A Economia do Intervencionismo

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8. O Ar Condicionado Abstrato

No capítulo anterior mencionamos que certos cupins, cada um deles seguindo regras simples de conduta, são capazes de construir estruturas complexas, como um sofisticado sistema de refrigeração do cupinzeiro, sem que haja centralização das atividades. Mostraremos agora que, a despeito do fato de que cientistas de diversas áreas explicarem a emergência de sistemas complexos auto-organizáveis de forma análoga àquela efetuada por Hayek, alguns desses mesmos cientistas têm dificuldades em reconhecer os mesmos princípios explanatórios operando na economia, devido à natureza abstrata da ordem espontânea formada pelos mercados.Iniciemos mais uma vez com um exemplo referente aos insetos gregários. Deborah Gordon[1] formula o problema da alocação de tarefas nas colônias de insetos de modo muito semelhante à maneira como um economista estuda a alocação de recursos escassos a fins alternativos em um contexto de equilíbrio geral. A autora investiga as maneiras pelas quais o trabalho (escasso) dos insetos é alocado a diferentes tarefas existentes, sem que exista alguma forma de organização hierárquica comandada por abelhas rainhas.

Dada a complexidade do problema, a autora formula a questão em termos hayekianos e não walrasianos: a cada dia, ou mesmo a cada hora, a urgência relativa de cada tipo de necessidade se modifica, o que requer mecanismos descentralizados de adaptação alocativa (não se trata de encontrar um equilíbrio estático eficiente). A abordagem poderia ser walrasiana (ou leontiefiana) se as explicações entomológicas antigas fossem corretas e houvesse um tipo de inseto para cada conjunto de tarefas. Nesse caso, os equivalentes biológicos aos ‘coeficientes técnicos de produção’ seriam perfeitamente rígidos, na medida em que a divisão do trabalho é explicada apenas por fatores intrínsecos aos animais, como seu tamanho ou idade (polietismo de idade e casta). Por exemplo, as abelhas velhas executam tarefas externas à colmeia; as jovens, internas. Contudo, na maioria dos insetos sociais, não existem diferenças morfológicas significativas que expliquem sozinhas as divisões de tarefas. Assim, a cada instante, os indivíduos ‘escolhem’ entre inação e ação ou ainda entre variadas tarefas, tais como busca por comida, manutenção do ninho, patrulha, limpeza de lixo e assim por diante, reagindo a estímulos externos (reagindo às flutuações na demanda, poderíamos dizer).

Com efeito, estudos empíricos mostram que, conforme a escassez relativa de alimentos ou necessidade de manutenção das estruturas se altera, ocorre realocação de trabalho. Ao contrário das ciências sociais, os biólogos podem facilmente conduzir experimentos controlados, eliminando determinada coorte ou tipo de inseto e, o que é mais importante, inspecionando visualmente o processo de realocação de tarefas que ocorre depois disso.

As explicações desse tipo de fenômeno tendem a empregar os modelos computacionais que caracterizam a abordagem interdisciplinar de estudos de sistemas complexos[2]. Nesse tipo de modelo, criamos no computador ambientes artificiais habitados por autômatos seguidores de regras simples, que levam em conta a transmissão de informações sobre o ambiente ou o estado dos demais indivíduos na sua vizinhança. Para um conjunto de regras adotadas, podemos observar processos de retroalimentação que resultam na emergência de padrões complexos no interior dessas estruturas, denominadas por Hayek[3] de ‘ordens espontâneas’ (em oposição a ordens planejadas conscientemente).

Para esse autor, nem toda ordem espontânea é complexa, mas altos graus de complexidade são viáveis apenas por meio desse tipo de ordem. Sistemas complexos requerem quantidades virtualmente infinitas de informações para que a coordenação entre seus elementos seja possível, barrando-se assim a possibilidade de controle consciente e central do sistema[4]. Nos mercados, a coordenação das atividades dos agentes depende da existência do mecanismo de eliminação de hipóteses empresariais erradas, mecanismo esse fornecido pelo sistema de preços, havendo assim a possibilidade de cálculo da lucratividade dos empreendimentos. Na Biologia, o mecanismo de correção de erros que possibilita aumentos da complexidade dos sistemas é a seleção natural. Segundo Gordon, no caso dos insetos e sua alocação de tarefas, essa deve operar não de modo a selecionar indivíduos que desempenham tarefas específicas mais úteis, mas sim selecionar a capacidade dos indivíduos de mudar de tarefas de forma mais eficiente, diante das mudanças ambientais.

