I Palestra – O IDEAL SOCIALISTA
- O processo de redistribuição
- Nosso tema: o aspecto ético
- Perspectiva da redistribuição da terra
- Redistribuição da terra não equivalente à redistribuição da renda
- Equiparação de ativos agrários: até que ponto similar e até que ponto diferente da equiparação do capital
- O socialismo como a Cidade do Amor Fraterno
- Como eliminar o antagonismo: a meta socialista e os meios socialistas
- A contradição interna do socialismo
- A redistribuição e o escândalo da pobreza
- Fundem-se as noções de mitigar a pobreza e de elevar o padrão de vida das classes trabalhadoras
- Padrão de vida indecentemente baixo e indecentemente elevado
- O piso e o teto: a harmonia intelectual e a harmonia financeira
- Quão baixo o teto?
- Uma discussão de satisfações
- A teoria da utilidade decrescente
- Pontos e requisitos adicionais
- Discriminação contra as minorias
- O efeito da redistribuição sobre a sociedade
- Quanto maior a redistribuição, maior o poder do estado
- Valores e satisfações
- As satisfações subjetivas são um padrão exclusivo?
- O redistributivismo como resultado final do individualismo utilitário
I Palestra
O IDEAL SOCIALISTA
Proponho discutirmos uma preocupação predominante de nossos dias: a redistribuição da renda.
O PROCESSO DE REDISTRIBUIÇÃO
No curso de uma vida, ideias atuais, como o que pode ser feito numa sociedade pela decisão política, têm-se alterado radicalmente. Em geral considera-se, agora, como pertinente, e mesmo como uma das principais funções do estado, direcionar a riqueza dos seus membros mais ricos para os mais pobres. “Um aparato extremamente complexo desenvolveu-se gradativamente” [1] para prover benefícios em dinheiro, bens e serviços gratuitos ou abaixo do custo. Esse aparato é mais extensivo do que o das finanças públicas, embora ampliado, como na atuação do estado no controle da renda. Seu propósito é redistribuir a renda, e, assume-se, em geral, especialmente a renda dos mais ricos, que é drenada através de tributação progressiva e, ao mesmo tempo, afetada pelo controle de renda, limitação de dividendos, e confisco de ativos.
O processo todo parece ter tido seu ímpeto neste país há exatamente quarenta anos, com o orçamento de Lloyd George para 1909-10, que, ao introduzir a taxação progressiva, abandonou a ideia de que, para fins de tributação, a igualdade implica proporcionalidade. O mesmo Chanceler introduziu os primeiros esquemas de auxílio-doença e benefícios trabalhistas. Deve-se observar que “a política de instituir uma distribuição mais igualitária da renda pelas finanças públicas” [2] e por meios complementares, que agora se tornou tão claramente uma regra de conduta, emergiu do processo em si. Não parece ter começado como um grande desígnio. As circunstâncias, acima de tudo as duas grandes guerras, e as pressões sociais, sustentadas por forte comoção moral, conduziram-nos gradualmente a um ponto em que pode-se enunciar um propósito ético: contrariamente a seus ideais anteriores ou extraocidentais, o Ocidente está rapidamente adotando o ideal da equiparação da renda pela ação do estado.
NOSSO TEMA: O ASPECTO ÉTICO
Está em voga, agora, uma animada controvérsia sobre o chamado “efeito de desincentivo da redistribuição excessiva.” Sabe-se, por experiência, que, na maioria dos casos — muito embora não em todos —, os indivíduos são estimulados por recompensas materiais proporcionais, ou até mais do que proporcionais, aos seus esforços, como, por exemplo, o adicional de 50% na remuneração das horas-extras. Tornar cada aumento de esforço menos compensador do que aqueles que o precederam, e, ao mesmo tempo, baixar, através da concessão de benefícios, o esforço básico necessário para sustentar a existência, pode afetar o ritmo da produção e do progresso econômico. Assim, a política de redistribuição está sujeita a fogo pesado. O ataque, porém, é feito em termos de conveniência. A crítica corrente à redistribuição não está baseada em ser esta indesejável, mas em ser, além de um certo ponto, imprudente. Tampouco os defensores da redistribuição negam haver limites para o que pode ser alcançado, se a proposição for, como eles desejam, manter o progresso econômico. Esse conflito todo que se tem hoje é uma discussão incerta, que não envolve fundamento algum.
Proponho delimitarmos esse campo de combate, e presumirei aqui que a redistribuição, por mais que possa ser conduzida de maneira justa, não exerce qualquer influência de desincentivo e em nada afeta o volume e o crescimento da produção. Essa hipótese é formulada a fim de centrar a atenção em outros aspectos da redistribuição. A alguns pode parecer que essa hipótese acaba com a necessidade da discussão. Se não vai afetar a produção, dirão, a redistribuição deveria prosseguir até seu extremo, a total igualdade de rendas. Isso seria bom e desejável. Mas será que seria? Por que seria? Até que ponto seria? Este é o meu ponto de partida.
Tratando a redistribuição unicamente no campo de ética, nossa primeira preocupação deve ser distinguir nitidamente o ideal social da equiparação da renda de outros aos quais ele está sentimental, mas não logicamente associado. É crença comum, mas mal fundada, que os ideais de reforma social são, de alguma forma, descendentes uns dos outros. Não é bem assim. A política de redistribuição não é descendente do socialismo; e tampouco pode-se encontrar qualquer vínculo seu, que não o puramente verbal, com o igualitarismo agrário. Podemos esclarecer bastante o problema, se salientarmos os contrastes entre esses ideais.
PERSPECTIVA DA REDISTRIBUIÇÃO DA TERRA
Por milhares de anos, a exigência feita em nome da justiça social era a da redistribuição da terra. Pode-se dizer que isso pertence a uma fase passada da história em que a agricultura era, de longe, a principal atividade econômica. Mas a demanda agrária chegou até os nossos tempos: a I Guerra Mundial não trouxe, como consequência, uma ampla redistribuição de terra por toda a Europa Oriental? Não foi o grito por redistribuição de terras o principal slogan de Lênin, na Rússia, embora usado com vistas a promover uma revolução bem diferente? Mais: não deveríamos lembrar-nos de que a redistribuição de terras na Prússia Oriental foi uma questão da maior importância no fim da República de Weimar, e que Brüning caiu pela mesmíssima razão pela qual caiu o mais velho dos Gracos. Portanto, a ideia não deveria nos parecer uma curiosidade arqueológica. Ela está conosco até hoje, ela agita a Itália neste momento; [3] e, como podemos ver, o sentimento que a sustenta é um sentimento básico na ética social.
É a ideia de que todo homem deveria ser igualmente dotado com recursos naturais de onde tirar produtos (i.e., renda) proporcionalmente à sua labuta.
Há, para tanto, sustentação na Bíblia. Em primeiro lugar, a terra deve ser repartida em lotes iguais [4], e qualquer desigualdade que surgir na sua posse deverá ser corrigida no jubileu, quando cada vendedor de terra recuperará a posse do lote que alienou. [5] Esse retorno à posição inicial a cada quarenta e nove anos impede a formação de latifúndios e restabelece a igualdade na posse da terra entre as famílias. O ideal de herança inalienável para os membros da família (parentes por laços sanguíneos ou nome) é fundamental na antiga sociedade indo-europeia. Dele geralmente decorre a prática de frequente redistribuição de faixas de terra segundo o número de indivíduos do grupo. Portanto, as reivindicações dos que defendem a reforma agrária parece que repousam sobre a tradição da Antiguidade e apelam a um sentimento ancestral de equidade.
REDISTRIBUIÇÃO DA TERRA NÃO EQUIVALENTE À REDISTRIBUIÇÃO DA RENDA
Há um claro contraste entre a redistribuição da terra e a redistribuição da renda. A doutrina agrária não advoga a equiparação da produção, mas dos recursos naturais a partir dos quais as várias unidades, de forma autônoma, proverão a si próprias a produção. Isso é justiça, no sentido de que a desigualdade de recompensas entre unidades igualmente providas de recursos naturais refletirá a desigualdade da labuta. Em outras palavras, anula o papel desempenhado pela desigualdade do “capital” ao fazer surgirem recompensas desiguais. O que é igualado é o fornecimento de “capital”.
Agora, a ideia de eliminar a influência do capital das funções que determinam a renda não é arcaica: persiste no pensamento social de todos os tempos. Quando Marx disse que o valor é constituído unicamente pelo trabalho, na verdade referia-se a um estado de coisas que parece inerentemente correto. Que a ideia de recompensas na proporção da contribuição feita era uma ideia básica para os economistas clássicos, está claro o suficiente: preocupavam-se em mostrar que esse seria o resultado de um sistema perfeitamente competitivo, e, para eles, a distribuição inicial da propriedade foi sempre um fator perturbador.
Aqueles que promovem a reforma agrária geralmente são tidos pelos socialistas como seus precursores. Não são; mas os dois grupos têm, realmente, uma preocupação em comum: ambos querem eliminar o efeito de uma distribuição desigual da propriedade.
Isso, é claro, não implica — mesmo na hipótese de uma provisão inicial de capital estritamente igual — qualquer igualdade de renda. Esta de alguma forma obedeceria às bem conhecidas leis de dispersão. Traçando uma curva cujas abscissas representem a quantidade de receita, e as ordenadas, o número de unidades econômicas que desfrutam dessas quantias, teríamos a conhecida curva de Gauss em forma de sino, mas, como apresenta o Professor Pigou, [6] sem a inclinação dada a essa curva pela desigual distribuição da propriedade. Portanto, o princípio agrário é o da recompensa justa, e não o da igualdade de renda.
EQUIPARAÇÃO DE ATIVOS AGRÁRIOS:
ATÉ QUE PONTO SIMILAR E ATÉ QUE PONTO DIFERENTE DA EQUIPARAÇÃO DO CAPITAL
Fomos levados a reformular o princípio agrário em termos modernos como demandando equiparação da provisão de capital. No entanto, essa é uma generalização que tende a distorcer o que, na verdade, os defensores da reforma agrária historicamente reivindicavam. Eles pensavam em termos de redistribuição da terra, e geralmente relutavam em incluir dentre as coisas a serem redistribuídas bens de capital tais como ferramentas ou equipamentos. Embora a completa redistribuição parecesse necessária para assegurar que as recompensas estivessem relacionadas estritamente à atividade imediata, eles predispunham-se a excluir as ferramentas. Talvez isso se devesse a uma diferença essencial que percebiam entre “recursos naturais” e “capital”. A terra (e isso se aplica aos recursos naturais em geral) era tida como oferecida por Deus ao homem, não para dela se apoderarem alguns apenas, enquanto que as ferramentas eram feitas pelo homem, e podiam, legitimamente, ser passadas adiante. Talvez se possa considerar significativo que em muitas comunidades primitivas a transferência da terra só podia ser efetuada se transferida juntamente com algum objeto muito pessoal, como se dessa forma ela pudesse assumir as características de propriedade pessoal, [7] embora não o seja por natureza.
