Sempre que os homens interagem uns com os outros, há uma chance de surgirem desentendimentos e litígios. Mesmo quando não houve iniciação de força, duas pessoas podem discordar sobre questões como os termos e cumprimento de um contrato ou a legitimidade de títulos de propriedade. Independentemente de uma das partes do litígio estar tentando enganar a outra, ou de ambas (ou todas) serem completamente honestas e sinceras em suas alegações, o litígio pode chegar a um ponto em que não pode ser resolvido sem arbitragem legal por um árbitro imparcial. Se não existisse nenhum mecanismo para tal arbitragem dentro de uma sociedade, os litígios só poderiam ser resolvidos pela violência em todas as situações em que pelo menos uma pessoa abandonasse a razão – o único meio de comunicação satisfatório do homem. Então, essa sociedade se desintegraria em conflito, desconfiança e colapso social e econômico, à medida que as relações humanas se tornassem perigosas demais para serem toleradas em qualquer escala, exceto na mais limitada.
Os defensores do “governo limitado” afirmam que o governo é necessário para manter a ordem social porque os litígios nunca poderiam ser resolvidos satisfatoriamente sem um tribunal único e final de apelação para todos, e sem a força das regras legais para obrigar os litigantes a se submeterem a esse tribunal e a acatarem suas decisões. Eles também parecem acreditar que os juízes e membros do governo são de alguma forma mais imparciais do que os outros homens porque são separados das relações comuns de mercado e, portanto, não têm interesses pessoais que interfiram em seus julgamentos.
É interessante notar que os defensores do governo veem a força iniciada (a força legal do governo) como a única solução para atritos sociais. Segundo eles, se todos na sociedade não fossem obrigados a usar o mesmo sistema judicial, e particularmente o mesmo tribunal de última instância, as disputas seriam insolúveis. Aparentemente, não lhes ocorre que as partes em conflito são capazes de escolher livremente seus próprios árbitros, incluindo o árbitro final, e que esse árbitro final não precisaria ser o mesmo órgão para todas os litígios que ocorrem na sociedade. Eles não perceberam que os litigantes estariam, de fato, em situação muito melhor se pudessem escolher entre as agências de arbitragem concorrentes para que pudessem colher os benefícios da competição e especialização. Deveria ser óbvio que um sistema judicial que tem um monopólio garantido pela força da lei estatutária não prestará um serviço de qualidade tão boa quanto as agências de arbitragem de livre mercado que devem competir por seus clientes. Além disso, a existência de uma multiplicidade de agências se empresta à especialização, de modo que pessoas envolvidas em disputas de um tipo específico podem contratar a arbitragem de especialistas nesse campo … em vez de serem obrigadas a se submeter ao julgamento de homens que têm pouco ou nenhuma experiência no assunto.
Mas, argumentam os defensores do governo, deve haver uma agência de força legal para obrigar as partes em conflito (particularmente aquelas que forem negligentes ou desonestas) a se submeterem à arbitragem e obedecerem à decisão do árbitro, ou todo o processo de arbitragem seria inútil. É verdade que todo o processo não teria sentido se um dos litigantes, ou ambos, pudessem evitar a arbitragem ou ignorar a decisão do árbitro. Mas isso não significa que uma instituição de iniciação de força seja necessária para obrigar os litigantes a encarar a arbitragem como obrigatória. O princípio do interesse próprio racional, sobre o qual todo o sistema de livre mercado é construído, alcançaria esse objetivo com bastante eficácia. Homens que concordam em cumprir a decisão de um árbitro neutro e depois quebram esse contrato são obviamente não confiáveis e muito arriscados para se fazer negócios. Homens honestos, agindo em seu próprio interesse racional, verificariam o histórico daqueles com quem fariam negócios e evitariam qualquer tipo de relação comercial com tais indivíduos. Esse tipo de boicote informal seria extremamente eficaz em uma sociedade sem governo, onde um homem não poderia adquirir nada além do que ele mesmo pudesse produzir ou adquirir de outros através de comércio.
