III A teoria do juro de Rodbertus
- Apresentação detalhada da teoria de Rodbertus [1]
- Rodbertus considera sua teoria como baseada em Smith e Ricardo
O ponto de partida da teoria do juro de Rodbertus é o princípio “introduzido por Smith na ciência econômica — e mais profundamente corroborado pela escola de Ricardo” — de que “todos os bens, economicamente considerados, são apenas o produto do trabalho, e só custam trabalho”. Rodbertus esclarece esse princípio — que costuma ser expresso sob a forma “só o trabalho é produtivo” — da maneira seguinte: em primeiro lugar, só são bens econômicos aqueles bens que custaram trabalho, enquanto todos os outros bens, por mais úteis e necessários que sejam aos homens, são bens naturais,que não interessam à economia; em segundo lugar, todos os bens econômicos são apenas produto de trabalho e, no conceito econômico, não são concebidos como produto da natureza ou de qualquer outra força, mas somente como produto do trabalho: qualquer outra concepção deles cairia no campo das ciências naturais, não no do econômico; e, em terceiro lugar,do ponto de vista econômico, todos os bens são produto só daquele trabalho que executou as operações materiais necessárias à sua produção. Mas tal trabalho inclui não apenas aquele que produz diretamente o bem, como, igualmente, aquele que produz os instrumentos necessários à produção do bem. O cereal, por exemplo, é produto não apenas do trabalho de quem maneja o arado, mas também daquele de quem o construiu [2].
- Como Rodbertus formula suas reivindicações a favor dos trabalhadores
Os trabalhadores manuais que criam todos os bens têm, ao menos “segundo o Direito em si”, um título natural e justo à posse de todo o produto [3]. Há, porém, duas importantes limitações, a saber: em primeiro lugar, o sistema de divisão de trabalho, segundo o qual muitos colaboram para a criação de um produto, torna tecnicamente impossível que cada trabalhador receba seu produto in natura. Por isso o direito ao produto todo tem de ser substituído pelo direito ao valor inteiro do produto [4]. Em segundo, devem participar do produto todos os que prestam serviços úteis à sociedade sem colaborar diretamente na criação material do produto, como o padre, o médico, o juiz, o cientista, e, na opinião de Rodbertus, também os empresários que “sabem através de seu capital ocupar produtivamente uma multidão de trabalhadores.” [5]. Mas esse trabalho indiretamente ligado à economia não terá direito a pagamento já na “distribuição dos originais dos bens”, da qual só devem participar os produtores, mas será remunerado numa “distribuição secundária de bens”. O que, segundo o Direito em si, podem reivindicar os que trabalham diretamente na criação de bens é receber na distribuição original o valor integral do produto de seu trabalho — sem prejuízo do direito secundário de outros membros úteis da sociedade.
Rodbertus diz que essa exigência natural não é atendida na estrutura social atual. Isto porque, na distribuição original, os trabalhadores recebem só parte do valor do seu produto em forma de salário, enquanto donos de terras e de capital recebem todo o resto em forma de renda. Para Rodbertus, renda é “todo ganho obtido sem trabalho próprio, unicamente devido a alguma propriedade.” [6]. Ele cita dois tipos de renda: renda de terras e ganho de capital
- Afirmação de Rodbertus sobre o problema geral do juro
“Que motivos — indaga Rodbertus — fazem com que, sendo todo ganho apenas um produto de trabalho, haja pessoas na sociedade que obtêm ganhos — ganhos primitivos — sem terem movido um dedo para produzirem esses ganhos?” Com essas palavras Rodbertus coloca o problema teórico geral da renda [7]. E para ele encontra a seguinte resposta:
A renda deve sua existência à ligação entre dois fatos: um econômico; o outro, positivamente jurídico. O motivo econômico da renda reside no fato de que, desde a introdução da divisão de trabalho, este produz mais do que os trabalhadores necessitam para seu sustento e continuidade do trabalho, de modo que também outras pessoas podem viver disso. O motivo jurídico reside na existência da propriedade privada de terras e de capital. Uma vez que, em função dessa propriedade privada, os trabalhadores ficam excluídos do controle das condições indispensáveis para a produção, não podem produzir senão segundo um acordo prévio, e a serviço dos proprietários. Estes, por sua vez, tornam acessíveis aos trabalhadores as condições de produção, impondo-lhes, em troca, a obrigação de lhes entregarem parte do produto de seu trabalho como renda. Na verdade, essa entrega acontece mesmo de uma forma ainda mais onerosa para os trabalhadores, que entregam aos proprietários todo o produto de seu trabalho, recebendo de volta, como salário, apenas parte do seu valor, ou seja, o mínimo indispensável para seu sustento e para a continuidade do trabalho, O poder que força os trabalhadores a concordarem com esse contrato é a fome. Vejamos o que diz o próprio Rodbertus:
“Uma vez que não pode existir ganho que não seja criado pelo trabalho, a renda se fundamenta em dois pré-requisitos indispensáveis [p. 253], quais sejam:
1) Não pode haver renda, a menos que o trabalho produza mais do que o necessário para que os trabalhadores prossigam com o trabalho — é, pois, impossível que, sem esse superávit, alguém venha a conseguir um ganho regular sem trabalhar.
2) Não pode haver renda se não houver condições de privar os trabalhadores desse superávit, total ou parcialmente, dirigindo-o para outros que não trabalham — pois, por natureza, os trabalhadores são sempre proprietários diretos de seu produto. O fato de o trabalho criar esse superávit resulta de fatores econômicos, em particular daqueles que aumentam a produtividade do trabalho. O fato de esse superávit ser retirado aos trabalhadores, no todo ou parcialmente, decorre de fatores jurídicos.
Assim, como a lei sempre se ligou ao poder, também neste caso essa privação é imposta por uma coerção constante.
Originalmente, foi a escravidão — iniciada com a agricultura e com a propriedade de terra — que exerceu essa coerção. Os trabalhadores que criavam esse superávit com seu trabalho eram escravos. O senhor a quem pertenciam os trabalhadores e o próprio produto só concedia aos escravos o mínimo necessário para continuarem trabalhando, guardando para si o restante, ou seja, o superávit. Quando toda a terra se tornou propriedade privada, todo o capital passou, simultaneamente, aos particulares; a propriedade de terras e de capital passou, então, a exercer coerção semelhante também sobre trabalhadores libertos ou livres. Isso acarretou um duplo efeito. O primeiro é semelhante ao produzido pela escravidão: o produto não pertence aos trabalhadores, mas aos donos do solo e do capital. O segundo efeito é que os trabalhadores, que nada possuem, ficam satisfeitos por receberem dos donos do solo e do capital uma parte do produto de seu próprio trabalho para se sustentarem, isto é, para poderem continuar trabalhando. Assim, em lugar do domínio do dono de escravos, surgiu o contrato entre trabalhadores e empregadores, um contrato que é livre somente na forma, não na substância: quase sempre a fome substitui a chibata, e o que antes era chamado ração dos escravos agora se chama salário.” [8].
Segundo essa ideia, toda a renda é fruto da exploração [9], ou, como diz Rodbertus às vezes ainda mais causticamente [10],um roubo do produto do trabalho alheio. É esse o caráter de todos os tipos de renda excedente seja sobre terras seja sobre capital, ou mesmo aquelas derivadas dessas duas: o aluguel e o juro de empréstimo. Esses últimos são justificados para os patrões que os pagam, mas são injustificados em relação aos trabalhadores, a cuja custa são em última análise obtidos [11].
- Rodbertus e “quanto maior a produtividade, maior a exploração”
O valor da renda cresce com a produtividade do trabalho. Isto porque, no sistema de livre concorrência, de modo geral, o trabalhador só recebe de forma permanente a quantia necessária para sobreviver, ou seja, uma determinada parcela concreta do produto. Quanto maior a produtividade do trabalho, tanto menor a porcentagem do valor total do produto [p. 254] representada por esta parcela concreta do produto que ele recebe, e tanto maior a porcentagem do produto e do valor que sobra para o proprietário, ou seja, seu lucro [12].
Segundo o que se afirmou até aqui, no fundo, toda renda é uma massa unificada de origem completamente homogênea; no entanto, na vida econômica prática ela se divide sabidamente em dois tipos básicos: a renda sobre terra e o ganho de capital. Rodbertus esclarece de maneira bem singular os motivos e as leis dessa divisão. Deve-se mencionar, de início, que ele parte da premissa teórica de que o valor de troca de todos os produtos é igual ao seu custo de trabalho [13]. Ele assume, em outras palavras, que todos os produtos são intercambiáveis uns pelos outros, na base de seus custos relativos em termos de trabalho. O que há de singular nessa afirmação é que Rodbertus sabe que ela não está de acordo com os fatos. Mas ele acredita que a teoria se desvia da realidade apenas no aspecto em que “o verdadeiro valor de troca ora é maior, ora é menor”; assim, haveria sempre certa tendência gravitacional para aquele ponto que seria “o valor de troca natural e, portanto, justo.” [14]. Rodbertus rejeita firmemente a ideia de que haveria um rumo normal de eventos que faria com que os bens fossem trocados em outra base que não o trabalho ao qual se ligam. Ele exclui a possibilidade de que desvios dessa situação possam ser o resultado, não de oscilação passageira de mercado, e sim da aplicação de uma lei definida que leve o valor noutra direção [15]. Chamo agora a atenção para esse ponto que será muito importante mais adiante.
- Rodbertus divide a produção em bruta e manufaturada
Segundo Rodbertus, a produção total de bens se divide em dois tipos, quais sejam, a produção bruta, que, com ajuda da terra, gera produtos brutos e a manufatura, que processa os produtos brutos. Antes de se introduzir a divisão do trabalho, a obtenção e o processamento de produtos brutos se efetuavam em sequência direta por um mesmo empresário que também auferia, indiferenciadamente, toda a renda resultante. Nesse estágio de desenvolvimento econômico ainda não se realizara a separação entre a renda sobre terras e ganho de capital. Desde a introdução da divisão do trabalho, porém, os empresários da produção bruta e os empresários da ulterior manufatura são pessoas distintas. A questão preliminar é como determinar a proporção em que se deve dividir a renda resultante do processo produtivo total.
A resposta repousa na natureza da renda. A renda é uma dedução do valor do produto, uma porcentagem dele. A massa da renda a ser obtida de um dado processo produtivo, portanto, dependerá do valor de troca [p. 255] do produto. Mas como o valor do produto depende da quantidade de trabalho empregado, produção bruta e manufatura se dividirão, na renda total, segundo o respectivo custo de trabalho gasto em cada um desses dois ramos de produção. Vejamos um exemplo concreto. *
* Esse exemplo não é dado por Rodbertus: é acrescentado por mim apenas para proteger de contusões esse árduo raciocínio.
- Não há relação entre a quantidade de capital empregado e o juro recebido sobre o capital
Se forem necessários 1.000 dias de trabalho para se conseguir um produto bruto e 2.000 dias para seu ulterior processamento; se, por outro lado, forem deduzidos 40% do valor do produto em favor do proprietário, os produtores do produto bruto receberão, então, em forma de renda, o produto de 400 dias de trabalho, enquanto os industriais da manufatura receberão o equivalente a 800 dias. O montante de capital empregado em cada ramo da produção é irrevelante, para tal divisão: a renda, embora seja calculada sobre o capital, não se determina segundo ele, e sim segundo as quantidades de trabalho aplicadas.