Portanto, pode-se dizer que o igualitarismo agrário incorpora duas noções: uma, de que os recursos naturais não devem ser monopolizados; outra, de que recompensas justas somente podem ser obtidas quando a provisão de capital é uniformemente distribuída. Essas noções estão longe de ser irrelevantes no mundo moderno. A primeira foi invocada recentemente por Mussolini, quando ele proclamou o direito das nações mais pobres a uma parcela igual dos recursos naturais do mundo: ter-se mostrado esse um eficaz tema de propaganda comprova que a ideia está profundamente arraigada. Além do mais, o sentimento de que o caminho certo para a justiça social repousa em alguma redistribuição de capital é ingrediente básico de todos os esquemas de reforma criados dentro do programa coletivista. Esses tentam tornar o princípio agrário aplicável às sociedades modernas; era isso o que Chesterton defendia. O segredo de alcançar isso na prática não foi descoberto, mas muitas tentativas confusas [8] comprovam que esse antigo conceito está muito vivo. Mais ainda: que jamais irá perecer.
O SOCIALISMO COMO A CIDADE DO AMOR FRATERNO
A doutrina agrária pode ser resumida sob o título de recompensas justas. O Socialismo tem objetivos até mais elevados do que o estabelecimento de “mera” justiça. Ele procura estabelecer uma nova ordem de amor fraternal. O sentimento socialista básico não é o de que as coisas estão fora de proporção e, portanto, injustas; de que a recompensa não é proporcional ao esforço; mas uma revolta emocional contra os antagonismos dentro da sociedade, contra a ignobilidade do comportamento dos homens em relação uns aos outros.
É logicamente possível, é claro, minimizar os antagonismos minimizando as ocasiões em que os caminhos dos homens se cruzam. Assim, a solução agrária repousa na soberania econômica de cada um dos vários proprietários sobre o seu bem delimitado quinhão de terra, que é igual em tamanho ao do seu vizinho. Mas isso não é possível nas sociedades modernas, em que os interesses estão entrelaçados como num nó górdio. Cortar o nó significa reversão a um estado mais rude. Mas há outra solução: o novo espírito de feliz aceitação dessa interdependência; de que os homens, cada vez mais chamados a servirem uns aos outros através do progresso econômico e da divisão do trabalho, deviam fazê-lo “com inovação de espírito”. [9] e não como o fazia o homem “antigo”, que malevolamente media seu serviço de acordo com sua recompensa, mas como um “novo” homem, que encontra seu prazer no bem-estar de seus irmãos.
O padrão é facilmente reconhecível: é o padrão paulino da lei e da graça, conforme a acepção de Rousseau. Para Rousseau, o progresso social faz aumentar a disputa: ele faz emergirem os desejos do homem, e, à medida em que este fica em grande proximidade a seus pares, seu amor-próprio transforma-se em perversidade, porque acha que aqueles não o servem o suficiente, ou que o atrapalham demais. A resposta de Rousseau a isso, uma resposta que ele acreditava válida somente como preventivo e jamais como cura, [10] era o deslocamento do centro de afeições do homem, o amor-próprio sendo substituído pelo amor a todas as criaturas. Esse é o padrão fundamental do pensamento socialista. É de Rousseau, novamente, que o socialismo deriva sua crença de que o antagonismo social surge de “situações objetivas”, cuja remoção eliminaria a disputa. E o socialismo destacou a propriedade privada como a “situação” básica a criar antagonismos: ela cria, em primeiro lugar, o antagonismo essencial entre aqueles que possuem propriedades e os que não as possuem, e, em segundo lugar, o conflito entre os donos de propriedades.
COMO ELIMINAR O ANTAGONISMO:
A META SOCIALISTA E OS MEIOS SOCIALISTAS
A solução socialista, então, é a destruição da propriedade privada como tal. Isso é apagar o contraste entre as posições dos homens e, assim, acabar com a tensão. O proletariado, conscientizado de sua solidariedade na sua luta para acabar com a propriedade, absorverá para si próprio, quando vitorioso, os novos proletarizados então remanescentes. Com isso, os antagonismos sociais seriam extintos, e a força de repressão anteriormente utilizada para preservar a paz civil numa atmosfera de guerra — ou seja, o poder do estado — tornar-se-ia desnecessária. Esse poder deveria, então, definhar e desaparecer por si próprio.
Essa promessa de que o estado enfraquecerá é fundamental à doutrina socialista, porque o desaparecimento de antagonismos é o objetivo fundamental do socialismo; mas esse objetivo foi um tanto prejudicado ao cair na maledicência da controvérsia política. Alguns sagazes críticos do socialismo muito adequadamente tomaram o desaparecimento do estado como critério de sucesso do socialismo, causando, com isso, contrariedade a seus oponentes. Na poeira do combate, o fato de esperar-se que o estado desapareça como instrumento de repressão e do poder de policiar foi perdido de vista, e, sinceramente, não parece que funções ampliadas do estado, por si próprias, comprovem uma falha do socialismo, mas tão somente a preservação e, a fortiori, a ampliação dos poderes de policiar. Entretanto, fica evidente apenas que o poder do governo atinge seu clímax justamente onde a destruição da propriedade privada foi mais completamente alcançada — um fato simples que refuta a crença socialista.
Está claro para todos que a destruição da propriedade privada não acabou com os antagonismos, nem deu lugar a um espírito de solidariedade que permitisse ao homem dispensar o governo; e também fica aparente que qualquer que seja o espírito de solidariedade que exista, este parece ter como ingrediente necessário a desconfiança e aversão a outras sociedades, ou a outras camadas da sociedade. As intenções belicosas de forças estrangeiras parecem ser um postulado básico do estado coletivista, podendo até mesmo ser atribuídas por um estado coletivista a outro, ou, se o processo de socialização não foi completado, a uma disposição agressiva das classes capitalistas, impelidas por capitalistas estrangeiros. Portanto, a solidariedade obtida não é, como pretendido, uma solidariedade no amor, mas, pelo menos em parte, uma solidariedade na luta. Obviamente, isso não se coaduna com a intenção básica do socialismo: “o fruto da probidade é semeado em paz por aqueles que fazem a paz.” [11] Ainda assim, o ideal socialista não deve ser sumariamente repudiado. Nós realmente aspiramos a algo mais do que uma sociedade de bons vizinhos que não avancem suas demarcações das terras, que devolvam a seus donos as ovelhas desgarradas, e que se abstenham de cobiçar o asno que pertence ao vizinho. E, certamente, uma comunidade baseada não na independência econômica, mas no compartilhamento fraternal da produção comum, e inspirada no arraigado sentimento de que seus membros são uma única família, não deveria ser chamada de utópica.
A CONTRADIÇÃO INTERNA DO SOCIALISMO
Uma comunidade assim funciona. Tem funcionado por séculos, e podemos, com nossos próprios olhos, vê-la funcionar em qualquer comunidade monástica. Mas deve-se observar que essas são cidades de amor fraternal porque foram cidades originalmente construídas por amor a Deus. Deve-se, também, observar que os bens materiais são partilhados sem problemas porque eles são desprezados. Os membros da comunidade não estão ansiosos por aumentar seu bem-estar individual às custas uns dos outros; simplesmente eles não estão ansiosos por aumentá-lo. Seus apetites não são dirigidos a bens materiais, competitivos; são dirigidos a Deus, que é infinito.
Em resumo, eles são irmãos uns dos outros não porque formam um corpo social, mas porque são parte de um corpo místico.
O socialismo busca restaurar essa unidade sem a fé que a causa. Procura restaurar o compartilhar como se compartilha entre monges, porém sem o desdém pelos bens mundanos, sem reconhecer a falta de valor destes. Não aceita a visão de que o consumo é uma coisa trivial, a ser mantido no nível mínimo. Ao contrário: ele adere à crença fundamental da sociedade moderna de que deve haver cada vez mais bens mundanos para serem usufruídos, pilhados na conquista da natureza, que é tida como a mais nobre empresa do homem. O ideal socialista está incrustado na sociedade progressista e adere à veneração desta por mercadorias, ao seu encorajamento de apetites carnais e ufanismo em termos de imperialismo técnico.
A corrupção moral do socialismo reside no fato de que ele repudia a exploração metódica da motriz do interesse pessoal, dos apetites carnais e do egoísmo que têm lugar de honra na sociedade econômica que ele incumbiu-se de substituir; mas, na medida em que endossou a persecução de consumo sempre crescente, o socialismo tornou-se um sistema heterogêneo, dividido numa contradição interna.
Se “mais bens” são a meta à qual os esforços da sociedade devem visar, por que então “mais bens” deveria ser um objetivo vergonhoso para o indivíduo? O socialismo sofre de ambiguidade em seu julgamento de valores: se o bem da sociedade reside em maiores riquezas, por que o bem do indivíduo não? Se a sociedade deve pressionar rumo àquele bem, por que o indivíduo não? Se esse apetite por riquezas é errado no indivíduo, por que não o é na sociedade? Eis, então, uma — pelo menos prima facie — incoerência, até mesmo uma heterogeneidade gritante.
Além disso, na medida em que o propósito geral de uma sociedade seja conquistar a natureza e usufruir da sua pilhagem, não é lógico que esse propósito deva determinar as características dessa sociedade? Não seria a sociedade moldada pelo seu desejo predominante, pelo fim em direção ao qual ela tende? Não seria possível estarem tantas feições desprazíveis da sociedade funcionalmente relacionadas ao seu propósito básico? E não seria o desprazível inerente ao propósito, de forma que cada diferente sociedade com o mesmo propósito que tentarmos construir deverá mostrar as mesmas características, possivelmente sob uma diferente roupagem?
