de base leva a maior riqueza social e é a razão para a ascensão de civilizações; e uma relativa expansão da subcultura parasita leva a menor riqueza e é responsável pelo declínio de civilizações. Porém, se alguém (qualquer pessoa) tiver entendido essa relação elementar e simples, então a origem e as mudanças relativas na magnitude de ambas as culturas não mais podem ser interpretadas como um processo natural. A explicação, familiarizada com a biologia, de um processo natural de equilíbrio auto-regulado – de parasitas desenvolvendo-se espontaneamente, um enfraquecimento do hospedeiro, uma consequente diminuição do número de parasitas, e finalmente a recuperação do hospedeiro, etc. – não pode ser aplicado a uma situação onde o hospedeiro e/ou o parasita estão conscientes de seus respectivos papéis, bem como da relação entre eles e são capazes de escolher entre esses papéis. Uma evolução social compreendida não é mais natural, mas racional. Enquanto apenas os membros da cultura parasítica entendem a natureza da relação, em lugar de uma ascensão e queda naturais de ambas as culturas, um crescimento estável planejado acontecerá. Os membros da subcultura parasítica não oscilarão entre uma situação absolutamente boa e uma depois pior. Em vez disso, por causa de seu discernimento do relacionamento entre a cultura de apropriação e a de expropriação eles podem agir de uma maneira – ao não expandir suas práticas espontaneamente, mas, ao invés disto, restringir a si mesmo – que suas próprias riquezas sempre aumentarão (ou que ao menos nunca diminuirão). Por outro lado, na medida em que os membros da cultura de base compreendem a natureza do relacionamento entre ambas as culturas, não apenas a riqueza absoluta da subcultura será ameaçada, mas sua simples existência estará em perigo. Pois os membros de uma subcultura parasítica sempre representarão apenas uma minoria de todo o grupo. Uma centena de parasitas podem levar uma vida confortável com os produtos de mil hospedeiros. Ainda assim, mil parasitas não podem viver de cem hospedeiros. Se, todavia, os membros da cultura produtiva de apropriação sempre representma uma maioria da população, então, no longo prazo, a maior força física está do lado deles também. Eles sempre podem derrotar fisicamente e destruir os parasitas, e a existência continuada de uma subcultura de expropriação não é então explicada por seu poderio físico-militar superior, mas, em vez disto, depende exclusivamente do poder das ideias. O governo e o estado devem encontrar apoio ideológico que atinge profundamente a população explorada. Sem tal apoio dos membros da cultura de base, mesmo o governo mais brutal e aparentemente invencível colapsa imediatamente (como ilustrado recentemente de maneira dramática pela queda da União Soviética e dos governos comunistas da Europa Oriental).
As mudanças na magnitude relativa da cultura de base e da subcultura parasítica, que explicam a ascensão e declínio de civilizações, são por sua vez explicadas por mudanças ideológicas. Elas não ocorrem espontaneamente, mas são o resultado de ideias conscientes e sua disseminação. Em uma sociedade em que a maioria da cultura de base compreende que cada ato de apropriação, produção e troca aumenta o bem-estar de todos os outros participantes do mercado, e que cada ato de expropriação, tributação ou restrição comercial, ao invés disso, independentemente de contra quem seja direcionado, reduz o bem-estar de todos os outros, a cultura parasítica do governo e do estado desaparecerá continuamente e uma ascensão da civilização acontecerá. Por outro lado, em uma sociedade em que a maioria da cultura de base não compreende a natureza e relação entre subcultura e cultura de base, a expropriação parasítica aumentará e com isso um declínio da civilização acontecerá.[57]
Hayek, que quer banir ideias e racionalidade da explicação da história, deve negar tudo isso. Contudo, ao propor sua própria teoria da seleção cultural grupal inconsciente, ele também afirma a existência e a efetividade das ideias, e ele também reconhece – esteja consciente disso ou não – que o curso da evolução social é determinado por ideias e sua adoção. Hayek produz ideias e também quer influenciar o curso da história humana por meio de ideias. Entretanto, as ideias de Hayek são falsas; e sua proliferação levaria ao eclipse da civilização Ocidental.