Mesmo nos casos em que a pressão do ostracismo nos negócios não bastasse para garantir o cumprimento das decisões dos árbitros, isso não significa que o governo seria necessário para levar o infrator à justiça. Como será mostrado nos capítulos 9 e 10, homens livres, agindo em um mercado livre, são perfeitamente capazes de lidar com justiça com aqueles poucos que prejudicam seus semelhantes com qualquer forma de coerção, inclusive quebra de contrato. Não é necessário institucionalizar a violência agressiva para lidar com a violência agressiva!
Talvez o argumento menos sustentável para a arbitragem governamental de disputas seja aquele que diz que os juízes governamentais são mais imparciais porque operam fora do mercado e, portanto, não têm interesses pessoais. Em primeiro lugar, é impossível para qualquer um, exceto um eremita autossuficiente, operar completamente fora do mercado. O mercado é simplesmente um sistema de comércio, e mesmo juízes federais têm relações comerciais com outros homens para melhorar seu padrão de vida (se não fizessem isso, teríamos que pagá-los em bens consumíveis em vez de dinheiro). Em segundo lugar, ser funcionário do governo certamente não é garantia de imparcialidade! Um juiz governamental é sempre impelido a ser parcial… a favor do governo, de quem recebe seu salário e seu poder! Por outro lado, um árbitro que vende seus serviços em um mercado livre sabe que deve ser tão escrupulosamente honesto, justo e imparcial quanto possível, ou nenhum conjunto de partes envolvidas em uma disputa comprará seus serviços para arbitrar o litígio. Um árbitro de livre mercado depende para sua subsistência de sua habilidade e justiça na resolução de conflitos. Um juiz governamental depende da influência política.
Excluindo os casos de iniciação de força e fraude (que serão tratados em capítulos posteriores), existem duas categorias principais de litígios entre homens – litígios que surgem de uma situação contratual entre as partes em conflito (como desacordos sobre o significado e aplicação do contrato, ou alegações de quebra de contrato, intencionalmente ou por negligência) e litígios em que não havia relação contratual entre as partes. Devido à importância das relações contratuais em uma sociedade laissez-faire, o litígio entre partes contratantes será discutido primeiro.
Uma sociedade livre, particularmente se for industrializada, é uma sociedade contratual. Os contratos são uma parte tão básica de todos os negócios que até mesmo a menor empresa entraria em colapso se a integridade de seus contratos não fosse protegida. (Não apenas negócios milionários entre gigantes industriais, mas seu emprego, o apartamento que você aluga e o carro que você compra representam situações contratuais.) Isso cria um grande mercado para o serviço de proteção contratual, um mercado que atualmente é monopolizado pelo governo. Em uma sociedade laissez-faire, esse mercado seria idealmente atendido por agências de arbitragem profissional em conjunto com companhias de seguros.
Em uma sociedade de livre mercado, indivíduos ou empresas em disputas contratuais que não pudessem resolver por comum acordo considerariam ser de seu interesse levar seu problema a uma agência de arbitragem para intermediação da disputa. A fim de eliminar possíveis conflitos quanto a qual agência de arbitragem recorrer, as partes contratantes geralmente designariam uma agência no momento em que o contrato fosse redigido. Essa agência julgaria qualquer litígio entre as partes, e elas se obrigariam contratualmente a cumprir suas decisões. Se as partes em litígio não tivessem tido o cuidado de designar uma agência de arbitragem no contrato original, elas ainda poderiam contratar uma quando a disputa surgisse, desde que pudessem chegar a um acordo sobre qual agência usar. Obviamente, qualquer agência de arbitragem insistiria que todas as partes envolvidas consentissem com sua arbitragem para que nenhuma delas tivesse base para mover qualquer ação contra ela posteriormente, em caso de insatisfação com sua(s) decisão(ões).