É exatamente o fato de o montante do capital empregado não ter influência efetiva sobre a massa da renda obtida num ramo da produção que dá origem à renda sobre terras. Isso ocorre da seguinte maneira: a renda, embora produto do trabalho, é considerada rendimento da riqueza, porque depende da posse de riquezas. Como, em relação à manufatura, só se empreguem bens de capital, e não terras, considera-se como rendimento de capital — ou ganho de capital — toda renda obtida especificamente da manufatura. Através dos cálculos costumeiros da relação entre o montante do rendimento e o montante do capital que originou esse rendimento, chega-se àquela determinada porcentagem de ganho, que pode ser obtida com o capital empregado na manufatura. Essa porcentagem de ganho, que, em função de conhecidas tendências da concorrência, será mais ou menos uniforme em todos os ramos, também servirá de base para o cálculo do ganho sobre o capital investido na produção bruta. Mesmo que não houvesse outra razão, isso já seria verdadeiro simplesmente porque na manufatura se emprega parcela bem maior do “capital nacional” do que na agricultura e porque, compreensivelmente, o rendimento da parcela de capital que é predominante vai determinar a taxa de lucro aceitável para a parcela menor. Por isso, os produtores do produto bruto calcularão seu ganho de capital sobre o montante do capital empregado e sobre o valor da porcentagem habitual de ganho de capital. O restante do ganho, ao contrário, é considerado como rendimento da terra e do solo constituindo-se na renda.
Segundo Rodbertus, essa renda sobre a terra deve necessariamente ser deixada de lado na produção bruta, por causa da premissa de que os produtos são trocados com base no trabalho incorporado a cada um deles. Rodbertus fundamenta esse seu modo de pensar mostrando que a quantidade de renda que se pode obter na manufatura não depende [p. 256] — como se disse acima — da quantidade de capital gasto, mas da quantidade de trabalho empregado no processo de manufatura. Esse trabalho apresenta duas facetas: de um lado, o trabalho direto de manufatura; de outro, o trabalho indireto, “que deve ser levado em conta em função do desgaste dos instrumentos e máquinas”. Só alguns dos vários elementos que compõem o dispêndio de capital têm influência sobre o montante da renda, a saber, os salários e os gastos com máquinas e instrumentos. O capital despendido com matéria-prima, ao contrário, não exerce tal influência porque essa despesa corresponde a um trabalho inexistente no estágio de manufatura, muito embora essa parte do gasto aumente o capital sobre o qual se calcula a renda que será obtida. A existência de uma parcela de capital que, por um lado, aumenta o capital de manufatura sobre o qual se calcula como ganho a renda deduzida, mas que, por outro lado não aumenta propriamente esse ganho, obviamente deve reduzir a relação do ganho sobre o capital, ou seja, a porcentagem do ganho de capital na manufatura.
- A distinção que Rodbertus faz entre renda sobre terra e ganho de capital
Também o ganho de capital da produção bruta é calculado com base nessa taxa inferior. Mas, neste caso, as condições são ainda mais favoráveis. Como a agricultura inicia sua produção ab ovo — a partir do nada -, sem processar nenhum material originado de produção anterior, falta ao seu capital a parte de “valor material”. A única analogia possível seria com o solo, que, segundo todas as teorias, se pressupõe gratuito. Consequentemente, na divisão do ganho não participa nenhuma parcela de capital que não tenha influência sobre sua quantidade. Mais ainda: a relação entre a renda desejada e o capital empregado tem de ser mais favorável na agricultura do que na manufatura. No entanto, como o ganho de capital, também na agricultura, é calculado com base nas mesmas taxas inferiores que prevalecem na manufatura, é preciso que haja sempre um excedente em renda para o proprietário da terra, que o receberá como renda sobre a terra. Essa é, segundo Rodbertus, a origem da renda sobre a terra e de sua diferença em relação ao ganho de capital [16].
- Surpreendentemente, Rodbertus não pede a abolição da propriedade privada nem do ganho imerecido
Para completar, desejo observar, brevemente, que apesar do seu agudo julgamento teórico sobre a natureza exploradora do ganho de capital, Rodbertus não deseja abolir a propriedade de capital nem o ganho de capital. Ao contrário, atribui à propriedade de terras e de capital “um poder educativo” indispensável. “Uma espécie de poder doméstico que só poderia ser substituído por um sistema nacional de educação totalmente modificado, que ainda não temos condições de instaurar.” [17]. A propriedade de terras e de capital parece-lhe “uma espécie de órgão público que exerce funções na economia nacional [p. 257], funções estas que consistem no direcionamento do trabalho econômico e nos meios econômicos da nação segundo necessidades nacionais”. A renda pode ser encarada — a partir desse ponto de vista favorável — como uma forma de salário que aqueles “funcionários” recebem pelo exercício de suas funções [18]. Já comentei anteriormente o fato de que Rodbertus, ao fazer essa observação bastante casual — apenas uma nota de rodapé-, menciona pela primeira vez um pensamento que alguns dos escritores que o sucederam, especialmente Schaffle, desenvolveram numa variante singular da teoria do trabalho.
- Deficiências do sistema de Rodbertus
Tratarei agora da crítica da doutrina de Rodbertus. Direi sem rodeios que considero totalmente errônea a teoria de juro de capital nela contida. Estou convencido de que ela comete uma série de pecados teóricos graves, os quais, a seguir, tentarei apresentar da maneira mais clara e imparcial possível.
- Böhm-Bawerk: é decididamente errado afirmar que todos os bens, do ponto de vista econômico, são apenas produto de trabalho
O exame crítico esbarra logo na primeira pedra que Rodbertus coloca no edifício da sua doutrina, quando afirma que, do ponto de vista econômico, todos os bens são apenas produto do trabalho.
Primeiramente, o que significa a expressão “do ponto de vista econômico”? Rodbertus explica isso numa antítese, contrapondo o ponto de vista da economia ao das ciências naturais. Admite expressamente que, segundo as ciências naturais, os bens são produtos não apenas de trabalho mas também de forças da natureza. Assim mesmo, caso se considere que do ponto de vista econômico são produtos apenas do trabalho, isso pode significar apenas uma coisa: que a colaboração das forças naturais na produção é totalmente irrevelante para o estudo da economia humana. Rodbertus expressa esse conceito drasticamente, dizendo: “Todos os demais bens (além dos que custaram trabalho), por mais necessários e úteis que sejam aos homens, são bens naturais, que em nada interessam a uma economia”. “O que a natureza realizou previamente em matéria de bens econômicos merece a gratidão do homem, uma vez que ela lhe poupou trabalho, mas, para a economia, estes bens têm valor apenas na medida em que o trabalho completou a obra da natureza” [19].
Isso é simplesmente falso. Também certos bens puramente naturais, conquanto muito raros em comparação com a necessidade que há deles, interessam à economia. Acaso uma pepita de ouro encontrada no solo de um proprietário de terras, ou uma mina de ouro por ele eventualmente descoberta em suas terras, não vão interessar à economia? O dono do ouro e da prata dados de presente pela natureza acaso os deixará na terra sem lhes dar importância, ou os dará de presente, ou os esbanjará, apenas porque lhe foram dados pela natureza sem qualquer esforço [p. 258] de sua parte? Ou, ao contrário, ele os vai guardar cuidadosamente contra a cobiça alheia, aplicando-os prudentemente no mercado, explorando-os e, em suma, administrando-os como se este ouro e esta prata tivessem sido obtidos com o trabalho de suas próprias mãos? E será verdade que o interesse da economia por aqueles bens que custaram trabalho só se dá na mesma medida em que o trabalho completou a obra da natureza? Se fosse assim, as pessoas atribuiriam a um barril de magnífico vinho do Reno exatamente o mesmo valor que atribuem a um barril de vinho da colônia bem tratado, mas, por natureza, inferior ao primeiro: ambos custaram mais ou menos o mesmo trabalho humano! O fato, porém, de que o vinho do Reno em geral custa dez vezes mais que o da colônia é uma prova eloquente de que a vida refuta o teorema de Rodbertus.
Objeções desse tipo são tão evidentes que poderíamos esperar que Rodbertus protegesse contra elas, com muito cuidado, sua afirmação básica. Mas, se esperássemos isto, ficaríamos desiludidos: Rodbertus elaborou todo um aparato de persuasão em favor de sua tese; no entanto, tudo acaba num apelo não fundamentado a certas autoridades, numa dialética pouco convincente, que apenas rodeia, sem atingir, o ponto crucial.
- Apesar da fama, Smith e Ricardo não são as autoridades adequadas
Nessa primeira categoria situo a repetida menção a Smith e Ricardo como defensores do princípio “sobre o qual não se discute mais na economia progressista”, aceito pelos economistas ingleses e defendido na França, e, “o que é mais importante, gravado para sempre na consciência do povo, defendendo-a dos sofismas de uma doutrina de segundas intenções” [20]. Nós poderemos fazer um pouco adiante a interessante constatação de que Smith e Ricardo afirmam apenas axiomaticamente a tese da qual falamos, sem a fundamentarem. Ao mesmo tempo, conforme Knies provou tão brilhantemente [21], nenhum dos dois sequer aderiu coerentemente a essa tese. Além disso, na discussão científica, uma tese não pode ser aprovada apenas com a invocação de nomes de autoridades: provam-na os fundamentos expostos por estas autoridades. No caso em questão, no entanto, não há nem fundamentos nem afirmações coerentes que deem respaldo a esses nomes. Assim, o apelo às autoridades não fortalece a posição de Rodbertus, a qual se apoia apenas nos alicerces que ele próprio consegue para sua tese.
- Erros de Rodbertus quanto aos “custos”
Em função disso, deve-se examinar a exposição bastante longa feita no primeiro dos cinco teoremas “Zur Erkenntnis unserer staatswirtschaftlichen Zustände”, * e o silogismo mais consistente no texto “Zur Erklärung und Abhilfe der heutigen Kreditnot des Grundbesitzes” **.
No primeiro. Rodbertus comenta acertadamente o fato de termos de administrar bens que custam trabalho e o porquê de termos de fazê-lo. Com muita justeza, coloca em primeiro plano a disparidade quantitativa entre, de um lado, a “infinitude e insaciabilidade de nossa ambição” [p. 259] ou de nossas necessidades, e de outro, a limitação de nosso tempo e força. Só secundariamente, e de maneira incidental, ele comenta que o trabalho é “cansativo”, um “sacrifício da liberdade”, e coisas desse gênero [22]. Da mesma forma explica, com acerto, que um gasto de trabalho deve ser entendido como “custo” e explica também a causa disso. “E preciso — diz ele — [23] apenas esclarecer o conceito de ‘custo’. Este conceito não significa apenas que para produzir uma coisa necessitamos de outra. O essencial é que, por um lado, foi feito um dispêndio que não pode voltar a ser feito para outra coisa, e que, por outro, o dispêndio efetuado atinge a pessoa que o efetuou, com sua irrecuperabilidade. Esta última afirmação explica por que só o ser humano pode sentir o custo de alguma coisa. ”
Totalmente correto! É igualmente correto que, como prossegue Rodbertus, os dois critérios de custo se aplicam ao trabalho. Isto porque o dispêndio de trabalho feito para a produção de um bem qualquer “não pode mais ser feito para nenhum outro bem” — primeiro critério. E “o dispêndio de trabalho efetuado só atinge ao homem, uma vez que requer tempo e força, ambos muito limitados se se considera a lista interminável de bens que uma pessoa pode ambicionar” — segundo critério.
* “Para reconhecimento de nossa situação econômica” (N. da T.)
** “Para esclarecimento e correção da atual falta de crédito na propriedade de terras” (N. da T.)
- A abordagem do custo do trabalho feita por Rodbertus deve ser estendida ao custo de outros elementos de produção
Rodbertus precisa, então, provar que um “custo”, portanto um motivo para administrar, se aplica só ao trabalho e não a outros elementos. Logo de início, ele tem de aceitar “que para a produção de um bem é preciso algo mais (além do trabalho)”, ou seja, além das ideias que o espírito fornece, é preciso um material, fornecido pela natureza, bem como forças naturais que, “a serviço do trabalho, ajudem a transformar ou a adaptar o material”. Mas à participação da natureza faltam os dois critérios de custo. Isso porque a força natural ativa é “infinita e indestrutível a força que nutre uma espiga de cereal das substâncias que lhe são necessárias está sempre à disposição dessas substâncias. O material que a natureza fornece para a produção de um bem não se pode aplicar ao mesmo tempo a um segundo bem. Mas se quiséssemos falar de custos, teríamos de personificar a natureza, e falar em seus custos. A matéria não é um dispêndio que o homem efetue em troca do bem; custo do bem é só aquilo que é custo para o homem” [24].