X. Conclusão
Friedrich Hayek é hoje em dia aclamado como um dos mais importantes teóricos da economia de mercado e do liberalismo clássico. Muito mais que seus primeiros trabalhos no campo da Economia, seus trabalhos posteriores sobre filosofia política e teoria social têm contribuído para sua fama. São estes escritos posteriores que atualmente apoiam e alimentam uma indústria extensa de dissertações sobre Hayek.
As investigações precedentes demonstram que as excursões de Hayek no campo da teoria social e política devem ser consideradas um fracasso completo. Hayek começa com uma afirmação autocontraditória e acaba em absurdo: ele nega a existência da racionalidade humana ou, ao menos, a possibilidade de reconhecer todas as causas e consequências indiretas da ação humana. Ele afirma que o curso da evolução social e a ascensão e declínio de civilizações são incompreensíveis e que ninguém conhece a direção do progresso (apenas para então explicar o progresso como resultado de algum processo inconsciente de seleção cultural grupal). Ele afirma que não existe nenhum padrão ético universalmente válido e que é impossível fazer uma distinção moral inequívoca entre um ataque e uma defesa ou entre recusa pacífica à troca e uma troca sob coação física. E por último, ele afirma que o governo – cujas causas e consequências alegadamente são tão incompreensíveis quanto as do mercado – deveria assumir (financiado por impostos) todas aquelas funções que o mercado não oferta (o que em qualquer lugar fora do Jardim do Éden corresponde a um número infinito de funções).
Nossas investigações dão apoio à suspeita de que a fama de Hayek pouco tem a ver com sua importância como teórico social, mas sim com o fato de que sua teoria não representa nenhuma ameaça à ideologia estatista de social-democracia atualmente dominante e que uma teoria que é marcada por contradição, confusão e vagueza oferece um reservatório ilimitado para empreendimentos hermenêuticos.
Aquele que busca um defensor da economia de mercado e do liberalismo devem procurar em outro lugar. Mas não mais longe do que o professor e mentor de Hayek: o grande e insuperado Ludwig von Mises.
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Notas
[1] O seguinte ensaio não considera as realizações de Hayek como um economista. Quanto a estas, Hayek mecere muitos elogios. Mas a economia de Hayek é, em larga medida, a que ele adotou de seu professor e mentor Ludwig von Mises e, assim, não é original dele. O que faz de Hayek único, e o que o distingue fundamentalmente de Mises, é sua filosofia social e política. É essa parte de seu trabalho, não sua contribuição à teoria econômica, que deu fama a Hayek. Entretanto, infelizmente, como será demonstrado a seguir, essa parte original do trabalho de Hayek é completamente falsa.
[2] Sobre o seguinte em particular, veja Constitution of Liberty (Chicago: University of Chicago Press, 1960), chap. 15 and part 3; Law, Legislation, and Liberty 3 301s. (Chicago: University of Chicago Press, 1973-79), chap. 14.
[3] Law, Legislation and Liberty, 3, p. 41. Compare isso com a afirmação de John Maynard Keynes: “A mais importante agenda do estado relaciona-se não àquelas atividades que os indivíduos privados já realizam, mas àquelas decisões que não são feitas por ninguém se o estado não as fizer. A coisa importante para o governo não é fazer as coisas que os indivíduos já fazem e fazê-las um pouco melhor ou um pouco pior: mas fazer aquelas coisas que não são feitas de modo algum” (The End of Laissez Faire (vol. 9), Collected Wrintings [Londres: MacMillan, 1973], p. 291).
[4] Law, Legislation, and Liberty, 3, p. 44
[5] Ibid., p. 55.
[6] Ibid., p. 59.
[7] Ibid., p. 62.
[8] Ibid., pp. 62-63.
[9] Ibid., p. 53.
[10] F.A. Hayek, Denationalization of Money: The Argument Refined (Londres: Institute of Economics Affairs, 1990).
[11] Constitution of Liberty, p. 286
[12] Ibid., p. 346.
[13] Ibid., p. 351. O que dizer sobre os repetidos pronunciamentos de Hayek, enquanto economista, de que todas as comparações interpessoais de utilidade são cientificamente inválidas?
[14] Ibid., p. 375.
[15] Ibid., p. 222.
[16] Ibid., p. 143.
