O Setor Público: o Governo como Empresário

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fila01As pessoas sempre tendem a seguir hábitos e rotinas inquestionáveis, principalmente quando se trata de questões governamentais. No mercado, e na sociedade em geral, sempre esperamos por mudanças — e nos acomodamos rapidamente a elas — que quase sempre trazem grandes maravilhas e melhorias para nossa civilização. Novos produtos, novos estilos de vida e novas idéias quase sempre são aceitas avidamente. Mas quando se trata de áreas governamentais, seguimos cegamente o mesmo caminho que vem sendo trilhado por séculos, satisfeitos em acreditar que o que quer que esteja sendo feito deve ser o certo. Em particular, os governos — seja o americano, seja qualquer outro — vêm desde tempos imemoriais fornecendo-nos certos tipos de serviços essenciais e necessários, serviços esses que todos consideram importantes: defesa (incluindo as forças armadas, a polícia, o judiciário e as leis), corpo de bombeiros, ruas e estradas, água, esgoto e remoção de lixo, correios, etc. O estado ficou tão identificado com a provisão de tais serviços na mentalidade das pessoas, que qualquer crítica às finanças do estado parece ser para muitas pessoas um ataque à natureza desses mesmos serviços. Assim, se alguém afirmar que o estado não deveria fornecer serviços judiciários, e que empresas privadas no mercado poderiam fornecer tais serviços de maneira bem mais eficiente, bem como de maneira mais ética, as pessoas tendem a acreditar que isso significa negar a importância dos próprios tribunais.

O libertário que quer substituir o governo por empresas privadas nas áreas mencionadas acima é tratado da mesma maneira que ele seria tratado se o governo tivesse, por várias razões, o monopólio do fornecimento de sapatos — utilizando o dinheiro do contribuinte, é claro — desde tempos imemoriais. Se o governo, e somente o governo, tivesse o monopólio da fabricação de sapatos e fosse o dono de todas as revendedoras, como será que a maioria das pessoas iria reagir ao libertário que viesse advogar que o governo saísse do setor de calçados e o abrisse para empresas privadas? Sem dúvida nenhuma as pessoas iriam bradar: “Como assim? Você não quer que as pessoas, e principalmente os pobres, usem sapatos! E quem iria fornecer sapatos ao povo se o governo saísse do setor? Diga! Seja construtivo! É fácil ser negativo e desrespeitoso quando se trata do governo; mas diga-nosquem iria fornecer sapatos? Quais pessoas? Quantas lojas de sapato haveria em cada cidade? Em cada município? Como isso seria definido? Como as empresas de sapato seriam financiadas? Quantas marcas existiriam? Qual material elas iriam usar? Quanto tempo os sapatos durariam? Qual seria o arranjo de preços? Não seria necessário haver regulamentação da indústria de calçados para garantir que o produto seja confiável? E quem iria fornecer sapatos aos pobres? E se a pessoa não tiver o dinheiro necessário para comprar um par?”

Essas perguntas, por mais ridículas que pareçam, e são, quando se trata do setor calçadista, são igualmente absurdas quando dirigidas ao libertário que defende um livre mercado para o setor de combate a incêndios, para o setor policial, para os correios, ou para qualquer outra operação governamental. O ponto principal é que o defensor da existência de um livre mercado para todas as áreas não pode fornecer antecipadamente um projeto “construtivo” de como seria tal mercado. A essência e a glória do livre mercado é que as empresas e os negócios individuais, quando competindo no mercado, fornecem uma orquestração contínua de bens e serviços cada vez mais eficientes e evolutivos: os produtos e os mercados estão sempre se aperfeiçoando, a tecnologia está sempre progredindo, os custos estão constantemente sendo diminuídos (ao contrário do que ocorre com o governo), e a inconstante demanda do consumidor está sempre sendo satisfeita da maneira mais rápida e eficiente possível. O economista libertário pode tentar mostrar umas poucas diretrizes sobre como os mercadospoderão se desenvolver onde atualmente eles são proibidos ou restringidos; mas ele pouco mais pode fazer do que apontar o caminho para a liberdade: pedir que o governo saia do caminho da produtiva e sempre inventiva energia que emana dos indivíduos quando estes se envolvem nas atividades voluntárias do mercado. Ninguém pode prever o número de empresas, o tamanho de cada empresa, a política de preços, etc., para qualquer futuro mercado de qualquer serviço ou commodity. Apenas sabemos — da teoria econômica e de um discernimento histórico — que um livre mercado em qualquer área fará um serviço infinitamente melhor do que o monopólio compulsório de uma burocracia governamental.

