6. LIBERDADE PESSOAL
LIBERDADE DE EXPRESSÃO
Existem, claro, muitos problemas ligados à liberdade pessoal que não podem ser classificados na categoria de “servidão involuntária”. A liberdade de expressão e de imprensa durante muito tempo vem sendo tida em grande estima por aqueles que se limitam a ser “libertários civis”—onde “civil” significa que a liberdade econômica e os direitos de propriedade privada ficam de fora da equação. Porém já vimos que “liberdade de expressão” não pode ser tida como absoluta a menos que seja incluída entre os direitos gerais de propriedade do indivíduo (incluindo enfaticamente o direito de propriedade sobre sua própria pessoa). Assim, o homem que grita “fogo” num teatro lotado não tem o direito de fazê-lo porque ele está cometendo uma agressão contra os direitos de propriedade contratuais do proprietário do teatro e dos clientes do espetáculo.
Invasões de propriedade à parte, no entanto, a liberdade de expressão deve necessariamente ser defendida com a maior intensidade possível por qualquer libertário. A liberdade de, por exemplo, imprimir e vender qualquer declaração se torna um direito absoluto, qualquer que seja o tópico coberto por este discurso ou expressão. Neste ponto, os libertários civis geralmente têm um bom histórico, e, no judiciário, o falecido juiz Hugo Black foi especialmente notável ao defender a liberdade de expressão das restrições governamentais com base na Primeira Emenda da constituição.
Porém existem áreas nas quais até mesmo os libertários civis mais ardorosos vêm sendo vagos, infelizmente. O que dizer, por exemplo, da “incitação à revolta”, na qual um indivíduo que se pronunciou é considerado culpado criminalmente por ter instigado uma turba que então se revoltou e cometeu diversos atos e crimes contra a pessoa e a propriedade? Em nosso ponto de vista, a “incitação” só pode ser considerada um crime se negarmos o livre arbítrio e a liberdade de escolha de todos os homens, e aceitarmos, que se A disser a B e C: “você e ele, vão em frente e provoquem distúrbios!”, de alguma maneira B e C estão inevitavelmente fadados a ir adiante e cometer o ato ilícito. No entanto, o libertário que acredita no livre arbítrio deve insistir que, por mais que seja imoral ou infeliz da parte de A defender um tumulto, sua atitude permanece restrita à esfera da defesa, e não deve estar sujeita a uma punição legal. Obviamente, se A também participar do tumulto, então ele próprio se tornou um tumultuador e passa estar sujeito, da mesma maneira, a uma punição. Além disso, se A for o chefe de uma organização criminosa, e, no exercício de sua atividade ilícita, ordenar a seus comparsas: “Você e ele, vão e roubem este e aquele banco”, então obviamente A, de acordo com a lei que qualifica a cumplicidade, passa a ser considerado participante ou até mesmo líder da própria organização criminosa.
Se a defesa de algo não deve ser considerada um crime, tampouco deveria ser a “conspiração para defender” algo, pois, diferentemente do que afirma a legislação, infelizmente tão desenvolvida, que regulamenta as conspirações, “conspirar” (isto é, concordar) para fazer algo nunca deveria ser mais ilegal do que cometer o próprio ato em si. (Como, de fato, pode se definir “conspiração” senão um acordo entre duas ou mais pessoas para fazer algo que você, que está definindo o ato, não gosta?)[1]
Outra área difícil é a da lei de calúnia e difamação. Geralmente tem se considerado legítimo restringir a liberdade de expressão se esta tem o efeito de danificar de maneira falsa ou maliciosa a reputação de outra pessoa. O que a lei de calúnia e difamação faz, resumidamente, é afirmar um “direito de propriedade” de uma pessoa sobre sua própria reputação. No entanto, a “reputação” de alguém não é não pode ser uma “propriedade” dessa pessoa, uma vez que ela é puramente uma função das atitudes e sentimentos subjetivos de outras pessoas. E como ninguém pode, de fato, “possuir” a mente e a atitude de outra pessoa, isto significa que ninguém pode ter, literalmente, um direito de propriedade sobre a sua “reputação”. A reputação de uma pessoa varia constantemente, de acordo com as atitudes e opiniões do resto da população; logo, alguém que se exprima atacando outra pessoa não pode estar invadindo os direitos de propriedade desta pessoa e, portanto, não deveria estar sujeito a qualquer restrição ou punição legal.
É, obviamente, imoral fazer acusações falsas contra outra pessoa, porém, novamente, o moral e o legal são, para o libertário, duas categorias muito diferentes.
Além disso, pragmaticamente, se não existissem leis de calúnia e difamação, as pessoas estariam muito menos dispostas a dar crédito a acusações insuficientemente documentadas do que têm sido. Hoje em dia, se um homem é acusado de alguma conduta irregular ou delito, a reação geral é de acreditar nessa acusação, já que, se a acusação fosse falsa, “por que ele não entra com um processo por calúnia?” A lei da calúnia, claro, discrimina assim contra os mais pobres, já que uma pessoa com poucos recursos financeiros dificilmente terá como dar sequência a um processo custoso de calúnia contra uma pessoa abastada. Ademais, pessoas mais ricas agora podem usar as leis de calúnia contra as pessoas mais pobres, restringindo declarações e acusações perfeitamente legítimas por meio da ameaça de processar seus inimigos mais pobres por calúnia. Paradoxalmente, então, no sistema atual uma pessoa de recursos mais limitados tem mais probabilidade de sofrer calúnias—e de ter sua liberdade de expressão restringida—do que ele teria num mundo sem quaisquer leis contra calúnia ou difamação.
Felizmente, nos últimos anos as leis contra a calúnia têm sido gradualmente enfraquecidas, a tal ponto que uma pessoa já pode fazer críticas vigorosas e agudas a funcionários públicos e pessoas públicas sem ter medo de estar sujeita a processos legais custosos ou uma punição legal.
Outra atitude que deveria estar completamente livre de quaisquer restrições é o boicote. Num boicote, uma ou mais pessoas usam seu direito de expressão para incitar, por quaisquer que sejam os motivos—importantes ou triviais—outras pessoas a deixar de comprar o produto de alguém. Se, por exemplo, diversas pessoas organizam uma campanha—qualquer que seja o motivo—para incitar os consumidores a parar de comprar a cerveja XYZ, isto novamente é apenas uma forma de defesa, e, além do mais, uma defesa de um ato perfeitamente legítimo—não comprar a cerveja. Um boicote bem-sucedido pode ser prejudicial para os produtores da cerveja XYZ, mas isto, novamente, está rigorosamente dentro do âmbito da liberdade de expressão e dos direitos da propriedade privada. Os fabricantes da cerveja XYZ se arriscam com as liberdades de escolha de seus consumidores, e os consumidores têm o direito de ouvir e ser convencidos por quem eles bem entenderem. No entanto, nossas leis trabalhistas têm interferido com o direito dos sindicatos laborais de organizar boicotes contra empresas. Também é ilegal, sob a nossa legislação bancária, espalhar rumores a respeito da insolvência de um banco—um caso claro de privilégios especiais sendo outorgados pelo governo aos bancos através do banimento da liberdade de expressão de quem se opõe ao seu uso.
Um tema particularmente espinhoso é a questão de piquetes e demonstrações. A liberdade de expressão implica, obviamente, liberdade de reunião—a liberdade de se juntar com outras pessoas e se expressar em conjunto com elas. Mas a situação se torna ainda mais complexa quando envolve o uso das ruas. É claro que os piquetes são ilegítimos quando são usados—como costumam ser—para bloquear o acesso a uma fábrica ou edifício privado, ou quando os piquetes ameaçam o uso de violência àqueles que cruzarem as linhas dos piquetes. Também é claro que os protestos sentados[2] são uma invasão ilegítima de propriedade privada. Porém até mesmo os “piquetes pacíficos” não são claramente legítimos, pois fazem parte de um problema mais amplo: quem decide a respeito do uso das ruas? O problema surge do fato de que as ruas são quase que universalmente de propriedade do governo (local). Porém o governo, por não ser um proprietário privado, carece de algum critério a respeito da alocação do uso de suas ruas, de modo que qualquer decisão que ele tomar será arbitrária.
Suponhamos, por exemplo, que os Amigos de Wisteria desejem demonstrar e fazer uma passeata a favor de Wisteria numa rua pública. A polícia proíbe a demonstração, alegando que ela irá obstruir as ruas e interromper o tráfego. Os libertários civis automaticamente protestarão, alegando que o “direito de liberdade de expressão” dos participantes da passeata por Wisteria estão sendo violados injustamente. A polícia também tem, no entanto, um argumento perfeitamente legítimo: as ruas poderão ficar obstruídas, e manter o bom fluxo do tráfego é uma responsabilidade do governo. Como decidir, então? Qualquer que seja a decisão do governo, algum grupo de pagadores de impostos será prejudicado pela decisão. Se o governo decidir permitir a demonstração, os motoristas ou pedestres serão prejudicados; se ele não permitir, os Amigos de Wisteria é que o serão. Em qualquer um dos casos, o fato do governo tomar as decisões gera um conflito inevitável, entre os pagadores de impostos e cidadãos, a respeito de quem deve e quem não deve utilizar o recurso governamental.