Dos dois elementos dessa conclusão, o primeiro — que pretende negar a exatidão do primeiro critério — é obviamente errôneo. É verdade que as forças naturais são eternas e indestrutíveis; mas, quando se trata do dispêndio para a produção, o que interessa não é se essas forças continuam a existir, e sim se elas subsistem e continuam a agir de modo a se tornarem adequadas para novo efeito produtivo. E nesse sentido — o único que interessa ao nosso problema — não se pode falar de permanência indestrutível [p. 260]. Quando queimamos nosso carvão, as forças químicas da substância do carvão — o qual, por mistura com o oxigênio ao ar, produziu o calor desejado — subsistem. Mas a eficácia de suas propriedades não permanece, pois os átomos de carvão se misturaram aos átomos do oxigênio, e não se pode mais falar na repetição da eficácia dessas forças. O dispêndio de forças químicas que efetuamos quando queimamos carvão para produzir um bem não pode mais ser realizado em favor de outro bem [25]. Exatamente a mesma coisa vale para as matérias da produção. Rodbertus admite isso em relação a elas, embora de maneira insuficiente, ao dizer que “enquanto isso” elas não podem ser empregadas para outro bem. Na verdade, elas deixam de ser aplicáveis a uma segunda produção, não apenas “enquanto” estão sendo empregadas no primeiro produto: também depois deixam de estar regularmente disponíveis para produção de um segundo bem. A madeira que uso para fazer vigas não serve mais para a produção de outro bem. E isso é verdade não apenas para o período em que esta madeira estiver na casa servindo de viga e apodrecendo aos poucos, mas também para depois de ela ter apodrecido: o estado em que estarão os elementos químicos que hão de persistir vai torná-la inadequada para o emprego humano. Um pouco mais tarde, na discussão de uma objeção proposta por ele mesmo, Rodbertus abandona o seu primeiro critério, apoiando-se unicamente no segundo critério, qual seja o fato de faltar a relação do custo com a pessoa.
Também nesse ponto Rodbertus está sem razão. Mesmo o dispêndio das dádivas mais raras da natureza é um dispêndio, é uma irrecuperabilidade que atinge a pessoa, daquele mesmo modo exposto por Rodbertus em sua definição de custo e por aquele mesmo motivo alegado por ele para que o trabalho tenha valor. Mas, o que significa isso se, para Rodbertus, não é o sofrimento ligado ao trabalho, mas a limitação quantitativa do trabalho em relação à infinitude de nossas necessidades, o que, na verdade, nos força a administrar o trabalho e seus produtos? Significa, na verdade, que qualquer desperdício de trabalho — trabalho este que, de qualquer modo, sempre será insuficiente para a satisfação plena de nossas necessidades — abrirá uma lacuna ainda maior em relação a essa mesma necessidade. Essa alegação vale também para o caso de o trabalho não se ligar a qualquer sensação pessoal de sofrimento, aborrecimento, compulsão ou algo semelhante, mas sim, proporcionar ao trabalhador um prazer puro e imperturbado: mesmo assim, o trabalho seria insuficiente, em termos quantitativos, para produzir todos os bens necessários. Desse modo, a pessoa é atingida ou por um gasto de trabalho em vão, ou pelo próprio gasto de trabalho, simplesmente porque desperdiça a possibilidade de ter uma outra necessidade atendida [26]. Exatamente a mesma coisa acontece quando se desperdiça — ou mesmo quando apenas se emprega — uma dádiva rara da natureza. Se desperdiço, propositalmente [p. 261] ou por mineração errônea, algum mineral valioso ou depósito de carvão, estou desperdiçando uma quantidade de satisfações de desejos que teria podido obter com um comportamento mais econômico e que estou esbanjando com meu comportamento não econômico [27].
- Primeiro grande erro de Rodbertus: bens são apenas produto de trabalho manual
Em relação a essa objeção, que praticamente não se pode ignorar, o próprio Rodbertus se posiciona; diz que seria possível retrucar que o proprietário de uma floresta arca com os custos, entre outros, do trabalho gasto para cortar madeira, com os custos deste material, que assim foi obtido e “que, sendo empregado para um bem, não pode mais ser empregado para outro, constituindo-se, portanto, em dispêndio que afeta a ele, proprietário” [28]. Mas Rodbertus foge dessa objeção através de um sofisma. Ele diz que ela repousa numa “ficção”, porque estabelece uma relação do direito legal com uma base econômica, que só deveria servir para relações naturais “legítimas”. Só do ponto de vista do direito legal se poderia presumir que nas coisas da natureza, antes de se aplicar nelas algum trabalho, já exista um “proprietário”, e que essa situação mudaria eliminando-se a propriedade de terra.
Mas, em questões decisivas nada mudaria. A madeira do tronco é uma dádiva natural relativamente rara; no entanto, a própria natureza, independente do direito legal, atesta que qualquer desperdício desse raro dom implica bem-estar ou sofrimento, envolve pessoas. Ao direito legal só concerne o tipo de pessoa que será afetada. Num sistema de propriedade privada de terras, o interessado — portanto, o afetado — será o proprietário. Num sistema de propriedade comum, toda a comunidade será afetada. E, não havendo nenhum direito estabelecido, seria afetado aquele que detém o poder: ou o que chegou primeiro ou o mais forte. Nunca se poderia evitar que o gasto ou dispêndio de dons raros da natureza afetasse uma pessoa, ou comunidade, quanto à satisfação de suas necessidades. A não ser que imaginemos uma floresta que não tenha moradores humanos, ou cujos moradores, por alguma razão não econômica, como religião, não tocassem em madeira. Nesse caso, a madeira não seria objeto da economia. Mas não porque dons puros da natureza não possam representar sacrifício para uma pessoa, e sim porque, nesse caso, essas dádivas teriam sido excluídas, pelas circunstâncias, da vida humana, na qual poderiam muito bem estar envolvidas.
Num texto posterior Rodbertus dedica novamente à sua tese uma breve argumentação, que aparentemente segue este mesmo raciocínio, mas, na verdade, assume, em parte, outra direção. Ele diz que é produto tudo o que nos chega como bem através do trabalho e que, por isso, esse termo deve ser atribuído economicamente só ao trabalho humano, uma vez que este é a única força original e também o único dispêndio original que a economia humana administra [29]. Podemos duvidar seriamente dessa [p. 262] argumentação. A premissa em que ela se fundamenta será correta? Knies questiona firmemente a validade desta premissa, valendo-se, a meu ver, de bons argumentos [30]. Além disso, ainda que a premissa fosse correta, a conclusão não o seria necessariamente: mesmo que o trabalho fosse a única força original administrada pela economia humana, não vejo por que esta economia teria que se limitar a administrar as “forças originais”. Por que não administraria, por exemplo, certos frutos daquela força original, ou mesmo o resultado de outras forças originais? Por que, por exemplo, não administraria o meteoro ou o ouro de que falamos? Ou as pedras preciosas encontradas por acaso, ou os depósitos naturais de carvão? Rodbertus tem uma concepção muito estreita da essência e dos motivos da economia humana. Diz, acertadamente, que lidamos economicamente com a força original trabalho, “já que, por ser limitado em tempo e medida, uma vez usado, o trabalho se gasta, transformando-se, por fim, em privação de nossa liberdade”. Mas estas são apenas razões intermediárias: não são a razão última de nosso comportamento econômico. No fundo, aguentamos o trabalho limitado e cansativo porque, se tivéssemos um comportamento não econômico em relação a ele, nosso bem-estar sofreria. E é exatamente este mesmo motivo que nos leva a administrar todas as outras coisas úteis que, por existirem em quantidade limitada, não podemos perder ou dispensar sem sacrifício de nosso bem-estar, seja uma força original ou não, tenha ou não custado a força original “trabalho”.
Por fim, a posição de Rodbertus torna-se totalmente insustentável quando ele acrescenta que devemos encarar os bens apenas como produtos de trabalho manual Essa afirmação, que exclui da atividade econômica produtiva, entre outras, até mesmo a orientação intelectual direta do trabalho de produção, leva a uma série de contradições internas e conclusões erradas, que comprovam, sem dúvida alguma, a falsidade dessa tese. Essas contradições foram atacadas por Knies de maneira tão irrefutável que seria uma repetição supérflua de minha parte voltar a esse assunto [31].
Assim, ao armar seu primeiro princípio fundamental, Rodbertus já contradiz a verdade. Para ser inteiramente justo, devo fazer aqui uma concessão, que Knies não pôde fazer do ponto de vista da teoria do uso que estava defendendo: a objeção àquele princípio fundamental não atinge toda a teoria do juro de Rodbertus. Aquele seu princípio é falso [p. 263] não porque ele interprete mal a contribuição do capital, mas, sim, porque interpreta mal a colaboração da natureza na criação de bens. Creio, como Rodbertus, que, considerando a sequência das fases de produção como um todo, o capital não terá lugar independente nos custos da produção. Afinal, o capital não é exclusivamente “trabalho prévio”, como diz Rodbertus, mas é, em parte, “trabalho prévio” e, em parte, valiosa força natural armazenada. Onde esta força natural se retrai — por exemplo, numa produção que, em todas as fases, emprega apenas ou dádivas naturais e trabalhos espontâneos, ou produtos surgidos unicamente disso — então efetivamente se pode dizer, com Rodbertus, que do ponto de vista econômico tais bens são apenas produto do trabalho. Por conseguinte, uma vez que o erro fundamental de Rodbertus se relaciona não com o papel do capital e sim com o da natureza, também as conclusões que ele tira a respeito do ganho de capital têm de ser erradas. Só poderemos considerar sua doutrina falsa se, no prosseguimento de sua apresentação, aparecerem erros graves. E eles aparecerão.
Para não extrair dividendos indevidos do primeiro engano de Rodbertus, organizarei minhas pressuposições no resto da presente análise de modo a eliminar totalmente as consequências desse engano. Vou supor que todos os bens são criados unicamente por uma colaboração entre o trabalho e as forças livres da natureza, com a ajuda exclusiva daqueles elementos de capital que surgiram, eles próprios, apenas da colaboração entre o trabalho e as forças naturais livres, sem a intervenção de dons naturais com valor de troca. Considerando essa premissa limitadora, eu também posso aceitar aquele princípio fundamental de Rodbertus, de que os bens encarados economicamente custam somente trabalho. Vamos adiante.
- Segundo grande erro de Rodbertus: negligenciar a influência do tempo sobre o valor
A tese seguinte de Rodbertus diz que, segundo a natureza e o direito, o produto que o trabalhador produziu sozinho — ou todo o valor desse produto, sem deduções — deve pertencer unicamente a ele. Concordo plenamente com essa tese; contra ela, dentro da limitação que estipulei acima, não se pode levantar qualquer objeção em termos de correção e de justeza. Mas creio que Rodbertus, como todos os socialistas, tem uma concepção falsa de como se concretizaria esse princípio realmente justo. Enganados por essa concepção, desejam uma situação que, além de não corresponder àquele princípio, até o contraria. Como, singularmente, nas tantas tentativas de refutar a teoria da exploração, ou raramente se tem tocado nesse ponto, ou, quando ele é levado em consideração, isto é feito de maneira muito superficial, permito-me solicitar ao leitor muita atenção para a exposição que se segue, principalmente por causa de sua complexidade.