A sociedade baseada na produção pode estar relacionada à sociedade militar. O que entendemos por guerra deve mostrar, em sua estrutura, características apropriadas à guerra. Um exército, ou uma sociedade militar, incorpora muitas feições que são inadmissíveis pelos padrões de uma “sociedade boa”. Mas a hierarquia e a disciplina militares não podem ser dispensadas enquanto a vitória permanecer sendo o propósito — embora, é claro, possam ser aperfeiçoadas. Da mesma forma, deve haver uma relação entre a estrutura de uma sociedade baseada na produção e o seu propósito. E há muito a ser dito do ponto de vista de que as mais elevadas aspirações do socialismo foram corrompidas quando ele aceitou o propósito geral da sociedade moderna — bem como Rousseau havia antecipado.
A crença socialista, quer dizer, o nobre objetivo ético de livrar a sociedade dos seus antagonismos e transformá-la numa cidade de amor fraternal, entrou em declínio. As medidas que, certa feita, acreditou-se levariam a alcançar essa meta ainda são perseguidas, mas não foram conquistadas sequer num nível mínimo. Mas são cada vez mais defendidas como fins, ou como meios de se chegar a algo diferente da “sociedade boa” inicialmente concebida, visão que agora flutua livre da âncora ao que acreditara-se serem seus meios de realização. O socialismo propriamente dito é desintegrador, na medida em que as partes componentes de um antes compacto edifício de crenças parecem estar funcionando quase que autonomamente e por algo diferente do ideal socialista original. Isso agradaria a Sorel ou Pareto, como uma ilustração de suas teorias dos mitos.
A REDISTRIBUIÇÃO E O ESCÂNDALO DA POBREZA
O que hoje prevalece, em lugar do ideal de recompensas justas e amor fraternal, é o ideal de maior igualdade de consumo. Podemos considerá-lo como sendo composto de duas convicções: uma, de que é bom e necessário eliminar a pobreza, e que os recursos excedentes de uns devem ser sacrificados às necessidades urgentes de outros; e outra, de que a desigualdade de recursos entre os vários membros de uma sociedade é ruim por si própria, e deveria ser, de forma mais ou menos radical, eliminada.
As duas ideias não estão relacionadas de maneira lógica. A primeira repousa por inteiro na ideia cristã de fraternidade. O homem zela pelo seu irmão, deve agir como o Bom Samaritano, tem a obrigação moral de socorrer os desafortunados, uma obrigação que cabe, embora não exclusivamente, aos mais afortunados. [12] Não há, por outro lado, qualquer evidência prima facie para o atual argumento de que a justiça requer mais igualdade de condições materiais. Justiça significa proporção. Para o individualista, a justiça requer recompensa pessoal proporcional ao esforço pessoal; e para o socialista, a justiça requer recompensa pessoal proporcional aos serviços recebidos pela comunidade. [13] Parece razoável, portanto, negar simultaneamente que nossa sociedade atual seja justa, e que a justiça deva ser alcançada pela equiparação das rendas.
No entanto, é um hábito moderno muito comum chamar de “justo” qualquer coisa que seja desejável emocionalmente. No século XIX, chamava-se a atenção, legitimamente, para a triste condição das classes trabalhadoras. Sentia-se que era errado que suas necessidades humanas fossem tão pouco satisfeitas. A ideia de proporção, então, passou a ser aplicada à relação entre necessidades e recursos. Assim como parecia impróprio que alguns devessem ter menos do que era julgado necessário, da mesma forma parecia impróprio que outros devessem ter tanto mais.
Esse sentimento inicial era praticamente o único a operar no primeiro estágio do redistributivismo. Um segundo, quase ganhou supremacia no estágio posterior. [14]
O socialismo, no princípio do movimento pela redistribuição, preferiu adotar uma atitude desdenhosa; as medidas iniciais eram, a seus olhos, meros subornos oferecidos às classes trabalhadoras na tentativa de desviá-las dos objetivos maiores do socialismo.
Aqui, porém, levantaram-se sentimentos poderosos. Ao mesmo tempo em que é difícil para o homem imaginar a supressão da propriedade privada, ou seja, de algo que todos desejam, também é natural para ele comparar sua condição com a dos outros; os mais pobres podem facilmente imaginar o uso que dariam a algumas das riquezas dos outros, e os mais ricos, se despertos para a condição dos mais pobres, ficariam inclinados a sentir algum remorso por conta da sua vida de luxos.
Em todos os tempos, a revelação da pobreza foi sempre um choque para os poucos escolhidos: ela os impeliu a considerarem sua extravagância pessoal com um sentimento de culpa, levou-os a distribuírem suas riquezas e a se misturarem aos pobres. Em todos os casos que se conhece do passado, isso estava associado a uma experiência religiosa: a mente voltar-se-ia para Deus pela descoberta do pobre, ou para o pobre pela descoberta de Deus; em qualquer caso, os dois estão vinculados, e estava implícita uma reação aos ricos como sendo seres do mal.
No entanto, em nosso século, o sentimento que assaltou não apenas uns poucos espíritos, mas praticamente todos os membros das classes dominantes, é de um tipo diferente. Numa sociedade imoderadamente orgulhosa de suas riquezas cada vez maiores, ficava evidente que “em meio à fartura”, como dizia o ditado, a miséria ainda abundava; e isso requeria medidas para elevar o padrão dos pobres. Ao passo que a descoberta da pobreza, associada à presunção da impossibilidade de eliminá-la, no primeiro caso fez surgir uma reação aos ricos, desta vez um gosto arraigado pelas coisas mundanas, associado com um senso de poder, originou um ataque violento à própria pobreza. Os ricos haviam sido um escândalo face à pobreza; agora, a pobreza era um escândalo face aos ricos. (Compare com declarações da era moderna [15] a antiga identificação da pobreza com a santidade.) Para as classes médias pioneiras, profundamente devotadas à religião do progresso, a existência da pobreza não era apenas emocional mas também intelectualmente perturbadora, da mesma forma que a existência do demônio para o tipo mais simples de deísta. A crescente excelência da civilização, o crescente poder do homem, deviam ser finalmente demonstrados pela erradicação da pobreza. Assim, a caridade e a vaidade andaram de mãos dadas. Ao destacar o papel desempenhado pela vaidade, não se pretende depreciar a parte dada à caridade. Indubitavelmente, há momentos na história em que o coração humano fica enternecido e ocorre algum fenômeno desse tipo. A redistribuição, assim, teve seu percurso acelerado por um sentimento, ou padrão de sentimentos. De que forma esse sentimento se tornou operante em dado momento é um problema para os historiadores, e não é pertinente ao nosso tópico.
FUNDEM-SE AS NOÇÕES DE MITIGAR A POBREZA E DE ELEVAR O PADRÃO DE VIDA DAS CLASSES TRABALHADORAS
Devemos observar, contudo, que a redistribuição surge como uma novidade apenas se comparada às práticas imediatamente precedentes, e na escolha do seu agente, o estado. É inerente à própria noção de sociedade que deve-se tomar conta dos carentes. Esse princípio é aplicado em toda família e em toda pequena comunidade, e, na verdade, sua prática foi posta de lado há apenas algumas gerações atrás, como resultado da ruptura das comunidades menores, com o advento da revolução industrial. Isso causou o isolamento do indivíduo, e o novo “mestre” que ele ganhou não se considerava obrigado em relação a ele pelos mesmos laços que seu senhor anterior. É característico que os banquetes da classe feudal eram banquetes para todos, enquanto que o consumo do rico da nova era é puramente egoísta. Além do que, quase desnecessário dizer, a Igreja, ao receber enormes donativos dos ricos e poderosos, era um grande agente de redistribuição. Entre os antigos costumes e a época do estado assistencialista, tiveram lugar os “tempos difíceis”, quando o indivíduo foi deixado desamparado na sua necessidade.
Isso não pode ser atribuído a falta de sentimento em gerações que nutriram grande simpatia por escravos, por nacionalidades oprimidas, e indignação com as notícias das “atrocidades búlgaras”. Somos tentados a concluir que a faculdade dos homens de nutrirem simpatia varia por períodos de tempo e fica de alguma forma limitada em um momento qualquer. No entanto, a preocupação pelos menos favorecidos certamente não estava ausente, conforme testemunham Malthus, Sismondi, e muitos outros.
O século XX não oferece testemunho de má distribuição mais vigoroso do que aquele de John Stuart Mill. [16] Mas supunha-se que o padrão de vida do “povo” seria elevado com o barateamento dos bens, do qual o barateamento do sal e dos condimentos davam um exemplo promissor. [17] Além do mais, a posição relativa do trabalhador seria melhorada com o barateamento do capital.
A crença nos benefícios de uma economia competitiva para “o homem comum” não era infundada, como comprova o exemplo americano. Mas talvez houvesse alguma confusão entre duas noções distintas: uma, a de que a melhor forma de elevar a situação do trabalhador “mediano” é através da atuação de forças produtivas; e outra, a de que não há interesse em tomar conta de uma “retaguarda” de desvalidos. A “falta de escrúpulos” do pensamento social é tal, que, enquanto se dava ênfase à elevação do homem pelos processos do mercado, havia relutância em intervir em favor dos desvalidos (compare a atitude da Federação Americana do Trabalho nos primeiros anos da grande depressão), e tão logo a atenção fosse focada nessa retaguarda, alegava-se que a condição do homem mediano também deveria ser elevada através de medidas políticas.
Enquanto a mitigação da pobreza é uma obrigação social inquestionável, que a destruição da boa vizinhança, das aristocracias responsáveis, e da riqueza da Igreja passou a atribuir ao estado por falta de qualquer outro agente, é discutível se políticas de redistribuição são as melhores formas de lidar com o problema do crescimento da renda do trabalho do homem mediano, se podem ser efetivas, e se não entram em conflito com outros objetivos sociais legítimos.
A distinção aqui delineada é, admitidamente, difícil. As duas coisas são confusas na prática, e nem sempre está claro para que fim a enorme máquina social instalada em nossa geração está realmente funcionando; essa nossa criação apresenta uma estrutura não facilmente responsiva a nossas categorias intelectuais. Quando, através do funcionamento de serviços sociais, são fornecidos a um homem realmente necessitado os meios de subsistência, quer na forma de uma renda mínima por dias de desemprego, quer em assistência médica pela qual ele não poderia pagar, essa é uma manifestação primária de solidariedade. E isso não é redistribuição segundo a entendemos aqui.
Consideramos redistribuição tudo o que alivia o indivíduo de uma despesa que ele poderia, e presumivelmente assumiria do seu próprio bolso, e que, liberando uma proporção da sua renda, equivale a um aumento dessa renda. Uma família que teria comprado a mesma quantidade de alimentos a preços não subsidiados e a obtém muito mais barato, um indivíduo que busca serviços médicos e os obtém grátis, têm suas rendas aumentadas. E é isso o que queremos discutir.