É unicamente o fato universal da propriedade e do controle governamental sobre as ruas que torna este problema insolúvel e esconde a sua verdadeira solução. O ponto é que quem quer que detenha a posse de um recurso decide a respeito de como este recurso deverá ser utilizado. O dono de uma prensa decide o que deverá ser impresso naquela prensa. E o dono das ruas decide como atribuir o seu uso. Em suma, se as ruas fossem de propriedade privada e os Amigos de Wisteria pedissem para utilizar a Quinta Avenida para fazer sua manifestação, caberia ao dono da Quinta Avenida decidir se alugaria a rua para a utilização dos manifestantes ou a manteria aberta ao tráfego. Num mundo puramente libertário, onde todas as ruas são de propriedade privada, os diversos proprietários das ruas poderão decidir, a qualquer momento, se desejam alugar as ruas para manifestações, para quem alugá-las, e que preço cobrar. Ficaria então claro que o que está em jogo não é uma questão de “liberdade de expressão” ou “liberdade de reunião”, mas sim uma questão de direitos de propriedade; o direito de um grupo de fazer uma oferta para alugar uma rua, e o direito do proprietário daquela rua de aceitar ou rejeitar esta oferta.
LIBERDADE DE RÁDIO E TELEVISÃO
Existe uma área importante da vida americana na qual nenhuma liberdade efetiva de expressão ou de imprensa existe ou pode existir sob o sistema atual; é o campo do rádio e televisão. Nesta área, o governo federal, no Radio Act de 1927, de importância crucial, nacionalizou as ondas de rádio. Para todos os efeitos, o governo federal tomou para si o título de propriedade de todos os canais de rádio e televisão, e então teve a ousadia de conceder licenças para o uso destes canais, de acordo com sua vontade ou inclinação, a diversas estações privadas. Por um lado, as estações não precisam pagar pelo uso das escassas ondas de rádio, como precisariam fazer no mercado livre, uma vez que receberam gratuitamente estas licenças; assim, estas estações recebem um enorme subsídio, que estão ávidas por manter. Mas, por outro lado, o governo federal, como concessor das licenças das ondas de rádio, afirma de maneira minuciosa e contínua o seu direito e poder de regulamentar as estações. Assim, sobre a cabeça de cada estação paira a ameaça da não-renovação, ou até mesmo da suspensão, de sua licença; consequentemente, a ideia de liberdade de expressão no rádio e na televisão não passa de uma piada. Todas as estações sofrem restrições graves, e são forçadas a moldar sua programação de acordo com os ditames da Comissão Federal de Comunicações (Federal Communications Commission, a FCC). Assim, todas as estações precisam ter uma programação “equilibrada”, transmitir uma determinada quantidade de anúncios de “serviço público”, conceder a mesma quantidade de tempo a todos os candidatos políticos que concorrem a um mesmo cargo e a expressões de opiniões políticas, censurar letras de música “controversas” nas gravações que tocam etc. Por muitos anos, nenhuma estação pôde transmitir qualquer tipo de opinião editorial; agora, qualquer opinião deve ser contrabalanceada por refutações editoriais “responsáveis”.
Uma vez que cada estação e cada locutor ou apresentador deve estar em vigília permanente com relação à FCC, a liberdade de expressão na radiodifusão é um engodo. É de se surpreender que quando uma opinião a respeito de questões controversas é emitida na televisão, se é que ela chega a ser emitida, tende a ser friamente a favor do “Establishment“?
O público apenas tolera esta situação porque ela existe desde o início do rádio comercial em grande escala. Mas o que pensaríamos, por exemplo, se todos os jornais precisassem de licenças, que por sua vez precisassem ser renovadas com uma Comissão Federal de Imprensa, e que os jornais perdessem suas licenças se ousassem expressar uma opinião editorial “injusta”, ou se não dessem o peso devido aos anúncios de serviço público? Não seria isto uma destruição intolerável, para não dizer inconstitucional, do direito a uma imprensa livre? Ou imaginemos se todas as editoras precisassem de uma licença para publicar livros, e se estas licenças não fossem renovadas caso seus catálogos não fossem considerados adequados por uma Comissão Federal do Livro? No entanto, o que todos nós consideraríamos intolerável e totalitário para a imprensa e as editoras de livros é considerado normal e certo em mídias que, atualmente, são o veículo mais popular tanto para expressão quanto para educação: o rádio e a televisão. Mas os princípios, em ambos os casos, são os mesmos.
Aqui também podemos ver um dos defeitos fatais da ideia do “socialismo democrático”, isto é, a ideia de que o governo deve ser dono de todos os recursos e meios de produção e ainda assim preservar e manter a liberdade de expressão e de imprensa para todos os seus cidadãos. Uma constituição abstrata que garanta a “liberdade de imprensa” não tem sentido numa sociedade socialista. O ponto é que onde quer que o governo detenha a propriedade de todo o papel, papel de imprensa, prensas etc., o governo—enquanto proprietário—terá que decidir como alocar recursos como o papel e o papel de imprensa, e o que imprimir neles. Assim como o governo, na qualidade de proprietário das ruas, deve decidir como elas devem ser utilizadas, um governo socialista também terá que decidir sobre como irá alocar o papel de imprensa e outros recursos envolvidos nas áreas da expressão e da imprensa: salas de reunião, máquinas, caminhões etc. Qualquer governo pode declarar sua devoção à liberdade de expressão, e ainda assim alocar todo o seu papel de imprensa apenas àqueles que o defendem e apoiam. Uma imprensa livre, mais uma vez, se torna uma piada; além disso, por que um governo socialista deveria alocar qualquer quantidade considerável de seus escassos recursos para antissocialistas? O problema da liberdade de imprensa genuína se torna, então, insolúvel.
A solução para o rádio e a televisão? Simples: tratar estes meios de comunicação exatamente da mesma maneira que a imprensa e as editoras são tratadas. Tanto para o libertário quanto para aquele que acredita na constituição americana o governo deveria se abster completamente de qualquer papel ou interferência em todo tipo de meio de expressão. Em resumo: o governo federal deve desnacionalizar as ondas de rádio e dar ou vender cada um dos canais para a propriedade privada. Quando as estações privadas forem genuinamente donas de seus canais, elas serão verdadeiramente livres e independentes, poderão levar ao ar quaisquer programas que desejarem produzir, ou que acreditarem que seus espectadores queiram assistir, e poderão se expressar da maneira que quiserem sem temer uma retaliação do governo. Também poderão vender ou alugar as ondas de rádio para quem bem entenderem, e, desta forma, os usuários dos canais deixarão de ser subsidiados artificialmente.
Além disso, se os canais de televisão se tornarem livres, de propriedade privada, e independentes, as grandes redes não poderão mais pressionar a FCC a banir os eficazes concorrentes da televisão paga. Foi apenas por ter banido a TV paga que a FCC conseguiu uma posição tão segura. A “TV aberta”, ou seja, “gratuita”, não é, obviamente, “gratuita” de fato; os programas são pagos pelos anunciantes, e o consumidor paga ao cobrir os custos da publicidade incluídos no preço do produto que ele compra. Pode-se perguntar que diferença faz para o consumidor se ele paga os custos de publicidade indiretamente, ou diretamente para cada programa que ele compra; a diferença é que não são os mesmos consumidores que compram os mesmos produtos. A publicidade na televisão, por exemplo, está sempre interessada em (a) conquistar o maior mercado possível de espectadores; e (b) conquistar aqueles espectadores específicos que serão mais suscetíveis à mensagem. Logo, os programas serão todos dirigidos ao mais baixo denominador comum do público, e, mais precisamente, àqueles espectadores mais suscetíveis à mensagem, isto é, aqueles espectadores que não leem jornais ou revistas, para que a mensagem não repita os anúncios publicitários que eles podem ver lá. Como resultado, os programas da TV aberta tendem a ser pouco criativos, insossos e monótonos. A TV paga faria com que cada programa procurasse por seu próprio mercado, e diversos mercados especializados para públicos especializados seriam desenvolvidos—da mesma maneira que mercados especializados altamente lucrativos foram desenvolvidos nos campos da publicação de livros e revistas. A qualidade dos programas seria alta e a oferta muito mais diversificada. Na realidade, a ameaça do potencial de concorrência da TV paga deve ser grande para que as redes tenham feito por anos um lobby para reprimi-la. Porém, obviamente, num mercado verdadeiramente livre, ambas as formas de televisão, bem como a TV a cabo e outras formas que ainda não podemos imaginar, podem e devem competir.