Seria mais econômico e, na maioria dos casos, suficiente ter apenas uma agência de arbitragem para julgar o caso. Mas se as partes acreditassem que um recurso poderia ser necessário e estivessem dispostas a arriscar a despesa extra, elas poderiam providenciar uma sucessão de duas ou até mais agências de arbitragem. Os nomes dessas agências constariam no contrato, em ordem, do “primeiro tribunal de apelação” até o “último tribunal de apelação”. Não seria necessário nem desejável ter um único tribunal de apelação final para cada pessoa da sociedade, como temos hoje na Suprema Corte dos Estados Unidos. Essa uniformidade forçada sempre promove a injustiça. Uma vez que as agências de arbitragem para qualquer contrato específico seriam designadas nesse contrato, cada parte contratante escolheria sua própria agência ou agências de arbitragem (incluindo aquela à qual cabe o recurso final, se mais de uma fosse desejada). Aqueles que precisassem de arbitragem poderiam, assim, colher os benefícios da especialização e da competição entre as várias agências de arbitragem. E, uma vez que as empresas devem competir com base em preços mais baixos e/ou melhor serviço, a competição entre as agências de arbitragem levaria a decisões escrupulosamente honestas, tomadas com a maior velocidade e menor custo possível (um forte contraste com o sistema tradicional de tribunais governamentais, onde a justiça é muitas vezes uma questão de advogados espertos e de sorte).
As agências de arbitragem empregariam árbitros profissionais, em vez de usar um júri de cidadãos, como fazem os tribunais governamentais. Um conselho de árbitros profissionais teria grandes vantagens sobre o atual sistema de júri cidadão de “ignorância vezes doze”. Árbitros profissionais seriam especialistas altamente treinados que fariam carreira analisando litígios e resolvendo-os com justiça. Eles seriam educados para sua profissão com o mesmo rigor de engenheiros ou médicos, provavelmente recebendo seu treinamento básico em áreas como lógica, ética e psicologia, e especialização adicional em qualquer campo no qual pudessem surgir disputas. Árbitros profissionais ainda cometeriam erros, porém muito menos do que os jurados amadores e os juízes políticos de hoje. Não só os árbitros profissionais estariam muito mais qualificados do que nossos atuais cidadãos-jurados para ouvir, analisar e avaliar provas com o propósito de chegar a um julgamento objetivo, como também seriam muito mais difíceis de subornar. Um árbitro profissional que tentasse “entregar” um caso seria facilmente detectado por seus colegas treinados e experientes, e poucos homens seriam tão tolos a ponto de colocar em risco uma carreira bem remunerada e altamente respeitada, mesmo em troca de muito dinheiro.
Afinal, a justiça é um bem econômico, assim como a educação e a assistência médica. A capacidade de fazer justiça depende do conhecimento e da habilidade de avaliar pessoas e situações. Esse conhecimento e habilidade devem ser adquiridos, assim como o conhecimento médico deve ser adquirido antes que orientações médicas possam ser dadas. Algumas pessoas estão dispostas a investir o esforço para obter esse conhecimento e habilidade, para que possam vender seus serviços como árbitros profissionais. Outras pessoas precisam de seus serviços e estão dispostas a comprá-los. A justiça, como qualquer outro bem ou serviço, tem valor econômico.
A razão da superioridade dos árbitros profissionais sobre os jurados-cidadãos pode ser facilmente percebida com um exame da base moral de cada sistema. O “serviço” do cidadão-jurado baseia-se no conceito de cumprir um dever para com o Estado ou seus concidadãos – outra variação da crença irracional e imoral de que o indivíduo pertence ao coletivo. O árbitro profissional, por outro lado, é um comerciante, vendendo seus serviços especializados no mercado livre e lucrando na medida de sua excelência.