Como os pobres pagarão por serviços de defesa, proteção contra incêndios, correios, etc., pode ser respondido basicamente com uma contra-pergunta: como os pobres pagam por qualquer coisa que eles atualmente obtêm no mercado? (Pense nos telefones celulares). A diferença é que sabemos que um mercado livre e privado irá fornecer esses bens e serviços de forma muito mais barata, e em maior abundância, e com muito mais qualidade do que monopólios governamentais fazem hoje. Toda a sociedade iria se beneficiar, especialmente os mais pobres. E também sabemos que a enorme carga tributária para financiar estas e outras atividades seria tirada dos ombros de todas as pessoas, inclusive as mais pobres.

Já percebemos que todos os problemas que são universalmente admitidos como urgentes estão todos relacionados a operações governamentais (guerras, apagões, caos aéreo, saúde pública, cotas universitárias, malversação de dinheiro público, TV pública, etc.). Também é fácil concluir que os enormes conflitos sociais entrelaçados no sistema público educacional iriam todos desaparecer se a cada grupo de pais fosse dado o direito de escolher e financiar o tipo de educação que fosse a preferida para seus filhos. As graves ineficiências e os conflitos intensos são coisas totalmente inerentes às atividades governamentais. Se o governo, por exemplo, fornece serviços monopolísticos (como, por exemplo, em alguns setores da educação, o setor energético, ou o fornecimento de água), então quaisquer decisões que o governo tome serão coercivamente impostas sobre a infeliz minoria — quer seja uma questão de política educacional para as escolas (integração ou segregação, progressiva ou tradicionalista, religiosa ou secular, etc.), quer seja o tipo de água a ser vendida (por exemplo, fluoretada ou não-fluoretada), quer seja a forma como a energia será gerada, distribuída e paga. Já deve estar claro que tais batalhas ferozes não ocorrem quando cada grupo de consumidores pode comprar os bens e serviços que bem querem. Não há brigas entre consumidores, por exemplo, sobre quais tipos de jornais devem ser impressos, quais tipos de igrejas podem ou não ser construídas, quais tipos de livros devem ser publicados, quais tipos de músicas devem ser vendidas, ou quais tipos de carros devem ser fabricados. (Todas as brigas que por ventura ocorram nessas áreas envolvem o uso da força do governo para fazer restrições). Tudo que é produzido no mercado reflete a diversidade, bem como a força, da demanda do consumidor.

No livre mercado, portanto, o consumidor é rei, e qualquer empresa que queira ter lucros e evitar prejuízos tentará fazer o seu melhor para servir o consumidor da maneira mais eficiente e ao menor custo possível. Em uma operação governamental, ao contrário, tudo muda. Uma dissociação grave e inevitável entre qualidade dos serviços prestados e o pagamento dos mesmos é algo totalmente inerente a qualquer operação do governo. A burocracia governamental não recebe sua renda da mesma forma que uma empresa privada, que tem que servir o consumidor de maneira satisfatória e vender seus produtos de maneira que a receita seja maior que os custos de toda a operação. Não, a burocracia governamental adquire sua renda através da extorsão do resignado contribuinte. Assim, suas operações se tornam ineficientes — além de os custos continuamente aumentarem —, pois as burocracias governamentais não precisam se preocupar com prejuízos ou falências; elas podem compensar eventuais perdas simplesmente fazendo extrações adicionais do bolso dos cidadãos. Além disso, o consumidor, ao invés de ser cortejado e galanteado para seu próprio benefício, se torna uma mera chateação para o governo, um alguém que está “consumindo” os escassos recursos do governo (pense na Previdência Social). Nas operações do governo, o consumidor é tratado como um intruso indesejável, uma interferência no sossego do burocrata e na sua estável renda.