Quero, primeiramente, apontar o erro que critico para depois elucidá-lo. O princípio correto de que o trabalhador deve receber todo [p. 264] o valor de seu produto pode ser interpretado, sensatamente, da seguinte maneira: o trabalhador deve receber agora o valor atual do seu produto. Ou, ainda: o trabalhador deve receber no futuro todo o valor futuro do seu trabalho. Acontece que Rodbertus e os socialistas explicam que o trabalhador deve receber agora o valor futuro do seu produto, e agem como se isso fosse coisa evidente, como se fosse a única interpretação possível desse princípio.
Ilustremos a questão com um exemplo concreto. Imaginemos que a produção de um bem, por exemplo, uma máquina a vapor, custe cinco anos de trabalho, e o valor de troca da máquina pronta seja de 5. 500 dólares. Imaginemos, também — sem levar em conta, por enquanto, a divisão do trabalho entre várias pessoas — que um trabalhador sozinho tenha construído a máquina com trabalho continuado de cinco anos. Perguntaremos, então, o que lhe é devido como salário, com base no princípio de que ao trabalhador deve pertencer ou todo o seu produto, ou todo o valor do seu produto. Não pode haver, em nenhum momento, qualquer sombra de dúvida em relação à resposta: ele deve receber ou a máquina a vapor inteira ou todos os 5.500 dólares. Mas quando? Também quanto a isso não pode haver nenhuma dúvida: obviamente, depois de transcorridos os cinco anos. Isto porque, pelas leis naturais, ele não pode receber a máquina a vapor antes que ela exista, nem o valor por ele produzido de 5.500 dólares antes que esse valor tenha sido criado. Nesse caso o trabalhador receberá seu salário segundo a fórmula: todo o produto futuro, ou todo o seu valor futuro, num determinado momento futuro.
Mas acontece muitas vezes que o trabalhador não pode esperar — ou não o deseja — seu produto estar inteiramente pronto. Nosso trabalhador deseja, por exemplo, receber, logo depois de um ano, parte do pagamento. Surge, então, a pergunta: como, de acordo com o princípio acima, se fará para medir esta parte? Creio que, também aí, não cabe qualquer dúvida: será justo para com o trabalhador que ele receba o todo que trabalhou até então. Portanto, se até então ele tiver criado um monte de bronze, ferro ou aço não concluído, será justo para com ele entregar-lhe ou esse monte inteiro de bronze, ferro ou aço, ou todo o valor desse monte de matéria, naturalmente seu valor atual. Creio que nenhum socialista poderá fazer qualquer crítica a essa decisão.
Qual será, no entanto, o valor desta parte do trabalho em relação ao valor da máquina pronta? Este é um ponto em que um pensador superficial pode errar facilmente. O trabalhador executou até agora um quinto do trabalho técnico exigido para a criação da máquina inteira [p. 265]. Consequentemente — somos tentados a concluir num pensamento superficial — seu produto atual será um quinto do valor do produto inteiro, o que corresponde, portanto, a 1.100 dólares. Conclui-se, então, que o trabalhador deve receber um salário anual de 1.100 dólares.
Errado: a quantia de 1.100 dólares corresponde a um quinto do valor de uma máquina a vapor pronta, atualmente; mas o que o trabalhador produziu até aqui não é um quinto de uma máquina pronta, e sim um quinto de uma máquina que só estará pronta em quatro anos. E isso são duas coisas diferentes. Não se trata apenas de um jogo de palavras, de um sofisma: objetivamente, são duas coisas distintas.
O primeiro quinto tem um valor diferente do do último quinto, da mesma forma que uma máquina completa tem, hoje, um valor diferente do de uma máquina que só estará disponível dentro de mais quatro anos. Isto é tão certo quanto o fato de que todos os bens hoje existentes têm um valor diferente daquele que têm os bens futuros.
Uma das mais difundidas e importantes realidades econômicas é esta: numa avaliação presente, atribui-se aos bens presentes um valor mais elevado do que o de futuros bens da mesma espécie e qualidade. As causas desse fato, suas diversas modalidades de manifestação, as também variadas consequências a que ele leva na economia, serão objeto de uma análise detida que farei no segundo volume desta obra. * Estas análises não serão tão fáceis e simples como parece prometer a simplicidade desse pensamento fundamental. Mas, mesmo antes de completada essa análise detalhada, creio poder lembrar o fato de que bens atuais têm um valor mais elevado do que bens futuros da mesma espécie. Isto porque a própria existência deste bem, em si mesma, graças à mais simples experiência da vida cotidiana, deixa de ser duvidosa. Faça-se 1.000 [p. 266] pessoas escolherem entre receber um presente de 1.000 dólares daqui a 50 anos ou recebê-lo hoje, e todas as 1.000 preferirão receber logo os 1.000 dólares. Ou, então, pergunte-se a outras 1.000 pessoas que precisem de um bom cavalo e estejam inclinadas a dar 200 dólares por um bom animal quanto dariam hoje por um cavalo que fosse também muito bom, mas que elas só receberiam dentro de 10 ou 50 anos. Todas ofereciam uma quantia infinitamente pequena. Isto mostra que quem lida com conceitos de economia sempre valoriza mais os bens presentes do que os mesmos bens futuros.
Dessa forma, a parte daquela máquina a vapor — máquina que ficará pronta em mais quatro anos — que nosso trabalhador obteve com um ano de trabalho, não tem o valor total de um quinto da máquina acabada; seu valor é mais baixo. Em quanto? Não posso dizer ainda, sem fazer uma antecipação que poderá confundir o leitor. Basta observar que a importância representada por essa diferença se relaciona com a porcentagem de juro vigente no país, bem como com o tempo que falta para chegar ao momento em que o produto ficará pronto. Se eu presumir um juro de 5%, o produto do primeiro ano de trabalho custará, ao cabo desse ano, mais ou menos 1.000 dólares [32] Assim, o salário que o trabalhador deve receber pelo primeiro ano de trabalho será — com base no axioma de que deve receber ou seu produto inteiro ou o valor deste — de 1.000 dólares [33].
Se, apesar das conclusões a que chegamos acima, ainda ficar a impressão de que este valor é baixo, é preciso pensar no seguinte: ninguém pode ter dúvidas de que o trabalhador não estará sendo prejudicado se, depois de cinco anos, receber a máquina a vapor inteira, ou o seu valor inteiro, de 5.500 dólares. Para efeito de comparação, vamos calcular também o valor que terá a parcela antecipada de salário no fim do quinto ano. Como os 1.000 dólares recebidos no fim do primeiro ano ainda podem ser postos a juros por mais quatro anos, eles devem ser multiplicados, numa porcentagem de 5%, perfazendo mais 200 dólares (sem juro composto). Como esta aplicação está aberta também ao trabalhador, os 1.000 dólares recebidos pelo trabalhador no fim do primeiro ano equivalem [p. 267] a 1.200 dólares ao fim do quinto ano. Assim, se o trabalhador recebeu, depois de um ano, por um quinto do trabalho técnico, a quantia de 1.000 dólares, obviamente foi recompensado com base em um critério mais favorável a ele, uma vez que, se recebesse pelo todo, depois de cinco anos, só teria 5.500 dólares.
Como imaginam Rodbertus e os socialistas que se deva cumprir o princípio segundo o qual o trabalhador deve receber todo o valor do seu produto? Eles querem que o valor total que o produto pronto vá ter ao fim do trabalho seja a base dos pagamentos de salários, mas não somente quando concluída a produção: querem que o seja, parceladamente, já durante o decorrer do trabalho. Imagine-se o que representa isso. Representa, em nosso exemplo, que o trabalhador já receberia — com base na média dos pagamentos parcelados — depois de dois anos e meio, o total de 5.500 dólares, total este que a máquina a vapor só vai valer depois de cinco anos, quando pronta. Devo admitir que considero totalmente impossível basear essa exigência naquela premissa. Como se pode justificar, segundo a natureza e o direito, que alguém receba já depois de dois anos e meio um total que terá produzido ao cabo de cinco anos? Isso é tão pouco “natural” que nem ao menos é exequível. Não será exequível nem se livrarmos o trabalhador de todas as algemas do tão censurado contrato de trabalho, colocando-o na posição pretensamente privilegiada de empresário. Como trabalhador-empresário, ele realmente receberá todos os 5.500 dólares, mas não antes de os ter produzido, não antes dos cinco anos. E como se fará, por contrato de trabalho e em nome do direito, aquilo que a natureza das coisas recusa ao próprio empresário? O que os socialistas desejam é, usando das palavras certas, que os trabalhadores recebam através do contrato de trabalho mais do que trabalharam, mais do que receberiam se fossem empresários, mais do que produzem para o empresário com quem firmaram contrato de trabalho. O que eles produziram — e ao que têm direito justo — são 5.500 dólares depois de cinco anos. Mas 5.500 dólares depois de dois anos e meio, que é o que exigem, é mais que isso, chega a corresponder a cerca de 6.200 dólares depois de cinco anos, a um juro de 5%. Essa valorização relativa não resulta de instituições sociais duvidosas que criaram o juro e o fixaram em 5%, mas é resultado direto do fato de que nossa vida transcorre no tempo, de que o hoje, com suas necessidades e preocupações, vem antes do amanhã, e de que talvez nem cheguemos a ver o depois de amanhã. Não apenas os capitalistas ambiciosos, como também cada trabalhador, cada ser humano aliás, faz essa diferença de valor entre presente e futuro. Estaria certo o trabalhador que se queixasse de estar sendo logrado se, ao invés dos dez dólares que lhe devessem como salário semanal hoje, lhe oferecessem 10 dólares em um ano! E o que é relevante para o trabalhador, por acaso deveria ser irrelevante para o empresário? E possível querer que ele dê 5.500 depois de dois anos e meio, em troca de 5.500 que só depois de cinco anos receberá na forma do produto acabado? Isso não é justo, nem natural! Justo e natural, admito novamente com boa-vontade, é que o trabalhador ganhe todos os 5.500 dólares depois de cinco anos. Se ele não pode, ou não quer esperar cinco anos, mesmo assim deverá receber o valor total do seu produto; mas, naturalmente, o valor atual do seu produto atual. Esse valor terá de ser menor do que a cota do futuro valor do produto correspondente ao trabalho técnico, porque na economia impera a lei de que o valor atual de bens futuros é menor do que aquele de bens presentes; lei que não nasceu de nenhuma instituição pública ou social, mas diretamente da natureza dos homens e das coisas.
Se há alguma desculpa para ser prolixo, creio que ela caiba aqui, neste espaço onde se questiona uma doutrina de consequências tão graves como a doutrina socialista da exploração. Por isso, correndo o risco de entediar os meus leitores, desejo apresentar um segundo caso concreto, que, espero, me dará oportunidade de provar, de modo ainda mais convincente, o erro dos socialistas.
* Böhm-Bawerk refere-se ao segundo volume da obra em três volumes. Capital e juro de capital, da qual o presente livro é um excerto (N. da T.).
- Böhm-Bawerk dá o exemplo de cinco socialistas que construíram uma máquina a vapor e receberam pagamento desigual mas justo
Em nosso primeiro exemplo abstraí o fator divisão de trabalho. Agora, farei uma mudança nas circunstâncias, aproximando-as mais da realidade da vida econômica. Vamos, pois, presumir que cinco trabalhadores participaram na feitura dessa máquina, cada um deles contribuindo com um ano de trabalho. Talvez um dos trabalhadores extraísse da mina o minério necessário, o segundo preparasse o ferro, o terceiro o transformasse em aço, o quarto fabricasse com o aço as peças necessárias, e o quinto, por fim, as organizasse devidamente e desse a última demão no trabalho. Como cada trabalhador, pela natureza do processo, só pode começar quando o anterior tiver concluído seu trabalho, os cinco anos de trabalho de nossos homens não seriam simultâneos, mas subsequentes. Portanto, como no primeiro exemplo, a produção da máquina demoraria cinco anos. O valor da máquina pronta continua sendo 5.500 dólares. Segundo o princípio de que o trabalhador deve receber todo o valor do produto de seu trabalho, quanto poderá exigir cada um dos cinco participantes pelo que realizou?