Como as agências de arbitragem fariam negócios em um mercado livre, elas teriam que atrair clientes para obter lucros. Isso significa que elas achariam de seu interesse tratar todos os litigantes que as procurassem com toda cortesia e consideração possível. Em vez de assumir a posição autoritária de um juiz governamental e proferir decisões arbitrárias com pouca ou nenhuma consideração pelos interesses e sentimentos dos litigantes, elas se esforçariam ao máximo para encontrar uma solução que fosse, tanto quanto possível, satisfatória para ambas as partes. Se um litigante discordasse da solução proposta pelos árbitros, eles primeiro tentariam persuadi-lo argumentando com ele (o que significa que a solução em si teria que ser razoável). Somente como último recurso eles invocariam a cláusula do contrato entre os litigantes e a agência de arbitragem que tornava a arbitragem obrigatória. As agências de arbitragem, uma vez que obteriam seus clientes pela excelência do serviço e não pela coerção, teriam que agir como árbitros ajudando a resolver uma disputa… e não como juízes impondo sentenças.
As companhias de seguros, em busca de novas áreas de negócios, se ofereceriam para segurar contratos, e a maioria dos indivíduos e empresas provavelmente aproveitaria esse serviço. (Na verdade, segurar o valor monetário dos contratos é prática comum hoje. Quase todos os contratos de parcelamento têm seguro contra não pagamento por morte ou outra causa de inadimplência.) Esse seguro seria vendido às partes contratantes no momento em que o contrato fosse ratificado. Antes de uma seguradora indenizar seu segurado por perdas sofridas em caso de quebra de contrato, a questão teria que ser submetida à arbitragem, conforme previsto no contrato. Por esta razão, haveria uma estreita ligação entre o negócio do seguro contratual e o negócio de arbitragem. Algumas agências de arbitragem provavelmente se desenvolveriam como departamentos ou subsidiárias de seguradoras, enquanto outras surgiriam como firmas independentes.
Suponha que o inventor de um utensílio doméstico tenha celebrado um contrato com um pequeno proprietário de fábrica, para que este produza a invenção, e eles contrataram um seguro sobre o contrato. Suponha que o dono da fábrica então mudou o design do utensílio doméstico e começou a fabricá-lo e vendê-lo como sua própria invenção, a fim de evitar o pagamento de royalties ao inventor. Após apelar ao fabricante sem sucesso, o inventor levaria sua reclamação à empresa seguradora do contrato. A companhia de seguros então organizaria uma audiência perante a agência de arbitragem nomeada no contrato como “primeiro tribunal de apelação”. Aqui, a disputa seria submetida a um ou mais árbitros profissionais para que julgassem uma solução. (O número e a composição geral dos árbitros, se mais de um árbitro fosse necessário, teriam sido especificados no contrato original.)
Se a decisão tomada pelos árbitros profissionais fosse satisfatória tanto para o inventor do utensílio doméstico quanto para o fabricante, sua decisão seria acatada e a questão estaria resolvida. Se a decisão não fosse satisfatória para o inventor ou o fabricante, e a parte insatisfeita sentisse que tinha uma chance de obter uma reversão da decisão, ela poderia apelar da decisão para a próxima agência de arbitragem nomeada no contrato. Esta agência consentiria em ouvir o caso se acreditasse que a parte insatisfeita apresentou provas suficientes para justificar uma possível reversão… e assim em diante, até a agência de arbitragem especificada como “tribunal de apelação final”.
Quando um contrato é quebrado deliberadamente ou por descuido, o princípio de justiça envolvido é que a parte que quebrou o contrato deve a todas as outras partes contratadas reparações no valor que sua quebra de contrato lhes custou (tal valor seria determinado pela agência de arbitragem previamente especificada pelas partes do contrato) mais o custo do processo de arbitragem.
Se os árbitros da agência de arbitragem final decidissem que o dono da fábrica havia, de fato, descumprido seu contrato com o inventor, eles estabeleceriam o valor das reparações a serem pagas o mais próximo possível do que os fatos justificassem – ou seja, eles tentariam ser o mais objetivos possível. Se o fabricante não pudesse ou não quisesse fazer o pagamento, ou se não o fizesse imediatamente, a seguradora indenizaria o inventor pelo valor em questão (nos termos da apólice). Com o inventor ressarcido de acordo com os termos da apólice de seguro, a seguradora teria então o direito de sub-rogação – ou seja, a seguradora teria o direito de cobrar as reparações no lugar do inventor, e o fabricante passaria a ficar devendo para a companhia de seguros (exceto por qualquer reivindicação válida que o inventor ainda possa ter para além do valor que recebeu da companhia de seguros).
