Justiça injusta

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Que é justiça?

Se fizesse a seguinte pergunta ao brasileiro mediano: “Que é uma sociedade justa?”, ele certamente responderia: “É uma sociedade na qual as pessoas podem viver em paz sem ser lesadas ou violentadas.”

Todo debate relativo à justiça tem por intento último o de fornecer a ambas as partes debatedoras o ideal de um código de valores éticos pela adesão do qual o homem possa viver em paz com os outros, isto é, viver pacificamente, não agressivamente à propriedade alheia.

Cabe lembrar que a definição conceitual de agressão faz referência ao ato de agredir algo (nesse contexto, a propriedade). O que implica que a propriedade, enquanto direito inviolável, precede qualquer raciocínio concernente à ética, pois o que leva o homem a debater justiça seguramente não é o prazer decorrente do exercício dialético da razão, mas o desejo de manter apropriadamente resguardados os seus direitos de propriedade, pela aderência de princípios axiológicos objetivamente deriváveis.

O que contradita a propriedade, portanto, não somente se põe a contraditar o direito mais fundamental do homem, entretanto evade do que levou o mesmo a pensar racionalmente acerca da justiça: o desejo de não ser violentado – ou seja, mais especificamente, o desejo de não ter transgredida a sua propriedade.

Uma sociedade completamente justa, dessa forma, é uma sociedade completamente ausente de agressões – conclui-se, anárquica, visto que o estado se mantém por vias tributárias, isto é, por vias caracteristicamente concernentes à captação não consentida (forçosa) da propriedade dos “contribuintes”.

Todo raciocínio discursivo que preconiza atos de agressão é eticamente indefensável, posto que, se é verdade que a ética tem por propósito existencial o de cessar terminantemente a agressão em todas as suas formas concebíveis, qualquer raciocínio, então, que legitime uma forma de agressão no tecido social (seja tributária ou outra), em última análise, se coloca favoravelmente à permanência de uma sociedade injusta, a antítese suma da justiça. Uma sociedade justa deve ser, por necessidade, voluntarista (anarcocapitalista).

Por conclusão, todo raciocínio discursivo cuja intenção seja a de conferir legitimidade ao estado, não apenas não se justifica eticamente por legitimar uma forma de agressão (a tributária), pervertendo consequentemente a função protetiva da justiça, o seu fundamento existencial, porém por, nota-se, prestar um desserviço irracional à ética, propondo a agressão institucionalizada como uma forma alegadamente válida de cessar as agressões.

Thomas Hobbes, o primeiro promotor da justiça injusta

Os hobbesianos dizem que a propriedade vem posteriormente ao estado, que este surgiu de um contrato social intencionado para inibir os impulsos selvagens do homem, derrogar a guerra de todos contra todos e possibilitar a existência da sociedade, já que, segundo a teoria hobbesiana, a percepção de direitos inalienáveis é ontologicamente impossível ao homem na ausência do estado.

Para fins puramente proposicionais, vamos assumir que o estado é uma entidade destinada fundamentalmente à proteção dos direitos humanos.

Cabe, então, perguntar ao hobbesiano: “o que levou certos homens a compor, mediante contrato social, o estado como uma entidade de caráter essencialmente protetivo, senão a percepção de direitos que estavam desprotegidos e transgredidos?”.

Ora, se a propriedade procede originariamente do estado e não existe por si mesma, qual foi o motivo de o estado surgir enquanto entidade alegadamente protetiva senão algo independente a ser protegido? Quer dizer, se a propriedade, enquanto direito inviolável, vem só ulteriormente ao estado, qual foi a razão de certos homens constituírem o estado mesmo para que o tal mantivesse devidamente inviolados dados direitos, sendo a existência de direitos invioláveis supostamente perceptível ao homem tão-só sob o estado e não antes dele?

Além do mais, se os impulsos selvagens do homem foram tais que o mesmo não podia possivelmente querer cooperar com os demais ou perceber a inviolabilidade de determinados princípios, cabe, então, perguntar por curiosidade ao hobbesiano o que compeliu o homem à composição de uma entidade de funcionalidade explicitamente protetiva, senão a vontade de resguardar a inviolabilidade previamente percebida de determinados princípios ou a vontade de cooperar em paz com seus próximos (a forma da interdição consciente da sua selvageria impulsiva)?