Um argumento comum contra a propriedade privada dos canais de TV é o de que estes canais são “escassos” e, portanto, têm de pertencer ao governo e ser distribuídos por ele. Para um economista, este é um argumento tolo; todos os recursos são escassos, e na realidade qualquer coisa que tenha um preço no mercado o tem exatamente porque é escassa. Temos que pagar uma determinada quantia por um pão, por sapatos, por vestidos, porque todos eles são escassos. Se não fossem escassos, mas sim superabundantes como o ar, eles seriam gratuitos, e ninguém teria que se preocupar com sua produção ou distribuição. No campo da imprensa, o papel-imprensa é escasso, o papel é escasso, o maquinário de impressão e os caminhões são escassos etc. Quanto mais escasso é algo, maior o seu preço, e vice-versa. Além disso, na prática, novamente, existem muito mais canais de televisão disponíveis do que os que são utilizados atualmente. A decisão inicial da FCC de forçar as estações a utilizar a faixa VHF em vez da UHF criou uma escassez muito maior de canais do que seria necessário.
Outra objeção comum à propriedade privada na mídia de radiodifusão é que as estações privadas interfeririam com as transmissões uns dos outros, e que estas inferências tão generalizadas virtualmente acabariam por tornar impossível que qualquer programa fosse visto ou ouvido. Mas este é um argumento tão absurdo para se nacionalizar as ondas de rádio quanto alegar que, como as pessoas podem dirigir seus carros sobre a terra de outras pessoas isto implica que todos os carros—ou terra—devem ser nacionalizados. O problema, em ambos os casos, é dos tribunais, que devem demarcar os títulos de propriedade de maneira suficientemente cuidadosa para que qualquer invasão da propriedade do outro seja bem definida e esteja sujeita a processos legais. No caso dos títulos de propriedade de terra, este processo é suficientemente claro. Mas o ponto é que os tribunais podem aplicar um processo similar de demarcação de títulos de propriedade em outras áreas—sejam elas ondas de rádio e televisão, águas ou poços petrolíferos. No caso das ondas de rádio e televisão, a tarefa consiste em se encontrar a unidade tecnológica—isto é, o local de transmissão, a distância da onda, e a largura da banda de um canal livre—e então alocar os direitos de propriedade a esta unidade tecnológica específica. Se a estação de rádio WXYZ, por exemplo, recebeu o direito de propriedade para transmitir em 1500 quilociclos, com uma largura de banda de mais ou menos um número determinado de quilociclos, numa área de 200 milhas em torno de Detroit, então qualquer outra estação que passe a transmitir um programa na região de Detroit neste comprimento de onda estaria sujeita a ser processada por interferir com os direitos de propriedade. Se os tribunais cumprirem sua função de demarcar e defender os direitos de propriedade, não haverá mais motivo para se esperar invasões contínuas destes direitos nesta área do que em qualquer outra.
A maioria das pessoas acredita que este é exatamente o motivo pelo qual as ondas de rádio foram nacionalizadas: que antes do Radio Act de 1927, as estações interferiam de tal modo umas com as outras que seguiu-se o caos, e o governo federal acabou por ser forçado a intervir para trazer a ordem e tornar viável, finalmente, a indústria radiofônica. Mas isto é uma lenda histórica, não um fato. A história real é que ocorreuexatamente o oposto disso, pois quando as interferências nos mesmos canais começaram a ocorrer, as partes prejudicadas levaram os agressores das ondas de rádio aos tribunais, e os tribunais começaram a pôr ordem no caos ao aplicar com muito sucesso a teoria de direitos de propriedade do direito comum—que se assemelha, de muitas maneiras, à teoria libertária—a este novo campo tecnológico. Em suma, os tribunais estavam começando a designar direitos de propriedade nas ondas de rádio aos usuários que tinham a posse prévia delas. Foi apenas depois do governo federal ver a probabilidade desta nova ampliação da propriedade privada que ele se apressou em nacionalizar as ondas de rádio, utilizando-se do suposto caos como desculpa.
Descrevendo a situação de uma maneira um pouco mais completa, o rádio, nos primeiros anos do século, era quase que exclusivamente um meio de comunicação para navios—seja para mensagens entre navios ou entre um navio e a costa. O Departamento da Marinha tinha interesse em regulamentar o rádio como forma de garantir a segurança nos mares, e a primeira regulamentação federal, um ato de 1912, apenas estabelecia que qualquer estação de rádio tinha que ter uma licença emitida pela Secretaria de Comércio. A lei, no entanto, não estabelecia qualquer poder para impor regras ou decidir não renovar licenças, e quando as transmissões radiofônicas públicas foram iniciadas, no início da década de 1920, o secretário de comércio Herbert Hoover tentou regulamentar as estações. Decisões judiciais em 1923 e 1926, no entanto, negaram ao governo o poder de regulamentar as licenças, não renová-las, e até mesmo de decidir a respeito de quais comprimentos de onda as estações deveriam utilizar.[3] Por volta do mesmo período, os tribunais estavam desenvolvendo o conceito de “posse prévia” acerca dos direitos de propriedade privada nas ondas de rádio, particularmente no caso Tribune Co. v. Oak Leaves Broadcasting Station (Circuit Court, Condado de Cook, Illinois, 1926). Neste caso o tribunal determinou que o operador de uma estação já existente tinha um direito de propriedade, adquirido pelo uso prévio, que era suficiente para impedir que uma nova estação utilizasse determinada frequência de rádio de qualquer maneira que causasse interferência com o sinal da estação anterior.[4] E assim, fez-se ordem a partir do caos através da atribuição dos direitos de propriedade. Porém foi exatamente este progresso que o governo se apressou a impedir.
A decisão de Zenith de 1926 que derrubou o poder do governo de regulamentar ou não renovar licenças e forçou o Departamento de Comércio a emitir uma licença para qualquer estação que a solicitasse provocou uma grande expansão da indústria radiofônica. Mais de 200 novas estações foram criadas nos nove meses que se seguiram à decisão. Como resultado, o congresso aprovou rapidamente uma medida provisória, em julho de 1926, visando impedir qualquer direito de propriedade sobre as frequências radiofônicas, e determinou que todas as licenças deveriam ter um prazo de validade de 90 dias. Em fevereiro de 1927 o congresso aprovou a lei que criou a Comissão Federal de Rádio (Federal Radio Commission, a FRC), que nacionalizou as ondas de rádio e detinha poderes semelhantes aos da atual FCC. O historiador jurídico H. P. Warner demonstrou que a meta dos perspicazes políticos não era evitar o caos, mas sim evitar a propriedade privada das ondas de rádio como uma solução para o caos. Warner afirma que “os legisladores e aqueles que geralmente eram encarregados de administrar as comunicações expressaram graves temores (…) de que a regulamentação governamental eficaz poderia ser evitada de maneira permanente através do aumento dos direitos de propriedade em licenças ou meios de acesso, e que, desta forma, poderiam ser criadas franquias com um valor de milhões de dólares e uma duração ilimitada.”[5] O resultado final, no entanto, foi a criação de franquias de igual valor, porém de uma maneira monopolista, através da generosidade da Comissão Federal de Rádio e de sua sucessora, a FCC, no lugar da competitividade da apropriação original.
Entre as inúmeras interferências diretas na liberdade de expressão exercidas pelo poder licenciador da FRC e da FCC, basta citar o exemplo de dois casos. Um ocorreu em 1931, quando a FRC negou a renovação da licença para um senhor Baker, que operava uma estação de rádio em Iowa. Ao fazê-lo, a Comissão de pronunciou:
Esta Comissão não tem qualquer coisa contra as Associações Médicas e outros grupos dos quais o senhor Baker não gosta. Seus supostos pecados podem, ocasionalmente, ter importância pública, e devem ser trazidos à atenção do público durante as transmissões da maneira adequada. Porém estas evidências indicam que o senhor Baker não o fez de uma maneira minimamente nobre. Elas mostram que ele se entrega, de maneira contínua e errática, a umhobby pessoal, abordando em suas transmissões suas ideias a respeito da cura do câncer e seus gostos e aversões a respeito de determinadas pessoas e coisas. Seguramente, infligir tudo isto a seus ouvintes não é um uso apropriado de uma licença radiofônica. Muitas de suas declarações são vulgares, quando não verdadeiramente indecentes. Seguramente não são edificantes ou divertidas.[6]
Podemos imaginar a revolta se o governo federal fechasse um jornal ou uma editora por motivos semelhantes?