Se o inventor não tivesse segurado seu contrato com o fabricante, ele seguiria os mesmos passos descritos acima, com duas exceções. Primeiro, ele próprio teria que fazer todos os preparativos para uma audiência perante a agência de arbitragem e para a cobrança da dívida, e teria que arcar com o custo desses serviços até que o fabricante o pagasse. Em segundo lugar, ele não seria imediatamente indenizado por sua perda, mas teria que esperar até que o fabricante pudesse pagá-lo, o que poderia levar meses ou mesmo anos se, por exemplo, o fabricante tivesse falido por causa de seus negócios duvidosos, e tivesse que efetuar o pagamento em parcelas.
Como aqueles que quebrassem contratos pagariam a maior parte dos custos ocasionados por seu comportamento negligente ou impróprio, as seguradoras não teriam que absorver grandes perdas em sinistros de seguro de contrato, como acontece com sinistros de incêndio ou acidentes. Com apenas perdas mínimas para distribuir entre seus segurados, as seguradoras poderiam cobrar prêmios muito baixos por seguros de contrato. O baixo custo, somado à grande conveniência proporcionada pelo seguro de contrato, tornaria esse seguro padrão para quase todos os contratos importantes.
Antes de examinar quais passos práticos uma seguradora (ou o reclamante original, se o contrato não fosse segurado) poderia moralmente tomar para cobrança de uma dívida, é necessário examinar o próprio conceito de “dívida”. Uma dívida é um valor devido por um indivíduo a outro indivíduo, com a consequente obrigação de efetuar um pagamento. Uma condição de dívida surge quando:
1 – um particular venha a deter valor que de direito pertença a outro, quer por acordo voluntário, como numa compra feita a crédito, quer por furto ou fraude;
2 – um indivíduo destrói um valor que por direito pertence a outro indivíduo.
A dívida é o resultado de uma ação voluntária ou negligente do devedor. Ou seja, mesmo que ele não tenha pretendido assumir uma dívida, ele voluntariamente tomou alguma ação ou deixou de tomar alguma ação que deveria ter tomado (como no caso do que hoje é chamado de “negligência criminosa”) que resultou diretamente na perda de algum valor pertencente a outro indivíduo. Uma dívida não surge de uma circunstância imprevisível ou inevitável, como um acidente ou desastre natural. (Nesses casos, as seguradoras agiriam como fazem agora, indenizando o segurado e distribuindo a perda entre todos os seus segurados.)
Quando uma dívida é devida, o devedor está na posse real ou potencial de um valor (ou de valores) que é propriedade legítima do credor. Ou seja, o devedor está na posse de:
1 – o(s) item(ns) de valor original, por exemplo, uma geladeira que ele comprou a prazo e pela qual ele deixou de efetuar os pagamentos, ou
2 – uma quantia em dinheiro igual em valor ao item original, caso ele tenha descartado ou destruído esse item, ou
3 – a capacidade de ganhar o dinheiro para fazer o pagamento (ou pelo menos o pagamento parcial) do item.
Uma vez que o devedor está em posse de valores reais ou potenciais que por direito pertencem ao credor, o credor tem o direito de reaver sua propriedade… porque é sua propriedade. E ele tem o direito de recuperá-la por qualquer meio que não tome ou destrua valores que são de legítima propriedade do devedor. Se o credor, no processo de cobrança de seus bens, priva o devedor de valores que legitimamente pertencem ao devedor, o credor pode descobrir que inverteu os papéis, e que agora ele se tornou o devedor.