Se o homem fosse absolutamente incapaz de inibir os seus impulsos agressivos, por que comporia uma entidade coativa cuja missão primordial fosse a de assegurar a não agressão, a cooperação? Se o homem fosse instintivamente agressivo de modo tal que não pudesse possivelmente querer cooperar com os outros, não buscaria descobrir jeitos comparativamente mais lucrativos de extorquir ao invés de descobrir um jeito de compor uma ordem regencial sob a qual pudesse manter integralmente possuídos os frutos do seu trabalho e ter a certeza de que todo e qualquer agressor seria punido?

Se a propriedade é imperceptível ao homem perante a ausência do estado, por que certos homens, grupalmente, objetivaram compor uma entidade cujo propósito fundante era o de proteger a propriedade e garantir a cooperação?

São perguntas que Thomas Hobbes e seus seguidores não responderam.

Os falsos direitos

Frédéric Bastiat, em seu livro A Lei, conceituou “lei” de forma bastante acertada: “O que é então a lei? É a organização coletiva do direito individual de legítima defesa.”.

A lei, segundo a tradição ocidental, deve destinar-se à proteção dos direitos naturais, diga-se, vida, liberdade e propriedade. Tais direitos também são chamados de direitos negativos, pois pressupõem um “não fazer”, ou seja, “não matar”, “não roubar”, “não violar”, etc., etc.

A tradição ocidental tem sua forma mais clara num breve trecho da declaração de independência dos EUA, entendendo por “governo” não “estado”, mas, percebe-se, “organização coletiva do direito individual de legítima defesa”:

“Consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas, que todos os homens são criados iguais, dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a procura da felicidade. Que a fim de assegurar esses direitos, governos são instituídos entre os homens, derivando seus justos poderes do consentimento dos governados; que, sempre que qualquer forma de governo se torne destrutiva de tais fins, cabe ao povo o direito de alterá-la ou aboli-la e instituir novo governo, baseando-o em tais princípios e organizando-lhe os poderes pela forma que lhe pareça mais conveniente para realizar-lhe a segurança e a felicidade.”

Miseravelmente, o conceito de “direitos naturais” está sendo manchado pelo de “direitos sociais”.

O governo deixou de defender a vida, a liberdade e a propriedade do homem e passou a ser visto como estado, uma entidade monopolística cuja atuação deve idealmente garantir o bem-estar do povo mediante prestação de serviços e privilégios jurídicos (diga-se: renda básica, emprego, saúde, educação, habitação, etc.).

Ora, todo indivíduo tem o direito de ter o emprego que quiser, o plano de saúde que quiser, ser educado da forma que desejar e edificar a sua casa do jeito que considerar esteticamente mais refinado. Absolutamente ninguém deveria interferir nas escolhas pessoais do indivíduo, uma vez que qualquer interferência arbitrária no direito de escolha de alguém implica em agredir a liberdade deste alguém.

Entretanto, quando se fala em “direitos sociais” se fala em atribuições jurídicas cidadãs, as quais, por artifícios hermenêuticos mirabolantes, naturalmente extrapolam a mera proteção de direitos e se transformam na violação de direitos.

Esses “direitos” são os direitos positivos, posto que a educação, por exemplo, não existe em si mesma, quer dizer, é simplesmente um serviço cuja consecução se dá pelo trabalho do professor. Portanto, aquele que milita exigindo educação gratuita, não exige educação gratuita puramente, mas exige, em termos literais, o trabalho gratuito do professor enquanto tal, ou, então, o dinheiro por intermédio do qual o trabalho do professor será pago. Da mesma forma, aquele que exige uma habitação gratuita, não exige simplesmente uma habitação gratuita, mas o trabalho gratuito do construtor, do pedreiro, ou, então, os recursos monetários com os quais o construtor será remunerado.

O estado, porém, nada tem. Ele poderia, talvez, obrigar via chicote o professor a trabalhar gratuitamente e chamar tal prática de “educação”, mas fazer isso lhe renderia profundo descrédito. Está disponível ao estado, porém, um jeito através do qual o mesmo não é infortunado, mas vastamente aplaudido: taxação.