[17] Sobre o seguinte, veja Ronald Hamowy, “Freedom and the Rule of Law in F.A. Hayek”, Il Politico (1970-71); idem, “Hayek’s Concept of Freedom: A Critique”, New Individualist Review (Abril, 1961); idem, “Law and the Liberal society: F.A. Hayek’s Constitution of Liberty”, Journal of Libertarian Studies 2 (Inverno de 1978); Murray N. Rothbard, “F.A. Hayek and the Concept of Coercion”, em idem, The Ethics of Liberty (Atlantic Highlands: Humanities Press, 1981).
[18] Constitution of Liberty, pp. 20-21.
[19] Ibid., p. 133.
[20] Law, Legislation, and Liberty, 1, pp. 55-56.
[21] Constitution of Liberty, p. 135.
[22] Ibid., p. 137.
[23] Ibid., p. 135.
[24] Ibid., p. 136.
[25] Veja também Murray N. Rothbard, Power and Market (Kansas City: Sheed Andrews & McMeel, 1977), pp. 228-34; Hans-Hermann Hoppe, “Von der Strafunwiirdigkeit unterlassener Hilfeleistung”, em: idem, Eigentum, Anarchie und Staat (Opladen: West-deutscher Verlag, 1977); idem, “On the Indefensibility of Welfare Rights,” Austrian Economics Newsletter 3 (1989).
[26] Constitution of Liberty, p. 21; também p. 141 f.
[27] A documentação dessa tese parentética será mantida mínima e relegada a notas de rodapé.
Sobre a diferença fundamental entre Menger e Mises de um lado e Hayek de outro lado, veja Joseph T. Salerno, “Ludwig von Mises as Social Rationalist”, Review of Austrian Economics 4 (1990): 26-54; Jeffrey M. Herbener, “Ludwig von Mises and the Austrian School of Economics”, Review of Austrian Economics 5, no. 2 (1991): 33-50; Murray N. Rothbard, “The Present State of Austrian Economics” (Auburn Ala.: Ludwig von Mises Institute Working Paper, 1992).
[28] F.A. Hayek, The Fatal Conceit: The Errors of Socialism, W.W. Bartley III, ed. (Chicago: University of Chicago Press, 1988), p. 20.
[29] Ibid., p. 74.
[30] Law, Legislation, and Liberty, 3, p. 169.
[31] Fatal Conceit, p. 33; veja também Constitution of Liberty, p. 140.
[32] Fatal Conceit, p. 34.
[33] Ibid., p. 35.
[34] Ibid., p. 36.
[35] Ibid.
[36] Veja Ronald Coase, The Firm, the Market, and the Law (Chicago: University of Chicago Press, 1988); Harold Demsetz, Ownership, Control, and the Firm (Oxford: Blackwell, 1988); para uma crítica veja Walter Block, “Coase and Demesetz on Private Property Rights”, Journal of Libertarian Studies 1, no. 2 (Primavera de 1997).
[37] F.A. Hayek, New Studies in Philosophy, Politics, Economics and the History of Ideas (Chicago: University of Chicago Press, 1978), p. 9.
[38] Law, Legislation, and Liberty, 2, p. 5.
[39] Law, Legislation, and Liberty, 3, p. 155.
[40] Ibid., p. 163.
[41] Ibid., p. 164.
[42] Fatal Conceit, p. 6.
[43] Ibid., p. 10.
[44] Ibid., p. 21.
[45] Sobre o seguinte, veja também David Ramsey Steele, “Hayek’s Theory of Cultural Group Selection”, Journal of Libertarian Studies 8, no. 2 (1987).
[46] Veja The Fatal Conceit, p. 25.
[47] Veja Ludwig von Mises, Human Action. A Treatise on Economics (Chicago: Henry Regnery, 1966), chap. 8.