Solucionemos primeiro o problema considerando o caso de os salários se dividirem entre os trabalhadores, sem intervenção de um empresário: o produto obtido será simplesmente dividido entre os cinco. Nesse caso, duas coisas são certas: primeiro, que a divisão só poderá ocorrer depois de cinco anos, porque antes não existirá nada adequado para se dividir; se quiséssemos, por exemplo, usar o minério e o ferro [p. 268] obtidos nos dois primeiros anos como pagamento de cada um, faltaria matéria-prima para a continuação da obra. É claro que o produto prévio conseguido nos primeiros anos tem de ser necessariamente isento de qualquer divisão, ficando preso à produção até o fim. Segundo, é certo que um valor total de 5.500 dólares terá de ser dividido entre cinco trabalhadores.
Mas, em que proporção?
Esta divisão não deveria, certamente, ser feita em partes iguais, como se poderia pensar numa primeira visão superficial: isso favoreceria grandemente os trabalhadores que fizessem seu trabalho num estágio mais avançado da produção. A pessoa que trabalhasse no acabamento da máquina receberia pelo seu ano de trabalho os 1.100 dólares imediatamente depois de terminar seu trabalho. O que tivesse produzido as peças receberia a mesma quantia, mas teria tido de esperar um ano inteiro para receber seu salário. O que tivesse extraído o minério receberia o mesmo pagamento quatro anos depois de trabalhar. Como é impossível que tal atraso não fizesse diferença para os trabalhadores, todos iriam querer executar o trabalho final, cujo pagamento não sofreria atraso algum, e ninguém iria querer assumir os trabalhos preparatórios.
Para encontrar quem os executasse, os trabalhadores das fases finais seriam forçados a ceder aos colegas que os antecedessem uma recompensa pelo atraso, na forma de uma participação maior no valor final do produto. O montante dessa diferença dependeria em parte da demora do atraso, em parte da diferença que existe entre a valorização de bens presentes e a de bens futuros, de acordo com as condições econômicas e culturais de nossa pequena sociedade. Se essa diferença for, por exemplo, 5%, as partes dos cinco trabalhadores ficariam assim distribuídas:
O primeiro trabalhador, que tem de esperar mais quatro anos depois de concluído seu trabalho, receberá ao fim
do quinto ano 1.200
o segundo, que esperará três anos 1.150
o terceiro, que esperará dois anos 1.100
o quarto, que esperará um ano 1.050
o último, que receberá o salário logo depois de concluído seu trabalho 1.000
Total 5.500
Só se poderia imaginar todos os trabalhadores recebendo o mesmo salário de 1.100 a partir do pressuposto de que a diferença de tempo não tivesse para eles qualquer importância, de que se satisfizessem com 1.100 dólares recebidos três ou quatro anos depois, considerando-se [p. 269] tão bem pagos como se recebessem esta quantia logo depois da conclusão do trabalho. Não creio ser necessário dizer que essa pressuposição nunca é correta, nem pode ser. Por outro lado, é totalmente impossível que cada um receba 1.100 dólares imediatamente depois de executado o trabalho, a não ser com a intromissão de uma terceira parte.
Talvez valha a pena, de passagem, chamar atenção para uma circunstância especial. Não creio que alguém julgue injusto o esquema de distribuição feito acima; não é, também, o caso de se poder falar em injustiça do empresário, pois os trabalhadores dividiram seu produto unicamente entre eles. Mesmo assim, aquele trabalhador que executou o penúltimo trabalho não receberá um quinto completo do valor final do produto, mas apenas 1.050 dólares, e o último trabalhador receberá, ao cabo, apenas 1.000.
Vamos presumir, agora, o que em geral acontece na realidade: que os trabalhadores não podem ou não querem esperar o fim do trabalho todo para receberem seu salário, e que façam um acordo com o empresário, para obterem dele, no fim do seu trabalho, um salário em troca do qual ele, o empresário, será dono do produto final. Vamos fazer mais: vamos imaginar que esse empresário é um homem justo e desprendido, que jamais se aproveitaria de uma situação difícil dos trabalhadores para baixar com usura o salário deles. Indaguemos, agora: em que condições se fará tal contrato de salário, numa situação dessas?
Pergunta bastante fácil de responder. Obviamente os trabalhadores terão tratamento justo, se o empresário lhes oferecer como salário o mesmo que teriam recebido como cota no caso de uma produção independente. Esse princípio nos fornece um critério fixo para aquele trabalhador que, no nosso exemplo, teria recebido 1.000 dólares logo depois de cumprir seu trabalho. Para ser inteiramente justo, é essa a quantia que o empresário deverá oferecer-lhe. Para os outros quatro trabalhadores, no entanto, o princípio acima fixado não fornecerá nenhum critério direto. Como o momento de pagar no caso do nosso exemplo será diferente do momento de pagar se ocorresse uma distribuição de cotas, não nos podemos valer das cifras dessa distribuição como padrão. Mas temos outro critério fixo: como os cinco trabalhadores realizaram o mesmo para seu trabalho, merecem, com justiça, o mesmo salário; e este se expressará numa cifra igual, agora que cada trabalhador será pago imediatamente após seu trabalho. Portanto, de maneira justa, todos os cinco trabalhadores receberão 1.000 dólares cada um ao fim do seu ano de trabalho.
Se alguém pensar que é muito pouco, dar-lhe-ei o seguinte exemplo bastante fácil, que provará que os trabalhadores recebem exatamente o mesmo valor que receberiam numa distribuição — absolutamente justa — do produto inteiro entre eles. O trabalhador n° 5 recebe, no caso [p. 270] de uma distribuição, 1.000 dólares logo no fim do seu ano de serviço e, no caso de um contrato de salário, a mesma quantia no mesmo tempo. O trabalhador n° 4 recebe, no caso de distribuição, 1.050 dólares, um ano depois de concluído seu ano de trabalho; tratando-se de contrato de salário, receberia 1.000 imediatamente depois do ano de trabalho. Se durante um ano colocar essa quantia a juros, estará exatamente na mesma situação em que estaria no caso de uma distribuição de cotas: terá 1.050 dólares um ano depois de concluir seu trabalho. O trabalhador n° 3 recebe, com a distribuição de cotas, 1.100 dólares dois anos depois de terminar seu trabalho; no caso de um contrato de salário, os 1.000 que receberia imediatamente, a juros, cresceriam para 1.100 dólares no mesmo período. E, assim, finalmente, os 1.000 dólares que os trabalhadores 1 e 2 recebem, com o acréscimo dos juros, completarão perfeitamente os 1.200 e 1.150 dólares que teriam recebido em caso de distribuição de cotas, quatro e três anos depois de concluído seu serviço. Mas se cada salário se equipara à cota de distribuição equivalente, naturalmente a soma dos salários deve equiparar-se à soma de todas as cotas: a soma de 5.000 dólares, que o empresário paga a seus trabalhadores diretamente depois de executarem seu trabalho vale exatamente o mesmo que os 5.500 dólares que poderiam ser repartidos entre os trabalhadores, ao fim de cinco anos [34].
Um pagamento maior, por exemplo um salário, pelo trabalho anual, de 1.100 dólares cada um, só seria imaginável ou se o que faz diferença para os trabalhadores, ou seja, defasagem de tempo, fosse totalmente indiferente para o empresário, ou se o empresário quisesse presentear aos trabalhadores a diferença de valor entre os 1.100 dólares presentes e futuros.
Via de regra não se deve esperar nem unia coisa nem outra de empresários privados, e não os devemos, por isso, criticar nem muito menos dizer que cometem exploração, injustiça ou roubo. Existe só uma pessoa de quem os trabalhadores podem esperar, como regra, aquele comportamento: o estado. Este, como entidade permanente que é, não precisa ligar tanto para a diferença de tempo entre o fornecimento e o pagamento de bens quanto os indivíduos, que têm uma existência breve. O estado — cujo objetivo mais importante é o bem-estar de todos os seus membros -, quando se trata de um bom número destes membros, pode abandonar sua postura rígida de pagar contra fornecimento e presentear em lugar de negociar. Assim, seria concebível que o estado, e só ele, aparecendo como um gigantesco empresário da produção, oferecesse aos trabalhadores, assim que o trabalho destes terminasse, o futuro valor total do seu futuro produto, em forma de salário. Se o estado deve fazer isso — resolvendo praticamente a questão social, em termos de socialismo -, é um problema de oportunidade, que não abordarei mais minuciosamente aqui. Repito, porém, com toda a ênfase: se o estado socialista paga aos trabalhadores como salário, agora, todo o valor futuro do seu produto [p. 271], isso não é ocumprimento de algum acordo mas, por motivos político-sociais, um desvio do princípio básico de que o trabalhador deve receber, como salário, o valor do seu produto. Portanto, não se trata da restauração de uma condição que, por natureza ou por direito, foi violada pela ambição dos capitalistas; trata-se, sim, de um gesto artificial, a partir do qual algo que não seria exequível no curso natural das coisas torna-se possível. E isso acontece através de um disfarçado presente dessa generosa entidade chamada estado aos seus membros mais pobres.
Agora, uma breve explicação prática. Reconhece-se facilmente que a situação de pagamento que descrevi por último é a que efetivamente acontece em nossa economia: esse sistema não distribui, como salário, o valor pleno do produto do trabalho, distribui uma quantia menor, porém o faz mais cedo. Na medida em que a soma total do salário, distribuída em parcelas, só é menor do que o valor final do produto final naquilo que é necessário para se manter a diferença entre bens presentes e futuros — em outras palavras, quando a cifra do salário só for menor do que o valor final do produto segundo os juros vigentes -, os trabalhadores não terão redução alguma de seus direitos ao valor total do seu produto. Receberão o produto inteiro, de acordo com sua valorização no momento em que receberem o salário. Só quando a diferença entre o salário total e o valor do produto final perfizer uma cifra superior à dos juros vigentes, é que se poderá falar, em certas circunstâncias, numa verdadeira exploração dos trabalhadores [35].
Voltemos a Rodbertus. O segundo erro decisivo de que o acusei nas últimas páginas reside justamente no fato de ele interpretar de modo injusto e ilógico o princípio de que o trabalhador deve receber agora todo o valor que seu produto acabado terá um dia.
- Terceiro erro de Rodbertus: o valor da troca de bens é determinado pela quantidade de trabalho neles contida
Se examinarmos o porquê de Rodbertus ter caído nesse segundo erro, encontraremos um outro erro, um terceiro erro importante que vejo em sua teoria da exploração. É que ele parte da pressuposição de que o valor dos bens depende exclusivamente da quantidade de trabalho exigida para a sua produção. Se isso fosse correto, o pré-produto, ao qual se acrescentou um ano de trabalho, deveria passar a valer um quinto pleno do valor do produto acabado, para o qual foram necessários cinco anos de trabalho. E, nesse caso, a exigência de que o trabalhador [p. 272] deva receber já agora um quinto pleno daquele valor como salário seria justa.