Um ato recente da FCC foi ameaçar a não-renovação da licença da estação de rádio KTRG, de Honolulu, uma das principais estações do Havaí. A KTRG vinha transmitindo programas libertários por diversas horas por dia há aproximadamente dois anos, até que por fim, no final da década de 1970, a FCC decidiu dar início à longas audiências visando não renovar a licença da rádio, e o custo desta ameaça forçou os proprietários a fechar permanentemente a estação.[7]
PORNOGRAFIA
Para o libertário, os argumentos entre conservadores e progressistas a respeito das leis que proíbem a pornografia são exaustivamente alheios à questão. A posição conservadora tende a sustentar que a pornografia é degradante e imoral e, portanto, deve ser proibida. Os progressistas tendem a rebater afirmando que o sexo é bom e saudável, e que, portanto, a pornografia só pode ter efeitos positivos, e que são as cenas de violência—tanto na televisão, quanto em filmes ou em quadrinhos—que devem ser proibidas. Nenhum dos lados aborda o ponto crucial: que as consequências boas, más, ou indiferentes, da pornografia, por mais que por si só sejam um problema interessante, são totalmente irrelevantes à questão de se ela deve ou não ser proibida. O libertário sustenta que não cabe à lei—o uso da violência retaliatória—defender o conceito de moralidade de quem quer que seja. Não cabe à lei—ainda que isto fosse possível na prática, o que é, claro, altamente improvável—fazer com que alguém seja bom, respeitoso, moral, decente ou íntegro. Isto é algo que cabe a cada indivíduo decidir por si mesmo. A função da violência legal é unicamente a de defender as pessoas contra o uso da violência, defendê-las de invasões violentas de sua pessoa ou de sua propriedade. Porém a partir do momento que o governo se atreve a proibir a pornografia, ele próprio se torna um legítimo fora-da-lei—pois está invadindo os direitos de propriedade das pessoas de produzir, vender, comprar ou possuir material pornográfico.Não aprovamos leis para tornar as pessoas íntegras; não aprovamos leis para forçar as pessoas a serem boas a seus vizinhos ou não gritarem com o motorista do ônibus; não aprovamos leis para forçar as pessoas a serem honestas com seus entes queridos. Não aprovamos leis para forçá-las a comer uma quantidade X de vitaminas por dia. Nem cabe ao governo, ou a qualquer agência legal, aprovar leis contra a produção ou a venda voluntária de pornografia. Se a pornografia é boa, má, ou indiferente não deveria ser algo de interesse das autoridades legais.
O mesmo se aplica ao bicho-papão progressista da “pornografia da violência”. Se assistir cenas violentas na televisão pode ajudar a levar ou não alguém a cometer crimes na vida real não deveria ser algo que diz respeito ao estado. Banir filmes violentos porque eles podem um dia induzir alguém a cometer um crime é negar o livre arbítrio de um homem, e uma negação total, obviamente, do direito daqueles que não cometerão crimes ao ver o filme. Mas, e ainda mais importante, não é mais justificável—na verdade, é menos—banir filmes violentos por este motivo do que seria, como apontamos, prender todos os adolescentes negros do sexo masculino porque eles têm uma tendência maior a cometer crimes que o resto da população.
Deveria estar claro, também, que a proibição da pornografia é uma invasão do direito de propriedade, do direito de produzir, vender, comprar e possuir. Os conservadores que pedem pelo banimento da pornografia não parecem perceber que estão, ao fazê-lo, violando o próprio conceito de direitos de propriedade que eles alegam defender. Também é uma violação do direito da liberdade de imprensa que, como vimos, é na verdade um subgrupo do direito geral de propriedade privada.
Por vezes parece que o beau ideal de muitos conservadores, bem como o de muitos progressistas, é colocar todas as pessoas numa jaula e coagi-los a fazer o que conservadores ou progressistas acreditam ser moral. Seriam, obviamente, jaulas de estilos totalmente diferentes, porém continuariam sendo jaulas. O conservador baniria o sexo ilegal, drogas, jogos de azar e o desprezo pela religião, e coagiria todos a agirem de acordo com suas versões de moral e comportamento religioso. Já o progressista baniria filmes violentos, a publicidade antiestética, o futebol e a discriminação racial e, em casos mais extremos, colocaria todos numa “caixa de Skinner” onde seriam governados por um ditador progressista supostamente benevolente. O efeito, no entanto, seria o mesmo: reduzir todos a um nível sub-humano, e privar todos da parte mais preciosa de sua humanidade—a liberdade de escolher.
A ironia, claro, é que ao forçar os homens a serem “morais”—isto é, a agirem de uma maneira moral—os carcereiros conservadores ou progressistas estariam, na realidade, privando os homens da própriapossibilidade de serem morais. O conceito de “moralidade” não tem sentido a menos que o ato moral tenha sido escolhido livremente. Suponhamos, por exemplo, que alguém seja um muçulmano devoto, ansioso para fazer o máximo possível de pessoas se inclinar para Meca três vezes por dia; para ele, suponhamos, este é o ato moral mais elevado. Se ele, no entanto, utilizar-se da coerção para forçar todos a se inclinarem pra Meca, ele estará privando todos da oportunidade de serem morais—de escolherem livremente se inclinar para Meca. A coerção priva um homem da liberdade de escolha e, portanto, da possibilidade de fazer escolhas morais.
O libertário, ao contrário de tantos conservadores e progressistas, não tem a intenção de colocar o homem em jaula alguma. O que ele quer para todos é a liberdade, a liberdade de agir de maneira moral ou imoral, como cada um decidir.
LEIS SEXUAIS
Nos últimos anos, os progressistas felizmente vêm chegando à conclusão de que “qualquer ato realizado entre dois (ou mais) adultos de maneira consensual” deveria ser legal. Infelizmente, os progressistas ainda não ampliaram este critério para incluir o sexo mediante comércio ou troca, pois, se o fizessem, estariam muito perto de se tornarem integralmente libertários. Pois o libertário está exatamente interessado em legalizar todas as relações, quaisquer que sejam, entre “adultos anuentes”. Os progressistas também começaram a pedir pela abolição dos “crimes sem vítimas”, o que seria esplêndido se o termo “vítimas” fosse definido, com maior precisão, como vítimas de violência agressiva.
Uma vez que o sexo é um aspecto exclusivamente privado da vida, é especialmente intolerável que os governos se atrevam a regulamentar e legislar sobre o comportamento sexual; ainda assim, este é um dos passatempos favoritos do estado. Atos violentos como o estupro, obviamente, devem ser classificados como crimes da mesma maneira que qualquer outro ato de violência cometido contra uma pessoa.
Estranhamente, enquanto atividades sexuais voluntárias frequentemente são consideradas ilegais e processadas legalmente pelo estado, indivíduos acusados de estupro vêm sendo tratados de maneira muito mais branda do que aqueles acusados de cometer outras formas de ataques corporais. Em muitos casos, na realidade, a vítima de estupro é que acaba virtualmente por ser tratada como culpada pelas agências responsáveis pela aplicação da lei—uma atitude que quase nunca ocorre quando se trata de vítimas de outros crimes. Claramente, uma duplicidade de pesos e medidas inadmissível vem sendo posta em prática. Como declarou, em março de 1977, o Conselho Nacional da União de Liberdades Civis Americanas (American Civil Liberties Union):
As vítimas de ataques sexuais não devem ser tratadas de maneira diferente de vítimas de quaisquer outros crimes. Estas vítimas de ataques sexuais muitas vezes são tratadas com ceticismo e de forma abusiva por parte das equipes responsáveis pela aplicação da lei e pelos serviços de saúde. Este tratamento vai da insensibilidade e do descrédito oficial a investigações duras da motivação e do estilo de vida da vítima. Tamanha revogação de responsabilidade por parte de instituições que deveriam auxiliar e proteger as vítimas de um crime só acaba aumentando o trauma da experiência original da vítima.
A duplicidade de pesos e medidas imposta pelo governo pode ser solucionada com a remoção do estupro de uma categoria especial de tratamento legal e judicial, e com a sua categorização sob a lei geral de ataque corporal. Quaisquer que sejam os padrões utilizados para as instruções dos juízes ao júri, ou em relação à admissibilidade de evidências, eles devem ser aplicados de maneira semelhante em todos os casos.
Se o trabalho e as pessoas em geral devem ser livres, então também deveria existir a liberdade para seprostituir. A prostituição é uma venda voluntária de um serviço de trabalho, e o governo não tem direito de proibir ou restringir estas vendas. Deve-se apontar que muitos dos aspectos mais deprimentes da prostituição de rua foram gerados pela proibição dos bordéis. Como duradouras casas de prostituição administradas por cafetinas preocupadas em cativar seus clientes durante um longo espaço de tempo, os bordéis costumavam competir para fornecer um serviço de alta qualidade e consolidar o nome de sua “marca”. A proibição dos bordéis forçou a prostituição a uma existência clandestina, no “mercado negro”, com todos os perigos e o declínio generalizado na qualidade que isto acarreta. Recentemente, na cidade de Nova York, vem sendo manifestada uma tendência, por parte da polícia, de reprimir a prostituição sob o pretexto de que este comércio não seria mais “sem vítimas”, uma vez que muitas prostitutas cometem crimes contra seus clientes. Proibir formas de comércio que possam atrair o crime, no entanto, passaria a justificar, do mesmo modo, a proibição de bebidas alcoólicas porque muitas brigas ocorrem em bares. A resposta não é proibir atividades voluntárias e que estejam verdadeiramente dentro da lei, mas sim que a polícia passasse a se encarregar de que crimes genuínos não fossem cometidos. Deve ficar claro também que, para o libertário, a defesa da liberdade de prostituição não implica a defesa da prostituição em si. Em suma, se um governo particularmente puritano pretendesse proibir todos os cosméticos, o libertário clamaria pela legalização dos cosméticos sem, de qualquer maneira, implicar que ele está a favor—ou, do mesmo modo, contra—a utilização destes próprios cosméticos. Pelo contrário, dependendo de seu próprio senso pessoal de ética ou estética, ele pode muito bem fazer uma campanha contra o uso de cosméticos, uma vez que eles estejam legalizados; sua tentativa será sempre de persuadir, e não de obrigar.