Para os entomologistas, a transmissão de informação entre insetos se dá por meio da interação local entre indivíduos, como toques de antenas, percepção da densidade local de indivíduos e secreções químicas (como trilhas de feromônios) ou por interação entre indivíduos e o ambiente, como por exemplo o trabalho realizado por alguns indivíduos influenciando as ações dos demais que passam pelo local (stigmergy). Gordon, no mesmo texto já citado, utiliza, sem saber, um exemplo que novamente guarda várias semelhanças com problemas tipicamente econômicos, referente à construção de ninhos de vespas-do-papel (Polistes dominulus).

Enquanto algumas vespas constroem os casulos, outras buscam material de construção. O que determina a ‘demanda’ por trabalho empregado na obtenção desse ‘fator produtivo’? Segundo a autora, os indivíduos que fornecem o material param de fazê-lo se o tempo de espera até que um construtor aceite pegar o material atingir um limite. A partir desse limite, a atividade coletora cessa. E isso ocorre tanto por falta de demanda (o casulo já está pronto) ou por excesso de oferta (estoque de material ocioso). A situação é análoga a um mercado com preço controlado: na ausência variações nos preços sinalizando escassez relativa, o tempo de espera na fila (no caso, excesso de oferta) faz o papel de termômetro da escassez, de modo a possibilitar de fato algum grau de coordenação entre os dois tipos de atividade.

O paralelismo entre Biologia e Economia não é raro. Os biólogos, em geral, empregam livremente termos emprestados da Ciência Lúgubre para explicar processos evolutivos. Dawkins[5], por exemplo, ao comentar um modelo que simula a seleção natural do formato de teias de aranha, pondera que teias muito ou pouco densas não são eficientes, pois o uso da seda envolve custos (de construção e manutenção da teia), que devem ser comparados com os benefícios expressos em termos do valor nutritivo dos insetos capturados. Para o autor, a seleção natural leva a uma economia de recursos.

Em termos econômicos, essa ideia poderia ser traduzida da seguinte forma. Se os custos marginais forem crescentes e benefícios marginais decrescentes, a seleção natural levaria a um resultado idêntico àquele obtido por uma aranha maximizadora de lucros (Aracnideo oeconomicus?), com o custo marginal da seda igual a seu benefício marginal. As semelhanças não param por ai. O mesmo autor enfatiza a diferença básica entreseleção artificial, que ocorre no modelo, e seleção natural, que ocorre na natureza. No primeiro caso, os valores dos parâmetros são arbitrários: coisas como custo marginal da seda, sua espessura, a energia para mantê-la, o valor nutritivo do inseto e assim por diante são dadas. No modelo teórico, a forma da teia tem que ser bidimensional. Nesse mundo, restringe-se sobremaneira aquilo que pode ser tentado como solução do problema de sobrevivência. Na seleção natural, por outro lado, existe espaço para soluções novas e criativas, pois o espaço de parâmetros possíveis não é definido a priori.

Repare que as observações de Dawkins são formalmente idênticas a algumas objeções que Hayek fez ao modelo de socialismo de mercado de Lange, durante o debate do cálculo econômico socialista[6]. Desse modo, espelhando a opinião de Hayek no que se refere aos mercados, Dawkins vê a evolução como um processo de descoberta.

O caminho inverso também é muito comum. Existem diversas abordagens em Economia que se dizem evolucionárias. Alchian[7], por exemplo, explora em um artigo clássico a analogia entre seleção natural e a competição nos mercados: as ações empresariais fazem papel de variação e o lucro ou prejuízo o papel de seletor.