“Se, e na medida em que, o trabalho sob a divisão do trabalho é mais produtivo que trabalho isolado, e se, e na medida em que, o homem é capaz de compreender este fato, ação humana em si mesmo pende em direção à cooperação e à associação; o homem torna-se um ser social não ao sacrificar seus próprios interesses em prol de um Moloch mítico, a sociedade, mas ao objetivar um acréscimo em seu próprio bem-estar. A experiência nos ensina que essa condição – a maior produtividade obtida sob a divisão do trabalho – é efetiva porque sua causa – a desigualdade inata dos homens e a desigualdade na distribuição geográfica dos fatores naturais de produção – é real. Desse modo, nós estamos em posição de compreender o curso da evolução social” (ibid, p. 160-61). “O liberalismo … considera toda cooperação social como uma emanação da utilidade racionalmente reconhecida” (Ludwig von Mises, Socialism [Indianapolis, ind.: Liberty Fund, 1981], p. 418).
Hayek rejeita essa explicação. Segundo ele, considerar como Mises faz
“toda cooperação social como uma emanação da utilidade racionalmente reconhecida … é incorreto. O racionalismo extremo dessa passagem … parece-me factualmente equivocado. Certamente não foi discernimento racional dos seus benefícios gerais que levou à extensão da economia de mercado” (“Prefácio” de Socialism, ibid, p. xxiii).
Pode-se estar imaginando de que outra maneira explicar o fenômeno, mas Hayek não diz – exceto por meio de referência a “evolução espontânea”. Ainda mais assombroso deve parecer o fato de que não existia nenhuma sociedade humana que não tivesse nem propriedade nem trocas. (Os “bandos primordiais” de Hayek [Law, Legislation, and Liberty, 3, Epilogue; Fatal Conceit, chap. 1] são um mito, similar ao mito de Morgan-Engels do comunismo primitivo, para o qual não há um pingo de evidência antropológica. E a transição da sociedade cara a cara para a economia sem rosto anônima não foi de modo algum um evento traumático que exigiu hábitos e motivos fundamentalmente diferentes. O mercado mundial não é nada mais que a soma de todas as transações interpessoais e, enquanto tal, não mais difícil de compreender que uma simples troca bilateral de bens.)
Em lugar disso, Hayek então empreende uma falsificação aberta quando, a despeito dos registros históricos em contrário, ele designa a Mises a posição de um predecessor de algum modo menos que completamente desenvolvido da sua teoria (a de Hayek).
“Parece-me que o impulso dos ensinamentos de Mises é mostrar que não adotamos a liberdade porque nós entendemos quais benefícios ela traria: que nós não projetamos, e certamente não éramos inteligentes o bastante para projetar, a ordem que nós agora aprendemos parcialmente a compreender muito depois de termos tido várias oportunidades de ver como teria funcionado. … É em grande medida para o crédito de Mises que ele tenha em grande parte emancipando-se daquele ponto de partida racionalista-construtivista, mas esta tarefa ainda está por ser completada” (ibid, p. xxiii-xxiv).
De fato, Mises nunca disse nada remotamente similar ao que Hayek insinua; e se crédito deve ser dado onde é devido, Mises deve ser creditado não por ter emancipo a si mesmo de seu racionalismo, mas por nunca tê-lo abandonado.
[48] Veja Carl Menger, Principles of Economics (Nova Iorque; New York University Press, 1976), chap. 8; Ludwig von Mises, Theory of Money and Credit (Irvington-on-Hudson, N.Y.: Foundation for Economic Education, 1971), chap. 1.
[49] F.A. Hayek, Studies in Philosophy, Politics, and Economics (Chicago: university of Chicago Press, 1967), chap. 6.
[50] Assim, Hayek escreve que foi o “racionalismo pervertido … que interpretou a lei da natureza como as construções dedutivas da ‘razão natural’”. O direito, ao contrário, é “o resultado não premeditado do crescimento” (ibid., p. 101).
[51] Ibid., p. 97.
[52] Nesse ponto, pode-se querer comparar Hayek a seu alegado predecessor Carl Menger. Para Hayek, o direito é ‘o resultado não premeditado do crescimento’. “Nossos valores e instituições são determinadas não simplesmente por causas precedentes, mas como partes de um processo de auto-organização inconsciente de uma estrutura ou padrão” (Fatal Conceit, p. 9).