Como sabemos, isso não se aplica apenas às pessoas pobres: em alguns países, especialmente na Inglaterra, todas as rendas são aumentadas dessa forma, ao mesmo tempo em que parte da maioria das rendas é subtraída para financiar esse aumento. O impacto desse enorme desvio e redistribuição sobre as rendas é um assunto muito complicado, com o qual não estamos prontos para lidar. Está longe de ser uma simples redistribuição dos mais ricos para os mais pobres. E, ainda assim, em grande parte sustenta-se da crença na justiça da redistribuição dos mais ricos para os mais pobres, e na crença de que é a isso que o processo todo chega. Esse pensamento motivador é o que queremos abordar.
PADRÃO DE VIDA INDECENTEMENTE BAIXO E INDECENTEMENTE ELEVADO
Propomos lidar com a redistribuição na sua forma pura, quer dizer, tomando das rendas mais altas para adicionar às mais baixas. Tal política é sustentada por um padrão de sentimentos dos quais devemos extrair alguns julgamentos implícitos de valores. O ímpeto de redistribuir é intimamente motivado por um senso de escândalo: é escandaloso que tantos devam estar na mais horrenda pobreza, e também é escandaloso que outros tantos tenham um modo de viver inadequado, que nos parece, no sentido original da palavra, indecente. Assim, o ímpeto de redistribuir está mais ou menos associado à ideia de um piso abaixo do qual ninguém deva ser deixado.
Ao pensar nas rendas mais elevadas, também estamos cônscios de uma indecência: os modos de viver mais elevados nos parecem um desperdício de riquezas que poderiam atender necessidades muitíssimo mais legítimas. Ou seja, a condenação pela comparação. Mas, além disso, há certas “coisas de rico” que nos parecem merecer condenação absoluta. Por alguma razão, houve o momento em que passamos a diminuir nossa simpatia por despesas em clubes noturnos, cassinos, corridas de cavalos, e assim por diante.
Esses dois julgamentos de valores geralmente estão fundidos no sentimento muito generalizado que podemos chamar de motivo para “transformar caviar em pão”. Nós não apenas desaprovamos o banquete de caviar quando aos outros falta o pão, nós o desaprovamos em qualquer circunstância. Por isso, quando estão envolvidos esses dois sentimentos, o de desaprovação comparativa e o de desaprovação absoluta, não há hesitação em afirmar que a transferência de tal excedente é desejável. [18] Essas ilustrações de gastos “fúteis” são sempre predominantes em mentes que contemplam a redistribuição.
Mas, é claro, tais julgamentos sobre os níveis apropriados de consumo, que chamamos de “absolutos”, são relativos a uma determinada sociedade, numa determinada época. São, na verdade, julgamentos subjetivos da classe que faz as políticas — nos nossos tempos, a classe média baixa. Na verdade, os níveis de consumo que ela considera o mínimo cabível e o máximo aceitável são projeções dos gostos dessa classe. A classe é quem forma a opinião social, que também estabelece os padrões sociais que ditam o que vem a ser um padrão de vida indecentemente elevado e o que vem a ser um indecentemente baixo. [19]
O PISO E O TETO: A HARMONIA
INTELECTUAL E A HARMONIA FINANCEIRA
Precisamos, agora, de uma terminologia que devemos manter dentro de limites modestos. Chamaremos de piso a renda mínima considerada necessária, e teto, a renda máxima considerada desejável. Diremos que piso e teto são “intelectualmente harmoniosos”, na medida em que eles são o piso e o teto aceitáveis para a mesma mente ou mentes. Além disso, diremos que piso e teto são “financeiramente harmoniosos”, na medida em que existe excedente suficiente para ser retirado daqueles “acima do teto” para compensar a deficiência das rendas “abaixo do piso”. Assim, se p é o piso e se há, abaixo dele, rendas P que ficam abaixo de Pp pela soma F, o teto r está em harmonia financeira com o piso p se as rendas da classe R (as pessoas que têm rendas maiores do que r) forem iguais ou superiores a Rr+F.
Se, por outro lado, p e r formam um conjunto piso-e-teto intelectualmente harmonioso, e as rendas das pessoas da classe R, que desfrutam maior renda do que as classes r forem Rr + E, e E ficar abaixo de F, então p e r não estão em harmonia financeira.
O redistributivismo é um sentimento espontâneo. E em suas formas mais ingênuas traz consigo uma convicção implícita de que o piso e o teto que estiverem em harmonia intelectual também se mostrarão em harmonia financeira. Esta, como tantas suposições espontâneas da mente humana, é um erro. Questionar membros da elite intelectual ocidental não familiarizados com estatísticas de renda, sobre o piso e teto adequados de renda, é de um interesse absorvente. Eles sempre colocam p e r em níveis muito acima dos compatíveis com a harmonia financeira. O excedente E sempre fica muito abaixo da deficiência F a ser compensada.
Esse erro é encorajado por uma falta de familiaridade com as estatísticas de distribuição de renda. Qualquer estatística de renda pode mostrar que um grande percentual da renda pessoal nacional corresponde a um pequeno percentual de detentores. Tais estatísticas eram persuasivamente desenvolvidas nos Estados Unidos durante o New Deal. Essa técnica pode ser aplicada às rendas britânicas, e aí, novamente, os resultados são impressionantes. Tomando as rendas antes dos impostos, 3,14% dos detentores de renda, detêm 19,4% da renda pessoal nacional; 5,15% detêm 24,5%; e, por fim, 12% detêm 36,3% da renda pessoal nacional. Tal agrupamento de rendas parece permitir enormes possibilidades de redistribuição. Mas deve-se salientar que essa primeira faixa compreende todos os detentores de renda bruta abaixo de £ 1.000; a segunda, renda abaixo de £ 700,15; e a terceira, abaixo de £ 500. [20]
Poucos fixariam um teto tão baixo como esse de mil libras, [21] situando a renda líquida máxima de uma pessoa solteira em £ 700,14, e aquela de uma família com três filhos em £ 813,05. Mas, se assim o fosse, as somas disponíveis para redistribuição seriam muito menores do que poderia parecer à primeira vista. Do montante total das rendas acima do teto, primeiro, deveria ser subtraída a renda a ser redistribuída; segundo, a não ser que estivéssemos preparados para restringir as funções do estado, o Tesouro teria que se ressarcir de suas perdas resultantes dessa redistribuição. Se, por um lado, ele obtém £ 612 milhões em impostos diretos sobre as rendas acima de £ 1.000, por outro, ele poderia esperar recolher sobre a soma redistribuída às rendas inferiores apenas uma fração desprezível daquele primeiro montante. Teria, então, que subtrair dessa soma a diferença entre sua arrecadação atual e a arrecadação conforme a nova divisão da renda, ou, como alternativa, elevar consideravelmente a alíquota de tributação sobre as rendas inferiores. A forma mais simples de colocar esse problema é considerar uma dedução, em favor do fisco, do montante disponível para redistribuição. Mas essa não é a dedução final; se nos propusermos a manter o nível de investimento nacional, a diferença entre o montante da soma para a qual contribuíram as rendas mais elevadas e a soma que se espera arrecadar do mesmo montante em novas mãos deve, novamente, ser deduzida. O montante final a ser transferido guarda pouca relação com as expectativas evocadas.
QUÃO BAIXO O TETO?
Tentamos calcular, no Apêndice, como se obter um dado piso de renda podando o topo de todas as rendas que estiverem acima de determinado teto. Nesse tratamento, o teto é a quantidade desconhecida. O resultado de nossos cálculos é um teto muito inferior a qualquer estimativa a priori. A fim de obter nosso piso, não podemos nos contentar em tomar o excedente dos ricos; temos que explorar fundo as rendas da classe média baixa. Uma renda líquida máxima de £ 500 não é algo que qualquer defensor da redistribuição tenha contemplado, mas é a isso que chegamos. Casualmente, nossos cálculos demonstram o fato, negligenciado, de que esse nível de redistribuição seria quase impraticável se, como se acredita, fosse essencialmente uma redistribuição dos ricos para os pobres; ela se mostra possível se ocorrer tanto no sentido vertical quanto no sentido horizontal.
O resultado dessa exploração surpreende. Sacode a crença amplamente aceita de que nossas sociedades são extremamente ricas e de que suas riquezas são meramente mal distribuídas — crença essa insensatamente disseminada pelos bem intencionados “negociantes” da abundância dos anos 1930. O que temos que perceber é que tais excedentes que poderíamos nos dispor a tomar implacavelmente – supondo, sempre, que isso não teria qualquer efeito sobre a produção — são, de longe, insuficientes para elevar as rendas inferiores a um nível desejável. A consecução do nosso propósito envolve o rebaixamento até mesmo do padrão de vida da classe média baixa.
O ímpeto que deu início ao redistributivismo era motivado por duas desaprovações absolutas: a injustiça do subconsumo, combinada com a injustiça do superconsumo. Que bom seria se, para alcançarmos um propósito válido, não tivéssemos que sacrificar nada de valor, já que até os recursos para a supressão de um mal são, eles próprios, desejáveis! Assim surgiu o problema para o intelectual, ao julgar a sociedade. Há maus padrões de vida, os dos pobres, que ele gostaria de eliminar; e esperava que isso pudesse ser alcançado meramente com a supressão de outros maus padrões de vida, os dos ricos. O intelectual (não o artista), por natureza, não simpatiza com o extrovertido modo de viver dos ricos. As políticas de redistribuição, portanto, a seus olhos, não implicam qualquer prejuízo social. Mas se o teto de renda deve ser estabelecido tão baixo como sugerimos, então haveria uma grande mudança. Agora são padrões de vida válidos que devem ser destruídos, padrões aos quais o intelectual está acostumado, e que considera necessários para o desempenho daquelas funções sociais que ele mais aprecia.
E assim, ao mesmo tempo em que o dar parece justo, a justiça do tomar é muito menos óbvia. É fácil dizer: “Rothschild deve abrir mão do seu iate.” Mas é bem diferente dizer: “Receio que Bergson deva perder os modestos meios de sobrevivência que tornaram possível a ele fazer o seu trabalho.” Nem é uma questão de renda não proveniente do trabalho: os executivos, os funcionários públicos, os engenheiros, os intelectuais, os artistas devem ter suas rendas restringidas. É isso que se quer? Isso é justo?