Embora a abordagem de sistemas complexos identifique diversos elementos comuns nas ordens espontâneas existentes em diversos campos do conhecimento, inclusive na Economia, reconhecendo a ideia smithiana de ‘mão invisível’ como pertencente a esse tipo de teoria[8], boa parte dos biólogos relutam em aceitar argumentos evolucionários em outras disciplinas, vistos como mera analogia, raramente útil. Por que isso ocorre? Por que mesmo os profissionais mais preparados para identificar ordens espontâneas – os biólogos – falham em reconhecê-las nos mercados?

A postura de Dawkins é típica: depois de argumentar que os organismos são muito complexos para serem projetados e que é necessário um mecanismo descentralizado de ‘aprendizado’ por tentativas e erros para que isso ocorra, esse argumento perde seu valor no que se refere à sociedade humana: com a emergência da mente consciente, poderíamos utilizar a razão para resolver os nossos problemas. Embora os cupins do primeiro parágrafo sejam muito estúpidos para projetar seu ar-condicionado, os engenheiros humanos são inteligentes o bastante para projetar os nossos. Mas por que os mesmos argumentos utilizados contra a ideia de um ‘arquiteto divino’ não são aplicados para criticar o planejador central?

A resposta a essa pergunta pode ser encontrada em escritos metodológicos de Hayek[9], o autor que enxergou de forma mais clara a complexidade do problema econômico e que por isso se tornou pioneiro no estudo de sistemas auto-organizáveis. A explicação repousa em uma diferença entre ciências naturais e sociais. Nas primeiras, os objetos investigados são geralmente observáveis, sendo que as explicações podem envolver elementos não observáveis ou observáveis apenas indiretamente, como forças e partículas. Nas ciências sociais, os objetos investigados, como inflação, crises ou crescimento econômico são sempre de natureza abstrata, por sua vez explicados pela interação entre elementos mais concretos – as ações humanas. Os fenômenos complexos em qualquer área, por seu turno, são em geral caracterizados pela forma como os elementos da estrutura complexa se conectam. A dificuldade para detectar padrões complexos na sociedade humana repousa então no caráter abstrato dessas estruturas, pois as relações entre os elementos da estrutura tendem a ser obscurecidas pela maneira como essas entidades sociais abstratas são representadas por meio de descrições estatísticas. Vejamos mais de perto a diferença.

Se alguma teoria da mente afirma que os padrões de reconhecimento sensorial e de memória envolvem caminhos específicos seguidos pelos impulsos elétricos em uma rede neural, entende-se claramente que medições de correntes elétricas médias atravessando o cérebro não bastam, pois não importam médias, mas sim relações estruturais, ou seja, os caminhos tomados pelos impulsos. Entretanto, podemos submeter um indivíduo a estímulos e escanear o cérebro de modo a determinar em que área ocorreu maior atividade elétrica, fornecendo indícios do que ocorre. Mas, se alguma teoria econômica afirmar que preços relativos são distorcidos por injeções monetárias e isso está relacionado com as crises econômicas, a teoria é dispensada como não científica, pois não podemos observar os padrões de alteração em incontáveis preços. As teorias monetárias são restritas assim a relações entre entidades agregadas como o nível geral de preços e a quantidade total de moeda, passíveis de descrição estatística, mas que escondem estruturas complexas.

Por um lado, podemos facilmente despertar o leigo para as maravilhosas estruturas complexas que apresentam auto-organização, como o voo de um bando de estorninhos, a pupila de um olho ajustando seu diâmetro diante de mudanças na iluminação do ambiente, a formação de belos cristais ou os padrões de mimetismo que evoluíram na natureza. Isso pode ser feito por um simples documentário televisivo. Despertar um aluno de um curso introdutório de Economia para o mesmo tipo de fenômeno na esfera dos mercados, por outro lado, é tarefa quase impossível, como podem atestar aqueles poucos professores de Economia que de fato percebem a complexidade dos fenômenos econômicos. Para essa tarefa, um filme não ajuda em nada o raciocínio abstrato. Um vídeo mostrando o funcionamento de um mercado dá apenas a impressão de caos e não de ordem. Essa só se manifesta quando entendemos que a produção do mais banal dos bens envolve o trabalho coordenado de milhões de pessoas que não se conhecem e não tem conhecimento de que colaboraram para a fabricação daquele bem ou sequer sabem que tal bem existe[10].