Assim, caso aumente a demanda do consumidor por bens e serviços de certas áreas, as empresas privadas ficarão contentíssimas em supri-las; elas cortejarão e saudarão as novas oportunidades de negócios, expandindo suas operações e ansiando por satisfazer os novos pedidos. O governo, ao contrário, geralmente encara essa situação instando e até ordenando que os consumidores “comprem” menos, e permitindo que escassezes ocorram, conjuntamente com a deterioração da qualidade dos serviços. Destarte, o aumento do uso das ruas estatais das cidades descamba em congestionamentos exacerbados e em contínuas denúncias e ameaças contra as pessoas que dirigem seus próprios carros. A administração da cidade de Nova York, por exemplo, está continuamente ameaçando banir o uso de carros particulares em Manhattan, onde o congestionamento tem sido particularmente desagradável. Somente esse ente chamado governo iria pensar em ameaçar os consumidores dessa maneira; somente o governo, é claro, tem a audácia de “solucionar” o congestionamento tirando os carros particulares (ou caminhões, ou táxis, ou qualquer coisa) das ruas. De acordo com esse raciocínio, a solução “ideal” para o congestionamento seria simplesmente banir todos os veículos!

Mas esse tipo de atitude para com o consumidor não está restrito ao tráfego nas ruas. A cidade de Nova York, novamente, tem sofrido periodicamente de “falta” de água. Eis aqui uma situação em que, por muitos anos, o governo da cidade tem tido o monopólio compulsório da oferta de água aos seus cidadãos. Tendo falhado em fornecer a quantidade suficiente de água, e tendo falhado em precificar essa oferta de tal maneira a equilibrar o mercado, a igualar a oferta à demanda (algo que as empresas privadas fazem automaticamente), a resposta das autoridades de Nova York à escassez de água tem sido sempre a de culpar não a eles próprios, mas o consumidor, cujo pecado tem sido o de usar “muita” água. A única reação da administração da cidade foi banir o uso de aspersores (sprinklers) para gramados, restringir o uso de água, e requerer que as pessoas bebam menos água. Dessa forma, o governo transfere seus próprios fracassos para o usuário, que se transforma em bode expiatório e que é ameaçado e perseguido, ao invés de ser servido de maneira satisfatória e eficiente.

Tem havido uma resposta similar do governo para o problema sempre crescente da criminalidade. Ao invés de fornecer proteção policial eficiente, a reação de qualquer governo tem sido a de obrigar o cidadão a ficar longe de áreas propensas ao crime. Assim, quando o Central Park, em Manhattan, se tornou mal afamado por ser um local de assaltos e outros crimes no período noturno, a “solução” da administração da cidade para o problema foi impor um toque de recolher, banindo o uso do parque à noite. Ou seja: se um inocente cidadão quiser ficar no Central Park à noite, é ele quem será preso por estar desobedecendo ao toque de recolher; é claro que é mais fácil prender um inocente civil do que acabar com a criminalidade no parque.

Em resumo: enquanto o velho lema da iniciativa privada é que “o consumidor sempre tem razão”, a máxima implícita de qualquer atividade governamental é que o consumidor sempre é o culpado.

É óbvio, os burocratas e políticos já têm uma resposta padrão para as crescentes reclamações a respeito de serviços ruins e ineficientes: “Os contribuintes precisam nos dar mais dinheiro!” Já não basta que o “setor público” — e a sua conseqüência natural, a taxação — tenha crescido no último século, e continue crescendo, bem mais rapidamente que a renda nacional. Também não basta que os defeitos e as chateações das atividades governamentais tenham se multiplicado junto com aumento do orçamento do governo. Todos nós devemos dar ainda mais dinheiro para aquele buraco sem fundo que é o estado!

O argumento correto contra a demanda de políticos por mais dinheiro de impostos é a seguinte pergunta: “Como é que as empresas privadas não têm esse problema?” Como é que empresas de eletrônicos ou companhias de fotocópias ou empresas de informática ou qualquer outra não têm problema para encontra capital para expandir sua produção? Por que essas empresas não publicam manifestos denunciando o povo por não dar a elas mais dinheiro para que assim elas possam servir as necessidades do consumidor? A resposta é que os consumidores pagam por eletrônicos ou por serviços de fotocópia ou por computadores, e os investidores, como resultado, passam a ver que é possível ganhar dinheiro investindo nesses negócios. No mercado privado, as empresas que servem os consumidores com sucesso encontram facilmente capital para sua expansão; empresas ineficientes e sem sucesso, não — e eventualmente elas saem dos negócios. Mas para o governo não existe esse mecanismo de lucros e prejuízos que o induza a fazer investimentos em operações eficientes e que penalize as operações ineficientes e obsoletas, descartando-as. Não existe, para as atividades do governo, um sistema de lucros e prejuízos que induza tanto a expansão quanto a contração das operações. No governo, portanto, não há um real “investimento”, e ninguém pode garantir que operações de sucesso irão se expandir e as fracassadas irão desaparecer. Em contraste ao setor privado, o governo arrecada seu “capital” literalmente por meio de um assalto, que é a perfeita caracterização do mecanismo coercivo da taxação.