Há ampla evidência de que os defensores mais extremados da redistribuição não consideram isso desejável ou justo. Pois as remunerações vinculadas às sempre múltiplas funções do estado redistribuidor estão muito acima dos tetos que resultam de nossa investigação. Não há prova mais cabal de que tais tetos não são, na verdade, considerados desejáveis ou aceitáveis pelos defensores da redistribuição. Estando sujeitos, porém, à falibilidade do homem, é bem possível que os que pregam o redistributivismo estejam certos em defender a redistribuição, e errados em prover rendas relativamente altas para seus agentes. Essa pode ser uma concessão a circunstâncias adjacentes, uma continuidade de noções herdadas, uma inconsistência. Examinemos, portanto, sem preconceito, a possibilidade de justificar-se o sacrifício até mesmo de rendas modestas a fim de suplementar as rendas ainda menores.
Como temos, agora, que pesar as desvantagens de um teto anormalmente baixo para a classe média contra as da renda ainda insuficiente das classes operárias, precisamos estabelecer algum critério de justiça. É-nos oferecida a “aritmética da felicidade”, o felicific calculus, agora pintado com as novas cores da economia do bem-estar social.
UMA DISCUSSÃO DE SATISFAÇÕES
A redistribuição começou com um sentimento de que alguns tinham tão pouco e outros tinham demais. Ao serem feitas tentativas de expressar esse sentimento de forma mais precisa, espontaneamente surgem duas fórmulas. Podemos chamar a primeira de objetiva, e a segunda, de subjetiva. A fórmula objetiva baseia-se na ideia de um padrão de vida decente, abaixo do qual ninguém deve estar, e acima do qual são aceitáveis e desejáveis outros padrões de vida, dentro de uma certa variação. A fórmula subjetiva não se baseia numa noção do que seja objetivamente bom para os homens, e pode, a grosso modo, ser assim enunciada: “Os mais ricos deveriam sentir menos suas perdas do que os mais pobres apreciarem seus ganhos”; ou, mais grosseiramente ainda: “Uma certa perda de renda significaria menos para os mais ricos do que o consequente ganho significaria para os mais pobres.”
Faz-se, aqui, uma comparação entre satisfações. Pode tal comparação mostrar-se efetiva? Podemos, com alguma precisão, medir perdas de satisfação de alguns e ganhos de satisfação de outros? Se assim for, poderemos saber como atingir a soma máxima de satisfações individuais possível de ser retirada de um dado fluxo de produção, o qual deve-se sempre supor não afetado.
Tal ideia estava fadada a surgir no círculo dos economistas. Pois a maximização das satisfações, em vários contextos, vem sendo, por várias gerações, uma noção familiar. Na teoria pura da demanda do consumidor, o indivíduo é concebido como estando munido de uma certa renda, que ele aloca dentre os vários bens oferecidos pelo mercado a certos preços, de forma a proporcionar a si próprio satisfação máxima. A teoria pura da troca lida com duas partes, cada uma das quais provida com determinada mercadoria, e cada uma desejando a mercadoria que a outra possui. Cada parte troca uma porção da mercadoria que possui pelo preço da mercadoria desejada, até o ponto em que qualquer nova aquisição envolva um sacrifício maior do que o valor que tal aquisição tem para a parte negociante. Nesse ponto, pode-se dizer que cada parte adquiriu o conjunto de bens para ela mais satisfatório — em certo sentido, a satisfação de ambas as partes está maximizada. [22] O conceito um tanto mítico do equilíbrio geral aplica isso ao caso de muitas pessoas e muitas mercadorias. O equilíbrio geral é um optimum estético e matemático que os economistas estiveram propensos a igualar, quer expressamente ou por implicação, a um optimum de satisfações. Para os economistas, essa era uma necessidade intuitiva, até. Postulando que o comportamento econômico é ditado pelo esforço por maximizar as satisfações individuais, deduzindo que qualquer equilíbrio na troca é o ajuste mais feliz entre as satisfações das partes e que, com isso, maximiza a soma de suas satisfações, os economistas eram levados a considerar equilíbrio geral o máximo que um indivíduo pode fazer por si próprio comparado a todos os outros, e, de um ponto de vista superficial, como a melhor combinação possível dos resultados individuais. [23] Agora, tão logo adota-se a ideia da melhor combinação possível, sucede, logicamente, que qualquer desvio do equilíbrio geral envolve um saldo acrescido de insatisfações em relação às satisfações acrescidas. Assim, ao atribuirmos ao equilíbrio geral qualquer conotação psicológica, vemo-nos envolvidos em comparar as satisfações de diferentes indivíduos, ou, pelo menos, seus diferenciais. Obviamente, o equilíbrio geral envolve um optimum para cada indivíduo, relativo somente aos seus meios pré-estabelecidos, e o equilíbrio geral, como um todo, será diferente, de acordo com as diferenças na distribuição inicial da renda. Se formos comparar o equilíbrio geral, pela superioridade da satisfação geral que ele envolve, com uma situação abaixo do equilíbrio, então também devemos comparar um equilíbrio geral obtido a partir de uma certa distribuição inicial a outro equilíbrio geral decorrente de outra distribuição inicial. Assim, a própria noção de equilíbrio como uma posição da qual qualquer desvio envolve uma perda líquida de satisfações, conduz, diretamente, à economia do bem-estar social, e, na verdade, atribui a ela as suas definições gritantemente paretianas.
A TEORIA DA UTILIDADE DECRESCENTE
Não somente a maximização das satisfações teve um papel decisivo na economia moderna conforme concebida por Walras e Jevons, mas a grande ferramenta de gerações de economistas, desde os tempos desses pioneiros, tem sido o axioma da utilidade decrescente. O fato de que uma dada fração do bem a fica sendo menos valiosa para seu dono quanto mais ele possuir do bem a explica perfeitamente o ganho que ambas as partes obtêm com a troca, cada uma abandonando as frações “finais” daquilo que possui em maior quantidade a fim de ganhar as frações “iniciais” daquilo que não possui. Dois conjuntos de bens a e b, inicialmente possuídos cada um por uma das partes, ganham em valor pela operação de troca, já que as frações finais de a, de pouca utilidade para A, passam para as mãos de B, para quem elas são mais úteis, enquanto que A adquire de B as frações finais de b, que são mais valiosas para esse do que para o dono anterior.
Nessa operação de troca há duas coisas a serem consideradas. Ao abandonar sua fração final de a, o dono A perde pouco, e ao adquirir sua fração inicial de b, ele adquire muito. Supondo que ele, agora, está tão amplamente provido de b, c… n, que não está inclinado a adquirir frações de b, ainda assim, abandonar a fração final de b significa apenas um pequeno sacrifício. Além do mais, para B a aquisição da fração inicial de a é um grande ganho; ainda pode-se dizer que essa fração de a, ao trocar de mãos, está ganhando valor de uso.
Isso constitui a transição do axioma da utilidade decrescente para a hipótese de utilidade decrescente da renda.
Economistas de destaque não encontraram qualquer dificuldade em estender à teoria da renda o axioma da utilidade decrescente. Conforme o Professor Pigou: “É evidente que qualquer transferência de renda de um homem relativamente rico para um relativamente pobre e de temperamento similar deve aumentar a soma agregada das satisfações, uma vez que permite a satisfação de desejos mais intensos às custas de desejos menos intensos”. [24] Esta afirmação, em virtude de sua informalidade, é mais prontamente aceita do que a imponente afirmação do Professor Lerner: “A satisfação total é maximizada pela divisão de rendas que equiparam as utilidades marginais da renda de todos os indivíduos da sociedade.” [25]
Utilidade marginal da renda é realmente um nome imaginativo para a satisfação ou prazer derivado da última unidade da renda. Digamos que esta é de £ 10. A afirmação do Professor Lerner significa que a renda está bem distribuída quando a perda de £ 10 causa o mesmo desconforto a qualquer membro da sociedade. Já a afirmação do Professor Pigou significa que justifica-se a transferência das £ 10 de um indivíduo para outro, já que em novas mãos as £ 10 renderão mais satisfação do que nas mãos anteriores.
Argumentou, com sua habitual elegância, o Professor Robbins [26] que a amplitude da utilidade marginal decrescente não está comprovada, que o marginalismo nesse campo envolve uma comparação das satisfações de diferentes pessoas e, portanto, cai na mesma armadilha que, em suas aplicações legítimas, tentou evitar. As satisfações de diferentes pessoas não podem, diz ele, ser medidas com uma unidade de medida comum.
Esse argumento, porém, torna-se uma benção na desdita para os defensores das políticas do bem-estar social que encarregaram-se da impossível tarefa de equacionar as utilidades marginais de diferentes indivíduos. Ao provar que essa é uma dificuldade insuperável, o Professor Robbins inadvertidamente induz um novo movimento: “O valor provável do total das satisfações é maximizado dividindo-se uniformemente a renda.” [27] Não é preciso nos determos na demonstração do Professor Lerner, que repousa nas suposições artificiais de que a condição inicial é de igualdade, e que os desvios dessa são casuais. A força do argumento em favor da distribuição uniforme não está nesse raciocínio formal. Está em que, tão logo a distribuição por igual é proposta como solução para a maximização das satisfações, aqueles que a ela se opõem tomam para si mesmos o ônus de provar que aqueles que obtêm as maiores rendas são os que têm maior capacidade de aproveitá-las — uma incumbência na qual eles não podem deixar de ir de encontro a qualquer dos pressupostos de uma sociedade democrática.
PONTOS E REQUISITOS ADICIONAIS
Portanto, ao discutirmos a maximização das satisfações, a questão reside na solução da distribuição uniforme. Isso, porém, no pressuposto de que os detentores de rendas não tenham desenvolvido seus modos de viver e gostos de acordo com suas rendas, um requisito para o qual o Professor Pigou, acertadamente, chama a atenção. [28]
Deve-se considerar que uma perda de renda é uma perda de satisfações definidas, enquanto que um ganho de renda além de uma certa proporção é um ganho de satisfações ainda indefinidas. Bem mais importante: a representação marginalista da renda como uma progressão de termos decrescentes, dos quais os últimos sempre podem ser eliminados sem afetar os demais, não se mostra válida em toda a extensão da linha dessa progressão. Um certo padrão de vida implica um certo perfil de despesas do qual sempre se pode “espremer um pouco d’água”. Mas quando um certo ponto é atingido, o mesmo padrão de vida não pode ser mantido; um maior ajustamento é necessário, e isso é uma queda para um outro modo de vida, uma queda que envolve grande insatisfação.