Voltando à seguradora e à cobrança da dívida do fabricante no caso do utensílio doméstico, a seguradora teria o direito de reaver o valor da dívida, que passou a ser sua propriedade por direito de sub-rogação. Poderia fazê-lo combinando com o fabricante o reembolso, imediatamente ou em parcelas, conforme ele pudesse pagar. Se, no entanto, o fabricante se recusasse a efetuar o pagamento, a seguradora teria o direito de fazer os arranjos que julgasse necessário com outras pessoas ou empresas que tivessem transações financeiras com o devedor, a fim de agilizar a cobrança da dívida. Por exemplo, a companhia de seguros pode combinar com o banco do fabricante para debitar uma certa quantia de sua conta bancária, desde que o banco esteja disposto a fazer tal acordo. No caso de um homem empregado, a companhia de seguros pode combinar com seu empregador a dedução do(s) pagamento(s) da dívida do salário do homem, se o empregador estiver disposto. Em termos práticos, a maioria dos bancos teria, sem dúvida, uma política de cooperação com as seguradoras nestas questões, uma vez que uma política de proteção das contas bancárias contra reivindicações justas tenderia a atrair clientes pouco fiáveis, aumentando assim os custos bancários e obrigando o banco a aumentar suas taxas. O mesmo seria verdade para os empregadores, em grau maior. A maioria dos empregadores hesitaria em atrair mão de obra não confiável inserindo uma cláusula em seus contratos de trabalho garantindo proteção aos empregados contra reivindicações justas.
Entretanto, meios de cobrança tão drásticos como esses raramente seriam necessários. Na grande maioria dos casos, o devedor efetuaria o pagamento sem ação direta e retaliatória por parte da seguradora, pois se não o fizesse estaria se sujeitando ao ostracismo comercial. Obviamente, um homem que se recusou a pagar suas dívidas é um risco de negócios ruim, e as companhias de seguros, sem dúvida, cooperariam em manter arquivos centrais listando todos os riscos ruins, assim como as associações de crédito fazem hoje. Portanto, se o fabricante se recusasse a pagar suas dívidas, ele descobriria que todas as companhias de seguros com as quais ele queira negociar estão cobrando altos prêmios ou se recusando a fazer negócios com ele. Em uma sociedade livre, cujos membros dependessem da indústria de seguros para proteção de seus valores contra todo tipo de ameaça (incêndio, acidente, violência agressiva etc.) e onde, além disso, as companhias de seguros fossem a força garantidora da integridade dos contratos, quão bem um homem poderia viver se não pudesse obter um seguro (ou não pudesse obtê-lo a uma taxa que pudesse pagar)? Se as companhias de seguros se recusassem a fazer negócios com ele, ele não conseguiria comprar qualquer proteção para seus valores, nem poderia firmar nenhum contrato significativo – ele não poderia nem comprar um carro a prazo. Além disso, outras empresas teriam interesse em verificar as informações nos arquivos centrais das companhias de seguros, assim como verificam as classificações de crédito hoje, e assim a má reputação do fabricante se espalharia. Se sua inadimplência fosse séria o suficiente, ninguém iria querer arriscar fazer negócios com ele. Ele seria levado à falência, e poderia até ter dificuldade em encontrar e manter um bom emprego, ou alugar um apartamento decente. Mesmo o homem mais pobre e irresponsável pensaria duas vezes antes de se colocar em tal posição. Até mesmo o homem mais rico e poderoso acharia destrutivo para seus interesses isolar-se assim de todos os negócios. Em uma sociedade livre, os homens logo descobririam que a honestidade com os outros é uma necessidade egoísta e moral!
Se, mesmo diante de tudo isso, o fabricante ainda se mantivesse inflexível em sua recusa em pagar a dívida, a seguradora teria o direito de tratá-lo da mesma maneira que seria tratado um homem que tivesse tomado a propriedade de outro à força. Ou seja, a seguradora teria o direito de usar força retaliatória contra o fabricante, uma vez que este estaria de posse ilícita de bens que por direito pertencem à seguradora. Mas, como esse problema se enquadra no assunto de agressão e retificação de injustiças, que será abordado em capítulos subsequentes, vamos arquivar por enquanto o caso do fabricante.