Muitas pessoas, incluindo alguns funcionários do governo, acreditam que esses problemas poderiam ser resolvidos se o “governo fosse gerido como uma empresa privada”. O governo então criaria uma pseudocorporação monopolística, gerenciada pelo governo, que supostamente cuidaria dos negócios seguindo “princípios de mercado” — e isso foi feito, por exemplo, para os Correios e para a constantemente desintegrada e decadente New York City Transit Authority. Essas “corporações” seriam então obrigadas a acabar com seus déficits crônicos e autorizadas a lançar títulos no mercado de títulos. É verdade que os usuários diretos estariam assim aliviando um pouco da carga sobre a massa de contribuintes, que inclui tanto os usuários como os não usuários. Mas existem defeitos ruinosos inerentes a qualquer atividade governamental que não podem ser evitados por esse artifício pseudocorporativo. Em primeiro lugar, um serviço governamental sempre será um monopólio ou um semi-monopólio. Freqüentemente, como no caso dos Correios ou da Transit Authority, é um monopólio compulsório — toda ou praticamente toda a concorrência privada é proibida. O monopólio significa que o serviço oferecido pelo governo será bem mais caro, mais custoso, e de pior qualidade em comparação ao que seria no livre mercado. Empresas privadas obtêm seus lucros cortando custos o máximo possível. O governo, que não vai à falência e nem sabe o que é ter prejuízos, não precisa cortar custos; como ele está protegido contra qualquer concorrência e contra qualquer prejuízo, tudo o que ele precisa fazer é interromper o fornecimento dos serviços ou simplesmente aumentar preços. O segundo defeito ruinoso é que, por mais que se tente, uma corporação governamental jamais poderá ser gerida como uma empresa privada simplesmente porque seu capital continua sendo arrancado à força dos contribuintes. Não há como evitar isso; o fato de uma estatal poder vender títulos no mercado ainda depende do supremo poder de taxação do governo para poder resgatar esses títulos.

Finalmente, há um outro problema crítico inerente a qualquer operação governamental. Uma das razões que faz das empresas privadas modelos de eficiência é porque o livre mercado estabelece preços, que é o que torna possível o cálculo por parte das empresas e permite que elas descubram quais são seus custos e, portanto, o que elas devem fazer para ter lucros e evitar prejuízos. É através desse sistema de preços, bem como a motivação para aumentar lucros e evitar prejuízos, que bens e serviços são devidamente alocados no mercado, dentre todas as intrincadas ramificações e áreas de produção que fazem parte da moderna economia capitalista. E é o cálculo econômico que torna essa maravilha possível; em contraste, sob um planejamento central, tal como foi tentado no socialismo, é impossível fazer quaisquer precificações acuradas, e assim os burocratas não podem calcular custos e preços. Essa é a principal razão pela qual o planejamento central socialista se mostrou um grande fracasso quando os países comunistas se tornaram industrializados. E é exatamente pelo fato de um planejamento central não poder determinar preços e custos com qualquer acurácia que os países comunistas do leste europeu abandonaram rapidamente o planejamento central e foram correndo em direção a uma economia de livre mercado.

Portanto, se o planejamento central empurra a economia para um incompetente caos calculacional, e para produções e alocações irracionais, o avanço de qualquer atividade governamental inexoravelmente introduzilhas caóticas cada vez maiores na economia, e torna o cálculo dos custos e a alocação racional dos recursos produtivos cada vez mais difíceis. À medida que as operações do governo se expandem e a economia de mercado definha, o caos calculacional se torna mais e mais destruidor e a economia se torna crescentemente impraticável.

O derradeiro programa libertário pode ser sumarizado em uma única frase: a abolição do setor público, com a conversão de todas as operações e serviços executados pelo governo em atividades realizadas voluntariamente pela economia de livre mercado.

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