Se o sexo deveria ser livre, então o controle de natalidade deveria, é claro, ser igualmente livre. É uma característica infeliz de nossa sociedade, no entanto, que assim que o controle de natalidade foi legalizado, pessoas—neste caso, os progressistas—se insurgiram para advogar que o controle de natalidade passasse a sercompulsório. É verdade, claro, que se meu vizinho tiver um bebê isto me afetará, por bem ou por mal. Mas, por este raciocínio, quase tudo que qualquer um fizer afetará uma ou mais pessoas. Para o libertário, isto dificilmente é uma justificativa para o uso da força, que deve apenas ser usada para combater ou restringir o próprio uso da força. Não há direito mais pessoal, não há liberdade mais preciosa, que o de qualquer mulher de decidir ter, ou não ter, um filho, e um governo ousar negar a ela esse direito é o mais alto grau de totalitarismo. Além do mais, se uma família tem mais crianças do que pode sustentar de maneira confortável, a própria família será responsável por carregar este fardo; logo, o resultado quase universal será de que a vontade de manter um tão desejado aumento dos padrões de vida acabará por induzir uma redução voluntária no número de nascimentos por parte das próprias famílias.
Isto nos leva ao caso mais complexo do aborto. Para o libertário, o ponto de vista “católico” contra o aborto, ainda que acabe finalmente sendo rejeitado como inválido, não pode ser descartado de cara. Pois a essência deste ponto de vista—que não é, de maneira alguma, realmente “católico” num sentido teológico—é que o aborto destrói uma vida humana e, portanto, é um assassinato, e como tal não pode ser consentido. Mais que isso, se o aborto de fato é assassinato, então o católico—ou qualquer outra pessoa que partilha deste ponto de vista—não pode simplesmente dar de ombros e dizer que os pontos de vista “católicos” não devem ser impostos aos não-católicos. O assassinato não é uma expressão de preferência religiosa; nenhuma seita, em nome da “liberdade de culto”, pode ou deve cometer impunemente um assassinato com a justificativa de que sua religião assim o ordena. A questão vital então se torna: deveria o aborto ser considerado um assassinato?
A maioria das discussões a este respeito fica atolada em minúcias a respeito de quando se inicia a vida humana, quando e se o feto pode ser considerado um ser vivo etc. Tudo isto é realmente irrelevante à questão da legalidade (mais uma vez, não necessariamente à moralidade) do aborto. O católico contrário ao aborto, por exemplo, afirma que tudo o que ele quer para o feto são os direitos de qualquer ser humano—isto é, o direito de não ser assassinado. Mas há mais questões envolvidas aqui, e esta é a consideração crucial. Se vamos tratar o feto como tendo os mesmos direitos que os seres humanos, então devemos perguntar: que ser humano tem o direito de continuar, sem que isto tenha sido algo voluntário, a ser um parasita indesejado do corpo de outro ser humano? Este é o ponto essencial da questão: o direito absoluto de todas as pessoas e, logo, de todas as mulheres, à propriedade de seu próprio corpo. O que uma mulher está fazendo, num aborto, é fazer com que uma entidade indesejada dentro de seu próprio corpo seja expulsa dele; se o feto morrer, isto não refuta o ponto de que nenhum ser tem o direito de viver, sem que isto tenha sido desejado, como um parasita dentro ou sobre o corpo de qualquer pessoa.
A réplica comum de que a mãe ou desejava, originalmente, ou pelo menos foi responsável por colocar o feto dentro de seu corpo passa, mais uma vez, longe do ponto da questão. Mesmo no caso mais forte em que a mãe tenha originalmente desejado a criança, a mãe, como possuidora da propriedade de seu próprio corpo, tem o direito de mudar de ideia e expulsá-lo.
Se o estado não deve reprimir a atividade sexual voluntária, ele tampouco deve discriminar a favor ou contra qualquer um dos sexos. Decretos de “ação afirmativa” são uma maneira óbvia de impor uma discriminação contra os homens ou outros grupos em empregos, vagas de admissão ou onde quer que este sistema implícito de cotas seja aplicado. Estas leis trabalhistas “protetoras” das mulheres, que pretendem, insidiosamente, favorecê-las, acabam por discriminá-las, na realidade, ao proibi-las de trabalhar durante determinados horários ou em determinadas ocupações. As mulheres são proibidas por lei de exercitar sua liberdade individual de escolha ao decidir por si mesmas se devem ou não desempenhar estas ocupações ou trabalhar durante estes horários supostamente onerosos. Desta maneira, o governo acaba evitando que as mulheres compitam livremente contra os homens nestes campos.
No geral, a plataforma de 1978 do Partido Libertário foi incisiva e precisa ao estabelecer a posição libertária a respeito das discriminações governamentais com base no sexo ou qualquer outro critério: “nenhum direito individual deverá ser negado ou restringido pelas leis dos Estados Unidos, ou qualquer estado ou localidade, com base em sexo, raça, cor, credo, idade, origem nacional ou preferência sexual.”
ESCUTAS TELEFÔNICAS
Escutas telefônicas constituem uma invasão desprezível da privacidade e dos direitos de propriedade, e devem, obviamente, ser proibidas por constituírem um ato invasivo. Poucas pessoas, ou talvez nenhuma, consentem escutas telefônicas privadas. A controvérsia surge com aqueles que sustentam que a polícia deveria ter o poder de colocar escutas nas linhas telefônicas de pessoas que eles suspeitam ter cometido algum crime. De outro modo, como estes criminosos poderiam ser presos?
Em primeiro lugar, de um ponto de vista pragmático, raramente o uso de escutas telefônicas é eficaz em crimes de ocorrência isolada, como assaltos a banco. Escutas telefônicas costumam ser usadas naqueles casos em que o “negócio” é estabelecido de maneira regular e contínuo—como o tráfico de drogas e os jogos de azar—e, portanto, tornam-se vulneráveis a táticas como espionagem e “grampos”. Em segundo, continuamos mantendo nosso argumento de que invadir a propriedade de alguém que ainda não foi condenado por um crime é um ato por si só criminoso. Pode ser verdade, por exemplo, que se o governo utilizar uma força de espionagem de dez milhões de homens para espionar e utilizar escutas em toda a população, a quantidade total de crimes privados seria reduzida—assim como ocorreria se todos os moradores de bairros pobres ou adolescentes do sexo masculino fossem prontamente encarcerados. Mas o que seria isto, em comparação com a grandeza do crime que estaria sendo cometido, de forma legal e despudorada, pelo próprio governo?
Há uma concessão que podemos fazer ao argumento da polícia, porém dificilmente a polícia ficaria satisfeita com esta concessão. Seria correto, por exemplo, invadir a propriedade de um ladrão que invadiu, num grau muito maior, a propriedade de outros. Suponhamos que a polícia decida que John Jones é um ladrão de jóias. Eles colocam escutas em seu telefone, e utilizam esta evidência para condenar Jones do crime. Podemos dizer que esta escuta foi legítima, e não deve sofrer punição; com a condição, no entanto, que se Jones acabar conseguindo provar que não é um ladrão, a polícia e os juízes que expediram o mandato judicial para a escuta passem a ser considerados, eles próprios, criminosos, e presos pelo crime de escutas telefônicas ilegais. Esta reforma teria duas consequências felizes: nenhum policial ou juiz teria qualquer relação com uma escuta telefônica a menos que tivessem certeza absoluta de que a vítima da escuta fosse, de fato, um criminoso; e policiais e juízes finalmente passariam a estar, juntamente com o resto da sociedade, sujeitos ao domínio do direito criminal. A igualdade de liberdade, certamente, exige que a lei seja aplicada a todos; portanto, qualquer invasão de propriedade de alguém que não cometeu crime algum feita por qualquer pessoa deve ser proibida, independentemente de quem cometeu o ato. O policial que calculou mal e agrediu, portanto, alguém que não cometeu nenhum crime deve, portanto, ser considerado tão culpado quanto qualquer um que faz uma escuta telefônica “privada”.