O princípio moral que embasa as ações da seguradora em cobrar o fabricante é o seguinte: quando um homem é responsável intencional ou negligentemente pela perda de valor(es) pertencente(s) a outro indivíduo, ninguém deve ganhar com o inadimplemento ou agressão, mas a parte responsável deve arcar com a maior parte da perda, pois ela foi resultado de seu próprio comportamento desonesto e irracional.
Nem o inventor nem a seguradora devem lucrar com a desonestidade do fabricante, pois isso seria incentivar a desonestidade. E, de fato, nenhum deles lucra. Embora o inventor não seja obrigado a arcar com o ônus financeiro da inadimplência do fabricante, ele sofre alguns inconvenientes e provavelmente também a frustração de alguns de seus planos. A companhia de seguros perde até certo ponto porque indeniza o inventor imediatamente, mas geralmente deve esperar algum tempo e talvez até arcar com as despesas de exercer alguma força para cobrar do fabricante. Este princípio é o mesmo que faz com que as seguradoras atuais incorporem cláusulas de franquia em suas coberturas de automóveis, para que nenhuma das partes envolvidas possa lucrar com irracionalidade e negligência, e assim fique tentada a praticar tais ações.
Não obstante, o inventor e a seguradora não foram responsáveis pela inadimplência do fabricante; portanto, nem o inventor nem a seguradora deveriam arcar com o ônus de pagar por ela. A seguradora, especialmente, não deve assumir o prejuízo se for possível cobrar do culpado, pois simplesmente será forçada a repassar a perda para seus outros segurados que são inocentes de todo o caso. O fabricante é o culpado pela inadimplência, e é o fabricante que deve pagar por isso – de acordo com a lei moral de que cada homem deve colher a recompensa ou sofrer as consequências de suas próprias ações. As ações têm consequências.
Será argumentado pelos estatistas que o sistema de seguro de contrato de livre mercado deixaria indivíduos indefesos à mercê da ganância predatória de grandes e inescrupulosas companhias de seguros. Tal argumento, no entanto, apenas demonstra o desconhecimento dos estatistas sobre o funcionamento do livre mercado. As companhias de seguros seriam forçadas a ser escrupulosamente justas em todos os seus negócios pelas mesmas forças que mantêm honestos todos os outros negócios em um mercado livre — a concorrência e o valor de uma boa reputação. Qualquer companhia de seguros que deixasse de defender os interesses justos de seus segurados logo perderia esses segurados para outras empresas mais respeitadas. E qualquer companhia de seguros que defendesse os interesses de seus segurados fazendo injustiças a não-segurados logo perderia seus segurados. Ninguém iria querer correr o risco de ter relações com os segurados de tal empresa, obrigando-os a mudar de seguradora. O ostracismo dos negócios funcionaria tão bem contra as companhias de seguros desonestas quanto contra um indivíduo desonesto, e a concorrência abundante, além da mídia de notícias em busca de um furo nas notícias de negócios, manteria os bandidos e trambiqueiros sob controle.
Disputas que não envolvessem uma situação contratual (mas que não surgissem da agressão ou fraude) seriam muito mais raras do que litígios contratuais em uma sociedade de laissez-faire. Exemplos de tais litígios seriam o conflito sobre uma fronteira entre terrenos, ou a recusa de um paciente em pagar por atendimento médico de emergência administrado enquanto ele estava inconsciente – sob a alegação de que ele não havia solicitado esse tipo específico de atendimento. As disputas não contratuais geralmente não envolvem seguradoras, mas seriam levadas à arbitragem da mesma maneira que os litígios contratuais.
Em um litígio extracontratual, assim como em um contratual, ambas as partes teriam que concordar quanto à agência de arbitragem que desejam empregar, e teriam que se comprometer contratualmente a cumprir sua decisão. Se os litigantes não pudessem resolver a questão por si mesmos, é improvável que qualquer um deles se recusasse a se submeter à arbitragem, por causa das poderosas forças de mercado que incentivam a solução pacífica de disputas. Bens disputados, como a terra envolvida em um conflito de fronteira, são menos úteis para seus proprietários devido à falta de clareza quanto ao título de propriedade (por exemplo, a terra não poderia ser vendida até que a disputa fosse resolvida). Mais importante do que a reduzida utilidade dos bens em disputa, seria prejudicada a reputação de um homem que recusasse a arbitragem sem bons motivos. As pessoas hesitariam em fazer negócios com ele por medo de se envolverem em uma disputa difícil e prolongada.