Portanto, pode-se sustentar que a discussão anterior das satisfações deixou de fazer justiça à intensidade das insatisfações provenientes da perda de renda. Como ainda somos regidos pelo princípio de Robbins de que as satisfações e insatisfações de diferentes pessoas não são comensuráveis, recorremos ao modo de mensuração que, efetivamente, tem melhores resultados. Este não pretende provar que a soma de satisfações individuais das pessoas beneficiadas é maior do que a soma de insatisfações das pessoas espoliadas. Na verdade, há todas as razões para crer que se o que é tomado de um número de pessoas fosse distribuído por um igual número de pessoas, estas ganhariam menos satisfação do que a satisfação que as primeiras estariam perdendo. Mas o fato é que a renda tomada é distribuída entre um número muito maior de pessoas. E haverá mais pessoas com ganho, do que com perda de satisfação; mais sinais positivos do que negativos; e, como a intensidade dos valores não pode ser medida, tudo o que se pode fazer é afirmar que há mais sinais positivos do que negativos, e tomar o resultado como um ganho — o que é feito atualmente.
No entanto, é geralmente aceito que a intensidade das insatisfações não deve ser levada longe demais, e o processo de reduzir as rendas superiores, portanto, deve ser efetivado no decorrer de um período de tempo.
Foi sugerido que a presumida impossibilidade de medir as insatisfações comparativamente às satisfações poderia ser superada por meios empíricos. Na verdade, se tomássemos a visão de Lansing da democracia como um regime de disputa bem regulada, em que se faz prevalecer a força sem violência, poderíamos dizer que a insatisfação causada pela perda de renda é medida pela resistência política às medidas de redistribuição, e que o sucesso ou fracasso dessa resistência denota o excesso de insatisfação comparado ao nível de satisfação, ou vice-versa. Assim, o efeito do conflito político sobre as rendas maximizaria, sempre, o bem-estar.
Porém, assim seria somente se todos os protagonistas estivessem preocupados apenas com a sua satisfação pessoal e fossem indiferentes a qualquer imperativo moral. Então o vigor de suas várias reivindicações expressaria a intensidade de suas satisfações. Felizmente, o conflito não ocorre em tal clima de egoísmo claro e consciente.
DISCRIMINAÇÃO CONTRA AS MINORIAS
A inconveniência de um nivelamento radical a curto prazo é facilmente admitida. Os psicólogos alertam para o descontentamento violento, socialmente desintegrador, daqueles repentinamente rebaixados dos seus costumeiros modos de vida. [29] Os economistas advertem que, convertidos, a curto prazo, ao uso popular, aqueles recursos produtivos que atendiam especificamente os abastados não renderão, em bens e serviços populares, algo sequer parecido ao valor que anteriormente rendiam em bens e serviços de luxo. [30]
As admitidas objeções ao nivelamento a curto prazo não enfraquecem o argumento do nivelamento a longo prazo. Ao contrário, reforçam-no. Pois quanto maior a disposição que mostrarmos de adiar uma equiparação radical a fim de acomodar gostos adquiridos, mais deduzimos que as diferenças das vontades subjetivas são uma questão de hábito, um fenômeno histórico. Ao mesmo tempo em que parece excessivo equiparar rendas entre os homens de hoje, que conhecemos e que sabemos terem diferentes necessidades, parece plausível fazê-lo no caso de homens cujas personalidades podemos imaginar que diferem menos umas das outras — simplesmente porque estes ainda não têm personalidades. Por isso, podemos projetar para o futuro como sendo racional o que, na realidade, poderia ser, para nós, um absurdo estarrecedor.
É um comportamento comum da mente, naturalmente fascinada pela simplicidade, construir seus esquemas a uma distância enorme das aborrecidas complexidades de uma realidade conhecida, no futuro ou num passado mítico, em que as coisas não têm formas próprias. Depois de esse primeiro processo resultar num esquema racional, tal esquema poderá ser usado como um modelo racional, contra o qual a desordenada arquitetura do hoje poderá ser mensurada e condenada.
Observemos, porém, uma certa consequência da equiparação, válida em qualquer que seja o futuro em que situemos a realização da reforma. Suponhamos que tenham sido eliminadas quaisquer diferenças de gostos devidas a hábitos sociais. Os homens, no entanto, não serão uniformes em caráter; algumas diferenças de gostos deverão existir entre os indivíduos. A demanda econômica não mais será determinada por diferenças nas rendas individuais, que terão sido abolidas; ela será determinada unicamente por números. É evidente que aqueles bens e serviços demandados por um maior número de indivíduos serão fornecidos a esses indivíduos a preços menores do que os praticados para outros bens e serviços desejados por um número menor de indivíduos. A satisfação dos desejos da minoria custará mais caro do que a satisfação dos desejos da maioria. Os membros de uma minoria serão discriminados.
Nada de novo há nesse fenômeno. É uma característica normal de qualquer sociedade econômica. Pessoas de gostos incomuns sofrem desvantagem para a satisfação de seus desejos. Mas podem, e na verdade esforçam-se por aumentar suas rendas a fim de pagar por seus desejos distintos. E este, aliás, é um incentivo poderosíssimo; sua eficiência é ilustrada pelo esforço acima da média, as rendas mais elevadas e as posições de lideranças alcançadas por minorias raciais e religiosas; o que se aplica a essas bem definidas minorias, também se aplica a indivíduos que apresentam características originais. Os sociólogos prontamente admitirão que, numa sociedade em que prevalece a livre concorrência, os mais ativos e mais bem sucedidos são também os de personalidades mais incomuns.
Se, porém, não for possível àqueles cujos gostos diferem do comum reparar sua desvantagem econômica através do aumento de suas rendas, então, em nome da igualdade, eles estarão sofrendo discriminação. [31]
Quatro consequências são dignas de nota. Primeira, necessidades pessoais para indivíduos de gostos originais; segunda, a perda, para a sociedade, do esforço especial que essas pessoas fariam a fim de satisfazerem suas necessidades especiais; terceira, a perda, para a sociedade, da variedade de estilos de vida resultantes de esforços bem sucedidos para satisfazer desejos especiais; quarta, a perda, para a sociedade, daquelas atividades que são sustentadas pela demanda das minorias.
Com respeito ao último ponto, é lugar comum que coisas que hoje são fornecidas de forma não dispendiosa para muitos, como especiarias ou jornais, originalmente terem sido artigos de luxo, cuja oferta existia somente porque uns poucos indivíduos os desejavam e por eles podiam pagar altos preços. É difícil dizer o que teria sido do desenvolvimento econômico do Ocidente, caso as coisas essenciais tivessem sido colocadas em primeiro lugar, como reivindicam os defensores da reforma; isto é, se o esforço produtivo tivesse sido direcionado a fornecer mais das coisas necessitadas por todos, excluindo uma variedade maior de coisas desejadas por minorias. Mas o ônus de provar que o progresso econômico teria sido tão impressionante certamente cabe aos defensores da reforma. A história nos mostra que cada ampliação bem sucedida das oportunidades de consumo estava vinculada à distribuição desigual dos meios para consumir. [32]
O EFEITO DA REDISTRIBUIÇÃO SOBRE A SOCIEDADE
Ninguém tentou pintar um quadro da sociedade que resultaria da redistribuição radical, requerida pela lógica da maximização das satisfações. Mesmo que considerássemos uma sociedade com piso e teto de renda, como tentamos elaborar no Apêndice, essa ainda seria uma sociedade que excluiria o modo de viver atual de nossos líderes em todos os campos, quer sejam eles homens de negócios, funcionários públicos, artistas, intelectuais, ou sindicalistas.
Proibimo-nos de contemplar qualquer redução na atividade de qualquer um, e qualquer baixa da produção como um todo. Mas a realocação das rendas provocaria uma grande mudança nas atividades. Aumentaria a demanda por alguns bens e serviços, e a demanda por outros cairia ou desapareceria. Não está além da capacidade daqueles economistas especializados em comportamento do consumidor calcular, por alto, quanto aumentaria a demanda por certos itens, e quanto cairia a demanda por alguns outros. [33]
Uma série de atividades da nossa sociedade atual desapareceriam por falta de compradores. Assim, o “mau direcionamento das atividades produtivas” de Wicksteed seria retificado. Esse grande economista argumentava com o sentimento de que a desigualdade de renda distorce a alocação dos recursos produtivos; [34] sendo os esforços, em uma economia de livre mercado, direcionados ao ponto em que obterão a melhor remuneração, os ricos podem desviar tais esforços, da satisfação das necessidades prementes dos pobres, para a satisfação das extravagâncias dos ricos. As grandes rendas são, por assim dizer, magnetos atraindo esforços para longe de sua melhor aplicação. Em nossa sociedade reformada, esse mal seria eliminado.
De minha parte, veria sem pesar o desaparecimento de muitas atividades que atendem aos ricos, mas certamente ninguém aceitaria de bom grado o desaparecimento de todas as atividades que têm seu mercado nas classes que desfrutam de renda líquida superior a £ 500. Cessaria a produção de todos os produtos de primeira qualidade. A habilidade que eles exigem seria perdida, e o gosto que eles configuram se tornaria grosseiro. A produção de bens artísticos e intelectuais seria a primeira a ser afetada, e mais profundamente. Quem iria comprar quadros? E, até mesmo, quem iria comprar livros, exceto livros em papel barato?
Poderemos nos resignar com a perda sofrida pela civilização se as atividades intelectuais e artísticas deixarem de ter mercado? Seguindo a lógica do felicific calculus, teremos de nos resignar. Se os 2.000 guinéus gastos, daí em diante, por 2.000 compradores de uma peça original de pesquisa histórica ou filosófica forem, então, gastos por 42.000 compradores de livros de um shilling, provavelmente a satisfação agregada será maior. Há, portanto, um ganho para a sociedade, segundo esse modo de pensar que representa a sociedade como uma coleção de consumidores independentes. O felicific calculus, contando em unidades de satisfações atribuídas aos indivíduos, não pode considerar em suas contas a perda decorrente da supressão da peça de pesquisa — fato que, aliás, traz à luz as suposições radicalmente individualistas de um ponto de vista normalmente rotulado de socialista.