JOGOS DE AZAR
Existem poucas leis mais absurdas e iníquas que as leis contra os jogos de azar. Em primeiro lugar, estas leis, em seu sentido mais amplo, são claramente impossíveis de serem aplicadas. Se cada vez que Jim e Jack fizerem uma aposta discreta sobre o resultado de um jogo de futebol, ou uma eleição, ou sobre virtualmente qualquer coisa, estivessem cometendo um ato ilegal, uma enorme gestapo de milhões de homens seria necessária para espionar todas as pessoas e descobrir todas as apostas. Outra grande força de super-espionagem seria então necessária para espionar os espiões, e se assegurar de que eles não foram subornados. Conservadores gostam de responder a estes argumentos—utilizados contra leis que proíbem práticas sexuais, pornografias, drogas etc.—dizendo que a proibição contra o assassinato também não é totalmente possível de ser executada, mas ainda assim isto não serve como argumento para que esta lei seja revogada. Este argumento, no entanto, ignora um ponto crucial: a grande maioria do público, fazendo instintivamente uma distinção libertária, abomina e condena o assassinato, e não o comete; logo, a proibição se torna amplamente executável. Porém a grande maioria do público não está tão convencida do caráter criminoso dos jogos de azar e, portanto, continua a tomar parte neles, e a lei—apropriadamente—se torna inaplicável.
Uma vez que as leis contra as apostas informais são claramente impossíveis de serem aplicadas, as autoridades decidiram se concentrar em determinadas formas altamente visíveis de jogos de azar, e restringiram suas atividades a elas: roletas, agenciadores de apostas, loterias e jogos de “números”—em suma, todas aquelas áreas em que o jogo de azar é uma atividade razoavelmente regularizada. Porém temos aí então um tipo de julgamento ético peculiar e, seguramente, totalmente impossível de ser defendido: o de que roletas, apostas em corridas de cavalo etc., são de alguma maneira algo moralmente mal e que devem ser combatidos pelo poder maciço da polícia, enquanto apostas informais são moralmente legítimas e não precisam ser reprimidas.
No estado de Nova York, uma forma especial de imbecilidade foi desenvolvida ao longo dos anos: até recentemente, todas as formas de apostas em corridas de cavalo eram ilegais exceto aquelas feitas nas próprias pistas. Por que as apostas feitas nas pistas de corridas de Aqueduct ou Belmont são perfeitamente morais e legítimas, enquanto as apostas feitas na mesma corrida com o amigável agenciador de apostas do bairro são pecaminosas e degradam a imponente majestade da lei é algo que desafia a imaginação. A menos, claro, que consideremos o ponto da lei, que é forçar os apostadores a encher os cofres dos hipódromos. Recentemente, uma nova artimanha foi posta em prática. A própria cidade de Nova York entrou para o ramo das apostas em corridas de cavalos, e apostar nas lojas de apostas que pertencem à prefeitura é perfeitamente legítimo e adequado, enquanto apostar com agenciadores privados continua a ser imoral e proibido. O ponto deste sistema claramente é: primeiro, conceder um privilégio especial às pistas de corrida e, depois, aos estabelecimentos de apostas da própria cidade. Diversos estados também estão começando a financiar seus gastos crescentes através de loterias, que passam então a ser investidas com o manto da moralidade e da respeitabilidade.
Um argumento comum para a proibição dos jogos de azar é o de que se for permitido ao trabalhador pobre jogar, ele gastará de maneira imprudente seu salário, deixando desamparada a sua família. Além do fato de que ele continua podendo gastar seu salário em apostas informais, este argumento paternalista e ditatorial é curioso, pois ele é bem elucidativo: se devemos proibir os jogos de azar porque as massas podem gastar exageradamente seus recursos financeiros, por que não deveríamos proibir tantos outros artigos de consumo em massa? Afinal, se um trabalhador estiver determinado a gastar todo o seu salário, ele tem muitas oportunidades de fazê-lo: ele pode ser imprudente e gastar demais num aparelho de TV, num aparelho de som, em bebidas alcoólicas, equipamentos para jogar beisebol, e inúmeros outros bens de consumo. A lógica de se proibir um homem de jogar, para o seu bem ou o de sua família, leva diretamente à jaula totalitária, a jaula em que o papai governo diz ao homem exatamente o que ele deve fazer, como gastar seu dinheiro, quantas vitaminas ele deve ingerir, e o força a obedecer aos ditames do estado.
NARCÓTICOS E OUTRAS DROGAS
O argumento para a proibição de qualquer produto ou atividade é, essencialmente, o mesmo argumento duplo que vimos ser usado para justificar a internação compulsória de pacientes mentais: eles poderão prejudicar a pessoa envolvida, ou fazer com que esta pessoa cometa crimes contra outras. É curioso como o horror generalizado—e justificado—às drogas gerou na maior parte do público um entusiasmo irracional pela sua proibição. O argumento contra a proibição dos narcóticos e drogas alucinógenas é muito mais fraco que o argumento contra a Lei Seca, um experimento que, espera-se, o terrível período da década de 1920 tenha desacreditado para sempre. Pois enquanto os narcóticos fazem, sem dúvida, muito mais mal que o álcool, este também pode fazer muito mal, e proibir algo porque ele pode fazer mal a quem o utiliza nos conduz diretamente pelos caminhos que levam à jaula totalitária, onde as pessoas são proibidas de comer doces e são forçadas a comer iogurte “para o seu próprio bem”. No entanto, em termos do argumento muito mais convincente que diz respeito ao dano que pode ser causado aos outros, o álcool tem muito mais probabilidade de provocar crimes, acidentes de automóvel etc., do que os narcóticos, que deixam os seus usuários anormalmente pacíficos e passivos. Existe, claro, uma ligação muito forte entre o vício e a criminalidade, porém a ligação é o inverso de qualquer argumento a favor da proibição. Os crimes são cometidos por viciados que são levados a roubar devido ao alto preço das drogas, que por sua vez são causados pela própria proibição! Se os narcóticos fossem legais, a oferta aumentaria consideravelmente, os altos custos dos mercados negros e subornos a policiais desapareceriam, e o preço seria suficientemente baixo para eliminar a maior parte dos crimes causados pelo vício.
Isto não implica, obviamente, argumentar a favor da proibição do álcool; mais uma vez, proibir algo quepossa levar alguém a cometer um crime é uma agressão ilegítima e invasiva dos direitos de uma pessoa e de sua propriedade, uma agressão que, novamente, serviria para justificar ainda mais o encarceramento imediato de todos os adolescentes do sexo masculino. Apenas a execução patente de um crime deveria ser ilegal, e a maneira de se combater os crimes cometidos sob a influência do álcool é ser mais rigoroso com os crimes em si, e não proibi-lo. E isto ainda teria o benefício adicional de reduzir o número de crimes que nãofossem cometidos sob a influência dele.
O paternalismo, nesta área, não vem apenas da direita; é curioso que enquanto os progressistas geralmente estão a favor da legalização da maconha, e por vezes até mesmo da heroína, eles parecem ansiar pela proibição do tabaco, argumentando que fumar cigarros frequentemente pode causar câncer. Os progressistas já conseguiram utilizar o controle federal da televisão para proibir a publicidade de cigarros naquela mídia—desferindo assim um golpe grave na própria liberdade de expressão que os progressistas supostamente tanto estimam.
Novamente: todo homem tem o direito de escolher. Façam quantas propagandas quiserem contra os cigarros, porém deixem o indivíduo livre para viver sua própria vida. De outro modo, passemos então a proibir todos os tipos de possíveis agentes carcinogênicos—incluindo sapatos apertados, dentaduras mal-encaixadas, a exposição excessiva aos raios solares, assim como o consumo excessivo de sorvetes, ovos e manteiga, que podem provocar doenças cardíacas. E, se tais proibições se revelarem impossíveis de serem aplicadas, novamente a lógica será colocar as pessoas em jaulas, para que recebam a quantidade apropriada de sol, a dieta correta, os sapatos de tamanho adequado, e assim por diante.
CORRUPÇÃO POLICIAL
No outono de 1971, a Comissão Knapp concentrou a atenção pública no problema da corrupção policial que assolava a cidade de Nova York. Em meio ao drama dos casos individuais, existe o perigo de não se dar a devida atenção àquele que é claramente o problema central, um problema do qual a própria Comissão Knapp estava consciente. Em praticamente todos os casos de corrupção, os policiais estavam envolvidos em negócios que funcionavam regularmente, apesar de terem sido declarados ilegais por ordem do governo. E, ainda assim, um número imenso de pessoas, ao exigir estes bens e serviços, mostrou que não concordam que estas atividades devam ser colocadas na mesma categoria que assassinatos, roubos ou agressões. De fato, em praticamente nenhum dos casos a “compra” da polícia envolveu qualquer um destes crimes abomináveis. Em quase todos os casos, eles consistiam apenas em fazer com que a polícia fizesse de conta que não estava vendo enquanto transações legítimas e voluntárias ocorriam.
O direito comum faz uma distinção vital entre um crime que é um malum in se e um que é apenas um malum prohibitum. Um malum in se é um ato no qual a maioria das pessoas sente instintivamente ser um crime repreensível, que deve ser punido. Isto coincide aproximadamente com a definição dos libertários de um crime como uma invasão cometida contra uma pessoa ou sua propriedade: agressão, assalto e assassinato. Outros crimes são atividades que foram transformadas em crimes por um edito governamental: é nesta área muito mais amplamente tolerada que ocorre a corrupção policial.