Em forte contraste, Carl Menger considera todas as referências em explicações da ciência social a categorias hayekianas tais quais “crescimento natural”, “evolução espontânea”, “natureza primordial” ou “auto-organização inconsciente” como puro misticismo. Explicar um fenômeno social por meio de forças como essas é não explicar absolutamente nada – uma impostura científica:
“A origem de um fenômeno não é explicada ao asseverar que este estava presente desde o início ou que este desenvolveu-se originalmente … um fenômeno social, ao menos em sua forma original, deve claramente ter desenvolvido de fatores individuais. A visão [organicista, hayekiana] aqui referenciada é meramente uma analogia entre o desenvolvimento de instituições sociais e o de organismos naturais, a qual é completamente inútil para os propósitos de resolução de nosso problema. Ela declara, para deixar claro, que instituições são criações não intencionais da mente humana, mas não como elas surgiram. Essas tentativas de interpretação são comparáveis ao procedimento de um cientista natural que pensa que está resolvendo o problema da origem dos organismos naturais ao aludir a sua “originalidade”, “crescimento natural” ou sua “natureza primitiva” … tentativas de interpretar as mudanças de um fenômeno social como ‘processos orgânicos’ não são menos inadmissíveis que … teorias que buscam resolver ‘organicamente’ o problema da origem de estruturas sociais criadas sem intenção. Dificilmente há necessidade de comentar que as mudanças de fenômenos sociais não podem ser interpretadas de maneira pragmático-social, na medida em que elas não são o resultado pretendido do acordo dos membros da sociedade ou legislação positiva, mas são o produto involuntário do desenvolvimento social. Contudo é igualmente óbvio que nem mesmo a menor compreensão da natureza e das leis do movimento social pode ser obtida pela mera alusão ao caráter ‘orgânico’ ou ‘primitivo’ do processo em discussão, nem mesmo por meras analogias entre eles e as transformações a serem observadas em organismos naturais. A inutilidade da orientação de pesquisa acima é tão clara que não nos importamos de adicionar mais nada ao que já dissemos acima” (Carl Menger, Investigations into the Method of the Social Sciences with Special Reference to Economics [Nova Iorque: New York University Press, 1985], pp. 149-50).
[53] Uma vez que Hayek essencialmente nega a existência (ou a importância) das ideias no curso da evolução social, ele também (ao menos em seus escritos tardios) não menciona a opinião pública.
Em distinto contraste, David Hume, a quem Hayek reivindica como seu predecessor, atribui importância fundamental a ideias e opinião pública. “Nada parece mais surpreendente para aqueles que consideram os problemas humanos com os olhos de filósofo do que a facilidade com que a maioria é governada pela minoria, e a submissão implícita com a qual os homens resignam seus próprios sentimentos e paixões a esses governantes. Quando investigamos por quais meios essa maravilha é realizada, devemos encontrar que, como a Força está sempre do lado dos governados, os governantes não tem nada além da opinião para apoiá-los. É, então, sobre apenas opinião que o governo se funda, e esta máxima estende-se aos mais despóticos e militaristas dos governos, bem como aos mais livres e mais populares. O sultão do Egito, ou o imperador de Roma, deve governar seus súditos inofensivos como bestas brutas, contra seus sentimentos e inclinações. Mas ele deve, ao menos, liderar seus mamelucos ou bandos de pretorianos como homens, por suas opiniões” (David Hume, Essays. Moral, Political and Literary [Oxford: University of Oxford Press, 1971], p.19).
Veja também E. de La Boétie, The Politics of Obedience: The discourse of Voluntary Servitude, editado com uma introdução por Murray N. Rothbard (New York: Free Life Editions, 1975); e abaixo, p. 91 ff.
[54] Hayek, Law, Legislation, and Liberty, 3 pp. 154, 156.
Como David Ramsey Steele corretamente nota que (“Hayek’s Theory of Cultural Group Selection”, p. 179), “se seleção cultural grupal deve ser invocada, a cultura humana evoluiria bem mais devagar que a biologia humana. Pois a seleção de grupos é um processo mais lento que a seleção de indivíduos, e seleção grupal de acordo com cultura não se pode esperar que proceda mais rápido que seleção grupal de acordo com genes”.
[55] Além disso, essa forma de extinção também não se encaixa no esquema explanatório de Hayek, pois uma pessoa ou grupo que renuncie toda apropriação, produção, etc., desapareceria por causa de sua própria estupidez, não no curso da seleção cultural grupal.