Assim como no caso de litígios contratuais, a ameaça de ostracismo dos negócios normalmente seria pressão suficiente para submeter uma disputa à arbitragem. Mas, ocasionalmente, o acusado pode querer recusar a arbitragem; e ele poderia ser culpado, ou poderia ser inocente. Se um acusado fosse inocente, seria muito tolo recusar-se a apresentar provas de sua inocência aos representantes da agência de arbitragem e, se necessário, defender-se em uma audiência de arbitragem. Somente mostrando que seu acusador está errado ele poderia proteger sua boa reputação e evitar ser encarregado de uma dívida que não merece. Além disso, se ele pudesse provar que foi falsamente acusado, ele teria uma boa chance de receber uma indenização de seu acusador. Se, no entanto, o homem acusado fosse culpado, ele poderia recusar a arbitragem por temer que os árbitros decidissem contra ele. Se o acusado recusasse a arbitragem e a parte lesada tivesse um bom caso a apresentar, esta última poderia tratar a parte recalcitrante da mesma forma que trataria um homem que havia roubado algo dele – ele poderia exigir o ressarcimento (para detalhes de como ele agiria e como o ressarcimento seria feito, ver os Capítulos 9 e 10).
Na questão da arbitragem, como em qualquer outro serviço vendável, o sistema de livre mercado de escolha voluntária sempre será superior à imposição de regras inflexíveis e arbitrárias pelo governo. Quando os consumidores são livres para escolher, eles naturalmente escolherão as empresas que acreditam que lhes oferecerão o melhor serviço e/ou os preços mais baixos. Os sinais de lucro e prejuízo que as escolhas do consumidor enviam às empresas orientam essas empresas a fornecer os bens e serviços que mais satisfazem os clientes. Lucro/prejuízo é o “sinal de erro” que orienta os empresários em suas decisões. É um sinal contínuo e, com os métodos precisos e sofisticados da contabilidade moderna, muito sensível.
Mas o governo é uma instituição extra-mercado — seu propósito não é obter lucros, mas ganhar poder e exercê-lo. Os funcionários do governo não têm dados de lucros e prejuízos. Mesmo que quisessem satisfazer seus “clientes” involuntários, eles não têm um “sinal de erro” confiável para orientar suas decisões. Além da correspondência esporádica da pequena minoria de seus eleitores que são politicamente conscientes, o único “sinal de erro” que um político recebe é o resultado de suas candidaturas à reeleição. Um pouco de informação a cada dois a seis anos! E mesmo esse pouco dificilmente é um sinal claro, já que os eleitores individuais podem ter votado daquela maneira por uma variedade de motivos, até mesmo porque gostaram da aparência sexy ou da imagem paternal do candidato. Burocratas e juízes nomeados, é claro, não recebem nem mesmo esse sinal pequeno e geralmente confuso; eles têm que operar completamente no escuro.
Isso significa que mesmo os funcionários governamentais mais bem intencionados não podem se equiparar ao livre mercado na satisfação do consumidor em qualquer área. O governo não tem, e por sua natureza não pode ter, o único sistema de sinais – lucro e prejuízo – que pode dizer com precisão a uma organização se ela está dando aos consumidores o que eles querem. Como ele não tem o sinal de lucro/prejuízo, nenhum funcionário do governo – incluindo um juiz do governo – pode dizer se está agradando os “clientes” ao preservar ou aumentar seus valores, ou se os está prejudicando ao destruí-los.
O melhor governo concebível, composto pelos políticos mais escrupulosos, não poderia desempenhar a tarefa de arbitrar disputas (ou qualquer outra tarefa) tão bem quanto a iniciativa privada atuando em um mercado livre.