Em suma, a corrupção policial ocorre naquelas áreas em que empreendedores fornecem serviços voluntários a consumidores, mas que estes serviços foram declarados ilegais pelo governo: narcóticos, prostituição e jogos de azar. Onde quer que os jogos de azar sejam proibidos, por exemplo, a lei coloca nas mãos dos policiais destacados para coibir estes jogos o poder de vender o privilégio de se envolver neste negócio. Resumindo, é como se a polícia recebesse o poder de emitir licenças especiais para se tomar parte destas atividades, e então vendesse essas licenças, extraoficiais, porém vitais, ao preço que seja ditado pelo tráfico. Um policial testemunhou que se as leis fossem aplicadas em sua integridade, nenhuma construção na cidade de Nova York poderia continuar a ser realizada, tamanha é a rede de regulamentações, triviais e impossíveis, tecida pelo governo em torno do ramo da construção civil. Em suma, seja conscientemente ou não, o governo procede da seguinte maneira: primeiro ele proíbe determinada atividade—drogas, jogos de azar, construção, ou o que for—e então a polícia governamental vende àqueles que pretendem ser empreendedores naquele campo o privilégio de entrar e continuar no negócio.
Na melhor das hipóteses, o resultado destas atitudes é a imposição de um custo mais alto, e de uma produção mais restrita, do que ocorreria se esta atividade fosse realizada num mercado livre. Os efeitos, no entanto, são ainda mais perniciosos. Muitas vezes o que o policial vende não é apenas a permissão para o funcionamento, mas o que acaba constituindo na prática um monopólio privilegiado. Neste caso, o agenciador de apostas paga à polícia não só para continuar a poder operar, mas também para que ela elimine quaisquer concorrentes que possam querer entrar neste campo. Os consumidores ficam então atrelados a estes monopolistas privilegiados, e são impedidos de gozar das vantagens da concorrência. Não é de se surpreender, portanto, que quando a Lei Seca finalmente foi abolida, no início da década de 1930, os principais oponentes de sua abolição eram, juntamente com os grupos fundamentalistas e proibicionistas, os contrabandistas e fabricantes clandestinos de bebidas alcoólicas, que até então gozavam dos privilégios monopolísticos especiais de seus acordos especiais com a polícia e os outros braços do governo encarregados de aplicar a lei.
A maneira de se eliminar a corrupção policial, portanto, é simples, porém eficaz: abolir as leis contra atividades comerciais voluntárias e contra todos os “crimes sem vítimas”. Isto não apenas eliminaria a corrupção, mas também liberaria um grande número de policiais para se dedicar a combater os criminososreais, aqueles que cometem agressões contra as pessoas e suas propriedades. Afinal esta deveria ser, em primeiro lugar, a função da polícia.
Devemos nos dar conta, então, que o problema da corrupção policial, assim como a questão maior da corrupção governamental em geral, precisa ser colocado num contexto mais amplo. O ponto é que, dadas as leis infelizes e injustas que proíbem, regulamentam e cobram impostos sobre determinadas atividades, a corrupção é altamente benéfica à sociedade. Em diversos países, sem a corrupção para anular as proibições, impostos e exigências do governo, seria praticamente impossível qualquer tipo de comércio ou indústria. A corrupção lubrifica as rodas do comércio. A solução, portanto, não é lamentar a corrupção e redobrar o combate a ela, mas sim abolir as políticas e leis governamentais danosas que tornam a corrupção necessária.
LEIS DE ARMAS
Na maior parte das atividades citadas neste capítulo, os progressistas tendem a favorecer a liberdade de comércio e de atividade, enquanto os conservadores advogam uma aplicação mais rigorosa e uma repressão máxima contra aqueles que violam as leis. No entanto, misteriosamente, no que diz respeito às leis relacionadas a armas de fogo as posições tendem a ser invertidas. Cada vez que uma arma é usada num crime violento, os progressistas redobram suas campanhas pela restrição severa, ou até mesmo a proibição, da propriedade privada de armas de fogo, enquanto os conservadores se opõem a tais restrições em nome da liberdade individual.
Se, como crêem os libertários, todo indivíduo tem o direito a possuir sua pessoa e sua propriedade, ele tem, por consequência, o direito de usar a violência para se defender da violência das agressões criminosas. Porém, por algum motivo estranho, os progressistas vêm tentando sistematicamente privar pessoas inocentes dos meios de se defenderem destas agressões. Apesar do fato de que a Segunda Emenda da constituição garante que “o direito das pessoas de possuir e portar armas não será infringido”, o governo vem erodindo de forma sistemática este direito. Assim, no estado de Nova York, bem como na maioria dos outros estados, a Lei Sullivan proíbe o porte de “armas ocultas” sem uma licença emitida pelas autoridades. Não só o porte de armas foi gravemente restringido por este edito inconstitucional, mas o governo também estendeu esta proibição a quase todos os objetos que possam ser utilizados como armas—mesmo aqueles que só podem ser usados para a legítima defesa. Por consequência, pessoas que podem ser vítimas em potencial de um crime foram impedidas de carregar facas, canetas de gás lacrimogêneo, ou até mesmo alfinetes de chapéus, e aqueles que utilizaram estes objetos para se defender de agressões acabaram se vendo processados pelas autoridades. Nas cidades, esta proibição invasiva contra as armas ocultas acabou, na prática, por remover das vítimas qualquer possibilidade de autodefesa contra atos criminosos. (É verdade que não existe uma proibição oficial contra o porte de uma arma não-oculta, porém um homem que, há alguns anos atrás, na cidade de Nova York, testou a lei ao caminhar pelas ruas com um rifle em suas mãos foi prontamente preso por “perturbar a paz”.) Além disso, as vítimas estão de tal forma com suas mãos atadas pelas medidas contra o uso de força “desproporcional” na defesa própria que o criminoso acaba recebendo automaticamente uma enorme vantagem inerente do sistema legal em vigor.
Deveria ser claro que nenhum objeto físico é, por si só, agressivo; qualquer objeto, seja ele uma arma de fogo, uma faca, ou um bastão, pode ser usado para cometer uma agressão, para a defesa, ou para diversos outros propósitos sem qualquer relação com atividades criminosas. Não faz mais sentido proibir ou restringir a compra e propriedade de armas de fogo do que proibir a posse de facas, porretes, alfinetes de chapéu ou pedras. E como poderiam ser proibidos todos estes objetos, e, caso o fossem, como esta proibição seria posta em prática? Em vez de perseguir pessoas inocentes que portam ou possuem diversos objetos, a lei deveria se preocupar em combater e prender os verdadeiros criminosos.
Existe, além disso, outra consideração que reforça nossa conclusão. Se as armas forem restritas ou proibidas, não existem motivos para se imaginar que aqueles determinados a cometer um crime darão muita atenção a esta lei. Os criminosos, portanto, sempre serão capazes de comprar e portar armas; apenas suas vítimas inocentes sofrerão com o progressismo solícito que impõem leis contra armas. Assim como as drogas, os jogos de azar e a pornografia deveriam ser legalizados, também o deveriam ser armas de fogo e quaisquer outros objetos que possam servir como armas para serem usadas em legítima defesa.
Num célebre artigo atacando o controle das armas de fogo (o tipo de armas que os progressistas mais querem restringir), o professor de Direito da Universidade de St. Louis, Don B. Kates, Jr. repreendeu seus colegas progressistas por não aplicar às armas a mesma lógica que utilizam em relação às leis relativas à maconha. Nele, o professor aponta que existem hoje em dia mais de 50 milhões de proprietários de pistolas ou revólveres nos Estados Unidos, e que, com base em pesquisas e nas experiências prévias, de dois terços a mais de 80% dos americanos não respeitariam uma proibição deste tipo de armamento. O resultado inevitável, como no caso das leis relativas a práticas sexuais e à maconha, seriam punições severas e uma aplicação da lei ainda mais seletiva—gerando desrespeito pela lei e pelas agências responsáveis em aplicá-la. E a lei seria aplicada de maneira seletiva contra aquelas pessoas que as autoridades não gostassem: “a aplicação se torna cada vez mais fortuita, até que, por fim, as leis passam a ser utilizadas apenas contra aqueles que são impopulares com a polícia. É desnecessário que sejamos lembrados das táticas abomináveis de busca e apreensão às quais a polícia e os agentes governamentais frequentemente recorrem para aprisionar aqueles que violam estas leis.” Kates acrescenta que “se estes argumentos parecem familiares, é provavelmente porque são paralelos ao argumento progressista padrão contra as leis relativas à maconha.”[8]
Kates acrescenta então uma constatação extremamente perspicaz a respeito deste curioso ponto cego progressista.