Na verdade, e embora isso compreenda uma inconsistência intelectual, os mais ardorosos defensores da redistribuição da renda são altamente sensíveis às perdas culturais envolvidas. E eles insistem em nos apontar a grande compensação: é verdade que os indivíduos não mais terão condições de montar bibliotecas particulares; mas haverá bibliotecas públicas melhores, maiores, em número cada vez maior. É verdade que o produtor do livro não será sustentado por compradores individuais; mas o autor receberá uma subvenção do estado, e assim por diante. Todos os que defendem a redistribuição extrema casam-na com as mais generosas medidas de apoio governamental para toda a superestrutura de atividades culturais. Isso requer dois comentários. Devemos, primeiramente, abordar as medidas de compensação, e, então, sua importância.
QUANTO MAIOR A REDISTRIBUIÇÃO, MAIOR O PODER DO ESTADO
Ao destacar a perda de capital de investimento que resultaria de uma redistribuição da renda, já constatamos que a necessária contrapartida à poda do topo das rendas mais elevadas é o desvio dessas rendas pelo estado, numa parcela igual, ou quase, à que elas costumavam ser empregadas em investimentos; a suposição que logicamente se seguia era a de que o estado tomaria conta dos investimentos: uma grande função, uma grande responsabilidade, e um grande poder.
Agora, constatamos que ao impossibilitar aos indivíduos sustentarem atividades culturais além de suas rendas encolhidas, atribuímos ao estado mais outra grande função, outro grande poder.
Suponhamos que o estado financie, e, portanto, escolha os investimentos; e que financie as atividades culturais, tendo, portanto, que escolher o que financiar. Como não restaram compradores particulares para livros ou quadros, ou outros trabalhos de criação, o estado deve custear a literatura e as artes na qualidade de comprador ou na de fornecedor de beneficia aos produtores, ou em ambas.
Esse é um pensamento, na melhor das hipóteses, inquietante. O quão rápido esse domínio do estado seguir-se-á às medidas de redistribuição, isso podemos avaliar pelo enorme progresso já havido rumo a esse domínio em decorrência da redistribuição limitada.
VALORES E SATISFAÇÕES
Mas o fato de que os defensores da redistribuição estão ansiosos por reparar, através de gastos do governo, a degradação de atividades mais elevadas que resultaria da redistribuição é muito significativo. Eles querem evitar uma perda de valores. Isso faz sentido? Em todo o processo lógico que busca justificar racionalmente a redistribuição, presumia-se que a satisfação do indivíduo deveria ser maximizada e que deveria ser buscada a maximização da soma das satisfações individuais. Admitia-se, a bem do argumento, que a soma das satisfações individuais poderia ser maximizada quando as rendas fossem equiparadas. Mas nessa condição de renda equiparada, sendo a melhor, os valores de mercado estabelecidos pelos compradores e a alocação de recursos resultante não deveriam ser, ex hipothesi, os melhores e os mais desejáveis? Isso não entra em contradição direta com toda essa linha de raciocínio de retomar a produção de itens para os quais agora não há demanda?
Pelo nosso processo de redistribuição alcançamos, agora, presume-se, a condição de máximo bem-estar, em que a soma das satisfações individuais está maximizada. Não é ilógico imediatamente nos desviarmos dessa condição?
Certamente, ao alcançarmos a distribuição de renda que, segundo alegado, maximiza a soma das satisfações, devemos deixar que essa distribuição exerça sua influência sobre a alocação de recursos e atividades produtivas, pois é somente através desse ajuste que a distribuição de rendas tem significado. E, ao serem assim alocados os recursos, não devemos interferir com a sua disposição, já que, ao fazê-lo, pela lógica estaremos diminuindo a soma das satisfações. É, então, uma inconsistência, e uma inconsistência gritante, intervir com subvenção do governo para atividades culturais que não têm mercado. Aqueles que, espontaneamente, corrigem seus esquemas de redistribuição com esquemas para tal subvenção, estão, na verdade, negando que a alocação ideal de recursos e atividades é aquela que maximiza a soma das satisfações.
Está claro que, com essa negação, cai por terra o processo todo de raciocínio que justifica a redistribuição. Se dissermos que, embora as pessoas ficassem mais satisfeitas em gastar uma certa soma em necessidades das quais estão mais conscientes, nós as privássemos dessa satisfação a fim de subvencionar um pintor, obviamente perdemos o direito de argumentar que a renda de James deve ir para a massa do povo porque dessa forma a satisfação será aumentada. Pois, todos sabemos, James pode estar sustentando a atividade do pintor. [35] Não podemos aceitar o critério de maximização das satisfações quando se trata de destruir rendas privadas e, então, rejeitá-lo ao planejar os gastos públicos.
Reconhecer que a maximização das satisfações pode destruir valores que todos estão dispostos a restaurar — ao custo de um desvio do ponto de satisfação máxima — destrói o critério de maximização das satisfações.
AS SATISFAÇÕES SUBJETIVAS SÃO UM PADRÃO EXCLUSIVO?
O que discutimos anteriormente vai além de meramente refutar o argumento formal para a redistribuição da renda. Os economistas, como tal, estão interessados no movimento das preferências dos consumidores no mercado, e em mostrar o quanto esse movimento orienta a alocação dos recursos produtivos, de forma que corresponda às preferências dos consumidores. A perfeição dessa correspondência é o equilíbrio geral. Esse é um tipo de perfeição; e é plenamente legítimo dizer que tal alocação de recursos é a melhor – sendo entendida como a melhor do ângulo das vontades subjetivas, ponderada pela distribuição real da renda. Esse entendimento, porém, frequentemente é esquecido: muitos economistas, notadamente Wicksteed, argumentaram que não é a melhor, porque tem um desvio causado pela distribuição real. O risco inerente a essa correção é que seus defensores estão prontos a esquecer que a alocação de recursos resultante de tal distribuição de renda, que lhes parece a mais desejável, é, precisamente, como antes, a melhor apenas do ângulo das vontades subjetivas, ponderada pela nova distribuição da renda. Dizer que ela é a melhor, sem restrição, implica um julgamento de valores que equipara o bom ao desejado, na linha hobbesiana. Mas, é perfeitamente legítimo para o economista lidar apenas com o desejado e não com o bom. Mas não é legítimo tratar o optimum em relação aos desejos como um optimum em qualquer outro sentido. E não nos surpreenderíamos se, por outros padrões, a alocação de recursos em relação aos desejos deixasse de ser opcional.
O fato de que uma sociedade que, presumidamente, tenha maximizado a soma da satisfação subjetiva, considerada no todo, poderia nos chocar por estar muito distante de uma “sociedade boa”, pode ser previsto por qualquer pessoa com uma formação cristã ou uma educação clássica.
Porém, para os tantos inclinados a pensar mais em termos das satisfações do que na “ruindade” da sociedade — aparentemente devida à distribuição desigual de satisfações —,deveria ser uma lição das mais úteis que o resultado desse ponto de vista leve-os a um estado de coisas inaceitável. O erro deve, então, residir no pressuposto inicial de que a renda deve ser considerada somente como meio de fruição do consumidor. Na medida em que assim é considerada, o tipo de sociedade que maximiza a soma de fruições do consumidor deverá ser o melhor; e, ainda assim, é inaceitável. Sucede que a renda não deve ser considerada dessa forma.
O REDISTRIBUTIVISMO COMO O RESULTADO FINAL DO INDIVIDUALISMO UTILITÁRIO
Não há dúvida de que atualmente a renda é considerada como meio de fruição do consumidor, e a sociedade, como uma associação para a promoção do consumo. Isso fica evidente pelo caráter da atual controvérsia sobre o tema redistribuição. Os argumentos, colocados frente a frente, são feitos da mesma matéria. É justo, dizem alguns, equiparar as satisfações do consumidor. É prudente, replicam outros, alocar grandes quantias para estimular a produção e, com isso, prover maiores meios de consumo.
Há um ditado americano que diz: “O mundo é um pote, e o homem é uma colher dentro do pote.” Nesta imagem, nossos dois lados poderiam escolher os slogans: um pote em expansão, com colheres desiguais; ou um pote estático e decadente, com colheres iguais. Mas talvez o mundo não seja um pote, e o homem, certamente, não é uma colher. Aqui, abandonamos completamente qualquer concepção de “vida boa” e “sociedade boa”. É completamente inadmissível considerar “vida boa” como sendo uma farra de consumo, ou “sociedade boa” como uma fila de consumidores. E o ideal redistributivista representa uma queda desastrosa do socialismo.
O socialismo, antes de sua desastrosa decadência numa nova versão de despotismo ilustrado, era uma doutrina social ética. E como tal, para fazer mérito ao duplo epíteto, almejava a uma “sociedade boa”, que entendia como aquela em que os homens teriam melhores relações uns com os outros e uma disposição mais afável em relação aos seus semelhantes. Esse espírito parece ter-se evaporado das modernas tendências reformistas. O redistributivismo traça seu rumo de ação partindo inteiramente da sociedade que busca reformar. Um crescente poder de consumo é a promessa feita, e cumprida, da sociedade mercantil capitalista — e é essa também a promessa dos reformistas modernos. E, na verdade, essa escolha da direita ou da esquerda deve, no fim das contas, ser considerada não uma escolha verdadeiramente ética, mas sim uma aposta. Tomando, digamos, o período de 1956 a 1965, podemos apostar que o redistributivismo, com seu provável efeito negativo sobre o progresso econômico, proporcionará à maioria um padrão de vida mais elevado do que o capitalismo, com sua desigualdade? Ou botamos nosso dinheiro (a expressão me parece apropriada) em outro cavalo?
Não há, aqui, qualquer questão ética. O produto final da sociedade deve, de qualquer forma, ser o consumo pessoal: isto, sob as cores do socialismo, é individualismo extremo. Por fim, meu consumo provável, num ou noutro sistema, deve ficar a meu critério. Jamais coisa tão trivial fora transformada em ideal social. Mas é um erro acusar nossos reformadores de o terem inventado — apenas descobriram-no.
O que se pode alegar contra eles não é que sejam utópicos, mas sim que deixaram completamente de sê-lo; não é sua imaginação excessiva, mas sua completa falta de imaginação; não que queiram transformar a sociedade para além dos domínios da possibilidade, mas que renunciaram a qualquer transformação essencial; não que seus meios sejam não realistas, mas que seus fins são tolos. Na verdade, o modo de pensar que tende a predominar em círculos avançados não é outra coisa senão a ponta do rabo do utilitarismo do século dezenove.