- Como Rodbertus, através de uma omissão, realmente deturpa os pontos de vista de Ricardo
Da maneira como Rodbertus apresenta aquela pressuposição, ela é indubitavelmente falsa. Para provar isso, nem é preciso desacreditar a famosa lei de valor de Ricardo, de que o trabalho é fonte e medida de todo valor. Basta chamar atenção para a existência de uma importante exceção a essa lei, que o próprio Ricardo registra conscienciosamente e comenta amplamente em certa passagem, e que Rodbertus, singularmente, não percebe. É o fato de que, de dois bens cuja produção custou o mesmo trabalho, aquele cujo acabamento exigiu maior quantidade de trabalho preparatório, ou mais tempo, adquire maior valor de troca. Ricardo nota esse fato de maneira singular. Ele afirma (Seção IV do Capítulo I de seus Principles) que “o princípio de que a quantidade de trabalho aplicado à produção de bens determina o valor relativo desses bens sofre uma importante modificação através do emprego de máquinas e de outro capital fixo e durável”. Mais adiante (Seção V): “através da duração desigual do capital e da velocidade desigual com que este retorna ao seu dono”. Então, aqueles bens em cuja produção se emprega muito capital fixo, ou capital fixo de longa duração, ou aqueles para os quais o período de retorno do capital líquido ao dono for maior, terão valor de troca mais alto do que bens que custaram imediatamente muito trabalho, mas que ou não são atingidos pelas circunstâncias referidas, ou o são apenas em grau muito reduzido. Esse valor de troca mais alto dependerá do ganho de capital exigido pelo empresário.
Nem os mais ardorosos defensores da lei do valor do trabalho podem duvidar de que essa exceção existe. Nem devem duvidar de que, em certas circunstâncias, o fator distância no tempo tenha até maior influência no valor dos bens do que a quantidade de trabalho aplicada. Lembro, por exemplo, o valor de um vinho antigo armazenado por decênios, ou o de um tronco centenário na floresta.
Mas essa exceção tem ainda outro aspecto especial. Não é preciso ser muito arguto para notar que nela reside a essência do juro de capital original: o superávit do valor de troca daqueles bens cuja produção exige determinado trabalho prévio é aquilo que fica nas mãos do empresário capitalista como ganho de capital na distribuição do valor do produto [36]. Se essa diferença de valor não existisse, também o juro de capital original não existiria. Essa diferença de valor possibilita que este juro exista e perdure, e é idêntica a ele. Nada é mais fácil de ilustrar do que isso — se é que um fato tão evidente [p. 273] precise ser comprovado. Vamos presumir três bens que, apesar de exigirem um ano de trabalho cada um para serem produzidos, implicam uma duração diferente de trabalho prévio; o primeiro necessitaria só um ano, o segundo dez anos, o terceiro vinte anos de trabalho prévio para poder realizar esse ano de trabalho. Nessas condições, o valor de troca do primeiro bem precisa cobrir o salário de um ano de trabalho, mais o juro de um ano de trabalho prévio. Mas é evidente que o mesmo valor de troca não pode cobrir o salário de um ano de trabalho, mais os juros de dez ou vinte anos de trabalho prévio. Isso só poderia acontecer se os valores de troca do segundo e do terceiro bem fossem proporcionalmente mais elevados do que o valor de troca do primeiro, embora os três tenham exigido trabalho igual. E a diferença no valor de troca é claramente a fonte de onde o juro de capital de dez e vinte anos brota — e deve brotar.
- O que Ricardo apresenta apenas como “exceção” devia ter sido sua principal explicação para o juro. Rodbertus foi demasiadamente “pobre” e sem acuidade como leitor de Ricardo.
A exceção da lei de valor do trabalho apresentada por Ricardo tem a importância de ser idêntica ao principal exemplo de juro de capital original. A pessoa que quiser explicar a exceção terá, logo de início, de explicar o exemplo, e vice-versa. Sem a explicação daquela exceção, não há explicação para o problema do juro. No entanto, a exceção de que falamos é ignorada — para não dizer rejeitada — em ensaios cujo objeto é exatamente o juro de capital, o que nos coloca diante de um erro muito grave. No caso de Rodbertus, ignorar aquela exceção significou ignorar o ponto principal daquilo que lhe cabia explicar.
Não se pode desculpar esse erro dizendo que Rodbertus não pretendia levantar uma regra válida para a vida real, mas apenas uma hipótese para facilitar análises abstratas. Em algumas passagens de seus escritos, Rodbertus apresenta em forma de mera pressuposição o princípio de que todo valor dos bens é determinado pelo custo do trabalho [37]. Mas, por um lado, há passagens em que ele demonstra estar certo de que sua regra de valor também vale para a vida econômica real [38]. Por outro lado, mesmo em forma de mera suposição, uma pessoa não pode aceitar o que bem entender. Igualmente, mesmo numa pura hipótese, só se pode abstrair condições reais irrelevantes para o problema analisado. O que dizer, porém, quando, no ponto crucial de uma análise teórica sobre juro de capital, se abstrai o mais importante exemplo de juro de capital?! Quando a melhor parte do que deve ser explicado fica escamoteada “por pressuposição”?!
Rodbertus tem razão ao dizer que, quando se deseja verificar um princípio como o da renda de terra ou juro de capital, não se pode “fazer o valor subir e descer como numa dança” [39], mas que se deve supor uma regra sólida de valor. O fato de que bens com diferença temporal [p. 274] maior entre custo de trabalho e acabamento caeteris paribus* têm valor maior, não é também uma sólida regra de valor? E essa regra de valor não é também de fundamental importância para o surgimento do juro de capital? Mesmo assim deveríamos abstrair dela como se ela fosse um fenômeno casual nas condições de mercado?! [40].
As consequências dessa singular abstração não se fizeram esperar. Uma primeira consequência já foi comentada por mim: ignorando a influência do tempo no valor do produto, Rodbertus cometeu o erro de confundir o direito do trabalhador a todo o valor presente do seu produto com o direito ao valor futuro do mesmo produto. Veremos, logo a seguir, outras consequências.
* Sem modificação das demais coisas (N. da T.).
- Quarto erro de Rodbertus; sua doutrina é contraditória em questões importantes. Sua lei da tendência geral de equalização de todo o superávit contradiz importantes pontos de sua teoria do juro em gerai, e de sua teoria do juro de terras em particular
Uma quarta acusação que levanto contra Rodbertus é a de que sua doutrina contradiz a si mesma em pontos importantes.
Toda a teoria de renda de terras de Rodbertus se fundamenta no princípio — que ele, repetida e enfaticamente, afirma — de que o montante absoluto de “renda” que se pode obter num produto não depende do montante do capital empregado, mas unicamente da quantidade de trabalho aplicado. Supondo que numa determinada produção industrial — por exemplo, numa indústria de calçados — estejam ocupados dez trabalhadores e que cada trabalhador produza num ano um produto de valor equivalente a 1.000 dólares. O sustento mínimo — que ele recebe como salário — retira 500 dólares deste montante. Deste modo, seja qual for a quantidade de capital empregado, a renda anual do empresário será de 5.000 dólares. Caso o capital empregado seja de 10.000 dólares — com 5.000 em salários e 5.000 de material -, a renda constituirá 50% do capital. Imaginemos que numa outra produção, digamos, de objetos de ouro, também se ocupem dez trabalhadores. Suponhamos, também, que o valor do que esses trabalhadores produzem depende da quantidade de trabalho neles empregado: num produto anual de 1.000 dólares cada um, a metade fica para eles como salário, a outra metade fica para o empresário como renda. Mas como o material ouro representa um valor de capital muito mais alto do que o couro de sapateiro, nesse exemplo a renda total de 5.000 dólares advirá de um capital muito maior. Imaginemos que ele será de 200.000 dólares, dos quais 5.000 serão de salários e 195.000 de investimento em material. A renda de 5.000 dólares será, então, equivalente a um juro de apenas 2,5% do capital do negócio. Os dois exemplos estão inteiramente dentro do espírito da teoria de Rodbertus.
Por outro lado, se em quase toda a “manufatura” existe outra relação entre o número de trabalhadores (direta ou indiretamente) ocupados e a magnitude do capital empregado, pode-se concluir, também, que, em quase todas as manufaturas, o capital deveria render juros [p. 275] em porcentagens diversas, com limites muito amplos. No entanto, nem o próprio Rodbertus se atreve, a afirmar que isso realmente acontece na prática. Ao contrário, num trecho singular da sua teoria sobre a renda da terra, ele pressupõe que, devido à concorrência dos capitais, haverá em todo o campo da manufatura uma porcentagem igual de ganho. Apresentarei essa passagem textualmente. Depois de comentar que a renda advinda da manufatura é considerada inteiramente um ganho de capital, já que nela se aplicam somente bens de capital, ele prossegue:
“Há, além disso, uma porcentagem de ganho de capital que agirá como equiparadora dos ganhos de capital. Por isso também sobre o capital necessário à agricultura se deve calcular, segundo esta porcentagem equiparadora, o ganho de capital referente àquela parte da renda que recai sobre o produto bruto. Se, como resultado do valor de troca estabelecido, agora existe um critério uniforme para expressar a relação entre rendimento e capital, esse mesmo critério serve, quando se trata da parcela da renda que recai sobre o produto da manufatura, para expressar a relação entre ganho e capital. Em outras palavras, poderemos dizer que o ganho numa indústria equivale a X por cento do capital aplicado. Então, a porcentagem de ganho de capital dará o critério para a equiparação dos ganhos de capital. Naquelas indústrias em que essa porcentagem de ganho de capital acusar ganhos maiores, a concorrência providenciará maior aplicação de capital, provocando, assim, um esforço geral no sentido da equiparação dos ganhos. Por isso, ninguém aplicará capital onde não puder esperar ganhos segundo essa porcentagem. ” [41].
Vale a pena examinar melhor essa passagem.
Rodbertus aponta a concorrência como fator que garantirá uma porcentagem uniforme de ganho no campo da manufatura. E comenta isso brevemente. Pressupõe que qualquer porcentagem de ganho acima da média baixará ao nível médio em decorrência de um aumento da aplicação de capital. Podemos deduzir, então, que qualquer porcentagem de ganho mais baixa será erguida ao nível médio pela dispersão de capitais.
Levemos adiante nosso exame dos fatos, pois Rodbertus interrompe bruscamente o seu. De que modo uma maior aplicação de capital pode nivelar uma porcentagem de ganho anormalmente alta? Obviamente isso só acontece porque, com o capital aumentado, a produção do artigo em foco cresce, e em razão do crescimento da oferta o valor de troca do produto baixa tanto que, depois de descontados os salários, sobra como renda apenas a porcentagem de ganho comum. Em nosso exemplo da indústria de calçados, teríamos de imaginar da seguinte forma o nivelamento da porcentagem anormal de ganho de 50% para a porcentagem média de 5%: atraídas pelo ganho elevado de 50%, não só inúmeras pessoas retomarão a fabricação de sapatos, como também os atuais produtores de calçados aumentarão sua produção. Com isso, a oferta de calçados cresce [p. 276], e seu preço — seu valor de troca — baixa. Esse processo terá efeito até o ponto em que o valor de troca do produto anual de dez trabalhadores da indústria de calçados baixar de 10.000 dólares para 5.500. Assim, depois de descontar os salários necessários de 5.000 dólares, o empresário ficará com apenas 500 dólares de renda, que, repartidos num capital de 10.000 dólares, lhe darão o juro comum de 5%. Assim, o valor de troca dos calçados terá de se manter no ponto atingido para que o ganho nessa indústria não volte a crescer anormalmente, o que levaria à repetição do processo.
De maneira análoga, a porcentagem de ganho abaixo do normal de 2,5%, no nosso exemplo da manufatura de objetos de ouro, subirá para 5%. Este lucro insignificante restringirá a manufatura de ouro, reduzindo a oferta em produtos de ouro e aumentando, consequentemente, seu valor de troca, até o ponto em que o produto de dez trabalhadores no ramo de ourivesaria atinja um valor de troca de 15.000 dólares. Ai, então, vão restar, depois da dedução dos salários necessários de 5.000 dólares, os 10.000 dólares de renda para o empresário, que equivalem ao juro costumeiro de 5% sobre o capital empregado, que era de 200.000 dólares. Com isso, chegou-se ao ponto de estabilização, no qual o valor de troca de objetos de ourivesaria poderá firmar-se duradouramente, como acima vimos acontecer com o valor dos calçados.