[56] Ainda que Hayek note algumas diferenças óbvias entre evolução cultural e biológica (Fatal Conceit, p. 25), ele não reconhece a diferença categórica entre cooperação social e competição biológica. Em vez disso, ele escreve que evolução cultural e biológica
ambas baseiam-se no mesmo princípio de seleção: sobrevivência ou vantagem reprodutiva. Variação, adaptação e competição são essencialmente o mesmo tipo de processo, não importa quão diferentes são seus mecanismos particulares, em especial aqueles relativos à propagação. Não apenas toda evolução depende de competição; competição contínua é necessária até mesmo para preservar as realizações existentes” (ibid, p. 26).
Em contraste, Ludwig von Mises nitidamente distingue cooperação e competição. Ele escreve:
A sociedade é ação combinada, cooperação. A sociedade é o resultado de comportamento propositado e consciente. Isso não significa que indivíduos firmaram contratos em virtude dos quais eles fundaram a sociedade humana. As ações que acarretaram a cooperação social e diariamente acarretam novamente não objetivam nada mais que cooperação e coadjutoria com outros para a realização de fins definidos singulares. O complexo total de relações mútuas criadas por essas ações combinadas é chamado de sociedade. Ela substitui a vida isolada de indivíduos por colaboração – ao menos concebivelmente. A sociedade é a divisão do trabalho e combinação do trabalho. Em sua capacidade como animal agente, o homem torna-se um animal social” (Human Action, p. 143).
“O que torna relações amigáveis entre os homens possíveis é a maior produtividade da divisão do trabalho. Esta remove o conflito natural de interesses. Pois onde há divisão do trabalho não há mais questão sobre a distribuição de uma oferta não capaz de ampliação. Graças à maior produtividade do trabalho realizado sob a divisão de funções, a oferta de bens se multiplica. Um interesse comum preeminente, a preservação e intensificação da cooperação social, torna-se suprema e oblitera todas a colisões essenciais. A competição biológica é substituída em prol da competição cataláctica. Esta promove a harmonia dos interesses de todos os membros da sociedade. A própria condição da qual conflitos irreconciliáveis de competição biológica surgem – isto é, o fato de todas as pessoas em geral buscarem pelas mesmas coisas – é transformado em um fator de promoção da harmonia de interesses. Em virtude de muitas pessoas ou mesmo de todas as pessoas quererem pão, roupas, calçados e carros, produção em larga escala desses bens torna-se factível e reduz os custos de produção tanto que eles tornam-se acessíveis a preços baixos. O fato de que meus pares querem adquirir sapatos, da mesma maneira que eu, não torna mais difícil para mim conseguir sapatos, mas mais fácil” (ibid, p. 673).
[57] Mises escreve:
“A história é a luta entre dois princípios, o princípio da paz, que promove o desenvolvimento do comércio, e princípio militarista-imperialista, que interpreta a sociedade humana não como uma amigável divisão do trabalho, mas como a repressão forçada de alguns de seus membros por outros. O princípio imperialista continuamente recupera vantagem. O princípio liberal não pode manter a si mesmo contra aquele até que a inclinação para o trabalho pacífico inerente às massas tenha lutado pelo reconhecimento completo de sua importância como um princípio da evolução social” (Socialism, p. 268).
“O liberalismo é racionalista. Ele afirma que é possível convencer a imensa maioria de que a cooperação social dentro da estrutura da sociedade serve melhor aos interesses corretamente compreendidos do que batalha mútua e desintegração social. Ele confia totalmente na razão do homem. Pode ser que esse otimismo seja infundado e que os liberais erraram. Mas então não há mais esperança para o futuro da humanidade” (idem, Human Action, p. 157).
“O corpo de conhecimento econômico é um elemento essencial na estrutura da civilização humana; é o fundamento sobre o qual o industrialismo moderno e todas as conquistas terapêuticas, tecnológicas, intelectuais e morais dos últimos séculos foram construídas. Depende dos homens se eles farão um uso apropriado desse rico tesouro com o qual esse conhecimento lhe provém ou se eles o abandonarão. Mas se eles falharem em tirar vantagem disso e desconsiderarem seus ensinamentos e avisos, eles não anularão a ciência econômica; eles destruirão a sociedade e a raça humana” (ibid, p. 885).