Ao invés, então, de obrigar diretamente o professor a trabalhar como tal, obriga via violência outras pessoas a remunerarem o trabalho do professor, e assim opera no que tange os demais direitos positivos: obriga os pagadores de impostos a sustentarem esquemas distributivos, obriga os pagadores de impostos a financiarem a construção de habitações incomensuravelmente putrefeitas, etc. etc.

Tais obrigatoriedades “cidadãs” são absolutamente nada mais que lesões à propriedade, a premonição incomestível da injustiça.

Como o estado tem à sua disposição o monopólio do uso da força, cuja sustentabilidade se dá pela passividade do povo, estranhamente baseada numa espécie de misticismo idólatra, com frequência as ruas se deparam com manifestantes exigindo do estado os seus direitos sociais.

Enquanto todos, no entanto, exigem os seus direitos respectivos, o estado, no que lhe diz respeito, estupra o direito de propriedade tanto quanto possível, o princípio sobre o qual a sociedade sempre se manteve civilmente vigorosa e sólida.

 

4 COMENTÁRIOS

  1. “Uma sociedade completamente justa, dessa forma, é uma sociedade completamente ausente de agressões – conclui-se, anárquica…”
    Acredito que uma sociedade justa seria uma sociedade onde a agressão não é aceita/legalizada e não onde há ausência de agressão. Ausência de agressão é ideologia, na prática é impossível. O que acontece agora é que a agressão é legalizada pelo estado e “aceita” pelas pessoas.

  2. Dale, talvez “agressões legais” [legalizadas/aceitas] fosse um termo mais preciso nesse caso.
    Mas creio que o entendimento se manteve.
    Boa observação.

  3. Excelente artigo!

    A agressão e violência não podem deixar de existir, desde que elas sejam para reestabelecer a justiça! Sou totalmente a favor da violência e da agressividade. O mundo está neste estado lamentável justamente porque os indivíduos que fazem partes das “elites”, estão rapidamente – para os padrões darwinianos, se afeminando. É bem isso, homens parecem mulherzinhas. É fato concreto que os níveis de testosterona estão desabando década após década.

    Vejamos o seguinte. Porque um vagabundo assalta armado ou rouba e sai correndo? porque é absolutamente natural, e todas as partes envolvidas sabem: é biologicamente esperado uma resposta à uma agressão injusta (isso serve também para quebra de contratos). A legítima defesa portanto pressupõe, do ponto de vista do vagabundo, um ato agressivo e violento contra ele. E tem que ser assim mesmo e ponto final. Mas nossas elites afeminadas gostam de violência e agressividade, mas somente contra pessoas pacíficas, não contra delinquentes Tempos atrás, um cara tatuou “vacilão” na testa de um vagabundo. Foi pouco. Além do cidadão honesto ter sido discriminado, alguém pagou a remoção da tatuagem. Que mundo é esse?

    A sociedade vai conviver eternamente com indivíduos com propensão ao crime. Lombroso estava certo: algumas pessoas nascem com características criminosas, e na minha opinião, é algum problema na genética dos caras, porque de fato, tem indivíduos que não conseguem ter empatia. Mas em uma sociedade de anarquia de propriedade privada, os indivíduos engajados em atividades criminosas provavelmente não fosse superior a 3% da população, número constante e facilmente administrável por uma justiça e polícia privada – e sem direitos humanos pra marginal.

    O estado leviatã, como diz mestre Murray fucking Rothbard, é uma gangue de ladrões em larga escala. Faz parte da sua agenda de poder, privatizar a violência par que ele se justifique. E ele usa 3 eixos: (1) redução do efetivo policial ao longo do tempo; (2) leis brandas contra crimes contra a propriedade privada; (3) desarmamento civil.

    Neste sentido, o estado é agressivo por natureza e ele não precisa se justificar. A violência agressiva legalizada contra indivíduos pacíficos é propaganda, pois seria algo com a quadradura do círculo. Serve apenas para diminuir custos de transação da máfia estatal, pois evidentemente, para o gado estatal, se está na “lei”, ninguém vai resistir aos cobradores de impostos.

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