É um aspecto importante este de que o nivelamento de porcentagens anormais de ganhos não possa acontecer sem uma mudança duradoura no valor de troca dos produtos envolvidos. Antes de prosseguir, desejo tocar em outra faceta desta questão para que ela fique totalmente isenta de dúvidas. Se o valor de troca dos produtos não mudasse, uma porcentagem de ganho insuficiente só poderia voltar ao nível normal caso se cobrisse a diferença com o salário indispensável ao trabalhador. Se, no nosso exemplo, o produto dos dez trabalhadores na manufatura de objetos de ouro se mantivesse com o valor imutável de 10.000 dólares — correspondente à quantidade de trabalho empregado -, um nivelamento da porcentagem de ganho de 5%, ou seja, um aumento do ganho de 5.000 para 10.000 dólares não seria possível senão com retirada total do salário de 500 dólares de cada trabalhador, ficando o produto inteiro como ganho para o capitalista. Abstraí aqui totalmente o fato de que essa suposição já é, em si, uma impossibilidade. Desejo apenas lembrar que ela contraria tanto a experiência quanto a própria teoria de Rodbertus. Contraria a experiência porque esta mostra que a limitação niveladora da oferta em um ramo de produção não tem, como efeito regular, a redução do salário, mas, sim, o aumento do preço do produto regular. Além do mais, essa suposição ignora que, nessas indústrias que exigem grande investimento de capital, o salário teria de ser bem mais baixo do que em outras. Por outro lado, pela experiência [p. 277], também não comprova que a exigência de ganho maior seja repassada aos salários, e não aos preços dos produtos. Essa suposição contraria, ainda, a própria teoria de Rodbertus, que pressupõe que os trabalhadores recebem permanentemente como salário o custo mínimo de sua subsistência, regra fortemente infringida pelo nivelamento acima descrito.
Seria fácil, por outro lado, provar o contrário, ou seja, que só poderia haver uma diminuição dos ganhos exagerados com valor de produto inalterado, caso na indústria o salário dos trabalhadores fosse elevado a níveis acima do normal, o que também contradiz essa teoria de Rodbertus bem como a experiência. Estou certo de que descrevi o problema do nivelamento de ganhos conforme os fatos e conforme as pressuposições de Rodbertus, ao mostrar que o nivelamento de ganhos excessivos é obtido através de alterações, reduções ou aumentos do valor de troca dos produtos em questão.
No entanto, se admitimos que o produto anual de dez trabalhadores na indústria calçadista tem valor de troca de 5.500 dólares, e que o produto anual de dez trabalhadores em ourivesaria vale 15.000 dólares, como preconiza a equiparação de ganhos imaginada por Rodbertus, como fica a ideia desse mesmo Rodbertus, de que produtos se trocam com base no custo do trabalho? A contradição em que Rodbertus se envolveu é tão evidente quanto insolúvel. Ou os produtos realmente se trocam de maneira duradoura segundo o trabalho neles despendido, dependendo o montante da renda numa produção da quantidade de trabalho neles aplicado — e, neste caso, é impossível nivelar o ganho de capital -; ou existe esse nivelamento — e, nesse caso, é impossível que os produtos continuem a ser trocados segundo o trabalho neles despendido, e que a quantidade de trabalho despendido seja o único fator a condicionar a soma da renda a ser obtida. Rodbertus teria notado essa contradição tão óbvia se, ao invés de se ater a uma frase superficial sobre o efeito nivelador da concorrência, tivesse pensado seriamente, por pouco que fosse, no fenômeno do nivelamento de superávit.
Mas não é só isso. Toda a explicação sobre a renda de terras — que em Rodbertus se liga tão intimamente à explicação do juro de capital — se baseia numa inconsequência de tal modo evidente, que só por [p. 278] uma distração quase inacreditável pode ter passado despercebida a este autor.
Só é possível uma das duas alternativas: ou acontece um nivelamento de ganhos de capital em função da concorrência, ou este nivelamento não acontece. Admitamos que ele aconteça: qual seria a justificativa para o fato de Rodbertus presumir que o nivelamento, depois de atingir todo o terreno da manufatura, há de parar como que por encanto na fronteira da produção bruta? No caso da agricultura, que não permite um ganho mais elevado e atraente, por que motivo não se deveria aplicar mais capital, por que não se aumentaria o cultivo, buscando outros métodos, melhorando a cultura até o ponto em que o valor dos produtos brutos se harmonizasse com o capital agrícola crescente, passando a lhe conceder também a porcentagem habitual de ganhos? Se a “lei” de que a quantidade de renda não depende do gasto de capital, mas sim da quantidade de trabalho despendido, não impediu o nivelamento da manufatura, por que impediria o da produção bruta? Onde fica então o constante superávit sobre a porcentagem habitual de ganhos, ou da renda sobre a terra?
Vejamos a outra alternativa: o nivelamento não acontece. Neste caso, não existe porcentagem de juros vigente e geral, e falta, também à agricultura, uma certa norma para a cifra que se pode calcular, em “renda” como ganho de capital. Então faltará também, por fim, uma fronteira entre ganho de capital e renda de terra. Por isso, haja ou não haja equiparação de ganhos, em qualquer das duas alternativas, a teoria de renda sobre a terra, de Rodbertus, fica solta no ar. Portanto, são contradições sobre contradições, que ocorrem não em aspectos de somenos importância, mas nos princípios básicos da teoria!
- Quinto erro de Rodbertus: o erro “geral” e espantoso que o incapacita de dar qualquer explicação sobre um aspecto importante do fenômeno do juro
Até aqui dirigi minha crítica contra detalhes da teoria de Rodbertus. Quero concluir, analisando a teoria como um todo. Se a teoria for correta, ela deverá ser capaz de fornecer uma explicação satisfatória para o fenômeno do juro de capital, assim como ele aparece na vida econômica real, em todas as suas manifestações. Caso a teoria não dê conta disso, estará condenada: será falsa.
Posso garantir — e prová-lo, a seguir — que a teoria da exploração de Rodbertus até seria capaz, embora muito precariamente, de tornar inteligível o ganho de juros das parcelas de capital investidas nos salários de trabalho, mas, através dela, é absolutamente impossível explicar o ganho de juros daquelas parcelas de capital aplicadas em materiais de manufatura. Vejamos.
Um joalheiro que se dedica a fazer colares de pérolas manda cinco empregados enfiarem em cordões anualmente um milhão de dólares em pérolas legítimas, e vende os colares em média após um ano. Assim [p. 279], terá investido um capital de um milhão de dólares em pérolas, que, segundo a porcentagem normal de juros, lhe darão um ganho anual líquido de 50.000 dólares. Mas como se explica que o joalheiro tenha esse ganho em juros?
Rodbertus diz que o juro de capital é um ganho originado da exploração, nascido do roubo praticado contra salários justos e naturais. Salários de que trabalhadores? Dos cinco que selecionam pérolas e as enfiam em cordões? Não pode ser, pois, se alguém que roubasse parte dos salários justos de cinco trabalhadores pudesse ganhar 50.000 dólares, o salário justo deles deveria ser de mais de 50.000 dólares, ou seja, deveria ser superior a 10.000 dólares por cada homem — cifra que não se pode levar a sério, pois o trabalho de selecionar e enfiar pérolas muito pouco difere de qualquer trabalho não especializado.
Examinemos melhor a questão: talvez o joalheiro consiga esse ganho explorador a partir do produto do trabalho de trabalhadores em algum estágio anterior da produção. Mas ocorre que o joalheiro nem teve contato com esses trabalhadores; ele comprou as pérolas do empresário da pesca de pérolas, ou até de algum intermediário: portanto, ele nem teve ocasião de tirar dos pescadores de pérolas uma parte de seu produto ou do valor dele. Talvez, em lugar dele, tenha feito isso o empresário da pesca de pérolas, nascendo, assim, o ganho do joalheiro, de uma redução de salários imposta por esse empresário a seus trabalhadores. Também isto é impossível, pois obviamente o joalheiro teria seu ganho mesmo que o empresário da pesca de pérolas não deduzisse nada dos salários de seus trabalhadores.
Mesmo que este dividisse entre seus trabalhadores todo o milhão que valem as pérolas pescadas e que ele recebeu como preço de compra do joalheiro, só conseguiria não ter lucro, mas de maneira alguma poderia prejudicar o lucro do joalheiro. Pois, para o joalheiro, a maneira como vai ser dividido o preço de compra que pagou — caso este não se tenha elevado — é totalmente indiferente. Portanto, por mais que forcemos nossa fantasia, será vão procurarmos os trabalhadores de cujo salário justo poderia ter sido subtraído o ganho de 50.000 dólares do joalheiro.
Talvez esse exemplo ainda deixe escrúpulos em algum leitor. Talvez alguns julguem estranho que o trabalho de cinco enfiadores de pérolas seja a fonte da qual o joalheiro consiga um ganho tão considerável, de 50.000 dólares. No entanto, mesmo parecendo estranho, o exemplo não é, em absoluto, inconcebível. Quero dar um segundo exemplo, ainda mais convincente. Trata-se, aliás, de um bom exemplo, bem antigo, a partir do qual muitas teorias de juros já foram propostas e refutadas no curso dos tempos.
O dono de uma vinha colheu um barril de bom vinho novo, vinho este que tem, logo depois da colheita, um valor de troca de 100 dólares [p. 280]. Deixou o vinho no porão, e, depois de doze anos de envelhecimento, esse vinho adquiriu um valor de troca de 200 dólares. O fato é conhecido. A diferença de 100 dólares ficou para o dono do vinho, como juro de capital aplicado no vinho. De que trabalhadores ele extorquiu esse ganho de capital?
Como, durante o armazenamento, não houve absolutamente nenhum trabalho relacionado ao vinho, só se pode concluir que os explorados foram aqueles trabalhadores que produziram o vinho novo. O vinhateiro lhes teria pago um salário insuficiente. Mas, pergunto eu, como lhes poderia ter pago um “salário justo”? Mesmo que ele lhes pagasse todos os 100 dólares que o vinho novo valia na época da colheita, ainda continuaria com o acréscimo de valor de 100 dólares, que Rodbertus rotula de ganho de exploração. Mesmo que lhes pagasse 120 ou 150 dólares, ainda seria acusado de exploração. E só se livraria dessa nódoa se pagasse todos os 200 dólares.
É possível querer, em sã consciência, que sejam pagos duzentos dólares “como justo salário de trabalho” por um produto que não vale mais de cem dólares? O proprietário poderia saber, de antemão, que o produto algum dia valerá 200 dólares?
Ou então, não poderia ser forçado a contrariar sua intenção inicial, e gastar ou vender o vinho antes dos doze anos? E, neste caso, ele não teria pago 200 dólares por produto que nunca iria valer mais de 100, ou talvez de 120 dólares? Quanto, então, teria de pagar aos trabalhadores que produzem o vinho que ele vende antes do envelhecimento por 100 dólares? Também a estes deveria dar 200 dólares? Se fosse assim, ele ficaria arruinado. Ou será que deve pagar-lhes só 100 dólares? Nesse caso, trabalhadores diferentes receberão por trabalho absolutamente igual salários diferentes, o que é novamente injusto. E não se levou em conta, aqui, o fato de que dificilmente se pode saber antecipadamente qual dos produtos será vendido logo, e qual deles será armazenado durante doze anos.