A proibição das armas de fogo é uma invenção dos progressistas brancos da classe média, que estão alheios à situação dos pobres e das minorias que vivem em áreas onde a polícia desistiu de controlar a criminalidade. Estes progressistas também não se incomodavam com as leis contra a maconha na década de 1950, quando as prisões estavam restritas aos bairros pobres. Seguros em seus subúrbios bem policiados ou apartamentos de alta-segurança protegidos por Pinkertons (que ninguém propõe desarmar), o progressista absorto ridiculariza a posse de armas de fogo como “um anacronismo do Velho Oeste.”[9]
Kates ainda aponta o valor, demonstrado empiricamente, da defesa própria feita com armas de fogo; em Chicago, por exemplo, civis armados mataram, em legítima defesa, três vezes mais criminosos nos últimos cinco anos do que a polícia. E, num estudo feito a partir de centenas de confrontos violentos com criminosos, Kates descobriu que os civis armados têm mais sucesso que a polícia: ao se defenderem, os civis capturaram, feriram, mataram ou assustaram criminosos em 75% dos confrontos, enquanto a polícia teve apenas uma taxa de sucesso de 61%. É verdade que as vítimas que resistem a um assalto têm mais probabilidade de serem feridas do que aquelas que permanecem passivas. Porém Kates indica alguns fatores que não são levados em conta: (1) que a resistência sem arma é duas vezes mais arriscada para a vítima do que a resistência com uma, e (2) que a escolha de como resistir cabe à vítima, e às suas circunstâncias e valores.
Evitar ser ferido será de suma importância para um acadêmico progressista branco, com uma conta bancária confortável, e será necessariamente menos importante para o trabalhador casual ou o indivíduo que recebe seguro-desemprego que está tendo roubado os meios com os quais ele iria sustentar sua família por um mês—ou para o cidadão negro, proprietário de um comércio, que não consegue obter seguro contra roubos e será literalmente levado à falência pelos sucessivos assaltos.
E a pesquisa de 1975 realizada pela organização Decision Making Information com proprietários de revólveres e pistolas descobriu que os principais subgrupos que possuem armas de fogo apenas para a defesa própria incluem negros, os grupos com as faixas salariais mais baixas, e aposentados. “São estas pessoas”, Kates avisa eloquentemente, “que se propõe encarcerar porque insistem em manter a única forma de proteção disponível para suas famílias nas áreas em que a polícia desistiu.”[10]
E o que falar da experiência histórica? Por acaso a proibição de pistolas e revólveres realmente diminui consideravelmente o grau de violência na sociedade, como alegam os progressistas? As evidências apontam exatamente para o contrário. Um amplo estudo feito pela Universidade de Wisconsin no outono de 1975 concluiu, de maneira inequívoca, que “as leis de controle de armas de fogo não tiveram qualquer efeito individual ou coletivo na redução das taxas de crimes violentos.” O estudo de Wisconsin, por exemplo, testou a teoria de que pessoas pacíficas se sentirão irresistivelmente tentadas a utilizá-las se elas estiverem ao seu alcance quando seus temperamentos forem postos à prova por uma situação de desgaste. O estudonão encontrou qualquer relação entre os números de proprietários de armas de fogo e as taxas de homicídio, quando estas foram comparadas, em todos os estados. Além disso, esta descoberta foi reforçada por estudo feito em 1976 em Harvard sobre uma lei de Massachusetts que previa uma pena mínima de um ano de cadeia para qualquer um que fosse descoberto em posse de uma pistola ou revólver sem uma permissão do governo. O que ocorreu foi que, em 1975, a lei promulgada em 1974 de fato reduziu consideravelmente o número de pessoas que portavam armas de fogo e o número de agressões cometidas com elas. Porém, eis que os pesquisadores de Harvard descobriram, para sua surpresa, que não ocorreu uma redução correspondente em qualquer tipo de violência. Isto é,
Como estudos criminológicos anteriores sugeriram, privado de um revólver ou de uma pistola, um cidadão que esteja passando por um momento de fúria recorrerá a uma arma de fogo de maior potência, muito mais letal. Privada de qualquer tipo de arma de fogo, esta pessoa se revelará capaz de cometer um ato quase tão letal utilizando-se de facas, martelos etc.
E, claramente, “se reduzir a posse de revólveres e pistolas não reduz o número de homicídios ou outros atos violentos, uma proibição destas armas é apenas mais um desvio dos recursos policiais dos crimes legítimos para um crime sem vítimas.”[11]
Finalmente, Kates levanta outro ponto intrigante: que uma sociedade onde os cidadãos pacíficos estão armados tem muito mais probabilidade de ser uma sociedade onde existam bons samaritanos dispostos a auxiliar voluntariamente as vítimas de crimes. Porém ao remover as armas de fogo das pessoas, o público—desgraçadamente, para as vítimas—tenderá a deixar o assunto nas mãos da polícia. Antes do estado de Nova York proibir os revólveres e pistolas, os exemplos de atos cometidos por “bons samaritanos” eram muito mais frequentes do que agora. E, numa recente pesquisa sobre este tipo de ocorrência, pelo menos 81% destes “samaritanos” eram proprietários de armas de fogo. Se desejamos encorajar uma sociedade na qual os cidadãos saiam em defesa de seus vizinhos, quando estes estiverem numa situação de risco, não devemos remover deles o poder real de fazer algo a respeito do crime. Seguramente, é o auge do absurdo desarmar o público pacífico para então, como ocorre com frequência, acusá-lo de “apatia” por não se prontificar a auxiliar as vítimas de uma agressão criminosa.
[1] Para uma crítica do critério de “perigo claro e imediato” como sendo insuficiente para se estabelecer uma linha clara entre a defesa e o ato manifesto, ver Alexander Meiklejohn, Political Freedom (Nova York: Harper and Bros., 1960), p. 29–50; e O. John Rogge, The First and the Fifth (Nova York: Thomas Nelson and Sons, 1960), p. 88ss.
[2] Em inglês, sit-ins, forma de greve branca na qual os participantes se sentam em determinado lugar e recusam-se a sair dali até que se chegue a um acordo.
[3] Nas decisões de Hoover v. Intercity Radio Co., 286 Fed. 1003 (Appeals D.C., 1923); e United States v. Zenith Radio Corp., 12 F. 2d 614 (ND. Ill., 1926). Ver o excelente artigo de Ronald H. Coase, “The Federal Communications Commission,” Journal of Law and Economics (outubro de 1959): 4–5.
[4] Ibid., p. 31n.
[5] Harry P. Warner, Radio and Television Law (1958), p. 540. Citado em Coase, “The Federal Communications Commission,” p. 32.
[6] Decisões da FRC, Docket No. 967, 5 de junho de 1931. Citado em Coase, “The Federal Communications Commission,” p. 9.
[7] O melhor e mais bem-elaborado retrato de como os direitos de propriedade privada podem ser determinados no rádio e televisão está em A. DeVany et al., “A Property System for Market Allocation of the Electromagnetic Spectrum: A Legal-Economic-Engineering Study,” Stanford Law Review (junho de 1969). Ver também William H. Meckling, “National Communications Policy: Discussion,” American Economic Review, Papers and Proceedings (maio de 1970): 222–23. Desde o artigo de DeVany, o crescimento da televisão comunitária e a cabo diminuiu ainda mais a escassez de frequências e aumentou o escopo da competição em potencial.
[8] Don B. Kates, Jr., “Handgun Control: Prohibition Revisited,” Inquiry (5 de dezembro de 1977): 21. Esta escalada na aplicação rigorosa da lei e nos métodos despóticos de busca e apreensão já está aqui. Não apenas na Grã-Bretanha e em diversos outros países onde buscas indiscriminadas por armas de fogo são realizadas; na Malásia, Rodésia, Taiwan e Filipinas, que impõem a pena de morte para a posse de armas de fogo, mas também no Missouri, onde a polícia de St. Louis realizou literalmente milhares de revistas em pessoas negras nos últimos anos, com base na teoria de que qualquer negro dirigindo um carro de último tipo deve ter uma arma ilegal, e no Michigan, onde quase 70% de todos os processos relacionados a armas de fogo foram anulados pelos tribunais de apelação por procedimentos ilegais nas revistas. E um oficial da polícia de Detroit já advogou a abolição da Quarta Emenda, visando permitir revistas e buscas indiscriminadas e generalizadas naqueles que violarem uma futura proibição de revólveres e pistolas. Ibid., p. 23.
[9] Ibid., p. 21.
[10] Ibid. A ideia extremamente rigorosa de se encarcerar as pessoas pela mera posse de revólveres ou pistolas não é um espantalho inverossímil, mas sim exatamente o beau ideal do progressista: a emenda constitucional de Massachusetts, felizmente derrotada de maneira contundente pelo voto popular em 1977, previa uma sentença mandatória mínima de um ano de cadeia para qualquer pessoa que fosse pega em posse de um revólver ou pistola.
[11] Ibid., p. 22. Na Grã-Bretanha, de maneira semelhante, um estudo de 1971 da Universidade de Cambridge descobriu que a taxa de homicídio daquele país, após a proibição de revólveres e pistolas, havia dobrado nos últimos 15 anos. Além disso, antes da adoção desta proibição, em 1920, o uso de armas de fogo em atos criminosos (quando não havia qualquer tipo de restrição às armas) era muito menor do que hoje em dia.