Na economia, os esforços individuais devem ainda ser direcionados para o atendimento das necessidades consideradas mais urgentes por cada um. Além desses esforços, precisamos levar em conta a disponibilidade de inúmeros recursos produtivos, distribuídos em localizações diferentes e imaginar os diversos usos alternativos para os mesmos, levando em conta ainda que processos produtivos diferentes requerem períodos diferentes de tempo. Deve-se ainda decidir quanto dos recursos serão alocados para atender necessidades presentes e quantos serão transformados em bens de capital, que aumentam a capacidade de atender necessidades no futuro. Os recursos, as formas de transformar insumos em produtos (as tecnologias) e as preferências e planos individuais se alteram continuamente ao longo do tempo, de modo que as atividades individuais não devem ser apenas compatíveis entre si, mas também devem se ajustar continuamente a essas mudanças. O problema econômico fundamental investiga como essa coordenação é obtida, dado que cada indivíduo ou organização detém uma fração infinitesimal das informações necessárias para resolver esse problema de forma consciente. Se o IBGE mal consegue contar a cada dez anos quantos brasileiros existem, imagine o que seria necessário para monitorar a cada instante como mudam os planos individuais, o conhecimento técnico e a disponibilidade de recursos?

Repare que esse é um problema análogo a distribuição de tarefas entre os insetos que discutimos no início do capítulo, só que infinitamente mais complexo, embora poucos percebam sua complexidade. Se exterminarmos um cupinzeiro, podemos fotografar, fatiar e sondar sua estrutura: a sua complexidade será inferida pela sua funcionalidade aparente, capaz de manter a temperatura amena no interior das câmaras a despeito da incapacidade dos cupins de planejar tal estrutura. Por outro lado, podemos observar um ar-condicionado humano e concluir que a funcionalidade é intencional: o engenheiro planejou o equipamento. Mas nada concreto nos dará uma pista sobre os complexos mecanismos de coordenação que tornaram possível que esse equipamento fosse construído. O funcionamento do sistema de preços de mercado é a grande maravilha oculta – o nosso ar condicionado abstrato – que a esmagadora maioria das pessoas ignora completamente, mas da qual a manutenção da civilização depende tão fundamentalmente.

O caráter abstrato da ordem espontânea do mercado, que dá um novo significado a segunda palavra da metáfora da ‘mão invisível’, é a principal barreira para a sua apreciação. A tarefa mais importante do economista, que por si só justifica seu emprego, é fazer com que o maior número de pessoas possível passe a ter consciência da complexidade do problema econômico fundamental e que possa então valorizar as instituições que tornam sua solução possível.

 

 

 



[1] Gordon (1996).

[2] Para uma introdução a essa abordagem, ver Miller e Page (2007 ) e para modelos computacionais em Economia, consultar, por exemplo, Holland e Miller (1991).

[3] Hayek (1960) e (1989).

[4] Isso implica que na verdade a ‘alienação’, no sentido marxista do termo, é condição necessária para a prosperidade e só pode ser erradicada à custa da própria civilização. Quando se depara com esse resultado, o analista marxista é compelido a negar a complexidade inerente aos sistemas econômicos não tribais ou afirmar que algum dia emergirá algum mecanismo descentralizado de coordenação alternativo, embora não seja capaz de dizer nada sobre sua natureza. Mesmo nesse último caso, o conceito original de ‘alienação’ deve ser esvaziado em mais uma ‘reinterpretação’ daquilo que o autor infalível queria realmente dizer. Veja no próximo artigo a comparação entre Marx e Hayek no que diz respeito ao conceito de alienação.

[5] Dawkins (1989).

[6] Esse debate será discutido na segunda parte deste livro. Ver Hayek (1980a).

[7] Alchian (1950).

[8] Ver texto de Miller e Page citado na nota 1 acima.

[9] Ver Hayek (1979) e (1967).

[10] O melhor texto para despertar as pessoas para a complexidade do problema econômico foi escrito por L Reed, intitulado Eu, o Lápis. Disponível em <http://www.fee.org/library/books/i-pencil-2/> Acesso: 30/11/2011.

 

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