E ainda há mais: mesmo o salário de 200 dólares por um barril de vinho novo ainda poderia vir a ser considerado como explorador. Pois o dono pode armazenar o vinho no porão durante vinte e quatro anos em vez de doze; o vinho, então, já não valerá apenas 200, mas sim 400 dólares. Será que, por isso, os trabalhadores que produziram esse vinho 24 anos atrás seriam, por justiça, credores de quatrocentos dólares? A ideia é absurda demais! Mas se o proprietário lhes pagar só 100 dólares — ou mesmo 200 dólares — terá um ganho de capital, e Rodbertus declara que, com isso, estará reduzindo o salário justo do trabalhador, uma vez que retém parte do valor do seu produto!
- Crítica final à doutrina de juros de Rodbertus: a) mal fundamentada; b) conclusões falsas; c) contraditória
Não creio que alguém se atreva a afirmar que os casos de obtenção de juros aqui apresentados, e inúmeros casos análogos, fiquem esclarecidos pela doutrina de Rodbertus. O fato é que uma teoria que fica devendo explicação para parte importante dos fenômenos a serem explicados não pode ser verdadeira. Sendo assim, esta sumária análise final leva aos mesmos resultados da crítica detalhada que a antecedeu; a teoria da exploração de Rodbertus é falsa em sua fundamentação e em seus resultados, contradiz-se a si mesma, e contradiz os fatos reais [p. 281].
A natureza de minha tarefa crítica fez com que nas folhas acima eu tivesse de apontar apenas alguns dos erros em que Rodbertus incorreu. Creio dever à memória desse grande homem o reconhecimento do mérito inegável de sua contribuição para o desenvolvimento da teoria econômica, embora não faça parte de minha tarefa atual descrever tais méritos.
NOTAS
[1] Uma lista bastante completa dos inúmeros textos do Doutor Karl Rodbertus, Jagetzow está em Kozak: Rodbertus’ sozial-ökonomische Ansichten, Jena, 1882 (p. 7 ss). Usei basicamente as cartas 2 e 3 enviadas a von Kirchman, na impressão (um pouco modificada) que Rodbertus publicou em 1875 sob o título Zur Beteuchtung der sozialen Frage, e também o texto Zur Erklärung und Abhilfe der heutigen Kreditnot des Grundbesitzes (2. ed. Jena, 1876), assim como a obra póstuma de Rodbertus, editada por Adolf Wagner e Kozak sob o título Das Kapital, que era a 4ª carta social enviada a von Kirchman (Berlim, 1884). A teoria de juros de Rodbertus foi a seu tempo submetida a uma crítica muito detida e conscienciosa por parte de Knies(DerKredit, Parte II, Berlim, 1879, p. 47 ss), crítica esta que confirmo nos pontos mais importantes, embora não possa deixar de efetuar um novo exame crítico e independente, uma vez que meu ponto de vista teórico é muito diferente do de Knies, pois encaramos vários fatos sob luzes bastante diversas. Cf. sobre Rodbertus também A. Wagner em sua Grundlegung III, 3 ed. (Parte 1 § 13, Parte II § 132), e também H. Dietzel, C. Rodbertus, Jena, 1886-1888.
[2] Zur Beleuchtung der Sozialen Frage (pp. 68 e 69).
[3] Soziale Frage (p. 56); Erklärunq und Abhilfe (p. 112).
[4] Soziale Frage (p. 87 e 90); Erklärung und Abhilfe (p. 111); Kapital (p. 116),
[5] Soziale Frage (p. 146); Erklärung und Abhilfe (II, p. 109 ss.).
[6] Soziale Frage (p. 32).
[7] Soziale Frage (p. 74 ss.).
[8] Soziale Frage (p. 33); similarmente, de forma detalhada (pp. 77 -94).
[9] Soziale Frage (p. 115 e em diversas outras).
[10] Op. cit. 150; Kapital (p. 202).
[11] Soziale Frage (pp. 115, 148); Cf. também a crítica contra Bastiat, op. Cit. (pp. 115 a 119).
[12] Soziale Frage (p. 123 ss.).
[13] Op. cit. (p. 106).
[14] Soziale Frage (p. 107); similarmente, pp. 113, 147; também Erklärung (I p. 123).
[15] Soziale Frage (p. 148).
[16] Soziale Frage (p. 94 ss.); especialmente pp. 109-111. Erklärung (I. p. 123).
[17] Erklärung (II, p. 303).
[18] Erklärung (II, p. 273 ss.). No seu texto póstumo sobre o Kapital Rodbertus- manifesta-se mais asperamente contra o capital privado, querendo que ele seja substituído, e não simplesmente abolido.
[19] Soziale Frage (p. 69).
[20] Soziale Frage (p. 71).
[21] Kredit (Parte II p. 60 ss.).
[22] Zur Erkenntnis unserer staatwirstschafttichen Zustand (1842), Primeiro teorema (pp. 5 e 6).
[23] Op. cit. (p. 7).
[24] Op. cit. (p. 8).
[25] É fácil ver que Rodbertus também deveria, por coerência, ter declarado a força de trabalho algo eterno e indestrutível, uma vez que também as forças químicas e mecânicas que existem no organismo humano não desaparecem da terra!
[26] Será que uma pessoa que “empreita” o trabalho dos outros, seja esta pessoa um empregador, um patriarca ou um dono de escravos, não tem por que administrar o trabalho alheio? Naturalmente aqui não se pode considerar como motivo o fato de esse trabalho de administrar custar o tempo dele, a força dele, ou seu sacrifício pessoal em liberdade. O que importa é a relação, descrita no texto, com a satisfação das necessidades dele ou de sua família.
[27] Todas as legislações sobre mineração que contém determinações contra métodos predatórios constituem uma contradição a Rodbertus, pois tornam um dever administrar economicamente dons raros da natureza.
[28] Op. cit. (p. 9).
[29] Erklärung und Abhilfe (II. p. 160): similarmente. Soziale Fraqe (p. 69).
[30] Der Kredit (II. p. 69): “Objetivamente, não é verdadeiro o único motivo apresentado por Rodbertus: o trabalho é a única força original e também o único dispêndio original com o qual se efetua a economia humana”. Seria um engano surpreendente num proprietário de terras se ele afirmasse ser impossível que as forças efetivas do solo de suas limitadas propriedades pudessem ficar “mortas” ou “desperdiçadas pelo inço” por causa de pessoas que não as sabem administrar. Um julgamento tão absurdo teria também de defender o princípio de que a perda de x acres não significa “perda econômica” para o dono de y milhas quadradas de terra.
[31] Veja-se Knies, DerKredit (II, p. 64 ss.). Por exemplo: “Quem deseja ‘produzir’ carvão não deve apenas cavar, mas deve cavar em determinado local: em milhares de locais se poderá efetuar, sem resultados, a mesma operação material de cavar. Mas se o ato difícil e necessário de determinar o local correto é assumido por um especialista, por exemplo um geólogo: se o ato de cavar um poço depende de uma Certa ‘força intelectual’ etc. , como então se pode querer que o ato de cavar, por si só, constitua serviço econômico? Será que o valor econômico de remédios manufaturados estará unicamente ligado à atividade manual de que estes remédios resultam, quando, na verdade, a escolha dos materiais, a determinação das quantidades etc. , partem de outras pessoas que não aquelas que ‘fazem’ as pílulas?”
[32] Naturalmente não me ocorre querer apresentar a porcentagem de juros como causa da baixa valorização de bens futuros. Sei muito bem que juro e porcentagem de juro são apenas consequências daquele fenômeno primário. Aliás, não pretendo aqui dar explicações, mas descrever fatos.
[33] Logo adiante será demonstrado o acerto dessa cifra de juros que, à primeira vista, pode parecer estranha.
[34] Stolzmann, Soziale Kategorie (p. 305 ss.) fez, em relação a este exemplo, algumas objeções que me parecem bastante secundárias, além de errôneas. Partindo da opinião equivocada de que em meu grupo de trabalhadores eu quis apresentar — ou teria apresentado — uma espécie de arquétipo, um pequeno estado com economia independente e fechada em si mesma, ele argumenta que também o último trabalhador “não poderia fazer nada com a máquina pronta, não poderia prolongar com ela um só dia de sua vida” (307). Argumenta, ainda, que o pagamento do primeiro trabalhador, de 1.200 dólares ao cabo do quinto ano, é uma recompensa insuficiente para sua espera de cinco anos. “Se nesse longo tempo ele não morresse de fome” — afirma o autor da objeção — enquanto “fosse forçado a deixar no regaço as mãos ociosas e inúteis”, deveria receber o pagamento por cinco anos inteiros, isto é, 5.000 dólares (308). Direi apenas, em relação a isso, que não tive intenção de dar como exemplo algum arquétipo isolado, mas pretendi descrever, e descrevi, uma sociedade de cinco pessoas, dentro da moderna vida econômica, ocupada num trabalho de produção: a construção de uma máquina. Remeto às claras palavras que usei para expressar as condições de meu exemplo, nestas páginas. Nesse exemplo fala-se, entre outras coisas, do “valor de troca” da máquina acabada. No exemplo em questão, fiz abstração apenas da divisão do trabalho — e assim mesmo só de passagem — relacionado à fabricação daquela máquina. Por isso não se pode dizer, também, que os participantes daquela operação produtiva fossem forçados a permanecer ociosos quando não estavam ocupados com ela. E quando na p. 313 Stoizmann me acusa de um “gravis error dupli” pelo fato de eu julgar possível que um dos trabalhadores pudesse colocar a juros até o fim do quinto ano seu salário, recebido antes dos outros, e de, com isso, ter feito o que ele chama de “rotular os trabalhadores de capitalistas junto com os empresários”, devo dizer que não há, no meu exemplo, uma só palavra que exclua a possibilidade de que um ou outro dos participantes pudesse ter meios que lhe permitissem essa espera. Ao contrário, nas pp. 346 e 351 pressupus expressamente a alternativa de que os trabalhadores “não possam ou não queiram esperar”. Essa passagem foi erroneamente citada por Stolzmann nas pp. 307 e 309 como “não possam e não queiram esperar”. Por fim, já na nota 32 deste mesmo capítulo, afirmei claramente que com meu exemplo não pretendi explicar o fenômeno do juro, mas apenas ilustrar com fatos determinado raciocínio.
Objeção interessante, e bem mais profunda, foi feita pelo doutor Robert Meyer na sua excelente obra sobre Wesen des Einkommen (Berlim. 1887 p. 270 ss.). Mas, como o esclarecimento da sua objeção, igualmente fruto de interpretação errônea, exigiria inúmeros detalhes a respeito de minha teoria positiva de capital, deixo sua discussão para o volume II desta obra.
[35] No segundo volume desta obra procederei a exames mais detidos. Para me proteger de mal-entendidos bem como da suspeita de considerar “ganho explorador” todo ganho empresarial acima dos juros vigentes no país, acrescentarei apenas o breve comentário a seguir. A diferença entre o valor total do produto e o montante pago em salários, diferença esta que fica para o empresário, pode ser constituída de quatro componentes diferentes entre si:
1) Um premio de risco pelo perigo de a produção fracassar. Corretamente medido, ele será usado no decorrer dos anos para cobrir perdas efetivas e naturalmente não implica deduções do salário dos trabalhadores.
2) Uma recompensa pelo próprio trabalho do empresário, recompensa essa que naturalmente é justa e em certas circunstâncias; p. ex: no aproveitamento de alguma nova invenção do empresário, poderá ser computada segundo uma porcentagem alta, sem haver nisso injustiça contra os trabalhadores.
3) A recompensa mencionada no texto, advinda da diferença de tempo entre pagamento de salário e concretização do produto final, e medida segundo os juros vigentes.
4) Por fim, o empresário pode conseguir ganho extra, aproveitando-se da situação de miséria dos trabalhadores para reduzir ainda mais seu salário. Só esse último aspecto fere o princípio de que o trabalhador deve receber todo o valor do seu produto.