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[1] James Edward Meade, Planning and the Price of Mechanism. Londres, 1948, p. 42.
[2] Ursula K. Hicks, Public Finance. Londres, 1947, p. 146.
[3] 1949.
[4] A.T., V 33:54.
[5] Lev. 25:28
[6] A.C. Pigou, The Economics of Welfare. Londres, 1920, p.650-51 ed. 1948.
[7]Segundo o Veda, uma pederneira e uma peça de aço, um dente (CG. Seligmann e Brenda Seligmann, The Veddas, Cambridge, 1911, p. 113-117), ou uma pedra, caracterizavam a propriedade pessoal. Em muitas sociedades primitivas encontram-se tipos similares de caracterização.
[8] “Uma democracia no possuir propriedade”
[9] Rom. 7:6.
[10] Vide o meu Essai sur la Politique de Rousseau, na introdução de minha crítica a Du Contrat Social (Genebra, 1946).
[11] James 3:18
[12] A pregação de Cristo ao rico é mais imperativa. É necessário destacar que ao mesmo tempo em que ele insistia que o jovem rico “distribuísse entre os pobres”, ele não disse aos pobres para se incumbirem de distribuir, através de impostos, a riqueza do jovem rico. O valor moral do primeiro procedimento é evidente, enquanto que o do segundo não o é.
[13] O socialista aqui aludido não é o socialista “utópico” preocupado principalmente com a fraternidade entre os homens, mas o socialista “orgânico”, que raciocina em termos da sociedade como um todo.
[14] Na verdade, há defensores da política da redistribuição que ficariam menos satisfeitos com uma elevação geral da escala de rendas, preservando sua atual desigualdade, do que com um nivelamento por baixo das desigualdades.
[15] Cf. Bernard Shaw: “Odeio os pobres”.
[16] Se, portanto, a escolha devesse ser entre o Comunismo, com todas as suas chances, e o atual (1852) estado da sociedade, com todos os seus sofrimentos e injustiças; se a instituição da propriedade privada necessariamente carrega consigo como consequência que a produção do trabalho deva ser distribuída, como agora vemos, numa razão quase invertida para o trabalho: a maior proporção àqueles que jamais sequer trabalharam, a segunda maior proporção àqueles cujo trabalho é puramente nominal, e assim por diante, em escala decrescente, minguando a remuneração à medida em que o trabalho é mais pesado e mais desagradável, até o mais fatigante e exaustivo trabalho braçal não contar com a certeza de ser capaz de ganhar sequer o necessário à sobrevivência; se as alternativas fossem isso ou o comunismo, todas as dificuldades do comunismo, grandes ou pequenas, pesariam na balança como pó.” Mill, Principies of Political Economy, II, i, par. 3.
[17] “Há algumas coisas cujos preços atuais neste País estão muito baixos até mesmo para as classes mais pobres; tais como, por exemplo, o sal e muitos tipos de sabores e condimentos, e também remédios baratos. É duvidoso se qualquer queda no preço induziria a um aumento considerável no consumo desses produtos.” Marshall, Principles, III, iv, 3. Houve o tempo em que essas coisas eram luxo. Portanto, não era irracional esperar que outras mercadorias caíssem, sucessivamente, da categoria daqueles cujo consumo é elástico para a categoria do consumo inelástico, de bens baratos o suficiente a ponto de qualquer redução no preço deixar de causar um aumento de consumo. Marshall cita o caso do açúcar, que antes pertencera a este grupo de mercadorias: “Há pouco tempo atrás, o açúcar pertencia a este grupo de mercadorias; mas seu preço na Inglaterra caiu tanto, a ponto de ficar relativamente baixo até mesmo para as classes operárias e a demanda de açúcar, portanto, não é elástica”.
[18] Aqui também opera a ideia, mencionada em nossa citação de Mill, de que as rendas mais elevadas provavelmente são imerecidas. Isso, é claro, está relacionado ao princípio, antes mencionado, da justa recompensa. Mas não temos que levá-lo em conta aqui, pois as políticas de redistribuição dele pouco se valem. A diferença de tratamento entre rendas ganhas e não ganhas com o trabalho é sutil; sequer é feita diferenciação segundo os meios de serem obtidas rendas — não mais é permitido ao criador do que o permitido ao homem cuja atividade é puramente repetitiva ou, até, cujos “ganhos” são retirados de uma situação de monopólio.
[19] É notório que “o povo” critica menos o padrão de vida elevado do que apetite bourgeoisie. Quando esse padrão elevado envolve valores espetaculares, como no caso da aristocracia, ou, hoje em dia, o caso dos astros do cinema e figuras públicas similares, “o povo” o encara com grande tolerância.
[20] Muitos dos que denunciam essa fatia desproporcional dos “décimos superiores”, estão bem-aventuradamente inconscientes de pertencer a ela.
[21] Assim, a renda líquida máxima seria:
(se rendimentos do trabalho) (se renda de investimentos)
para uma pessoa solteira £ 700,15 £ 625,15
para um casal sem filhos £ 732,05 £ 657,05
para um casal com três filhos £ 813,05 £ 738,05
[22] Vide a argumentação do Professor Nogaro, em La Valeur Logique cies Théories Economiques (Paris, 1947), cap. IX, La Théorie du Maximum de Satisfactions.
[23] Vide a colocação de Samuelson, em Foundations of Economic Analysis (Cambridge, 5 de março de 1948, cap. VIII, Economy of Welfare”.
[24] Pigou, Economics of Welfare, 4. ed., Londres, 1948, p. 89
[25] A. P. Lerner, The Economics of Control, 3.ed., 1947, cap. II, p. 29.
[26] Lionel Robbins, An Essay on the Nature and Significance of Economic Science,
2. ed. (Londres, 1935), cap. VI.
[27] Lerner, The Economics of Control, pp. 29-32.
[28] Pigou, A study in Public Finance, 3.ed. (Londres, 1947), p. 90.
[29] A concordância, notável, das classes britânicas de renda mais elevada com uma queda acentuada da sua situação econômica foi obtida graças ao seu patriotismo, durante uma guerra que ameaçava a existência nacional. A “revolução silenciosa” realmente foi empreendida por um governo nacional que praticou salários de guerra. É discutível se uma queda de nível tão rápida, com o declarado propósito de redistribuição social, teria sido aceita de forma tão condescendente em tempos de paz. Poderia, então, gerar um ressentimento das classes mais altas, o que tende a enfraquecer uma comunidade.
[30] Conforme formula o Professor Devons: “Poderia levar um tempo muito longo antes que as instalações que são utilizadas para fornecer mercadorias caras pudesse de fato ser redirecionadas de forma lucrativa a usos alternativos.” Eu havia pensado, primeiramente, que a perda de saída das mercadorias caras, resultante da redistribuição radical, implicava mais do que um fenômeno de falta de inteligência; que os serviços cujo valor para os ricos era de milhões de libras, não poderiam ter, quando redirecionados para os pobres, valor algo sequer parecido com a mesma importância. Essa crença intuitiva baseava-se grandemente no fato de que os ricos pagam uns aos outros preços extravagantes por seus serviços — como, por exemplo, entre um médico famoso e um advogado famoso —,gerando, assim, um circuito interno de valores inflados que, com a supressão das rendas mais elevadas, tem que deixar de existir. A própria existência dessas rendas faz com que ambas as partes cobrem mais pelos seus serviços, o que ambos adicionam a essas rendas e que absorve parte de suas despesas. Parece-me que isso tudo sofreria uma deflação mediante a redistribuição radical e que, portanto, o poder de compra transferido sofreria alguma retração no processo.
Mas o Dr. Ronald F. Henderson e o Professor Devons gentilmente encarregaram-se de rejeitar minha visão em bases teóricas perfeitas, e curvo-me ao seu julgamento.
[31] Ler é um claro exemplo da discriminação a que nos referimos. Digamos que a família A adquire, todos os meses, doze livros dos que custam 1 shilling: O custo total é 12 shillings. A família B tem gostos diferentes, que pedem livros menos populares, custanto de 7 shillings e 6 dimes a 21 shillings. Se a família B quiser ter a mesma quantidade de leitura, poderá ter que gastar algo em torno de £ 6: dez vezes o gasto da família A. Isso significa que, sendo as rendas iguais, na verdade a família B estará em desvantagem também na satisfação de suas outras necessidades (sem ter uma maior quantidade de material de leitura).
[32] Em anos recentes, a opinião pública tem sido cada vez mais conscientizada do papel desempenhado pela acumulação de capital no progresso econômico. Ainda não se atentou para a relação entre a distribuição do poder aquisitivo e o progresso. Mostra a experiência que o progresso é desestimulado onde a desigualdade é excessiva, hereditária, e onde a escala de rendas não é contínua. Mas também mostra que é desestimulado onde a igualdade é imposta. Deve haver uma distribuição de poder aquisitivo ótima para os propósitos do progresso. Talvez valha a pena explorar o assunto.
[33] No caso da elevação das rendas mais baixas, o uso de meios financeiros adicionais pode ser prognosticado com alto grau de certeza. A alteração para as famílias individuais continuaria bem dentro da faixa de alterações que ocorrem nas atuais condições sociais, cujos resultados são bem conhecidos. A redução das rendas mais elevadas, por outro lado, seria uma mudança muito radical para as famílias individuais, da qual temos muito poucos exemplos em nossa sociedade a partir dos quais se possa generalizar. Pode-se, entretanto, fazer conjecturas racionais.
[34] P.H. Wicksteed, Common Sense in Political Economy, Londres, 1933, pp. 189-91.
[35] É admissível rebater que os ricos James aplicam grandes somas de sua renda em usos menos louváveis, e alegar que o poder público, tomando a renda dos James, fará mais pela cultura do que os ricos têm feito. Temos, aqui, uma importante questão (compare o que os príncipes fizeram pelas artes, da Renascença ao século XVIII, com os serviços prestados pelos ricos burgueses no século XVIII); mas observe-se que o que está em questão agora é a redistribuição de poder dos indivíduos para o estado, e não a redistribuição dos ricos para os pobres. Se o estado está ou não melhor qualificado do que os ricos para apoiar as artes (e isso depende muito da natureza do governo e da natureza da classe abastada), se a garantia do estado para tomar as rendas dos ricos é seu mandato para maximizar as satisfações dos consumidores nacionais, essa garantia não lhe confere o direito de aplicar seu confisco a outro objeto, desviando-se, dessa forma, da posição de satisfação global máxima.